Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
FORTALEZA
2020
“É nos dossiês dos arquivos da polícia que se encontra
nossa única imortalidade.” (KUNDERA, 2008, p. 106).
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 05
2 “ENTRE ARMAS E LIVROS”: NOTAS DE ANÁLISE SOBRE A PES-
QUISA DE CAMPO E O LUGAR DE FALA DO POLICIAL-PESQUISA-
DOR ...................................................................................................................... 09
2.1 “Esse cara não parece mais policial”: desagregando o hábitus policial e
formulando caminhos para a compreensão do objeto ....................................... 09
2.2 A superação das primeiras impressões: narrativas comuns e
desconstruções de imagens e marcas da polícia de “antigamente” ............... 20
2.3 Trajetória, investigação e estudo: campo e pesquisa itinerante na Guarda
Municipal de Fortaleza, na Polícia Militar e na Polícia Civil do
Ceará ..................................................................................................................... 27
2.3.1 “A guarda não é mais a mesma”: percepção da organização política e profissional da
Guarda Municipal de Fortaleza e outras impressões do campo na primeira
visita ................................................................................................................................. 31
2.3.2 “A delegacia de polícia é um lugar de desalento”: campo e cotidiano de trabalho na
Delegacia de Capturas e Polinter ..................................................................................... 44
2.3.3 “Um civil no quartel”: recepção, impressões do campo e contato com os policiais
militares na 3ªCIA/5ºBPM ................................................................................................ 53
3 “TRAÇOS E CONTRASTES DA POLÍCIA CEARENSE”: UM OLHAR
SOBRE A CONSTRUÇÃO DAS DISTINTAS PERSONALIDADES
PROFISSIONAIS DOS AGENTES DA LEI ...................................................... 63
3.1 “NOS BASTIDORES DA POLÍCIA LOCAL”: conservadorismo,
informalidade e transformação do trabalho policial ......................................... 63
3.1.1 Visão Reativa: a internalização da autoridade policial, da ação e da dramatização do
fenômeno criminal ........................................................................................................... 70
3.1.2 Visão Normativa: um conflito elementar entre legalidade, discricionariedade e
realidade do trabalho policial ........................................................................................... 79
3.1.3 Visão Crítica: uma ilustração do paradigma clássico e o prefácio da mudança na
atividade policial ............................................................................................................... 85
4 “MANDA QUEM PODE, OBEDECE QUEM TEM JUÍZO”: A OUTRA
FACE DA HIERARQUIA E DA DISCIPLINA NAS ORGANIZAÇÕES
POLICIAIS .......................................................................................................... 92
4.1 O “Espírito de corpo” e a sujeição do indivíduo policial: a internalização da
disciplina (e da hierarquia) e o cenário de isolamento social da polícia ............ 94
4.2 “Peixe, peixinho e peixada”: a (des) valorização profissional dos agentes
menores e os arranjos hierárquicos na polícia cearense .................................... 98
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 104
REFERÊNCIAS ................................................................................................... 113
5
1 INTRODUÇÃO
[...] Sei não viu, esse cara não parece mais policial! Tu não é “cana” de
verdade mais não, porra? [...] (POLICIAL CIVIL, 6 anos de carreira).
2.1 “Esse cara não parece mais policial”: desagregando o hábitus policial e formulando
caminhos para a compreensão do objeto
Era uma sexta feira (13 de julho de 2018). Faltavam apenas quinze minutos para o final
do expediente e metade da porta de entrada da delegacia já estava fechada. A maioria dos
policiais se encontrava “batendo papo” na recepção e o som predominante no saguão vinha de
um acalorado debate sobre as eleições presidenciais daquele ano.
Recordo-me que mesmo participando do grupo de discussão, observava tudo meio
apreensivo e calado, pois sabia que minha posição política ali não seria tão aceita quanto as
demais. Também não queria promover nenhuma desavença ou exaltar os ânimos; afinal, tudo
que eu desejava naquele momento era ir para casa. A semana tinha sido puxada e eu estava
bastante cansado.
Todavia e na medida em que a conversa avançava, veio à tona, como tema central da
controvérsia, certos privilégios policiais advento das promessas de campanha de um dos
candidatos do pleito. Argumentava a maioria dos debatedores que, de acordo com a pretensão
de um dos presidenciáveis, a polícia restauraria a sua “glória” de outrora, pois, uma vez
presidente, esse candidato daria “carta branca” para que os policiais pudessem exercer seu papel
profissional de combater o crime. Provavelmente, colocou outro orador, o então postulante a
presidente extinguiria os órgãos de controle interno e os agentes de segurança, a partir de então,
poderiam agir com “energia” ao confrontarem-se com criminosos.
Nesse instante e de maneira introspectiva, recordei alguns episódios em que, na
condição de policial, presenciei colegas exercerem sua “energia” contra pessoas socialmente
vulneráveis, sem o menor pudor ou receio de represália. De forma geral, esses profissionais
simplesmente fizeram valer sua autoridade, promoveram injustiça, dor e ilegalidades sem
autorização nenhuma para isso. Imaginei temeroso o que fariam se tivessem, por força de lei
(sob a proteção de um governo autoritário, por exemplo), o consentimento do Estado.
Destarte e como um reflexo involuntário daquela memória, acabei expressando
oralmente parte da reflexão, opinando sobre a importância da Controladoria Geral de Disciplina
(CGD) e sobre a necessidade de conter qualquer ação mais abusiva dos agentes policiais no
10
campo. Sem calcular o teor da expressão, questionei a suposta liberdade de atuação com a
seguinte indagação: “[…] Senhores, mas vocês não acham que a polícia também precisa de
‘controle’? […]”.
De um salto e como resposta imediata ao meu questionamento, um de meus colegas de
profissão retrucou feroz meu ponto de vista e reivindicou o argumento que entende a polícia
como um órgão burocraticamente retido e sem liberdade direta de ação. De forma hostil,
argumentou que: “[…] a polícia perdeu (tinha perdido) o respeito (no sentido de autoridade,
acredito eu.) e (que), por causa disso, a ‘bandidagem’ tomou (tinha tomado de conta) conta da
sociedade […]”.
Não obstante e como já esperado, não me admirei em atestar, através da respectiva fala,
o que já sabia decorado dos livros e do cotidiano de trabalho. Nesse sentido, é até comum
evidenciar que parte dos policiais espera da polícia certa quantidade de poder que, superior a
todos os outros, faz dessa instituição o “martelo”, ou seja, uma entidade apartada, suspensa e
reguladora do resto da sociedade (a “bigorna”) que, passiva, apenas aceita o açoite
(DESAUNAY & VILORIN, 1989).
De fato, isso não me trouxe nada de novo. Todavia e como uma descoberta incômoda
naquele momento, o comentário posterior do policial foi o que provocou em min certo espanto
e me tirou da zona de conforto. Como um impulso imediato, me fez pegar meu diário de campo
e anotar o que viria a ser meu lugar de fala mais específico nesse estudo. Disse ele, de forma
irônica, o recorte de texto que inicia essa sessão e que coloca em contradição minha condição
profissional. Ao final, questionou se sou, ou se não sou, um “verdadeiro” policial; indagação
que me fez enxergar, enfim, um caminho metodológico para investigar o fenômeno proposto
nessa pesquisa.
Qualquer observador mais atento já perceberia (de pronto) que a pergunta entusiasmada
do rapaz não passava de uma colocação retórica e sarcástica. Bem no fundo, o juízo de valor
que ele produziu a meu respeito já parecia bastante desenvolvido e conformava a ideia de me
ver como um agente subversivo, ou seja, como um alguém cuja presença ali existia em
desacordo com os estatutos mais ortodoxos da polícia e provocava certa ojeriza. Na apreciação
dele, um “cana” de verdade jamais levantaria tal controvérsia contra sua própria instituição.
Em parte, ele estava certo e lhe sou muito grato por isso. Mesmo policial há pouco mais
de dez anos (naquele momento), não me sentia completamente igual aos demais e, naquele
instante, percebi um dos muitos porquês desse “mal-estar”.
Explicando o ocorrido e introduzindo o que chamei de “tomada de consciência
metodológica”, recordo-me dos ensinamentos de Velho (2004, p. 132) ao revelar que “[…] O
11
estudo do rompimento e (da) rejeição do cotidiano por parte de grupos ou indivíduos desviantes
ajuda-nos a iluminar, como casos limites, a rotina e os mecanismos de conservação e dominação
existentes […]”.
Em suma e desde que ingressei nas Ciências Sociais me pus a analisar minha realidade
profissional com criticidade e, como consequência desse processo, acabei por desnaturalizar
parte significante do meu próprio hábitus policial, passando a elaborar uma visão suspensa
sobre minha prática. Destarte, minha posição intelectual misturou-se ao meu mundo do trabalho
e, desde então, elaboro percepções livres e divergentes da cultura da polícia.
Formulando meu papel, entendi que sou um policial localizado no rol de policiais que
percebem, de dentro, a grandeza de ser um agente da lei a partir de uma visão crítica1 e ampliada
das práticas, saberes e nuanças da polícia. Dito de outra forma, tenho sobre meu ofício uma
percepção privilegiada, advento de uma conciliação de contrários ou, conforme coloca
Bourdieu (2005), fruto da incorporação de um hábitus clivado (desagregado), que potencializa
minha compreensão e me permite produzir análises parciais daquilo que questiono no mundo
da polícia, fazendo de mim, ao mesmo tempo, um Policial e um Pesquisador.
Ainda sob orientação de Bourdieu (2005), minha posição na pesquisa é, ao mesmo
tempo, conflitante e conciliadora, uma vez que, os objetivos que almejo perpassam pela
intenção de promover transformações na prática policial, mas, sobretudo, elaborar compreensão
e entendimento de seus significados. Em suma, vivo e questiono aquilo que analiso, pois, em
grande demanda, parto da observação de práticas contraditórias que preenchem minha realidade
profissional e que marcam minha personalidade com indignação e vontade de mudança.
Prosseguindo e tentando pensar o desafio que se almeja nessa dissertação, destaco que
meu lugar de fala é de um policial que quer descobrir, através de outros policiais, o que é ser
policial. De forma muito evidente, falo sobre algo que não posso evitar, que me é familiar,
reconheço e sou, mas que carece de entendimento diante das muitas sutilezas que o objeto ocupa
no universo da segurança pública e na própria sociedade que, assistida por esses sujeitos,
também não os compreende e não é, em muitos momentos, compreendida por eles.
Tal reflexão se faz necessária por reconhecer o mundo policial como um todo complexo
que, embora íntimo desse pesquisador, esconde uma rede de interações, um mosaico dinâmico
de sentidos e representações que sempre supera o já previamente estabelecido e certo.
1
Vide – 2 “TRAÇOS E CONTRASTES DA POLÍCIA CEARENSE”: UM OLHAR SOBRE A CONSTRUÇÃO
DAS DISTINTAS PERSONALIDADES PROFISSIONAIS DOS AGENTES DA LEI; 2.1.3 VISÃO CRÍTICA:
uma ilustração do paradigma clássico e o prefácio da mudança na atividade policial.
12
Assim e para dar conta do desafio posto nessa pesquisa, foi necessário transformar o
exótico em familiar e o familiar em exótico para perceber que, o até então, aparentemente
familiar, ainda não é necessariamente conhecido na sua totalidade (DAMATTA, 1978).
Destarte, quando o desafio proposto assume determinada grandeza é necessário refletir
para além da rigidez do modelo clássico e invocar uma metodologia que dê conta de, pelo
menos, interpretar os significados mais íntimos do respectivo fenômeno, pois o “eu” policial é
uma manifestação particular, mas também uma construção de influências externas e maiores
que o indivíduo portador do estatuto da polícia (MAUSS, 2003).
Segundo Bourdieu (1996, p. 15), parafraseando Gaston Bachelard, “[…] o particular é
tão somente uma figura num universo de figurações possíveis […]”, ou seja, o real é relacional
e atende a necessidade de múltiplas interpretações. Todavia e para capturar a lógica mais
profunda da vida social, é através do particular que se deve observar o geral. Assim, o
pesquisador tem por objetivo apreender estruturas e mecanismos de produção do espaço social
dissecando todas as partes e entendendo seus processos de atuação. De forma geral, o sociólogo
almeja entender as diferenças que separam o que é o poder da estrutura e o que são as
disposições mais elementares e individuais da vida social.
Nesse sentido e ainda para Bourdieu (1996, p.15):
[…] todo empreendimento científico se inspira na convicção de que não
podemos capturar a lógica mais profunda do mundo social a não ser
submergindo na particularidade de uma realidade empírica,
historicamente situada e datada, para construí-la, porém, como caso
particular do possível […] o objetivo é apanhar o invariante, a estrutura,
na variante observada […].
próprio. Assim, a noção mínima de distanciamento existe a partir de níveis distintos de interação
e o que se reconhece na dimensão policial é, apenas, recorrente dos mapas sociais produzidos
pelas suas representações. Tal premissa talvez justifique os numerosos “desvios” e
informalidades que se opõem aos valores dominantes que organizam os grupos policiais
(VELHO, 2004; MUNIZ, 1999).
Não obstante, é fundamental entender que, por questão situacional, o fenômeno
estudado nessa pesquisa existe em um nível de proximidade e incorporação com este
pesquisador e que, portanto, já se encontra naquilo que DaMatta (1978) chamou de dimensão
existencial. O celebre autor nos orienta para a necessidade de avançar na pesquisa até o
momento ímpar de sentir o campo como parte do pesquisador, ou seja, até sua fase pessoal ou
interacional.
Justificando a premissa, Velho (2004, p. 123-124) também entende que:
[…] a noção de que existe um envolvimento inevitável com o objeto de
estudo e de que isso não constitui um defeito ou imperfeição já foi clara
e precisamente enunciada […] insiste-se na ideia de que para conhecer
certas áreas ou dimensões de uma sociedade é necessário um contato,
uma vivência durante um período de tempo razoavelmente longo, pois
existem aspectos da cultura e de uma sociedade que não são
explicitados, que não aparecem à superfície e que exigem um esforço
maior, mais detalhado e aprofundado de observação e empatia.
Por esse motivo, também considero esse estudo como parte de uma experiência
observada, participativa, intima e vivida, pois parcela significante do traquejo profissional que
adquiri nos últimos doze anos contribuiu para fundamentar as análises que se construíram ao
longo da pesquisa. Em suma e quando debruço olhar sobre o cotidiano profissional da polícia,
recordo-me dos ensinamentos de Malinowski (1978) ao observar, além da forma, as muitas
representações da prática, ou seja, os sentidos materiais, sociais e simbólicos das ações dos
sujeitos no campo.
Avançando e ainda segundo DaMatta (1978), enquanto que nas fases anteriores (plano
teórico e plano prático, respectivamente) a empatia com o objeto é medida pela competência
acadêmica (absorção da bibliografia) e pela perturbação de uma realidade dada (técnica e
empirismo antropológico, no meu entender), o terceiro e último momento de aproximação com
o fenômeno evidencia a dimensão integradora da pesquisa, ou seja, é uma síntese bem elaborada
da construção teórica, da prática no campo e do significado mais elementar do ofício
antropológico, ou seja, o encontro com culturas diversas e os questionamentos acerca da
“naturalização” de seus respectivos cotidianos.
Nesse sentido, o exercício proposto é, racionalmente, também um exercício de empatia
com o diferente, pois reconheço que aquilo que tomo por familiar no universo policial é apenas
14
superficial e parte de um todo que é construído e desconstruído constantemente por nós policiais
e por cada instituição especificamente. A lógica desse campo é produzida com bem mais do
que o imediatamente dado ou a partir de macroestruturas preconcebidas. Ao contrário, o
raciocínio aqui é dinâmico e precisa ser captado como um movimento, nunca efêmero, entre o
aparentemente normal e o essencialmente diferente.
Como bem preceitua DaMatta (1978, p. 29):
[…] as duas transformações estão, pois, intimamente relacionadas e
ambas sujeitas a uma série de resíduos, nunca sendo realmente perfeitas.
De fato, o exótico nunca pode passar a ser familiar; e o familiar nunca
deixa de ser exótico […].
De forma muito clara, utilizou-se uma abordagem qualitativa, com alguns instrumentos
graficamente quantitativos por ter sido possível, apesar da pouca amostragem (71
colaboradores), elaborar tabelas, quadros e figuras para análise dos dados. Não obstante, a
abordagem qualitativa utilizada no campo foi justificada pela complexidade teórica e concreta
do fenômeno policial e pela condição de impedimentos que marcam qualquer pesquisa sobre
segurança pública no estado do Ceará. Logo, as circunstâncias do campo condicionaram, em
parte, os dados construídos sem esconder os desdobramentos revelados pela pesquisa, bem
como os fatores que foram evidenciados nas instituições estudadas.
Assim e pela sensibilidade que as causas do fenômeno exigiu desse pesquisador, optou-
se por uma percepção qualitativa, pela aproximação amigável com os sujeitos policiais e pela
observação participante na totalidade das três organizações analisadas. Corroborando com o
conjunto de justificativas acima, Straus & Corbin (2008, p. 129) nos ensinam que a abordagem
qualitativa:
[…] analisa o comportamento humano, do ponto de vista do ator,
utilizando a observação naturalista e não controlada […] é subjetiva e
está perto dos dados (perspectiva de dentro, insider) [...] é orientada ao
desenvolvimento; é exploratória, descritiva e indutiva [...] é orientada
ao processo e assume uma realidade dinâmica; é holística e não
generalizável, porém seus resultados podem ser transferidos.
Contudo e desde já, julgo necessário colocar que mesmo tendo um caráter
essencialmente qualitativo, a pesquisa não deixou de ter um forte rigor acadêmico, pois tratou
de sistematizar qualquer informação construída no campo, bem como nas outras fases de sua
elaboração (MARCONI; LAKATOS, 2005).
[...] é um procedimento racional e sistemático que tem como objetivo
proporcionar respostas aos problemas que são propostos [...] a pesquisa
é desenvolvida mediante o concurso dos conhecimentos disponíveis e a
utilização cuidadosa de métodos, técnicas e outros procedimento
científicos [...] ao longo de um processo que envolve inúmeras fases,
desde a adequada formulação do problema até a satisfatória
apresentação dos resultados (GIL, 2008, p. 45).
Nesse viés e por condição de logística, a aproximação metodológica mais viável foi à
utilização de grafia e de oralidade, ou seja, o exercício de percepção entre mim e meus
colaboradores aconteceu através de aplicação de entrevistas escritas ou por meios digitais (e-
mail, whatsapp e afins) de conversas informais, mas direcionadas, no âmbito da pesquisa de
campo que transcorreu, apesar das barreiras materiais e daquelas de cunho ideológico, de forma
livre, espontânea e dialética, ainda que orientadas por um objetivo formal e obedecendo aos
regulamentos institucionais.
16
Em suma, tentar transpor o ambiente dos quartéis, sedes e delegacias foi uma grande
provocação já que tais lugares são formalmente lacrados ao público em geral, mas também à
qualquer outro policial que não preste serviço no local. Tal situação é quase sempre justificada
por questões administrativas, segredos institucionais e até nuanças políticas.
Assim e com exceção do meu próprio local de trabalho (Delegacia de Capturas e
Polinter), ultrapassar tais situações foi possível somente nas salas de aula que, improvisadas em
auditórios ou em locais de reuniões, funcionaram como ambientes isolados; “ilhas” de
autonomia onde a pesquisa pode transcorrer sem maiores intervenções. Tais impasses é o que
Silva (2007, p. 179) compreende por “poder do campo”, ou seja, por um conjunto demarcado
de possibilidades assistidas e impostas ao pesquisador “[…] quando fazemos uma antropologia
daqueles que detêm poder e estamos, nós, antropólogos, numa condição de relativa
subalternidade diante deles […]”.
Nesse sentido, destaca-se que o respectivo objeto foi desenvolvido espontaneamente, a
partir das falas dos sujeitos e das opiniões e relatos acerca de suas práticas, bem como através
das expectativas que teciam de sua profissão e daquilo que entendiam por ser “agente da lei”.
Tais testemunhos foram escritos, em sua maioria, nas fichas abertas que recebiam para
responder meus questionamentos mais íntimos e que exigiam certa discrição do colaborador,
mas também de forma verbal, como desabafos voluntários compartilhados com esse
pesquisador ao longo das oportunidades de intervalo ou mesmo nas instruções oficiais, como
experiências formativas.
Sobre a respectiva estratégia metodológica, Moita Lopes (2001) nos ensina que é pelo
discurso que as pessoas constroem o mundo e se constroem nele, compondo a estrutura e todas
as ramificações que possibilitam, nela, as interações. Enfim, o discurso é uma força constitutiva
da própria vida social.
Assim, ter acesso aos policiais (em formação, em exercício ou em processo de
reciclagem profissional), obter autorização para aplicar questões, bem como extrair e
documentar falas e pensamentos que me auxiliassem nessa investigação, foi um processo longo
e possível de ser alcançado esporadicamente em meio a arranjos, “conchavos” profissionais e
diálogos.
Dito de outra forma, somente foi possível pela empatia e por coleguismos informais e
negociáveis dentro e fora das respectivas instituições. Em suma, foi gasto bastante “capital
social e político” nessa empreitada. Todavia e pelo mesmo motivo, em muitos momentos sofri
supervisão constante e olhares desconfiados, não somente dos superiores que me permitiram a
aproximação, mas dos demais policiais, de igual graduação, que não entendiam muito bem meu
17
real objetivo com a pesquisa e sempre expressaram certa ojeriza a esse campo de estudo. A
suposta situação de acesso revelou ser um caminho de “via dupla”.
Aos olhos de alguns amigos de trabalho, como evidenciado no diálogo que inicia esse
capítulo, sou um estudante de sociologia e, como tal, sou interpretado como alguém que se
posiciona politicamente a “esquerda” e que, provavelmente, esconde simpatia por organizações
de direitos humanos e órgãos de controle interno; instituições que, classicamente, são
entendidas como avessas à polícia. Em outras palavras, me distinguem como contrário a tudo
aquilo que a tradicionalidade policial entende por correto e “traidor do espírito de corpo”, ou
seja, daquele panorama que entende a coletividade policial como um conjunto fechado e única
detentora da condição policial.
Assim, entre “armas e livros”, vou seguindo o meu caminho. Todavia, me sentindo um
outsider nos dois mundos que frequento. Na Polícia sou um pesquisador e, como tal, carrego
comigo a curiosidade e a inconveniência própria desse campo de atuação. Na Universidade, sou
um policial, que sempre desperta olhares desconfiados e provoca até certa aversão de alguns
alunos que, assustados, especulam sutilmente se sou ou se não sou um policial hostil, se carrego
armas ou se já “bati” em alguém por puro preconceito, escárnio ou brutalidade. É, sem dúvida,
uma situação curiosa.
Retomando a descrição da pesquisa, ressalta-se que, em alguns momentos, os
procedimentos de campo seguiram a conveniência espacial de atuar profissionalmente na
Delegacia de Capturas e Polinter (DECAP), para onde converge boa parte do serviço diário dos
policiais civis e que, por questão estratégica, se estabelece metodologicamente como um
observatório privilegiado das situações típicas da “PCCE” (Polícia Civil do Ceará) e permite o
contato mais rápido com seus agentes.
Em outras circunstâncias, a pesquisa de campo aconteceu como convite ao exercício do
magistério, que no caso da Guarda Municipal de Fortaleza existiu como uma oportunidade junto
a Escola de Governo, órgão da prefeitura que, em parceria com o IMPARH e a Assessoria de
Planejamento e Desenvolvimento Institucional da Guarda Municipal de Fortaleza, promove a
difusão de cursos de formação e de reciclagem aos profissionais da segurança pública.
Na Polícia Militar, a oportunidade de aplicar o estudo aconteceu na Terceira Companhia
do Quinto Batalhão (3ª CIA\5º BPM), localizada no bairro Pirambú, quando no contexto do
Curso de Formação Policial para o provimento do cargo de soldado, realizado pela Academia
Estadual de Segurança Pública (AESP) em 2018. Situação que me permitiu investigar o que
observei como um incipiente processo de significação profissional, superação de um olhar mais
vulgar a respeito da polícia e a assimilação de uma cultura policial propriamente dita, uma vez
18
2
A expressão Ethos designa as características morais, sociais e afetivas que definem o comportamento de uma
determinada pessoa, grupo de pessoas ou cultura. Nessa pesquisa, o Ethos Policial se refere ao espírito motivador
das ideias e costumes dos membros da polícia, ou seja, seus mais diversos traços comportamentais.
19
Dito de outra forma e ainda segundo Elias (1993), tal docilização dos sujeitos policiais
compreende uma perspectiva holística onde o “todo policial” formula conformações que, pouco
a pouco, superam parte relevante da autonomia dos indivíduos isoladamente.
Outro não, a dimensão simbólica da profissão policial enseja aspectos próprios sobre a
ética individual, sobre os valores e sobre a concepção que os agentes constroem dos outros,
“não policiais” (SÁ, 2002). Em verdade, os policiais sofrem sujeição no seu campo de atuação
na mesma medida em que são instrumentos, desse mesmo campo, de submissão alheia.
Concordando com Sá (2002) e a partir de qualquer observação mais apurada desse
universo, a regulação das disposições fica evidente ao perceber, através da postura, de
expressões típicas e de todo o discurso peculiar de sua cultura policialesca, o autocontrole
individual como um dogma sagrado, ou seja, como um princípio geral, doravante da condição
e da estrutura policial que é compartilhado e promovido por todos nós agentes da lei.
Todavia e assim como a totalidade da diferenciação social, o autocontrole policial
também varia de acordo com a posição e a função que o sujeito ocupa no ordenamento ou, ainda,
com um momento de maior ou menor intensidade de regulação interna ou social (ELIAS, 1993).
Destarte, policiais e polícia, agentes e campo, trocam singularidades e exercem, um
sobre o outro, uma força criadora de sentido próprio. Contudo, é difícil determinar quem
escolhe quem, ou seja, quem exerce a maior força de socialização, uma vez que, a construção
da illusio 3 dociliza as condutas quando da busca pelo reconhecimento e pela aprovação
(BOURDIEU, 2001).
Não obstante, mas a partir desse entendimento, podemos afirmar que o capital simbólico
(específico do campo profissional da polícia), ou seja, aquilo que anima esse respectivo jogo
social, existe apenas pela crença, legítima e total, do reconhecimento de sua valoração por todos
aqueles que comungam da sua existência (BOURDIEU, 2001).
A dominação dos sujeitos policiais, a semelhança de todo e qualquer agente social, é
exercida, velada e aceita nas disposições do hábitus, ou seja, a partir de um sistema de ações,
disposições e percepções aberto e construído sob estruturas predispostas, reguladoras e
regularizadas pela interação dos agentes no campo e com o campo.
Destarte, quando Bourdieu (2001, p. 205) conceitua hábitus como: “[…] produto da
incorporação de uma estrutura social sob a forma de uma disposição quase natural […]” ele
3
Illusio [...] é dar importância a um jogo social, perceber que o que se passa aí é importante para os envolvidos,
para os que estão nele [...] é reconhecer o jogo e reconhecer os alvos [...] illusio é essa relação encantada com
um jogo que é o produto de uma relação de cumplicidade ontológica entre as estruturas mentais e as estruturas
objetivas do espaço social" (BOURDIEU, 1996, p. 139-140).
20
Nesse sentido e a semelhança das declarações que Wacquant (2002, p. 23) extraia dos
boxeadores em seu estudo, os policiais que colaboraram com essa pesquisa também não se
comunicaram como uma “[…] (re) apresentação teatralizada e altamente codificada que eles
gostam de fazer de si mesmos em público […]”, mas pela segurança espontânea e despercebida
do cotidiano profissional, ou seja, através de um “modo de vida” bem peculiar que é construído
e reconstruído por nós a cada momento do trabalho e que acontece na espontaneidade do “dia
a dia”, fazendo de min um expectador favorecido dos hábitos, costumes e traços da polícia.
Para melhor entender a questão, Muniz (1999, p 89) nos ensina que o Ethus policial
pode ser descrito como “[…] um espírito de corporação (“espírito de corpo”) […]”, ou seja, é
algo que “[…] que encontra-se cuidadosamente inscrito no gestual dos policiais, no modo como
se expressam, na distribuição de recurso à palavra, na forma de ingressar socialmente nos
lugares, no jeito mesmo de interagir com as pessoas etc. […]”.
Destarte e para compreender a construção de toda essa autoimagem coletiva (em mim e
nos demais agentes), debrucei o olhar sobre universo profissional da polícia que, mesmo
evidenciando diferentes peculiaridades entre as forças de segurança analisadas na pesquisa,
revela certo valor e status geral que, representativo de uma vida significativa para esses sujeitos,
condiciona a construção das suas identidades sociais e de um hábitus propriamente policial.
Conforme nos ensina Sá (2002, p. 13):
[…] o status do grupo profissional escolhido, com suas hierarquias de
valores e códigos sociais próprios, orientará e alimentará – através de
expectativas, disposições e motivações próprias – a construção do
significado de sua identidade social, e vice-versa. A incorporação do
indivíduo ao grupo profissional poderá implicar uma adoção “natural”
e “espontânea” do grupo pelo indivíduo, transformando em um grupo
de status, de referência e de participação social de primeira grandeza
para a sua vida social total.
Nesse sentido e depois de doze anos de carreira, reconheço o consumo espontâneo dos
símbolos policiais, do seu modo de ser, falar, vestir, ver, sentir e das disposições
semiconscientes que a imersão objetivada no campo cultural da polícia promoveu em mim. Dito
de forma geral e à semelhança dos demais, o campo policial funciona a partir de disposição
própria, obedecendo seu jogo social e negociando capital simbólico específico (BOURDIEU,
2013).
23
Em verdade, posso afirmar que esse capital profissional internalizado, no hábitus e pelo
hábitus, impacta a atuação dos agentes no campo e os potencializam de sucesso (ou não). Ser
“mais” ou “menos” policial, como advento de reconhecimento interno e externo, é condição da
interação do sujeito com seus pares e com o campo profissional da polícia (BOURDIEU, 2013).
Tomando como minha a fala do Colaborador 40 (CANDIDATO AO CARGO DE
POLICIAL MILITAR, 27 anos) que nos revela ter entrado para a polícia porque “[…] sempre
tive (teve) admiração pelo trabalho policial […]” inicio minha breve narrativa como um eco
reincidente nas falas dos colabores abaixo, cuja impressão primeira da profissão policial sempre
espelhou enaltecimento, certa simpatia, mas também curiosidade, respeito, estranhamento e,
claro, medo; sentimento que compartilhei durante muito tempo e ainda compartilho.
“[…] (Entrei para a polícia porque) gosto de proteger as pessoas. Entrei,
pois me identifico com a profissão […]” (COLABORADOR 03,
Guarda Municipal, 39 anos).
“[…] (Entrei para a polícia porque) Desde pequeno sonhava em ser
policial, como não tive mérito e hoje não tenho mais idade para a PM,
virei Guarda Municipal com muito orgulho […]” (COLABORADOR
12, Guarda Municipal, 34 anos).
“[…] (Entrei para a polícia porque) Me sinto no dever de ajudar a
construir uma sociedade melhor […]” (COLABORADOR 01, Guarda
Municipal, 29 anos).
“[…] (Entrei para a polícia por) Afinidade com a área profissional […]”
(COLABORADOR 31, CANDIDATO AO CARGO DE POLICIAL
MILITAR, 27 anos).
“[…] (Entrei para a polícia) por respeito e afinidade por essa atividade.
Para ajudar e proteger as pessoas e o patrimônio público […]”
(COLABORADOR 20, Guarda Municipal, 49 anos).
“[…] (Entrei para a polícia para) buscar um lugar em que me sinta bem
e que consiga contribuir de alguma forma […]” (COLABORADOR 24,
Guarda Municipal, 33 anos).
muro e chegar, são e salvo, em sua casa. Em suma, a lei reinante nas ruas era: “Cada um por si
e pernas pra que te quero” (evadir-se rapidamente). Quem não corresse, “pagava o pato”
(assumia o risco de ser detido e sofrer abuso policial).
Infelizmente, aos que ficavam pelo caminho, por falta de “habilidade furtiva”, destreza
ou por pura falta de opção, restava, como de costume, reproduzir e responder, sob o comando
do “senhor policial”, o já conhecido e famigerado discurso do “baculejo” (abordagem e revista):
“_Mão na cabeça, vagabundo!”; “_Encosta na parede!”; “_Abre as pernas!”; “_Tá fazendo o
que na rua uma hora dessas?”. Também de forma geral e nessa situação prévia de interrogatório,
gaguejar, soluçar ou chorar de medo era inevitável, mas também inaceitável.
Sobre a ação policial do “baculejo” (abordagem e revista), Sá & Santiago Neto (2011,
p. 04) nos ensinam que:
Esse tipo de interação simbólica é, fundamentalmente, um ritual de
poder, ele é revelador das difíceis e intricadas relações de poder entre
policiais e jovens no cotidiano da cidade. É um evento que se realiza
sob a égide de um discurso que, às vezes, é proferido pela fala, mas na
maioria das vezes permanece implícito, que diz, da parte do policial, o
seguinte: “respeita a polícia, vagabundo”. Os atos policiais de prender,
bater e amaciar numa perspectiva antropológica passa, por conseguinte,
pela análise da expressividade simbólica que marca esta palavra de
ordem.
Fazendo certo esforço de recordação, lembro que em uma das muitas situações de
abordagem, um de meus amigos teve um brinco arrancado da orelha por um poderoso “puxão”
de um agente. Muito provavelmente e na visão do sujeito fardado, o adorno do garoto estava
em desacordo com aquilo que ele acreditava ser apetrecho de menina e não de menino. Além
da vergonha e da dor excruciante, o rapaz ainda levou uma lição sobre preconceito de gênero:
“_Brinco é coisa de mulher, moleque!”, disse o policial.
Outro não, a grande maioria das abordagens policiais era motivada por considerar que
os jovens estavam no “local errado”, na “hora errada” e serem taxados por tamanha
contravenção de “vagabundinhos”. Por consequência e através da “pedagogia do cassetete (hoje
Tonfa)”, os policiais ensinavam aos adolescentes do bairro que lugar de cidadão não era na rua
quando o relógio já marcava o “tarde da hora”.
De antes até o presente momento:
[…] observa-se que os policiais postados na “ponta”, nas viaturas, nas
ruas enfrentando a violência, não absorvem o discurso da “nova
mentalidade (policial)” e esbarra ainda na cultura autoritária da
violência policial […] Acostumados a prender, bater e concluir de
imediato que está defronte de um bandido, não sabem mais conversar e
assimilar a ideia de que se trata de um cidadão que desvirtuou a ordem,
mas continua cidadão (BARREIRA; ALMEIDA; BRASIL, 2004, p.
125).
26
Sem o risco de forçar qualquer análise mais evidente, o relato apenas corrobora com o
que Costa (2004, p. 65) entende por interação desigual entre o Estado, por extensão a polícia, e
as classes menos abastadas e marginalizadas da sociedade, uma vez que, “[…] as relações entre
algumas instituições estatais e a sociedade, em especial os segmentos mais pobres, continuam
sendo marcadas pelo exercício arbitrário e muitas vezes ilegal do poder […]”.
Sobre a questão, Misse (1996, p. 4) também evidencia que essa prática nefasta não
apenas existe, mas desenvolve-se, sobretudo, no “[…] respaldo social e (na) legitimidade
política porque a direção hegemônica das agências de vigilância, repressão e punição está
construída sobre a visibilidade social de certos tipos de crimes e de (certos tipos de) agentes
(marginais) mais que de outros […]”.
Perseverando no depoimento e destacando outro grande estímulo à atividade policial no
bairro quando no tempo de criança, arrisco-me a reproduzir “clichês” que, até hoje, parecem se
manter fortes e vívidos no discurso policial mais nefasto. De forma geral, as abordagens
também aconteciam por critérios de imagem, ou seja, a partir de arquétipos mal construídos que
elegiam os meninos dessa ou daquela aparência para se prostrarem, mais uma vez, na posição
de “baculejo”.
Geralmente eram jovens franzinos, negros em sua maioria, com roupa específica
(“calção de surfista”) e chinelas de borracha; também com especificidade de algumas marcas e
modelos (na minha época de adolescente, sandálias “Opanka” ou “Kenner”).
Na época (mas ainda hoje), os garotos também se tornavam alvos das abordagens se
ostentassem tatuagens ou alguma outra característica no visual que o definia como desordeiro
ou que aparentasse, por consequência, uma personalidade subversiva. Não encaixando nesse
padrão, os negros e os pardos, eram os alvos prediletos e corriqueiros. Sem medo de qualquer
apreciação exagerada, ressalto a atemporalidade notória e evidente dessas circunstâncias.
Nesse sentido, confesso, e o leitor há de convir, que o “tornar-me policial” também
aconteceu como uma resposta reativa à opressão policial da adolescência. Arbitrariedade essa
que, a despeito do discurso oficial e “politicamente correto” dos gestores da segurança pública,
acontecia e acontece corriqueiramente nos guetos e favelas de nosso estado, como um cotidiano
quase imutável, transfigurado e pormenorizado como uma rotina do próprio trabalho policial
ostensivo.
O que o discurso policial invoca como negação dessa realidade é que “[…] é impossível
não trabalhar com estereótipos […]”. Opinião revelada na prática profissional e testemunhada
inúmeras vezes por esse Policial-Pesquisador (no âmbito do trabalho), bem como criticada por
Muniz (1999, p. 201) quando destaca que:
27
De forma pormenorizada para o momento, de antes, até os dias atuais, eu sempre percebi
a segurança pública no bairro como uma celeuma de “ausências” de interesse, descaso de gestão
e falta de investimento adequado (estrutural e humano). Outro não e salvaguardando
especificidades mais gerais, não é tolice tomar meu bairro como um recorte revelador da
realidade policial que ainda é marcante e procedente na atualidade.
Em outras palavras, nunca houve uma preocupação real com o corpo policial
propriamente dito; nem numa perspectiva instrumental, com relação aos equipamentos
utilizados por esses agentes de segurança pública, nem com a demanda humana e de formação
que, outro não, apenas revelou uma perda profunda do significado mais nobre de “ser policial”
(servir e proteger a comunidade) e promoveu uma relação conflituosa, de oposição, embate e
injustiça com a população.
Tal realidade, aliada a inexistência de um estreitamento eficaz entre policiais e
comunidade, fez com que a criminalidade se adaptasse facilmente a metodologia aplicada pelas
forças policiais locais e os resultados mais efetivos da atuação policial são comumente
frustrados. Como antes, tudo pode ser comparado a um grande “teatro” de ações e, os jovens,
no bojo dessa política de “insegurança”, ainda são condenados indiscriminadamente ao
“Baculejo” enquanto os grupos criminosos continuam operando furtivamente um Estado
paralelo.
amado pelo público, também é marcado por ambiguidades que são retratadas pela arte, mas que
encontram sentido real no dinamismo do trabalho policial ordinário.
Ainda que a realidade profissional dos policiais não apresente o mesmo romantismo
ficcional da arte, a celeuma de funções que marca o cotidiano desses agentes justifica a
formulação de sua imagem heroica. Esses sujeitos, de um jeito ou de outro, são responsáveis
por proteger pessoas e tal missão é imbuída de nobreza. Em verdade, ao elaborar tais narrativas,
as pessoas transmitem o sentido mais puro de quem são, de suas crenças, das relações que
constroem uns com os outros e das possibilidades que inventam para a polícia e para o mundo
da segurança (ARAÚJO & BASTOS, 2018).
No seio dessa premissa, localiza-se esse pesquisador que, consumidor de todos os
produtos da ficção policial, quando criança e adolescente, almejava ser como “Hercule Poirot”
e “Sherlock Holmes” ou, ainda, como “John McClane” e superar todos os desafios do caminho,
concebendo um imaginário encantado para esse cenário real4.
Todavia e a contrassenso das expectativas tecidas com toda essa narrativa fantástica,
esse policial adulto (hoje) apenas se depara com um conjunto de realidades profissionais que o
põe a prova “todo santo dia”, pois como nos ensinou Malinowski (1978, p. 47) “[...] toda a
estrutura de uma sociedade encontra-se incorporada na mais evasiva de todas as matérias: o ser
humano [...].”
Muito aquém de revelar certezas e controle, o cotidiano policial não existe a partir de
um enredo fixo ou previamente estabelecido. Em maior demanda, ele transmite receios,
contradições e ambiguidades; pois é construído, sobretudo, no improviso do expediente de
serviço.
De prisões à investigações complexas, de abordagens rotineiras a um simples lanche na
barraquinha de cachorro quente, o universo policial vai se desenhando e formulando um rol de
singularidades que compõe o pensar e o fazer policial como um todo exposto, mas por vezes
velado e restrito àqueles, e apenas àqueles, que compartilham da sua condição profissional.
De forma geral e por toda idealização da atividade policial existente em livros, filmes,
jogos eletrônicos e de todo tipo de referência “pop”, desenvolve-se meu lugar de fala que, dito
de forma simples, é condição dos cinco anos de prática profissional na Guarda Municipal de
Fortaleza (GMF) e, hoje, de sete anos na Polícia Civil do Ceará (PCCE), do contato com a
4
Hercule Poirot é um detetive fictício da maioria dos livros da escritora Agatha Christie; assim como Sherlock
Holmes é um detetive fictício do escritor Sir Arthur Conan Doyle e John McClane é uma personagem
protagonista da franquia cinematográfica Die Hard (“Duro de Matar”).
29
De forma geral, enfatizar esse breve caminho pessoal é fundamental para tentar anunciar
ao leitor que a construção do olhar sociológico sobre os sujeitos policiais nessa pesquisa
aconteceu, concomitante, a um conjunto de nuanças que me levaram a repensar muitos aspectos
30
profissionais de minha carreira. Essas percepções, ainda que parciais, ajudaram a forjar meu
objeto de pesquisa, mas me colocaram sob o limiar de um estranhamento constante e necessário.
Justificando a premissa, Minayo (2001, p. 15) coloca que:
Na investigação social, a relação entre o pesquisador e seu campo de
estudo se estabelecem definitivamente. A visão de mundo de ambos
está implicada em todo o processo de conhecimento, desde a concepção
do objeto, aos resultados do trabalho e à sua aplicação [...] Trata-se aqui
de uma condição da pesquisa que deve ser incorporada como critério de
realidade e busca de objetivação.
Outro não, almejo a desconexão que Bourdieu (2005, p. 90) entendeu como “[…] o
retorno às origens (que) faz-se acompanhar de um retorno, embora controlado, do que fora
recalcado. […] de tudo isso, o texto não guarda mais nenhum resquício […]”.
De modo mais simples e ainda tomando como referência o emblemático autor, os muitos
paradoxos e tensões que permeiam meus dois mundos, a Polícia e a Universidade, produzem
meu olhar sociológico e possibilitam a materialidade desse estudo. Destarte, só me resta à
aceitação dessa instabilidade como uma ferramenta impulsionadora desse estudo.
Vivenciar a prática policial e em seguida estudá-la a partir de teorias sociológicas que
apresentam reflexões tão provocadoras sobre seu sentido é um exercício marcante, percebido
apenas e como já evidenciado no texto, por uma visão subversiva da polícia e de seus membros
no âmbito do trabalho. Tais conflitos são fundantes das indagações que fundamentam esse
estudo e funcionam como essência de uma experiência transformadora.
Por fim e avançando no capítulo sobre o desenvolvimento da pesquisa e sobre a
sistematização dos dados no campo, ressalta-se que as sucessivas visitas a sede da Guarda
Municipal de Fortaleza e a 3ªCIA/5ºBPM, bem como, a observação constante de meu cotidiano
de trabalho na Delegacia de Capturas e Polinter (DECAP) em muito contribuíram para
desenvolver o presente estudo, mas longe de oferecer caminhos absolutos quando se objetiva
perceber aspectos subjetivos da prática e da cultura policial, esses lugares apenas ofertaram
cenários estáticos que me oportunizaram acesso à riqueza dos pessoas, ou seja, aos muitos
relatos, falas e desabafos que fundamentaram a totalidade dessa pesquisa.
Sobre (e muitas vezes sob) as instituições de segurança, os sujeitos detentores da
condição policial, formuladores das situações do cotidiano e dos acontecimentos da vida
real/profissional da polícia destacam-se nesse empreendimento como as verdadeiras fontes de
pesquisa, pois trazem consigo o mérito de serem e de tecerem (inconstantemente) tudo que se
debate nesse estudo, bem como tudo que ainda se pretende desvendar nesse campo de estudo.
31
Certa vez disse o escritor Adauto Neves5: “[...] toda jornada é finita, de repente, o retorno
chega sem avisar [...]”. De fato existe algo de sublime no ato de retornar. Para além da nostalgia
e das recordações de um passado imutável, regressamos por acreditar que deixamos algo de
muito especial pelo caminho. Retornamos por saudade de um estado de graça. Voltamos ao
lugar de origem para corrigir erros iniciais ou reforçar acertos importantes. Reaparecemos,
enfim, pela expectativa de saber como estar aquilo que, na nossa ausência, continuou seu
dinâmico movimento de transformação e é capaz de despertar, quando no nosso retorno, a
qualidade da boa surpresa e o sentimento de bem-estar ao pensar que também nos
responsabilizamos por essa alegria.
De fato, foi isso que aconteceu comigo ao revisitar a nova sede da Guarda Municipal de
Fortaleza.
“[…] A Guarda não é mais a mesma meu parceiro; ganhou moral! Tudo
mudou por aqui […] agora, somos a ‘polícia municipal’ […] (M. T. “O
Guarda Municipal da Portaria”, 38 anos de idade e 11 anos de carreira).
Desde o primeiro momento desse tópico ressalto que, de abraços à apertos de mão, ao
retornar à minha antiga instituição fui recepcionado com enorme carinho, respeito e
reconhecimento. Além do encantamento com a novíssima estrutura que a Guarda Municipal de
Fortaleza adquirira nos últimos anos e que “salta aos olhos” de imediato, entendi logo cedo,
para meu contentamento, que os laços de amizade que deixei naquele lugar estavam vívidos e
fortes.
Nesse sentido, tive a impressão que a pesquisa poderia prosperar sem maiores
dificuldades, pois me senti como alguém que partiu, mas que deixou, enquanto ainda pertencia
ao local, uma história marcada por sólida empatia. Percebi que, profissionalmente ou por algum
outro motivo que não compreendi muito bem, fiz algo de muito significativo e valorizado por
todos que me recepcionaram.
Não obstante, aquele tratamento era algo que compreenderia depois, ao longo das outras
visitas que realizei. Em suma, ele estava associado ao reconhecimento acadêmico, prestígio
intelectual e poder professoral que adquiri na condição de mestrando em Sociologia e de
docente da academia de segurança pública. Destarte, acredito ter trazido comigo um capital
5
Escritor e pensador brasileiro. Sua principal obra foi “Retrato D’alma”, publicada em 2007 (São Paulo).
Disponível em: https://rl.art.br/arquivos/689272.pdf.
32
social institucionalizado6 que, de imediato, foi reconhecido e, para além, possibilitou o próprio
retorno aqui descrito.
Por fim, o que estranhamente me entusiasmava era perceber que minha trajetória
acadêmica, por assim dizer, era conhecida por meus antigos colegas de trabalho e que, de forma
coletiva, provocava neles orgulho e aprovação. Confesso que é um sentimento reconfortante.
Prosseguindo. Era uma tarde de quarta-feira (27 de Março de 2019), ainda não tinha
almoçado e agia apressado a fim de tentar conseguir comer algo antes de começar a instrução
na “Turma Alfa”, formada essencialmente por jovens guardas municipais. Com o
consentimento de meu chefe imediato (Delegado Titular), atravessei a cidade às pressas e
mesmo conduzindo minha motocicleta com presteza, a distância entre a Delegacia de Capturas
(DECAP), localizada no centro de cidade, e a sede da Secretaria Municipal de Segurança
Cidadã, localizada no bairro da Messejana, era imensa. Considerando o estado de fome em que
me encontrava, esse intervalo parecia ainda maior.
Depois de certo tempo e ao despontar no portão de entrada, avancei um pouco e parei
ao lado do agente de segurança que, aparentemente, era responsável pelo trânsito de pessoas e
o acesso de veículos no interior da edificação. Enfim, retirei o capacete e, por uma fração de
segundos, analisei a estética do sujeito. Embora fossemos antigos colegas de trabalho, de
imediato, não nos reconhecemos e a única coisa que chamou minha atenção foi à espingarda
“calibre 12” que ele ostentava acoplada ao colete balístico e segurava com as duas mãos; dado
o peso e as dimensões da arma, acredito eu.
De fato, tanto para mim como para qualquer outro cidadão, é sempre muito difícil
disfarçar o espanto ao olhar um armamento tão grande e a imagem agressiva que as vestimentas
policiais passam ao público em geral. Outrora, quando ainda era membro da organização, a
guarda municipal não podia portar armas de fogo. Essa mudança aconteceu de forma periódica
e escalonada ao longo dos anos, através de leis (Estatuto do Desarmamento) e acordos políticos
(convênio entre a Polícia Federal e a prefeitura municipal).
Após essa impressão inicial, me identifiquei e, para minha surpresa, recebi um caloroso
abraço. Com “arma e tudo”, diga-se de passagem. “[…] Não está me reconhecendo não? […]”,
indagou-me o rapaz. Retomando a compostura, exercitei a memória e, sem muito esforço,
lembrei a identidade do meu interlocutor. Como exige a boa conduta social e de forma amistosa,
desci da moto, retribui o abraço e desejei-lhe felicitações. Também como condição quase
6
Recursos reais e potenciais que podem ser vinculados à posse de uma rede durável de relações institucionalizadas
de conhecimento mútuo e reconhecimento (BOURDIEU, Pierre. As formas do capital (1985). In. Manual de
Teoria da Pesquisa para a Sociologia da Educação, 1986, p. 56)
33
involuntária do ato de conversar, perguntei sobre sua saúde e família, sobre seu trabalho e sobre
sua instituição; como estavam as “coisas” por ali. Logo e como uma resposta “engatilhada”
para o momento, ele disparou o recorte de fala que ornamenta o começo desse tópico. Usando
a expressão “polícia municipal” e sem largar a espingarda, despejou orgulhoso que, “da minha
época” de agente municipal até o presente momento, a Guarda Municipal de Fortaleza se
encontrava em outro “patamar”.
Criada por força da Lei Nº 1.396, a Guarda Civil Metropolitana de Fortaleza data
oficialmente de 10 de julho de 1959 e desde o início de sua genealogia atuou como força de
segurança local, ostentando, formalmente e informalmente, a prerrogativa da vigilância, da
proteção de bens e instalações e da ação de embate à violência no âmbito do município. Enfim
e para usar a mesma expressão do meu interlocutor, mesmo antes “do meu tempo”, até o
presente momento, a Guarda Municipal sempre foi o órgão executor da política municipal de
segurança.
Todavia, sempre sofreu com uma certa ambiguidade de suas práticas ao entender
legalmente a vigilância, a fiscalização e a garantia dos serviços públicos municipais como suas
competências principais, mas operar, por força das circunstâncias e desmandos governamentais,
um modelo policial ostensivo e informal, de caráter militar e destinado ao combate aberto e
geral à criminalidade.
Destarte, o respectivo conflito existe a partir da redação do Art. 144 da Constituição
Federal de 1988 7 que, no parágrafo oitavo, apenas torna possível a existência das Guardas
Municipais, mas não desenvolve bem suas qualidades, funções ou prerrogativas, deixando para
outros estatutos essa responsabilidade. Assim e combinado com o inciso XII, do Art.76 da Lei
Orgânica do município8. (Conforme a Lei complementar nº 0019 de 08 de setembro de 2004,
que alterou a lei complementar nº 0004, de 16 de julho de 1991, bem como a lei nº 8.811, de 30
de dezembro de 2003) 9, a finalidade, a competência e a estrutura organizacional básica da
Guarda Municipal de Fortaleza foi, de forma conflituosa, se delineando a partir das demandas
da urbe.
7
Art.144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação
da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:§8º. Os
Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações,
conforme dispuser a lei.
8
Lei Orgânica do município. Art. 76. Compete ao Prefeito, entre outras atribuições: XII – dispor sobre a
estruturação, as atribuições e o funcionamento dos órgãos da administração pública;
9
Lei Complementar nº 0019 de 08 de setembro de 2004, que dispõe sobre a finalidade, competência e estrutura
organizacional básica da Guarda Municipal de Fortaleza. Disponível:
http://www.imparh.ce.gov.br/concursos/Guarda%20Municipal/LEIS%20COMPLEMENTARES.pdf7;
34
10
Revista Guarda Municipal de Fortaleza: Protetora e Cidadã. Julho de 2019 – Ano I – Ed. I. SESEC/PMF.
35
pensar a si mesmo como membro de um grupo social integrado, ou melhor, como parte
importante de sua própria instituição.
Enfim, não há como duvidar da incorporação total dos sentidos e significados que fazem
da Guarda Municipal, a “polícia municipal” da qual ele se envaidece. Sem medo de exageros,
percebi que a sugestão da instituição se reproduziu por completo em suas falas e recordei o que
nos ensinou Bourdieu (2005, p.18) ao colocar que:
A influência dos grupos fortemente integrados [...] dever-se, em grande
parte, a facto de estarem unidos por uma collusio na illusion, por uma
cumplicidade natural em torno da fantasia coletiva que assegura a cada
um dos seus membros a experiência de uma exaltação do eu, princípio
de uma solidariedade enraizada na adesão à imagem do grupo como
imagem encantada de si [...].
Eram 13:30 e enfim eu estava chegando na sala de aula. Atravessei dois andares e quatro
rampas, conversei com, pelo menos, uns dez amigos e recordei, ao sentar na cadeira do instrutor,
que um de meus colaboradores relevou o passado recente daquelas instalações como um grande
hotel e que, para parecer uma sede de segurança, tentaram remodelar as paredes e as salas, mas
que não tinham conseguido reformar a totalidade do prédio. Todavia, os servidores pareciam
satisfeitos com o local, embora ainda aguardassem reconhecimento social, político e, sem
dúvida, melhorias salariais. Reivindicação comum na totalidade das instituições de segurança,
diga-se de passagem.
Prosseguindo com o relato e ao observar a classe, identifiquei olhares curiosos, outros
entusiasmados, mas também alguns bem desatenciosos e sem nenhuma pretensão. Era sem
dúvida uma turma heterogênea e, como tal, percebi ali um celeiro de possibilidades. Imaginei
por um instante que estava contemplando a própria formação da identidade policial, ou seja,
um Ethus puro e raso que germinava a partir do “não tão recente” curso de formação, do contato,
ainda na sede, com as gerações de agentes mais antigos e do currículo oculto que cada um trazia
consigo.
Me perguntei, introspectivo, o que esses jovens sabiam sobre a dinâmica do trabalho
policial? Sobre o que é ser um agente da lei? Sobre o que é ser um profissional da segurança
pública? Enfim, sobre os questionamentos que davam sentindo a minha pesquisa.
Retomando o foco, retirei da mochila meus materiais de apoio, instalei meus
equipamentos, dei boa tarde e anunciei o início da instrução me apresentando e descrevendo o
36
título da disciplina. De imediato, uma das jovens levantou-se de um salto e, com uma energia
assustadora, ordenou que os demais também levantassem e se prostrassem na posição de sentido,
ou seja, naquela disposição corporal cívica e “rígida” da qual se espera o próximo comando;
típica dos militares.
De forma geral, sempre achei estranho e incômodo uma instituição civil com uma
personalidade profissional militarizada. Não obstante, esse sentimento também era bastante
compartilhado com a turma de agentes em 2008, mas, ainda hoje, desponta como algo de
polêmico no Ethus da Guarda Municipal de Fortaleza. Todavia e segundo meus interlocutores,
nos últimos anos isso havia diminuído substancialmente. Diante da situação, desconfiei da
afirmação, mas não fiz nenhuma objeção a respeito.
Com certa relutância de minha parte, pois por determinação da coordenação do curso
eu não poderia dispensar a cerimônia, a senhorita guarda municipal findou o “ritual” de
apresentação, expôs o relatório verbal de ausências discentes, operou a execução do “brado”
final (urro coletivo e “entusiasmado”, de referência militar, que caracteriza os objetivos daquele
grupo) e ordenou o retorno à posição inicial, preparando todos para a instrução que viria.
Cauteloso com aquela demonstração de força e usando a disciplina de “Técnicas de
Preservação do local de Ocorrência (T.P.O)” para incitar debates sobre as ações policiais ou, no
caso específico, para compreender as expectativas da prática profissional que esses jovens
agentes desenvolveriam no âmbito do trabalho, tomei boa parte do início da aula apenas
conversando com meus interlocutores sobre temas da polícia, ambiguidades e saberes típicos.
Nesse sentido e como uma situação que fluentemente vem tona em um bom diálogo, o
desafio de entender as características que projetam sentindo ao universo policial surgiam nas
falas e nas colocações do debate.
Como um momento de reflexão advento das muitas inquietações sobre a postura
profissional mais adequada, imaginei por um segundo que parte do significado que se projeta
nas práticas policiais parece formular-se, em maior demanda, na tradicionalidade das relações
profissionais. Dito de forma simples, parece coincidir do reconhecimento, por parte das
gerações mais novas, de um “capital policial” que, como sugestão mais evidente, justifica o
modelo de exercício que se pretende espelhar-se.
No mesmo instante, pensei como seria difícil romper com essa matriz formativa mais
convencional, que se fomenta a partir da cultura policialesca, da transmissão de saberes
específicos, das vivências compartilhadas no âmbito do trabalho, mas, também, através de um
conjunto de narrativas fantásticas que, partilhadas entre as gerações, desenvolve um folclore
próprio que orienta, equivocadamente a conduta dos policiais mais jovens.
37
Nesse sentido e embora existam protocolos para a prática e uma celeuma de técnicas e
instrumentos de ação, esse paradigma formativo parece não saber muito o que fazer quando a
situação exige da polícia mais sensibilidade e desenvolve-se no limiar do contato mais íntimo
com as demandas sociais.
De forma geral, tal percepção veio à tona quando me via “bombardeado” por perguntas,
mas ficava sem resposta para a multiplicidade de questões colocadas pelos jovens guardas
municipais que, receosos quanto à aplicabilidade dos saberes que adquiriram no curso de
formação, não sentiam confiança de atuarem junto à população.
As circunstâncias situacionais, inerentes à segurança pública, colocam seus operadores
na dimensão do “sempre inesperado”, o que provoca imprecisão e deslocamento do exercício
profissional para o que chamamos, convencionalmente, de “bom senso”, ou seja, qualquer ação
informal que não provoque maiores prejuízos, sobretudo, para o agente (MUNIZ, 1999).
Outro não e especificamente na Guarda Municipal de Fortaleza, o “não saber o que fazer”
ainda permeia uma crise de identidade que envolve o modelo profissional imediatamente
referenciado, ou seja, aquele que enseja uma matriz de prática ostensiva e reativa ao fenômeno
criminal, distintiva da polícia militar e das forças armadas.
Ainda que a argumentação já esteja bastante desenvolvida, é o conflito ideológico que
mesmo velado sob a narrativa da cooperação profissional, acontece como uma disputa no plano
do discurso e acaba por formular um “complexo de inferioridade” que marca, aparentemente, a
personalidade profissional dessa instituição.
Tal circunstância é percebida em muitos momentos nas falas dos interlocutores ao não
entenderem muito bem o seu papel e o confundirem com as funções dos demais órgãos de
segurança pública, conforme se observa nas falas abaixo:
“[…] (a Guarda Municipal) Tem o papel de controlar, inibir crimes e
ser prestativa a sociedade […]” (COLABORADOR 09, Guarda
Municipal, 37 anos).
“[…] (a Guarda Municipal) É a polícia mais próxima. Assim, com
atuação mais diversa na sociedade. Para a segurança pública, a vejo
como a primeira força de atuação preventiva, coercitiva e combativa da
violência […]” (COLABORADOR 14, Guarda Municipal, 36 anos).
“[…] (a Guarda Municipal faz) O mesmo que a Polícia Militar […]”
(COLABORADOR 15, Guarda Municipal, 31 anos).
“[…] (O papel da Guarda Municipal é o de) Descentralizar a Segurança
Pública, passando do âmbito estadual para o municipal […]”
(COLABORADOR 19, Guarda Municipal, 35 anos).
“[…] Além de proteger e preservar o patrimônio, também tem como
papel fazer valer a lei e a justiça para todos […]” (COLABORADOR
23, Guarda Municipal, 29 anos).
“[…] O papel da Guarda Municipal é também o de proteger a sociedade
na prevenção […]” (COLABORADOR 27, Guarda Municipal, 40 anos).
38
A confusão é promovida, a meu ver, por conta dos arranjos associados ao modelo de
segurança mais clássico, mas também, pela súbita mudança que acompanhou a oferta de
violência na cidade e que exige dos agentes municipais uma postura policial mais “enérgica”;
classicamente adquirida quando se espelha um modelo de segurança reativo. De modo mais
ampliado, penso ainda que pode ser mais um reflexo da violência generalizada, que nos faz
conceber uma sociedade (e por extensão a polícia) cada vez mais punitiva.
Independente da resposta, mas em constante estado de comparação com a polícia militar,
fica evidente que o Ethus policial da Guarda Municipal de Fortaleza permeia o militarismo
característico da instituição sugerida e se constrói a partir dessa matriz, ainda que, ganhando
“cor própria” ao semear uma perspectiva preventiva e reconhecer, a si mesma, como uma
legítima organização de segurança pública, detentora do estatuto de polícia.
Como organização formal, a Guarda Municipal de Fortaleza é dividida em quatro
coordenadorias distintas, mas integradas e complementares. A Coordenadoria de Inspetorias
Cidadãs (COINSP), atuante em toda cidade, que conta com um efetivo de 768 Guardas
Municipais e protege o parque patrimonial, usuários e transeuntes desses logradouros. A
Coordenadoria de Inspetorias Especializadas que opera junto a proteção do meio ambiente, por
intermédio da Inspetoria de Proteção Ambiental; no salvamento de banhistas, por meio da
Inspetoria de salvamento Aquático; na proteção e assistência pedagógica às escolas da rede
municipal, por meio da Inspetoria de Segurança Escolar e no patrulhamento urbano comunitário,
por meio da Inspetoria de Ciclo Patrulhamento. A Coordenadoria de Proteção Comunitária
(COPCOM), onde atuam os Núcleos de Mediação de Conflitos, as Células de Proteção
Comunitárias (“Torres”) e outras ações integradoras e, por fim, a Coordenadoria
Administrativo-Financeira, onde se desenvolve boa parte da gestão e administração
institucional.
A partir de qualquer leitura simples da ordenação acima, fica evidente que a Guarda
Municipal carrega, nos últimos anos, uma preocupação aparente com a categoria cidadania.
Outro não e executando serviços de utilidade social através de núcleos especializados, proteção
e policiamento, com integração com outras forças de segurança e profissionalização constante
de seus membros, a instituição chega ao século XXI como uma alternativa viável ao cenário
violento que desponta na cidade.
Todavia e para além dessa leitura estática de seu desenho institucional, a Guarda
Municipal de Fortaleza assume, na prática, a responsabilidade de atuar como força ostensiva e
preventiva no âmbito do município e supera, em muito, sua prerrogativa normativa e o “desenho
militar” que perpassa sua existência institucional.
39
Tal premissa, em muitos momentos, foi vivenciada por mim ao longo dos cinco anos de
trabalho na instituição. De forma geral, a perspectiva normativa era questionada quando tinha
que atuar como “policial municipal” junto à população e a partir de uma rede confusa, mas real
e recorrente, de ações policiais de contato direto com o fenômeno criminal.
Mesmo relutante e numa escala de “12/36” (“doze por trinta e seis”: serviço de doze
horas ininterruptas, com folga de trinta e seis), embarcava quase que diariamente numa viatura
policial caracterizada (institucionalmente ornamentada) e operava um modelo ostensivo de
polícia que atendia aos munícipes, coibia situações suspeitas, bem como perseguia, prendia e
conduzia infratores às delegacias plantonistas.
Todavia, meu cotidiano de trabalho ali sempre experimentou a incerteza de não entender
muito bem o ofício que desempenhava, pois para todos os fins legais, eu exercia uma respectiva
função, mas, na prática, a instituição exigia de mim e dos demais agentes de campo um conjunto
informal de outras práticas policiais que, beirando a ilegalidade, sempre provocou contradições
e constrangimentos.
A “crise de identidade” e o “complexo de inferioridade” em relação às outras
organizações policiais sempre foram questões marcantes e amplamente debatidas nos bastidores
do serviço. Dentro das viaturas, na sede ou nos postos fixos e patrimoniais, os agentes
confessavam o receio de atuar conforme preconizava os setores de comando operacional.
Todavia, “de minha época” até o presente momento, tais nuanças nunca foram realmente
elevadas à condição de problemas institucionais e encaminhadas a gestão, como demandas que
precipitam debates importantes e exigem soluções providenciais.
De repente e como uma percepção mais crítica para aquela situação, me ocorreu que o
desenvolvimento aparente da instituição não tinha acontecido na totalidade daquilo que meu
anfitrião celebrava na recepção. Enfim, era uma questão curiosa que tinha que ser debatida;
pelo menos naquela sala de aula.
Já eram 15:30 e a instrução estava a “pleno vapor”. Tais indagações acabavam vindo à
tona quando, em meio a formação, alguns alunos sempre questionavam o papel profissional da
guarda municipal no combate ao crime e demonstravam descontentamento, incerteza e até
40
Outro não e ainda sobre a temática, Bretas & Morais (2009, p. 160) destacam que as
Guardas Municipais acabaram por internalizarem uma perspectiva clássica de policiamento,
distorcendo, em parte, dos reais objetivos de sua formulação.
Criadas num quadro de busca de alternativas e soluções para os
problemas sociais crescentes, quase sempre ligados à expansão da
violência e do crime, em seus diferentes formatos as guardas repre-
sentam uma tentativa de inovação no quadro das políticas de segurança.
Mas a base que promovia a criação dessa nova força, além das
limitações estabelecidas pela manutenção das atribuições das forças
tradicionais, padecia também da indefinição, que permitia que se
fizessem guardas municipais com os propósitos e métodos os mais
diversos.
traz a qualquer organização que ostente uma função garantidora de direitos, esse limiar
legislativo impetrado pelo artigo constitucional às guardas municipais iria ser ultrapassado
quando no contato mais íntimo com a sociedade e na efetivação das práticas preventivas
(MUNIZ, 1999).
Tal perspectiva também é desenvolvida na premissa de superação do modelo repressivo
que marca as polícias militares e elege o combate ao crime mais grave como objetivo mais
essencial das políticas de segurança. Todavia e como alternativa possível e viável, desponta na
atualidade um modelo de segurança que ultrapassa tal viés e foi incorporado, pelo menos em
um primeiro momento, às guardas municipais.
Nesse sentido, qualquer leitor mais atento há de convir que os guardas municipais são
policiais “de fato” quando têm que executar, dentro de uma viatura, o serviço de policiamento
municipal e atender, junto a Coordenadoria Integrada de Operação de Segurança (CIOPS), os
mais diferentes tipos de ocorrência, conforme podemos verificar na tabela abaixo construída a
partir dos dados oficiais de ocorrências atendidas pela instituição.
Não obstante e ainda de acordo com o rol de práticas policiais registradas na tabela
acima, a Guarda Municipal de Fortaleza avança nos últimos anos como uma força policial que
abrange uma totalidade de políticas de segurança e responde a diversas demandas localizadas.
42
todo esse movimento histórico e institucional que coloca essa instituição em um novíssimo
momento no sistema de segurança pública, como bem me alertou meu anfitrião inicial.
Era uma manhã de quarta-feira (16 de Novembro de 2019) e ao iniciar uma singela
conversa na recepção, indaguei a uma colega policial (Escrivã de Polícia Civil, 32 anos de
carreira) sobre seus sentimentos a respeito daquele lugar, ou seja, de como ela percebia aquela
delegacia de polícia e que ideia projetava do trabalho que desenvolvia ali.
Confusa e não compreendendo os reais objetivos da pergunta, ela me interpelou de volta
tentando esclarecer os motivos do questionamento. “[…] Por que você quer saber isso? […]”,
perguntou ela. Insistindo no assunto, esclareci que estava tentando realizar uma pesquisa
acadêmica e gostaria de saber como os profissionais daquela repartição policial compreendiam
a si mesmos e o seu lugar de trabalho.
Já direcionada e entendendo o contexto que lhe foi apresentado, minha amiga não
demorou muito para inquirir se minha curiosidade estaria orientada para uma noção idealizada
de delegacia (e de polícia civil) ou se eu desejaria saber a realidade “nua e crua”, entendida a
partir de sua visão, ou seja, se eu gostaria que ela fosse “politicamente correta” na declaração
ou se, de fato, ela poderia revelar o que sentia, observava e vivia através de seu cotidiano de
trabalho.
Entendendo a pertinência de sua observação preliminar, apenas dei um sorriso e percebi,
como que uma expiação privilegiada naquele momento, as muitas possibilidades que aquela
contestação poderia trazer para minha análise.
De forma geral, minha amiga apenas revelou a ambiguidade característica de uma
delegacia de polícia que, entendida a partir de referências localizadas na cidade de Fortaleza-
CE, funciona como um local de expectativas e de frustrações. Dito de forma simples e a partir
de experiências compartilhadas por esse Policial-Pesquisador, nesse espaço dual existe um
choque de perspectivas que envolvem todos aqueles que na delegacia e da delegacia esperam
algo de reconfortante.
Antes de qualquer compreensão mais abrangente do cenário e das relações sociais que
se desenvolvem ali, é fácil perceber que qualquer delegacia de polícia é um espaço de poder,
ou seja, um território de segurança específico e dinâmico, pois é naturalmente percebida como
uma unidade policial fixa, que objetiva assistir ao público em geral, mas também estabelecer
45
uma base logística para subsidiar operações policiais e promover a detenção temporária de
suspeitos em flagrante delito. Outro não, de forma analítica e como bem preceitua outro amigo
Inspetor de Polícia Civil (13 anos de carreira) “[…] uma delegacia é um órgão público,
responsável por resolver problemas criminais […]”
Todavia e ampliando a reflexão. O público, ou seja, as pessoas comuns do povo,
cidadãos e beneficiários das políticas de segurança no estado, depositam esperança nesse local
e aguardam dele a resolução de suas solicitações, ansiedades e desesperos. Em suma, apenas
almejam suprir expectativas sobre uma infinidade de demandas que, para além da dimensão
normativa, abrange outras de caráter tradicional, subjetivo e, em muitos momentos, informal.
A delegacia é, costumeiramente, um lugar de promessas, fé e esperança para as pessoas
que se deslocam até ela, pois se observa nesses diversificados usos do espaço policial uma
importância significante concedida à crença de que lá, e somente lá, se encontra compreensão
e segurança.
Em parte e a meu ver, essa convicção é apoiada no crédito social depositado na
capacidade dos agentes policiais que, sob uma apreciação geral e antes de juízes, promotores e
outros operadores da justiça (de “maior escalão”), estão mais próximos do povo e são
interpretados como personagens de relevância, com forte poder de intervenção e dotados de
destreza e astúcia. Portanto, capazes de responder, em um primeiro momento, as muitas
emergências do cidadão.
Dito de outra forma, é fácil perceber uma delegacia de polícia como um lugar onde se
pode entrar facilmente, ou seja, como um recorte do Estado de portas abertas em que, mesmo
com certa relutância, os cidadãos acessam de forma casual; sem barreiras econômicas, sociais
ou políticas. As pessoas comuns entendem a delegacia como um espaço aparentemente
democrático, onde podem narrar suas frustrações e serem ouvidos, pois “[…] a experiência
mostra que nem sempre as pessoas querem dar queixas de crimes, mas […] (apenas) relatar
suas histórias e serem ouvidas […]” (BARREIRA; ALMEIDA; BRASIL, 2004, p.171).
Diferente de outras instâncias de justiça e, mesmo ambíguas na sua essência, é
escrachadamente notório o apelo popular que essas repartições possuem junto à sociedade. Em
parte, tal conjuntura existe a partir da ideia que concebe a delegacia de polícia “[...] como um
lugar de ausência de regras rígidas e de trabalho mais livre [...]”, que até obedece a certas
formalidades, mas acontece, em maior demanda, na dimensão do senso comum (BARREIRA;
ALMEIDA; BRASIL, 2004, p.122).
Como policial, é interessante, mas igualmente angustiante, pensar as muitas imagens
que se projetam desses órgãos públicos e dos profissionais que lá trabalham. Destarte, as
46
pessoas percebem esses prédios como um lócus de segurança que ultrapassa suas paredes e se
estende, como ideia, até uma circunscrição imaginada nas suas proximidades.
A figura comum de alguém buscando abrigo às portas de uma delegacia fechada quando
sente insegurança, por exemplo, ilustra esse sentimento típico e corriqueiro das pessoas que, de
forma simples, apenas esperam proteção. De forma geral, tal atitude também representa um
significado coletivo a respeito dos agentes de segurança que lá trabalham e que deles se espera,
no mínimo, acolhimento.
Avançando e depois de alguns segundos de “diversão maliciosa”, dado a pergunta
capciosa que ela havia me feito preliminarmente, revelando a impressão velada, mas
característica das delegacias de polícia civil que, não obstante, é sabida e compartilhada por
todos os agentes que lá trabalham e possuem acesso as suas informações, minha amiga acabou
por definir aquele espaço como:
“[…] um lugar de desalento para a população […] um lugar que deveria
servir de refúgio para a sociedade, mas, na verdade, está muito aquém
dessa fantasia […] um lugar onde se prende gente pobre […]
Teoricamente, é onde se dá as investigações de crimes, mas esse índice
de resolução é baixíssimo. A coisa muda de figura quando é um rico que
morre […]”.
menor escala, esse cenário também se reproduz em outras unidades; mas aqui e em virtude da
demanda, tal situação se propaga em números alarmantes.
Local de intensa movimentação, essa delegacia destaca-se na instituição como uma
entidade que, “mais cedo ou mais tarde”, acaba por obrigar todos os outros policiais a se
deslocarem até ela, escoltando pessoas presas ou para resolver situações diversas do trabalho.
Oportunidade em que aplico minha pesquisa e em que amplio, substancialmente, meu
entendimento acerca dos sujeitos que se reconhecem policiais civis.
Nessas ocasiões, a DECAP se torna um celeiro de muitos rostos e formas de pensar a
segurança. A celeuma de opiniões e as muitas conversas que emergem de seus corredores é
como um mosaico dinâmico que reedita a polícia e suas ideologias. Tais momentos despontam
como oportunidades valiosas para o desenvolvimento dessa pesquisa porque, longe do público,
os sujeitos policiais se permitem elaborar uma autorreflexão sobre suas práticas e seus saberes.
De forma geral, existe uma centralização evidente nesse espaço por figurar como uma
delegacia que absorve, sobretudo na atualidade, a totalidade dos presos provisórios e a
diversidade de contextos que essas prisões acarretam, o que, outrora, era igualmente distribuído
nas demais delegacias plantonistas e nas da região metropolitana.
Dando voz a um amigo de trabalho (INSPETOR DE POLÍCIA CIVIL, 13 anos de
carreira) com “dez anos de casa” (dez anos de experiência na repartição), pode-se dizer que a
Delegacia de Capturas “[…] é um local muito ‘carregado’ […] por aqui (lá) passa todo tipo de
pessoa e, com elas, todo tipo de sentimento […] tem muita maldade aqui (lá) […]”.
Consubstanciando com o depoimento do colega e na condição de alguém que também trabalha
no local, testemunhei (direto e indiretamente) muitos episódios de tormento que, em casos
extremos, desencadearam vítimas fatais.
Entre desafetos, brigas, homicídios e até suicídios, a DECAP é estigmatizada como local
de terror e medo, pois é capaz de suscitar receio no mais corajoso dos sujeitos que, por força
das circunstâncias, é obrigado a deter-se ali e aguardar autorização para o deslocamento.
Diferente de outras unidades prisionais, aqui não existe nenhum plano de ação contundente ou
qualquer repartição adequada dos internos. Em verdade, também nunca houve nenhum projeto
nesse sentido e, salvo algumas reformas estruturais, muito pouco se fez ao longo dos anos.
Com a exceção de categorias bem específicas, os quase cento e cinquenta prisioneiros
(média diária) compartilham quinze xadrezes de aproximadamente 15 m² e comungam de um
convívio forçado pelo cárcere que impõe a necessidade de regras paralelas, não formais e
marginais, mas que subsidiam uma atmosfera de respeito entre os detentos e entre esses e os
policiais. Estimar a história de cada homem ou mulher que entra na detenção, não depreciar,
48
11
Comando Vermelho Rogério Lemgruber (Comando Vermelho - CV), é uma das maiores organizações
criminosas do Brasil. Foi criada em 1979, na Prisão Cândido Mendes, Rio de Janeiro. (VER: AMORIM, C.
CV-PCC: a irmandade do crime. 4 ed. Rio de Janeiro: Record, 2004).
12
Guardiões do Estado (G.D.E) é uma facção criminosa originária da cidade de Fortaleza. É considerada a terceira
maior organização do Estado do Ceará. Estima-se que o grupo tenha cerca de 600 filiados nos presídios
cearenses, e disputa território com o Comando Vermelho (VER: Diário do Nordeste. “Facções avançam e
travam guerra no Ceará”. 16 de Junho de 2017. Acessado em 09 de outubro de 2017).
13
A audiência de custódia consiste na condução do preso, sem demora (em até 24 horas), à presença de uma
autoridade judicial para fins de apreciação de sua prisão (averiguar a legalidade do flagrante e da conduta dos
policiais).
49
Todavia e para os demais servidores que não se encaixam nesses modelos, mas que
prestam serviço no local, resta apenas a conformação da infâmia de serem confundidos, a todo
o momento, com os tipos descritos. Outro não, tal situação é um reflexo evidente da
representação social que é construída para a DECAP no âmbito da polícia civil e que a descreve
como um local “herético”, “demonizado” e de “má reputação”. Para onde converge tudo aquilo
que diverge do padrão e que impede o funcionamento esperado e desejado nas demais
delegacias de polícia.
Revelando um cotidiano censurado, posso afirmar que apenas em raríssimos casos os
profissionais dessa instituição optam livremente por trabalhar nessa repartição. Ao contrário e
como resultado de um descrédito profissional empreendido, em parte pela lógica funcional
imposta pela gestão, os policiais constroem um estigma 14 à imposição de executarem uma
atividade reconhecidamente menor e que envolve, em muitos momentos, a rejeição de
proximidade com os sujeitos encarcerados e estabelecer, também com eles, qualquer tipo de
vínculo.
Durante todo o horário de trabalho, os profissionais, fixos (“policiais permanentes”:
aqueles que executam suas funções dentro da delegacia) ou itinerantes (“policiais de campo ou
de expediente”: aqueles que executam suas funções fora da delegacia; em deslocamento),
executam a função de custodiar ou escoltar pessoas em situação de cárcere.
Em suma, essa é uma atividade desagradável e desqualificada que, rotulada como um
serviço ultrajante, apenas atrapalha o real ofício da polícia judiciária, ou seja, aquele que diz
respeito à nobre e prestigiada competência de investigar crimes. Nesse sentido e como uma
marca proveniente de sua função, a DECAP acaba por simbolizar tudo aquilo que mais se
despreza e se omite na cultura profissional da polícia civil.
Pensando essa distinção e recordando o que outro colega de trabalho colocou sobre a
questão, a Delegacia de Capturas e Polinter é, genericamente, um lugar ruim, ou seja, um espaço
estigmatizado e estigmatizante daqueles que nela desenvolvem suas funções ou simplesmente
lá estão por sujeição jurisdicional. Em suma e segundo ele, nossa delegacia “[…] é
simplesmente um mal necessário […]”, ou seja, um lugar “[…] para onde todos os problemas
convergem […] um atraso […] um lugar de aflição […]” (INSPETOR DE POLÍCIA CIVIL, 6
anos de carreira).
14
Dentro da cultura profissional da Polícia Civil, o trabalho de custodiar presos provisórios dentro das delegacias
de polícia, sempre foi mal visto pelos agentes. Considerado como um trabalho indigno, sempre provocou
resignação.
50
Com liberdade para se expressar, meu companheiro de profissão apenas projetou sentido
na classificação geral que recebeu de seu lugar de trabalho e expôs o que Goffman (2004)
colocou como condição de inferioridade, ou seja, como um aspecto proveniente da repartição
entre o que é notoriamente adequado e aquilo que é reconhecidamente diferente e menor,
produzindo, com isso, um estigma social. Segundo o autor (GOFFMAN, 2004, p. 4), tal
condição é definida “[…] enquanto marca ou sinal que designa o seu portador como
desqualificado ou menos valorizado […]” é ainda, na sua visão, “[…] a situação do indivíduo
que está inabilitado para aceitação social plena […]”. Ampliando a questão, Goffman (2004, p.
5) também coloca que “[…] os ambientes sociais estabelecem as categorias de pessoas que têm
probabilidade de serem neles encontradas […]”. Nesse sentido, podemos imaginar que tal
situação estigmatizante manifesta-se na DECAP e, como já colocado no texto, parece se
propagar nos seus servidores.
Resgatando a apresentação da sessão e avançando no relato do campo, já estamos na
quinta feira (17 de Novembro de 2019) e hoje é dia de “bonde” (escolta policial para o centro
de triagem prisional). O ambiente na delegacia é caracterizado pelo “corre-corre” típico desses
episódios semanais e tanto os policiais, como os detentos, estão agitados e ansiosos aguardando
a “lista da SEJUS (lista de detentos escolhidos para recambiamento ao Centro de Triagem
Carcerária – CTC, segundo a Secretaria de Justiça e Cidadania)”. Nesse dia, o movimento é
aparentemente caótico. Os arranjos, ajustes e reparos que subsidiam a execução da respectiva
“missão” tornam-se mais evidentes e revelam uma informalidade tensa e constrangedora para
os agentes da lei.
Outro não e como colocado no texto, essa tão esperada “lista de vagas” é um documento
que elenca a quantidade de pessoas presas, custodiadas na delegacia, que serão recambiadas
para o sistema prisional. De forma geral, esse catálogo é uma relação que qualifica esse ou
aquele sujeito, a partir do “teor criminal” e de outros critérios sociais para, enfim, “descer” (se
deslocar) para a uma unidade prisional adequada.
Nesse sentindo, a expectativa de ser escolhido percorre todos os xadrezes da delegacia
e se estende aos outros compartimentos, como um segredo que, guardado a “sete chaves”, revela
o destino de muitos homens e determina os protocolos de ação que serão estabelecidos a partir
de então. Para os policiais, é impossível esconder a satisfação de esvaziar a delegacia e de se
“livrar” da responsabilidade de custodiar os detentos, embora esse deleite seja efêmero e finde
no próximo expediente de serviço, quando novos detentos preenchem as vagas deixadas pelos
que saíram.
51
Do lado de fora, o cenário é de “guerra” e de preocupação. Além das três viaturas que
protegem o coletivo oficial, cerca de seis policiais, bem armados e tensos, estabelecem um
espaço de isolamento entre os familiares que aguardam ansiosamente notícias de seus parentes
e os sujeitos encarcerados que, numa fração de segundos e sob o comando dos profissionais,
apressam-se em subir a bordo.
Outro não, cabe destacar que a atmosfera de pranto familiar e o improviso com que esse
empreendimento é tocado, são reveladores da condição negligente com que essas ações são
impostas e estabelecidas pelo Estado. Sem contato com a família, os detentos apenas trocam,
aos gritos e já dentro do ônibus, palavras de conforto e resiliência com suas mães, irmãos,
esposas e filhos e, os policiais, sem melhores opções, esbravejam palavras de ordem e impõem
sua autoridade que, de certa forma, acontece de forma descoordenada e a mercê de qualquer
retaliação criminal aberta, resgate de detento ou conflito armado que colocaria todos ao redor
em perigo de morte.
A verdade inapropriada é que:
[…] Na maioria das vezes, a assimilação das funções policiais são
simplesmente obedecidas ou “levadas a cabo” conforme o desenrolar
do “dia a dia”. Na prática, tais princípios democráticos entram em
choque com a demanda por mais segurança e diminuição das taxas de
criminalidade, como também com a “cultura policialesca” que
predomina nas corporações (BARREIRA; ALMEIDA; BRASIL, 2004,
p. 120).
Correndo o risco de exageros literais, mas parafraseando George Eliot (Mary Ann
Evans)15 ao observar o lamento das pessoas pelo retrovisor da viatura e o olhar apreensivo do
amigo inspetor que compartilhava um dos veículos comigo, é realmente triste perceber que “[…]
Em cada despedida existe realmente uma imagem da morte […]”.
A reflexão descrita traz consigo a evidência de que toda escolta policial é um episódio
de desalento para os familiares, mas também para os policiais que, angustiados e com medo,
são obrigados pelo contexto profissional a arriscarem suas vidas. Esses sujeitos experimentam
a ambiguidade de terem um emprego público que lhes garante estabilidade financeira, mas a
contrassenso, vivenciam o temor de exercerem funções inseguras, a mercê de um cotidiano de
risco.
As muitas situações de despedida que provoquei e presenciei no âmbito do trabalho,
além de outros episódios de agonia que marcaram e marcam minha trajetória na DECAP,
15
George Eliot era o pseudônimo de Mary Ann Evans (22 de novembro de 1819 a 22 de dezembro de 1880). Foi
uma romancista autodidata britânica. Usava um nome masculino para que seus trabalhos fossem levados a
sério. À época, outras autoras publicavam trabalhos sob seus verdadeiros nomes, porém, Eliot queria escapar
de estereótipos que ditavam que mulheres só escreviam romances leves.
53
justificam os desabafos das pessoas que colaboraram com essa análise, mas também a
percepção de um campo de pesquisa repleto de possibilidades onde as vozes dos sujeitos
responsáveis por aquele domínio podem relevar incontáveis verdades sobre a polícia.
Embora necessário, desnaturalizar metodologicamente essa atmosfera incômoda não foi
um desafio fácil de ser alcançado, pois “[…] as vezes seu coração pode não estar onde a ocasião
social exige que esteja […]” (GOFFMAN, 2010, p. 47). De forma geral, careceu de bastante
desconexão, mas também de mediação acadêmica, sistematização, foco e retorno (dado minha
obrigação profissional). Olhar meus interlocutores de perto e partilhar com eles as ações que
desenvolvemos no cotidiano de trabalho, foi um uma experiência única e sensível, que não teria
sido compreendida dessa forma se eu não tivesse o amparo bibliográfico que subsidiou esse
estudo.
Sem mais e ao final daquela jornada de trabalho, tudo que mais queria era guardar minha
arma e retornar para a minha família; desejo compartilhado por boa parte dos colegas policiais
que prestaram serviço comigo naquele dia.
Não obstante, reverbero o que outro colega de trabalho (INSPETOR DE POLÍCIA
CIVIL, 35 anos de carreira) disse a respeito da delegacia, naquela mesma ocasião. Disfarçando
o desanimo e com um sorriso cansado, ele colocou: “[…] No próximo mês eu me livro disso,
entro de férias; definitivamente, a energia na DECAP não é boa […]”. Devolvendo o sorriso
sem graça e confrontando sua intenção, eu respondi de volta: “[…] Infelizmente, nos vemos
amanhã amigo. Aqui, somos todos cativos […]”.
2.3.3 “Um civil no quartel”: recepção, impressões do campo e contato com os policiais
militares na 3ªCIA/5ºBPM
No ápice dos seus 186 anos e com quase dezoito mil agentes, a Polícia Militar do Ceará
(PMCE) é uma força de segurança auxiliar do Exército que, subordinada ao gabinete do
54
De maneira geral e desde o primeiro momento, percebi que tal situação de conflito
institucional reflete certo embate tradicional que permeia o universo da polícia cearense há
décadas e repercute, ainda hoje, num conflito ideológico que marca a relação que se estabelece
entre nós (policiais civis) e eles (policiais militares).
Historicamente, sobre a questão, Barreira, Abreu e Brasil (2004, p.77) colocam que:
[…] a PM e a PC no Ceará não tinham, em sua história recente, grande
tradição de colaboração e trabalho harmônico […] Não foi raro
encontrar rusgas entre PMs e PCs, ambos disputando espaços de poder
e autoridade, tanto na capital quanto noutros municípios do estado. Na
capital, PMs faziam prisões e queriam que os delegados fizessem o
flagrante e estes, às vezes, se recusavam (por motivos legais), fato que
engendrava conflitos entre as partes. No restante do estado, o mais
comum era encontrar em pequenas cidades um oficial da PM (e por
55
Nesse sentido, me identificar como policial civil e ser selecionado, por uma instância
maior, para ministrar uma orientação sobre segurança pública dentro de um estabelecimento
militar, me colocaria numa condição de concorrência que, mais cedo ou mais tarde, produziria
um efeito divergente e acarretaria em certa hostilidade.
Nesse sentido, qualquer embate de valores não seria mera coincidência, mas apenas
revelaria um pouco mais dos imponderáveis que marcam o universo da segurança pública e que
não são acessados pelo público em geral.
Em parte, imaginando um respectivo sistema de poder para o mundo da segurança
pública e ampliando esse entendimento para o plano do discurso (rede de enunciados), o que
me parece acontecer é uma disputa de panoramas profissionais que coopta dois modelos
distintos e que, até certo ponto, atuam de modo antagônico em virtude dos resultados e das
funções estabelecidas pelo Art. 144 da C/F-1998.
De um lado, se encontra a polícia militar, que reivindica a superioridade do seu padrão
de policiamento, argumentando resultados imediatos quando no combate aberto e direto à
criminalidade a partir de estratégias reativas (abordagem) e preventivas (vigilância);
caracterizando um tipo ostensivo de panorama policial.
Do outro, encontra-se a polícia civil que, imbuída da função investigativa, argumenta
que suas ações, de médio e longo prazo, alcançam desfechos mais robustos, pois com um
inquérito16 bem elaborado, a justiça pode seguir seu curso natural e os criminosos são punidos
na “forma da lei” (conforme preconiza a legislação penal e a polícia judiciária).
Dito de forma simples, me parece tão somente uma rivalidade de saberes policiais que
apenas elabora, de forma dual, etnocentrismo e estereótipos para ambas as corporações
(FOUCAULT, 1997). Ilustrando a reflexão, recordo-me de um antigo companheiro de trabalho
(policial civil) que, de forma hostil e costumeiramente, referia-se aos agentes militares como
policiais de “pé preto”, fazendo referência jocosa aos calçados tipo “coturno” (botas militares)
que completavam o fardamento obrigatório. Por outro lado, também evoco as muitas situações
em que, na companhia de amigos militares e em contextos informais (fora do serviço oficial),
escutei expressões de referência aos policias civis que, no mínimo, seriam consideradas
16
O inquérito é um procedimento policial previsto no Código de Processo Penal Brasileiro.
56
pois cambiaram comigo singularidades que levaram até o final do curso e que, provavelmente,
invocaram quando no desempenho profissional mais atual.
Deixando o leitor ciente dessas distinções e prosseguindo com a descrição das
experiências do campo, inicio meu relato com o pressuposto de atuar como docente pela
Academia Estadual de Segurança Pública (AESP) e me deslocando até o bairro Pirambú
(Fortaleza-CE), nas imediações da “Praia da Barra”, onde localiza-se a 3ªCIA/5ºBPM.
Naquele contexto, aquela unidade de polícia era uma das sedes do curso de formação
para o provimento do cargo de soldado; concurso que aconteceu no final de 2017 e que se
estendeu até 2018. Não obstante, aquela viagem seria a primeira de outras nove que totalizaram
dezoito horas de instrução na disciplina de “Sociedade, Ética e Cidadania”; exigência formativa
da Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) para os estados.
Era uma manhã de segunda feira (15 de Janeiro de 2018) e, como de costume, pilotava
apressado minha motocicleta pelas ruas da cidade. Em direção à Barra do Ceará, “de boca em
boca”, parando e perguntando aos moradores locais, acabei chegando até meu destino que, de
imediato e no alto de uma ladeira, não me pareceria uma edificação tipicamente militar se não
fossem as viaturas estacionadas no pátio e o “entra e saí” contínuo dos agentes fardados.
Meio deslocado, por não saber exatamente como me comportar naquele local, conduzi
cauteloso meu veículo até o pátio de entrada, mas sem estacar (porque estranhei não haver
nenhum veículo civil no local), me identifiquei e pedi informação a um policial que parecia sair
do serviço. Sem titubear, ele me orientou a deixar a motocicleta ali mesmo, pois não havia
nenhuma restrição oficial e ninguém ousaria “levar” (furtar) meu veículo.
Aceitando o conselho, estacionei e desliguei o motor. Sem saber de que modo seria
acolhido e como uma estratégia providencial naquele momento, recolhi na mochila meu
distintivo policial e caminhei até o rol de entrada com ele “pendurado” no pescoço. Achei que
me expressar através daquele “ornamento identificador” (símbolo de poder e autoridade
policial), seria melhor do que chegar sem nenhum reconhecimento policialesco no primeiro
contato formal dentro do recinto.
Imaginei também que, pior do que ser um policial civil na caserna é ser um civil, “não
policial”, que também objetiva transmitir saberes que não celebram a deontologia militar, ou
que, mesmo possível, lance qualquer crítica a um estatuto “sagrado” da polícia militar.
Classicamente, a PM tende a resistir qualquer perspectiva formativa de terceiros, não detentores
da condição policial e que portam, segundo eles, qualquer conhecimento subversivo (MUNIZ,
1999; SÁ, 2002). Pensando dessa forma, manter o artifício me parecia fundamental para o
acesso.
58
Para minha satisfação, minha artimanha pareceu ter produzido resultado quando na
entrada e observando a insígnia uma policial perguntou respeitosamente como poderia me
ajudar. De pronto, devolvi o tratamento e contextualizei a minha ida até aquele local;
identificando-me e explicando que ministraria uma disciplina aos candidatos do concurso.
Contudo e para minha surpresa, ela revelou que não tinha nenhuma informação a
respeito, mas que, para mais esclarecimentos, interfonaria para a sala do oficial responsável e
perguntaria sobre a tal instrução. Confuso, pois minhas instruções eram claras e viam da própria
coordenação pedagógica da AESP, aguardei ansioso o desfecho do telefonema e, nesse meio
tempo, pude observar, ainda da recepção, as dependências daquele quartel de polícia.
Não muito diferente de qualquer outra repartição pública, o lugar era pequeno e
aparentemente retangular, existia como um conjunto de corredores e ostentava cerca de dez
salas estrategicamente localizadas e muito bem identificadas. Observei de longe a sala do
comandante, a sala do subcomandante, os alojamentos, a copa, setores administrativos, o
auditório e outras dependências.
Também a semelhança de qualquer edificação eminentemente policial, a “correria”
apressada dos agentes era algo que marcava o lugar com uma energia vibrante. Como se algo
estivesse impulsionando a todo instante aquela atmosfera caótica, nem consigo lembrar de
quantos policiais me deram bom dia enquanto saiam ou chegavam para o trabalho.
Sem muito esforço, imediatamente recordei de minha delegacia e furtivamente sorrindo
refleti que lá, ou ali, a segurança pública tinha algo de “aparentemente urgente”, mas ainda era
marcada por certa desorganização explícita de sua prática e pelo “corre-corre” frenético e
perturbador de seus operadores.
Ainda exercitando minha “imaginação sociológica”, fui despertado pela “P-fem” 17do
balcão que, colocando o telefone no gancho, me orientou a entrar e aguardar na frente do
auditório. Segundo ela, o oficial comandante confirmou a instrução, mas antes, iria me atender
lá, pois gostaria de fazer alguns esclarecimentos.
Apreensivo, mas sem fazer qualquer objeção, pedi licença e me desloquei até o local.
Enquanto avançava em direção ao auditório, acabei encontrando um recente colega de estudo
(do curso de Especialização em Direitos Humanos, Cidadania e Segurança Pública) 18 e que, a
julgar pelas insígnias que ostentava no ombro da farda, ocupava qualquer cargo de destaque
naquela repartição, pois aparentava ser um oficial de alto escalão.
17
Expressão policial (jargão) utilizada para designar policiais militares do sexo feminino.
18
Curso lato senso ofertado pela Universidade Federal do Ceará (UFC) em parceria com a Secretaria Nacional
de Segurança (SENASP).
59
19
Código e/ou Expressão policial (jargão) para designar uma situação “ideal” ou pessoa de “boa índole”.
60
Pensar essa classificação me entristeceu bastante, já que tal estatuto não é possível de
ser concretizado na sua totalidade e que apenas produz desentendimento e conflito quando o
policial não reconhece tal realidade de trabalho e sofre com a redescoberta de sua débil
humanidade. De forma geral, tentar desagregar o caráter humano dos sujeitos policiais tira deles
a possibilidade de exercerem cidadania, de executarem ações policiais humanizadoras e de se
adaptarem naturalmente à sociedade que policiam em nome do Estado.
Por fim e retomando o controle da instrução, dei por encerrado o encontro e firmei o
compromisso de, na próxima aula (dois dias depois), trazer meus apontamentos de pesquisa e
elaborar, com todos os presentes na sala, uma nova rodada de conversas sobre os saberes mais
típicos da segurança pública e sobre as expectativas de exercer a profissão policial.
Envaidecido com a oportunidade de contribuir para a formação daqueles garotos, me
despedi de todos e recebi, de forma espontânea, uma salva de palmas pela didática e pela
condução da orientação. Em suma, aquele foi apenas o primeiro de muitos outros encontros
com aquela turma que acompanhei durante muito tempo, em outras duas diferentes disciplinas
e por mais de dois meses.
Na medida em que conquistava a confiança dos agentes policias naquele quartel, acabei
ganhando passe livre para entrar e sair sem ser anunciado e oportunidade de voz, quando
auxiliava na formação dos jovens candidatos ao cargo de soldado e expressava visões distintas
da polícia e de seus estatutos. Em verdade, tal experiência foi um exemplo factual de que
qualquer barreira ideológica ou política pode ser rompida com boa vontade, diálogo e
aprendizado.
63
20
FREITAS, Cadu. Número de mortes por policiais no Ceará cresce 439% em seis anos. 2019. Disponível em:
https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2019/05/30/numero-de-mortes-por-policiais-no-ceara-cresce-39percent-
em-seis-anos.ghtml. Acessado em 16 de Julho de 2019.
64
Dito de forma simples e indagados, por exemplo, sobre uma expressão familiar e
emblemática que, de forma geral, representaria sua própria condição policial na sociedade, a
maior parte dos colaboradores, como destaca o colega Policial Civil (COLABORADOR 68,
Policial Civil, 47 anos), enxergou a si mesmo como profissional notável, singular e especial.
Segundo ele,
“[…] A profissão de policial é muito nobre e heroica […]”; “[…] o
policial é alguém bastante corajoso e diferente das outras pessoas […]”.
Por isso precisa assumir um lugar de destaque entre as outras profissões
[…] Qualquer um pode atender em um comércio, mas para ser policial,
é preciso ter preparo, ter esperteza, ter vocação meu irmão […]”.
refletir, em um primeiro momento, acerca dos aspectos institucionais que fazem de sua
existência um órgão de controle estatal.
De forma geral, é sua instrumentalidade, seus legalismos, seus valores e controle
profissional, por exemplo, que fornecem um aspecto formal e concede a polícia um caráter
aparentemente restrito e indiferente. O que não me parece muito prático, considerando a
intimidade necessária ao atendimento de demandas mais sutis da segurança pública.
Prosseguindo e em um segundo momento, devem-se levar em consideração os aspectos
organizacionais que caracterizam qualquer instituição policial na observância irrestrita das
regras (hierarquia e disciplina), procedimentos e técnicas de trabalho (MONJARDET, 2012).
Enfim e mesmo que existam leis gerais que regulem o policiamento, a polícia assume
diferentes funções na sociedade, o que fomenta através dos sujeitos policiais diferentes
interpretações acerca das atribuições, do trabalho e das funções que executam.
Conforme Bayley (2001), a atividade policial dividir-se em três partes distintas, mas
complementares no contexto de sua atuação. Dito de outra forma e a partir do desígnio, o
trabalho policial pode ser compreendido através da organização de suas práticas, do confronto
situacional propriamente dito (entendido aqui como o envolvimento dinâmico com o público
em geral) e do conjunto de procedimentos próprios da polícia.
Nesse sentido e acerca daquilo que os colaboradores do estudo entendem por polícia,
por ser policial e pela missão profissional que justifica suas práticas no âmbito da sociedade, a
pesquisa aponta, em maior demanda, para a reedição de um modelo pautado na lógica normativa
e em ações de segurança baseadas na eliminação do inimigo criminoso.
68
De forma geral, a análise das falas aponta para a superioridade de uma perspectiva
conservadora. Tal singularidade é compartilhada por parte relevante dos jovens agentes e
envolve dois grupos de policiais que, através das falas, revelam certa percepção reativa e certa
percepção normativa do fazer policial.
Todavia e ainda que em parcela menor, parte dos colaboradores também revelaram uma
perspectiva progressista da prática profissional que, sem o risco de uma análise mais exagerada,
pode atestar um panorama heterodoxo da atividade policial no estado.
Considerando esse dado, arrisco dizer que a pesquisa indica uma visão mais crítica que
emerge, na atualidade, dos cursos de formação e do novo modelo pedagógico imposto pela
Secretaria Nacional de segurança Pública (SENASP) a partir de 2014.
Avançando e refletindo os dados provenientes do grupo mais conservador (policiais
reativos e policiais legalistas), percebe-se nas falas desses sujeitos certa concordância que,
reincidente nas frases mais usuais acerca do papel da polícia, revelam três características que,
na concepção de Monjardet (2012), reinterpretado pelas vivências desse policial-pesquisador,
equiparam-se a concepções comuns do modelo de policiamento ostensivo.
Nesse sentido e a partir de uma leitura perspicaz desses colaboradores, fica evidente que
esses policiais desenvolveram um sentido marcadamente reacionário da atividade policial,
invocando, a todo momento, um significado ortodoxo do seu ofício, contrariando qualquer outra
possibilidade de interpretação.
Outro não, a “proteção do cidadão”, a “pacificação social”, a “vigilância urbana” ou,
principalmente, o “combate ao crime, ao criminoso e a marginalidade”, são as bandeiras
ideológicas que projetam o sentido mais puro da conduta desse grupo, conforme se pode
observar nas falas baixo.
“[…] Ser policial é ser alguém com uma conduta reta e exemplar. Deve
manter sociedade segura […] (a “verdadeira” missão policial é)
proteger as pessoas mais vulneráveis […]” (COLABORADOR 24, 33
anos, Guarda Municipal).
“[…] (ser policial é) proteger a sociedade e promover a justiça […] (a
“verdadeira” missão policial é) proteção ao cidadão […] A Polícia é
formada por agentes da lei que se designam a serem homens que
promovem a justiça e protegem a sociedade […]” (COLABORADOR
26, 33 anos, Guarda Municipal).
“[…] (ser policial é) ser um homem ou mulher da lei, protegendo e
defendendo a sociedade, a ele próprio e a sua família […] (a “verdadeira”
missão policial é) proteger e defender a sociedade e a ordem pública
[…]” (COLABORADOR 37, 27 anos, CANDIDATO AO CARGO DE
POLICIAL MILITAR).
69
Era Março de 2018, não recordo bem a data, mas estava lotado na cidade de Aracati-CE,
fazendo parte do efetivo policial designado para a operação dos festejos de carnaval daquele
ano. Apesar da atmosfera caótica que caracteriza aquele feriado, até então, a noite parecia
transcorrer dentro da normalidade e a delegacia funcionava vagarosamente, com três ou quatro
pessoas aguardando atendimento na recepção para fazer boletim de ocorrência.
Todavia e conformando a ideia de que qualquer plantão policial pode mudar
repentinamente, aquela atmosfera tranquila foi interrompida pelo barulho (sirene policial) de
uma viatura que chegava às pressas no local. Era a Polícia Militar que, aparentemente, trazia
um sujeito em fragrante delito.
Até onde percebi, tratava-se de uma apreensão de som veicular (“paredão”) e a
consequente condução do proprietário. O suspeito estava bastante alterado e alarmava,
suplicante, que os policiais agiram de má fé, em situação de abuso, pois jurava ter reduzido o
volume do aparelho quando foi solicitado e que, mesmo assim e por pura “maldade”, os oficiais
lhe tomaram o equipamento.
Sem poder fazer qualquer juízo de valor mais preciso, porque não sabia ao certo o que
teria de fato acontecido no incidente, pude apenas observar o comportamento dos colegas
policiais que, a todo custo, cerceavam a voz do rapaz, já algemado e aos prantos. O jovem era
empurrado violentamente e constantemente ameaçado. A expressão de ordem mais comum era:
“_respeita a polícia, vagabundo!”. Como de praxe, o episódio findou com uma apresentação
formal de crime de desacato que, prontamente, foi apreciado pelo delegado plantonista e seguiu
seu desfecho habitual.
De forma geral e para todos os presentes naquele momento, a polícia mais uma vez
apresentou seu caráter mais repressivo, contrapondo o que Carvalho e Silva (2011, p. 60)
71
colocaram como excelência de política de segurança, entendida pelos autores como “[…] ações
pontuais combinadas a programas consistentes e duradouros, fincados, sobretudo, na
valorização do ser humano sob todos os aspectos, considerando o contexto social de cada
cidadão […]”.
Justificando a análise a partir da fala do Colaborador 38 (28 anos, CANDIDATO AO
CARGO DE POLICIAL MILITAR) que entende a missão policial como a responsabilidade de
“[…] reprimir o crime e proteger a sociedade de pessoas de má índole que atrapalham a
convivência […]”, o sentido de polícia compartilhado por esse grupo é cooptado por resquícios
de um modelo profissional marcadamente limitado pelo ofício de infligir força contra
indivíduos que destoam do padrão (BECKER, 2008).
Destarte e segundo esses colaboradores, a missão policial é reagir ostensivamente ao
crime ou preveni-lo, sob o aparato da beligerância e da vigilância constante e reguladora de
qualquer demanda de força privada. Podendo até, “[…] combater o crime com as armas do
crime […]”, segundo Monjardet (2012, p. 29).
Dito de outra forma e ainda segundo o autor (MONJARDET, 2012, p. 26-29) “[…] a
polícia é encarregada de fazer, ou de manter, a corrente substancial dos ‘interesses coletivos’
[…]”; todavia, esse ofício é entendido pelos policiais como a própria razão do Estado, dando
as políticas de segurança um caráter essencialmente regalista e carente de substância, já que o
“[…] instrumento policial não tem conteúdo próprio […]”, pois existe a mercê da autoridade
política, de suas conveniências e vontades.
Tal perspectiva, evidenciada nas falas, revela a meu ver os estatutos da “autoridade”, do
“ato policial” e da “dramatização constante do fenômeno criminal” como paradigmas que
reivindicam o pragmatismo da repressão em detrimento de um entendimento mais crítico e
abrangente do fazer policial.
Infelizmente, não é raro encontrar colegas policiais que conduzem seu ofício na
referência acima e que, quando muito, evocam a norma e justificam uma ação (ou omissão)
socialmente nefasta pelo arbítrio policial ou pela dualidade daquilo que acreditam ser
legalmente correto, sem, de fato, construírem um juízo de valor mais apurado.
Em suma e numa perspectiva geral, para os sujeitos desse grupo a função da polícia é
usar a força para regular as relações interpessoais na sociedade. Nesse sentido, “[…] a
manutenção do controle social é fundamentalmente uma questão política […]” (BAYLEY, 2001,
p. 203).
De forma geral é mais fácil restringir a compreensão do papel policial na premissa de
que “[…] a polícia está, salvo exceções em que são impostos limites, habilitada a intervir em
72
Todavia e para alcançar tal empreendimento, é fácil entender que os agentes desse grupo
não hesitariam em intervir com demasiada energia caso necessário e que, desde o primeiro
momento, avocariam a superioridade e a ação policial como instrumentos de garantia e
manutenção do poder, destes, sobre os outros “não policiais” envolvidos no conflito.
Esclarecendo parte da questão, Monjardet (2012, p. 157) nos ensina que “[…] para um
policial em intervenção é essencial garantir, primeiramente, sua autoridade […], pois sem isso
sua intervenção pode degenerar em conflito aberto […] sem está assegurado de ter a última
palavra […]”.
Todavia, essa máxima é um aprendizado comum nos cursos de formação e para esses
jovens policiais pesquisados independente do que possa surgir no ambiente de trabalho, é
fundamental garantir sobre os sujeitos envolvidos em qualquer situação profissional um arbítrio
próprio e hegemônico, justificado pelo poder de polícia que garanta o sucesso da ação.
Nessa visão, o policial é simplesmente “[…] um agente mantenedor da ordem social
[…]” e a polícia “[…] um corpo responsável pela preservação, contenção e resolução de crimes
contra a sociedade […]”, conforme preceitua o Colaborador 11(32 anos, Guarda Municipal) e
o Colaborador 42 (26 anos, CANDIDATO AO CARGO DE POLICIAL MILITAR). Avançando
na questão e arriscando uma análise mais crítica do respectivo princípio, Cathala (1975, p. 54)
nos orienta a pensar tal comportamento como condição de certa petulância, inerente à cultura
73
policial e proveniente de uma incompreensão daquilo que se entende por “poder de polícia”,
uma vez que:
Alguns policiais, felizmente assaz raros em razão de aperfeiçoamento
introduzidos no recrutamento e na formação profissional apresentam
constantemente um aspecto arrogante e presunçoso, um tom
autoritário e desabrido e uma linguagem chã, para não dizer vulgar,
que não podem deixar de descontentar o público a que atendem em
muitas circunstâncias.
Nesse sentido e para justificar sua autoridade, é recorrente os policiais desse grupo
imaginarem-se desempenhando uma função excepcional, gloriosa e superior a todas as outras
no âmbito da sociedade. Tal condição, na opinião desse policial-pesquisador, evidencia uma
inevitável presunção profissional e desencadeia efeitos danosos na prática e no sentido de
polícia.
Não obstante e como interpretação produzida a partir da interlocução da pesquisa,
arrisco dizer que o elevado sentido que esses colaboradores dão à missão policial e o caráter
imponente constantemente atribuído ao policial, revelam certa arrogância institucional
estendida aos sujeitos que, tomada como característica geral do seu comportamento profissional,
mesmo velado em muitos momentos sob regras de “boa” conduta, atestam esse traço vaidoso
compartilhado entre os membros desse grupo.
Em suma e na visão de Cathala (1975), essa insolência policial é uma “embriaguez”
proveniente do poder e da condição de autoridade que encontra justificativa no sentimento de
orgulho, no mérito individual, no fundamento da honra institucional e na dramatização do
fenômeno criminal.
Além de outras situações, é igualmente comum vale-se da autoridade policial sempre
que o agente, e por extensão a polícia, estiver na eminência da desmoralização. Confesso que,
como uma verdade inconveniente do serviço policial, presenciei a evidencia inúmeras vezes e,
como uma mácula de rispidez, necessidade de impor poder, ou, apenas por falta de empatia
social, tais situações geralmente terminavam com a equipe de agentes conduzindo os
envolvidos à delegacia de polícia mais próxima e efetuando o procedimento por desrespeito ou
qualquer outra tipificação penal semelhante.
Como circunstância corriqueira da premissa, e a semelhança do relato apresentado na
introdução do tópico, destacam-se os casos de desacato 21que no ano corrente (2019), conforme
21
Art. 331 do Código Penal brasileiro (Decreto-Lei 2848/40) - Desacatar funcionário público no exercício da
função.
74
“justo” de sua função ao atribuí-la à manutenção da paz social pela imposição, supostamente
moral, de uma determinada força policial.
Todavia e como um estigma que parece perseguir a polícia na sua totalidade, essa
energia é, quase sempre, destinada aos grupos sociais que não se dobram com facilidade ao
imperativo estatal, pois como nos alerta Monjardet (2012, p. 158) “[…] alguém encarregado de
aplicar uma regra tem todas as possibilidades de crer ser necessário que as pessoas com quem
ele se relaciona o respeitem […]”, pela força ou pelo medo.
Refletindo um pouco mais a afirmativa, Cathala (1975, p. 23) nos ensina que “[…] a
concentração de tal extensão de poderes nas mãos de alguns acarretaria, sem dúvida, no perigo
de abusos lamentáveis em prejuízo daqueles que lhes estão sujeitos […]”. Infelizmente e até
onde foi possível observar tal questão na prática, o receio do autor se concretiza cotidianamente
em nossas periferias, guetos e favelas.
Felizmente, e por experiência profissional, ressalto que tal concepção reflete uma parte
menor da realidade policial propriamente dita, pois as denúncias de abuso policial na
Controladoria Geral de Disciplina (CGD), por exemplo, revelam o aspecto vergonhoso da
conduta de alguns agentes que, pela negação ou pela desinformação, acaba repercutindo falsos
estereótipos.
No entanto, e pelo viés ideológico que marca esse modelo de policiamento, o resultado
do serviço policial existe quase sempre na dimensão da repressão e na imposição da sua
competência pela força, em detrimento de qualquer outra tentativa de se fazer aplicar as regras
ou promover a segurança social.
Dito de outra forma é fácil especular que, aos sujeitos desse grupo, interessa muito mais
obrigar os outros “não policiais” a respeitar as atividades da polícia do que exercer ou promover
tais atividades como atribuição profissional da segurança (“sem medo”); ainda que o façam,
por conseguinte ou por obediência irrestrita ao ordenamento jurídico.
Talvez como consequência do fundamento da autoridade e de sua aplicação prática no
cotidiano de trabalho, é notório entre esses colaboradores uma compreensão do fazer policial
associada ao pragmatismo da ação. Em outros termos, a valorização policial expressada nas
falas desses policiais contempla sempre o imediato, ou seja, é sempre atribuída ao ato policial
propriamente dito e quase nunca a uma situação alcançada por planejamento ou prevenção. É a
emergência do princípio da ação; agir antes de planejar.
Sobre a premissa, Monjardet (2012, p. 159) explica que:
O pragmatismo, frequentemente descrito como um traço cultural
policial, enraizado nas “exigências situacionais” da tarefa, se concebe
76
Ainda que uma apreciação mais simples da polícia perceba a repressão ao crime como
uma tarefa socialmente mais visível, dominante e recorrente do fazer policial, é notório para
qualquer observador mais atento que esse papel não toma a totalidade do cotidiano de trabalho
e não alcança todos os setores da organização policial.
Todavia, essa demanda do trabalho é, sem dúvida, a mais valorizada, com amplo
reconhecimento no âmbito policial, enaltecimento e possibilidade de ascensão profissional, pois
o melodrama constante do fenômeno criminal é um costume marcante da cultura policial e eleva
o aspecto reativo do trabalho a condição de “nobre” mister. “[…] Quanto mais o crime se amplia,
tanto mais a função social de ‘último baluarte contra a barbárie’ é essencial […]”
(MONJARDET, 2012, p. 161).
Do grande golpe que traz notoriedade, medalha e promoção, até a caça
à “cabeça” cotidiana, toda a profissão policial, assim, se convence – e é
confirmada em sua convicção pela hierarquia, o ministro e a mídia -
que a repressão ao crime é a sua tarefa prioritária (MONJARDET, 2012,
p. 160).
os jovens policiais constroem uma primeira noção do crime, e de suas nuanças, a partir de
narrativas ficcionais dos policiais mais experientes e dos relatos da “mídia policial” que, no
estado do Ceará, toma aproximadamente dezoito horas da programação televisiva
(considerando o tempo diário de todos os programas do gênero). É sem dúvida uma construção
imagética do fazer policial que implica numa formação balizada pela repressão.
Dito de outra forma, e a partir das vivências que pude compartilhar nesses doze anos de
profissão, posso especular que é o contato inicial do jovem policial com modelos simbólicos de
outros policiais declaradamente violentos e a intensa exposição midiática da violência que
condiciona qualquer entendimento que se possa construir da atividade policial, do infrator e do
fenômeno criminal.
O crime, como temática polêmica do cotidiano policial e da sociedade, enaltece o caráter
carismático das vítimas, mas também dos criminosos que, no âmbito da transgressão,
transformam-se em celebridades da violência banalizada e assumem o antagonismo teatral
narrado pelos atores que se envolvem na situação. Esses reclamam a condição de vilões e
encarnam o “mal”, enquanto do outro lado da “espada”, posicionam-se os policiais,
protagonistas e “nobres” defensores da paz pública que, através de violência reacionária,
formalmente legitimada e socialmente compartilhada por todos da sociedade, interagem de
forma dominante contra o indivíduo criminoso e são, de forma geral, recompensados por isso.
Corroborando com a reflexão acima e indagados a respeito dos fatores potenciais desse
fenômeno, parte dos jovens policiais pesquisados apresentaram uma compreensão
marcadamente reacionária acerca das condições geradoras do crime e da origem do agente
criminoso. Em suma, suas falas individualizaram as condutas e desconsideraram as questões
sociais e desigualdades que desencadeiam os muitos tipos de subversões.
Enquanto outros, a maioria, recusaram-se a comentar o tema, ou não conseguiram
desenvolver uma reflexão mais substancial sobre suas possibilidades, demonstrando
desconhecimento ou simplesmente negação.
Outro não e como exemplo recorrente nas falas, os policiais desse grupo compreendem
objetivamente o criminoso como “[…] infrator, que tem que pagar pelos seus crimes […]”
(COLABORADOR 29, NI, CANDIDATO AO CARGO DE POLICIAL MILITAR) e a
reincidência do delito como uma escolha pessoal ou como condição única de impunidade e
fragilidade do sistema judiciário, conforme expressa os colaboradores 25 (26 anos, Guarda
Municipal), 31 (23 anos, Guarda Municipal), 13 (32 anos, Guarda Municipal), 44 (24 anos,
CANDIDATO AO CARGO DE POLICIAL MILITAR), 45 (NI, CANDIDATO AO CARGO
DE POLICIAL MILITAR) e 24 (33 anos, Guarda Municipal), respectivamente.
78
A meu ver, a ilusão ficcional da polícia produz, senão, obstáculos à compreensão do seu
real papel na sociedade. O que se costuma fazer é, tão somente, negar a realidade do cotidiano
de trabalho e projetar um “real” imaginado da atividade policial que, de forma fantasiosa, atenda
aos anseios dos agentes que esperam, na polícia, reconhecimento e status.
79
Na condição de policial, percebo que a lógica normativa enseja uma falsa impressão de
que a polícia funciona como um sistema rígido, racional e eficaz. Que seu funcionamento opera
o sentido mais puro da lei e que a relação “intensão-resultado” é sua principal condição de
existência. Na prática, o referido argumento não passa de um ledo engano.
Todavia e insistindo na premissa, a polícia acaba por eleger a legalidade, a burocracia e
os procedimentos técnicos como fontes absolutas de orientação, gestão e efetivação, como bem
preceitua o Colaborador 37 (NI, CANDIDATO AO CARGO DE POLICIAL MILITAR) quando
coloca que: “[…] o papel da polícia é o de garantidora da ordem e de instrumento de propagação
da lei através das técnicas policiais […]”.
80
De forma geral e mesmo enaltecendo o aspecto legal da atividade policial que, em parte,
transcende a teoria e condiciona individualmente o comportamento dos sujeitos policiais, como
evidenciado no subtópico acima, também é consenso reconhecer uma perspectiva íntima que,
atribuída à polícia, revela uma informalidade já estrutural e compartilhada por seus membros.
Em parte, essa “[…] organização informal desempenha um papel determinante […]” na
execução do serviço, pois a todo instante a polícia reivindica, da esfera jurídica e do poder
legislativo, discricionariedade e autonomia sobre as políticas de segurança e sobre suas práticas
(MONJARDET, 2012, p. 42).
Dito de outra forma, Monjardet (2012, p. 42) nos ensina que “[…] A polícia é uma
grande organização complexa, regida por regras coercitivas, cujos membros estão longe de
partilhar uma visão idêntica das finalidades da polícia em geral e de suas próprias missões em
particular […]” o que, a grosso modo, justifica o choque de opiniões acerca da verdadeira
missão policial.
[…] a análise empírica do trabalho policial mostra imediatamente que
a ação policial é posta em movimento, cotidianamente, numa delegacia,
por três fontes. Certas tarefas são prescritas de maneira imperativa pela
hierarquia superior: o serviço deve fornecer no dia tal, à hora tal, tantos
agentes para uma transferência de detentos, aguarda do departamento
ou uma expulsão de vagabundos. Outras são respostas mais ou menos
obrigatórias às solicitações do público […] Outras, enfim, são de
iniciativa policial: tal observação (informação, acontecimento) suscitou
o interesse de um policial, ou da patrulha, e ele ou ela acompanha o
caso. (MONJARDET, 2012, p.15).
Consubstanciando com a premissa, Bourdieu (2013, p. 434 e 435) entende que “[…] os
esquemas de hábitus, formas de classificação originárias, devem sua eficácia própria ao fato de
funcionar aquém da consciência e do discurso […] fora do controle voluntário […]”.
Nesse sentido, introjetam um conjunto de orientações, percepções e disposições
semiconscientes que se efetivam no agir policial e no plano do discurso a partir de reflexões
conscientes da lógica recebida. Em suma, tentam se adequar a um modelo de comportamento
institucionalmente definido (BOURDIEU, 2013).
Todavia e sobre a questão, Cathala (1975, p. 23) coloca que:
As disposições de alcance mais geral são fixadas por lei. Incube ao
legislador elaborar os textos e dogmas obrigatórios da polícia que
traçam as grandes linhas das relações profissionais. Mas a lei não pode
prever todas as situações particulares extremamente variadas que
surgem a cada instante nos grupos humanos.
Nesse sentido e longe de estabelecer consenso, a visão normativa invocada por esse
grupo, condiciona o significado do fazer policial a uma idealização opaca das práticas, da rotina
de trabalho e do contato real com a sociedade.
Tal critério, sem o ajuste das experiências, das vivências e da humanização necessária à
ocupação policial, aliena os agentes e promove empobrecimento da compreensão do papel da
polícia, uma vez que;
[…] a função da polícia não pode ser entendida de modo apropriado se
considerada apenas em termos puramente de princípios de legalidade.
Longe de só aplicar máximas legais de uma maneira ministerial, a
Polícia emprega o poder discricionário ao invocar a lei. (BITTNER,
2017, p. 96).
Contribuindo para o debate e nos alertando acerca desse paradigma, Bittner (2017, p.
95) também destaca que encerrar o papel da polícia à prática de um policiamento restrito aos
aspectos normativos têm como consequência:
[...] manter uma pretensa compreensão e concordância. Como tais
afirmações sobre a função são abstratas e não restringem as
interpretações que lhes podem ser dadas, facilmente elas podem ser
invocadas para servir propósitos polêmicos tanto daqueles que
encontram falhas nas práticas existentes como daqueles que soam a
fanfarra para louvar a polícia.
Não obstante, mas admitindo ser uma característica marcante do trabalho policial, como
apresentado na pesquisa, o “discernimento policial” (condição de discricionariedade), admite a
evidência da informalidade e de uma realidade policial para além da aplicação mecânica das
leis, procedimentos e ordens institucionais.
Consubstanciando com a perspectiva, Monjardet (2012, p. 45) nos ensina que:
Essa acepção da autonomia está igualmente afinada com a concepção
dominante da qualificação entre os policiais […] de longa
aprendizagem pela prática em campo e em contato com os veteranos
[…] o trabalho policial não procede de uma adição de tarefas prescritas,
mas da seleção, pelos próprios interessados, de suas atividades. Por esse
motivo, são os mecanismos desse processo de seleção que são os
principais determinantes da definição, da organização e da análise do
trabalho policial.
Avançando e tomando como análise as falas dos colaboradores 10 (29 anos, Guarda
Municipal), 33 (23 anos, CANDIDATO AO CARGO DE POLICIAL MILITAR) e 57 (38 anos,
Policial Civil), respectivamente, é notório que, na ausência de qualquer reflexão mais crítica do
significado de polícia, ou de uma elucidação de leis adicionais de procedimento, os jovens
policiais encontram na norma geral uma alternativa de julgamento para orientar suas práticas.
“[…] O policial é um agente da lei […] A Polícia é a força do Estado
para que as leis sejam cumpridas e caso isso não aconteça fazer com
que a justiça seja feita […] a missão (da Polícia) é proteger, combater
qualquer ação que se oponha a lei […]”
“[…] o policial age para manter e garantir a paz social dentro das leis
[…] A polícia constitui o poder coercitivo do Estado que visa manter a
pacificação social […]”
“[…] (a “verdadeira” missão policial é) buscar que a lei seja cumprida
de maneira mais normal possível ou tenha o mínimo de dano […] ser
policial é buscar uma excelência nas ações, onde será necessário
executar de maneira legal […]”.
Conforme se observa nas falas dos colaboradores desse grupo, a visão normativa acaba
produzindo uma matriz ficcional da realidade policial, quando atribui à polícia um leque de
responsabilidades incondicionais que não podem ser atingidas, senão e apenas, no campo
teórico do Direito.
De forma geral e ainda que a aplicação da lei seja indissociável de qualquer arranjo
social propriamente dito, Monjardet (2012) nos ensina que teoricamente a polícia é uma
instituição densa; existe como um meio, sem substância, para alcançar a segurança. Ela resiste
como uma força que, instrumentalizada na prática de uma organização de trabalho, é conduzida
por critérios políticos, ou seja, pela razão do Estado, mas se movimenta empiricamente a partir
de interesses específicos e, até certo ponto, individuais, pois não há polícia sem policiais
(MONJARDET, 2012).
84
Desse modo, atesta-se que “[…] o policiamento criminal é uma prática condicional,
mesmo que seja comumente considerado como incondicional […]”. Assim e como campo
profissional e organização de trabalho, a polícia acontece na periferia da lógica normativa, pois
desenvolve, a partir dos detentores do estatuto policial (policiais), interesses próprios de uma
cultura de ofício, bem como elementos de identidade e um sistema de distinção efetivado nas
condições de trabalho, currículo oculto de cada agente, práticas cotidianas, etc. (BITTNER,
2017, p. 257).
Pois conforme nos ensina Bourdieu (2001, p. 205), os sujeitos, na condição de agentes
sociais, são estruturantes e estruturados a partir da produção de sentido que eles próprios
produzem de si e do seu campo de atuação, ou seja, são “[…] sujeitos de atos de construção
desse mundo […]” e a polícia acaba figurando como um sistema de esquemas incorporado, ou
seja, como uma estrutura social internalizada pelos policiais.
Nesse sentido, a concepção de hábitus policial, pode ser entendida como uma maneira
de se comportar, mas ainda como uma distinção, ou seja, como uma percepção ou uma
disposição sobre o mundo da segurança pública, que se constrói na dimensão profissional, mas
que acontece intrínseca nas demais esferas da vida social (BOURDIEU, 2001).
Numa perspectiva analítica, percebe-se que o aparelho policial é, indissociavelmente,
um instrumento de poder (controle social), um serviço público (política social) e uma profissão,
desenvolvida a partir dos interesses materiais, corporativos e profissionais de sua categoria.
Não obstante, mas fundamentalmente importante para entender a condição policial, é
reconhecer que o simbólico exerce força e transforma o cotidiano dos profissionais, de tal forma,
que se efetiva na vida desses sujeitos sob um aspecto de dominação institucionalizada e
consenso social.
Também de forma resumida a dominação do corpo é exercida, velada e aceita nas
disposições do hábitus (sistema de disposições e percepções aberto), ou seja, é construída em
meio a estruturas predispostas e funcionam como reguladoras da interação dos agentes no
campo e com o campo (BOURDIEU, 2001; 2013).
De forma geral, o autor evidencia a existência de um disciplinamento efetivo que pode
ser associado, sem forçar qualquer entendimento, à formação dos sujeitos policiais e a
internalização dos costumes, valores e da totalidade da cultura policial.
Em parte, a reflexão acima foi percebida nos agentes analisados, mas também
testemunhada inúmeras vezes por esse policial-pesquisador na disposição dos sujeitos que
trabalharam comigo nesses doze anos de profissão e na forma como eles, mesmo amparados na
legislação, agiam em sua maioria com discricionariedade e informalidade profissional.
85
Como bem nos ensina Kundera (1990, p. 17) “[...] a armadilha do ódio é que ele nos
prende muito intimamente ao adversário [...]”. Sob essa reflexão, é preciso afirmar que a polícia
precisa ser compreendida como uma expressão de democracia; ela nasce na democracia e dela
emerge como sua guardiã. É a “espada” que iguala todos os homens e conduz a vida social sob
o prisma da justiça e da segurança.
Não obstante, qualquer prática abusiva ou desviada, qualquer forma mal concebida de
sua essência e de seu estandarte é uma escolha particular de seus operadores e, da polícia, nada
participa. Afinal, ela é uma força e, como tal, precisa ser guiada por algo ou alguém que a
distribua de forma igualitária.
Tomando como ponto de partida a reflexão inicial, ressalto que uma das mais
importantes realidades observadas no campo profissional da polícia é o caráter singular e
situacional que promove a oportunidade de encontrar todos os tipos de agentes, em suas mais
diferentes ambiguidades. Alguns policiais são verdadeiros paladinos, com sensibilidade
aflorada, são capazes de doar a própria vida para cuidar das pessoas. Enquanto outros,
promotores de proteção seletiva, são indivíduos corruptos e capazes de formular e executar as
mais abusivas ações e promover os mais variados tipos de violência.
Na mesma linha de reflexão, é fácil perceber que o espaço de subjetividade que tanto
marca o “fazer policial” e que permite um repensar do modelo de policiamento mais clássico,
também opera no sentido de reproduzir condutas marcadamente ilegais, veladas sob o
dissimulado discurso da honra, da disciplina e das hierarquias policiais. Nessas situações, o
policial passa a figurar em dois mundos: um aparente, onde ele continua acreditando carregar
uma missão superior e outro confidencial, onde os ilegalismos da prática cotidiana tornam-se
comuns e até justificáveis, considerando os mais difusos motivos e nunca admitindo o declínio
moral envolvido na questão (SILVA, 2015).
Infelizmente para esses agentes, esse distanciamento é definitivo e a reaproximação
profissional é um “[…] processo inevitável de revisão de seus valores institucionais, dos seus
fantasmas, enfim, de seu passado paradoxal […]” (MUNIZ, 2001, p. 185).
Ainda que seja uma perspectiva “clichê” entre os profissionais da segurança pública, é
comum reconhecer como uma verdade do trabalho, a ideia de que, na prática, qualquer função
policial é um caminhar inseguro numa linha tênue entre “uma escolha mais certa e, outra,
87
fatalmente errada”. O que, em parte, é usado para justificar a omissão profissional ou as ações
abusivas que desencadeiam resultados ruins.
Não obstante, discordo fortemente do enunciado e vou justificar minha posição narrando
um dos muitos episódios que ilustram a ilegalidade do serviço policial em sua faceta mais
nefasta. Como desabafo e repúdio, defendo a ideia de que os sujeitos policiais escolhem
livremente o que fazer no serviço ordinário e que, qualquer atitude arbitrária (escolha errada),
ou mesmo criminosa, é protagonizada por pessoas de má índole, cruéis e indignos que, nem de
longe, podem ser considerados agentes da lei.
Novamente não recordo o dia, mas lembro claramente que era Novembro de 2009. Era
praticamente um novato na instituição e sem poder de escolha, trabalhava no patrulhamento
noturno e itinerante (em viatura caracterizada) da Praia de Iracema (Fortaleza-CE), de 18:00 da
noite às 06:00 da manhã do dia seguinte.
De forma geral, o serviço era bastante tranquilo e, salvo pequenos furtos ou conflitos
menores que eram resolvidos com mediação, a atmosfera do lugar era sempre pacífica e boa
parte do expediente era bastante prazeroso. Afinal de contas, era um privilegio trabalhar de
frente para o mar quase todo dia.
Todavia e no dia do episódio, o lugar parecia mais denso e repleto de animosidades.
Atendemos inúmeras ocorrências e prestamos apoio para outras tantas denúncias informais,
aquela noite estava realmente mais sombria e parecia longe de chegar ao fim.
Assim e em uma das muitas solicitações informais que nos tiraram o sossego naquele
plantão, a equipe deparou-se com possíveis assaltos no “espigão” da Av. João Cordeiro,
construção de contenção marítima que também serve de entretenimento para os transeuntes no
local. De pronto, nos deslocamos ao local e lá chegando desembarcamos da viatura.
Com cautela, em virtude da queixa, da escuridão, do horário e do silêncio mórbido que
caracterizava o lugar naquele momento, caminhamos apreensivos no espigão em direção ao
oceano. Todavia e para felicidade geral da equipe, nada encontramos de concreto e o local
parecia na mais perfeita normalidade.
Imediatamente, optamos por retornar e continuar a ronda. Contudo e quando
caminhávamos de volta a praia, o comandante do grupo (policial mais antigo em serviço)
observou o que parecia ser claramente um casal namorando no local. Naturalmente e por
questão de privacidade, estavam em um local bastante furtivo do paredão rochoso e sua posição
não foi percebida em um primeiro momento, dado a tensão da situação anterior.
Tomado pela curiosidade, o comandante caminhou até o par de namorados e chegando
a uma certa distância percebeu se tratar de um casal homoafetivo. Sem qualquer razão aparente,
88
Outro não, “[…] as ações realizadas nos espaços educativos deveriam estar voltadas
para o desenvolvimento das competências profissionais necessárias à atuação do profissional
de segurança pública no contexto em que as necessidades e as exigências sociais se estabelecem
[…]”, ou seja, o novo olhar sobre a segurança pública rompe com o modelo reativo de polícia
e oportuniza formar policiais adaptados as singularidades sociais. Em suma, é o projeto de um
policial mais humanizado e sensível às condições de desigualdade que tanto marcam o nosso
país (BRASIL, 2014).
Conforme Balestreri (1998, p. 11), a ideia era formar bons policiais que, para além dos
atributos físicos e da destreza, entendessem seu papel, ou seja, internalizassem a ideia de ser
“[…] um policial, ciente de seu valor social […]”.
De forma geral e na opinião desse policial-pesquisador, o projeto em si não funcionou
na totalidade daquilo que desejava. Todavia e como condição de transformação política, pro-
vocou o germe da mudança e fez surgir, dos cursos de formação, jovens policiais e novíssimas
visões sobre o papel da polícia que justificam, atualmente, a visão crítica que desponta em parte
dos colaboradores da pesquisa.
Nesse sentido e conforme verifica-se na fala do Colaborador 01 (29 anos, Guarda Mu-
nicipal) “[…] ser policial é servir a comunidade […], a visão crítica da atividade policial pro-
move a construção de sujeitos, cuja a identidade policial perpassa pelo desenvolvimento de uma
concepção ampliada do papel da polícia.
Outro não, atesta-se como um argumento reincidente nesse grupo, a ideia de encarar a
missão policial como uma prática para além do policiamento criminal. Em suma, como um
conjunto de ações que englobam certo amparo social e um contato mais humanizado com qual-
quer pessoa ou situação de conflito.
“[…] A verdadeira missão policial é estar sempre à disposição de
qualquer cidadão para ajudar […]” (COLABORADOR 23, 29 anos,
Guarda Municipal).
“[…] A Polícia é formada por agentes da lei que se designam a serem
homens que promovem a justiça e protegem a sociedade […]”
(COLABORADOR 39, 25 anos, CANDIDATO AO CARGO DE
POLICIAL MILITAR).
Ainda que a compreensão não seja absoluta na ação individual de cada sujeito pesqui-
sado, porque também não se pode idealizá-los por completo, tal perspectiva desperta uma re-
flexão sincera sobre o papel social da polícia e desbrava um novíssimo caminho na totalidade
do universo policial. E isso foi recorrente entre esse grupo de policiais. Enfim, percebe-se que
esses jovens policiais acabam desenvolvendo um paradigma renovado da prática policial.
92
22
Palestra de abertura do curso "Literatura e poder. Luzes e sombras", na Universidade Carlos III, em Madri, em
19 de janeiro de 2004, Agência Carta Maior. Disponível em:
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=1626 "Saramago prega retorno à
filosofia para salvar democracia".
23
Latrocínio é um crime (tipo penal). É um homicídio (crime-meio) derivado do crime de roubo (Art. 157, §3º
do CPB).
93
policial. Correndo o risco de qualquer exagero literal, é fácil atestar que existe uma doutrinação
imposta às organizações policiais e que, tal empreendimento, é levado a cabo como um esforço
necessário ao aspecto situacional do serviço.
De modo grosseiro e independente da força policial, para lidar com as nuanças da
profissão argumenta-se que os agentes, a semelhança dos militares, precisam ser obedientes ao
ordenamento e desempenhar seu trabalho sob qualquer imposição ou dificuldade. Ainda que as
circunstâncias da disciplina e da hierarquia aconteçam de modo peculiar em cada instituição24,
considerando que existe maior ou menor intensidade de imposição a partir da estrutura
organizacional e do regimento de cada força policial, os operadores de segurança precisam
assimilar tais ordenamentos como regra e os executam como orientação importante de suas
condutas. Independente da instituição a qual pertença, é consenso profissional que qualquer
policial precisa obedecer as funções que desempenha e respeitar a ordenação progressiva da
autoridade que o delega.
Dito de forma simples, todo agente é condicionado, em menor ou maior intensidade, por
esses signos da cultura policial e opera suas ações a partir deles. Invariavelmente, a disciplina
e a hierarquia são preceitos de um “modo de ser” policialesco que, como parâmetros, são
espelhados na disposição dos sujeitos no campo. Em suma e conforme relatou o Colaborador
35 (CANDIDATO AO CARGO DE POLICIAL MILITAR, 29 anos): “[…] Os policiais
respeitam a hierarquia, a disciplina e o treinamento […]”, como regras.
Evidente em todas as organizações pesquisadas, tais dispositivos são difundidos já no
início da formação e se estendem à prática profissional como ideias veladas, mas provocadoras
de conformação ou conflito. A verdade inconveniente é que, para qualquer policial, ajustar esses
princípios e “[…] administrar a identidade profissional de polícia, no embate das relações
cotidianas, não tem sido uma tarefa existencialmente tranquila […]” (MUNIZ, 1999, p. 256).
Prosseguindo e para debater as categorias nativas elencadas no capítulo, dividiu-se a
sessão em duas partes distintas, mas correlatas no desafio de entender suas singularidades nas
organizações policiais.
A primeira objetiva discutir a relação entre o caráter cerrado da polícia e o processo de
internalização da disciplina (e da hierarquia), enquanto a segunda, tem o intuito de discutir a
24
Na Polícia Civil, por exemplo (diferente da Guarda Municipal de Fortaleza e da Polícia Militar), as relações
hierárquicas acontecem com menos embate, de modo livre e sem maiores cobranças administrativas. Todavia
e sempre que possível, os Delegados fazem valer sua autoridade quando se acham confrontados. Em verdade,
a hierarquia na PCCE é velada e existe como uma ferramenta de poder e influência.
94
Como uma reflexão observada no campo e ainda que se verifique traços comuns de um
modelo profissional mais geral, percebe-se que cada instituição policial pesquisada existe a
partir de uma lógica singular, desenvolve um tipo próprio de policiamento nas ruas e celebra
uma relação específica entre seus membros.
Amiúde, a Guarda Municipal de Fortaleza, a Polícia Civil e a Polícia Militar do Ceará
compartilham um Ethus correspondente e articulam fazeres semelhantes, mas desempenham
funções distintas e vinculam interpretações diferentes de si no âmbito da segurança.
Sobre a premissa, Bourdieu (1996, p. 27) nos ensina que:
O espaço social me engloba como um ponto. Mas esse ponto é um ponto
de vista […] uma perspectiva definida em sua forma e em seu conteúdo
pela posição objetiva a partir da qual é assumida. O espaço social é a
realidade primeira e última já que comanda até as representações que
os agentes sociais podem ter dele.
Tais práticas obedecem a esquemas classificatórios que reverberam, a meu ver, a forma
como cada força policial interpreta os códigos da segurança pública e entende seus fundamentos.
Assim, cada instituição é uma classe e um espaço social em si, com seus respectivos “modos
de ser” e mecanismos de reprodução.
Desenvolvendo a premissa, Sá (2002, p.49) entende as características do treinamento
policial, por exemplo, como aspectos que “[…] objetivam fixar o indivíduo (policial) no seu
campo de ação (polícia) […], afastando-o dos códigos e valores do mundo exterior […] (e)
conferindo-lhes sentido próprio […]”.
Em suma, esse modelo de formação almeja introjetar, nos agentes, noções fechadas de
autoridade que, de forma ortodoxa, caracterizam as instâncias policiais como organizações
marcadamente disciplinadas. Também de forma geral, “[…] os conceitos de disciplina e
hierarquia foram emergidos e tensionados por uma política de controle social que primeiro se
exercia nos agentes do Estado […]” (SILVA, 2015, p.77).
95
vez que se espera do policial um acervo imenso de práticas e saberes de que ele não dispõe
normalmente. A procura de uma eficácia é inegável, seja ela mantida pela pressão hierárquica,
sustentada pelo coletivo de trabalho ou autodeterminada pelo simples desejo de “fazer direito
o seu trabalho” e de ser “útil” (MONJARDET, 2012, p.165).
Refletindo os pontos acima, Foucault (1997, p. 149) nos ensina que de modo rigoroso,
“[…] a penalidade disciplinar é a inobservância […] (é) tudo que está inadequado à regra, (ou
de) tudo o que se afasta dela, (enfim) os desvios […]”, ou seja, é a dura censura que recai sobre
o corpo dócil, ainda em processo de submissão, que funciona como corretivo e sujeição, uma
vez que “[…] a transmissão cultural é, na maioria das vezes, questão de tempo, de repetição, de
exercício, pois trata-se de instalação progressiva de hábitos do corpo […]” (LAHIRE, 2002, p.
176).
Não obstante, essa relação hierárquica revela uma tensão oculta no cotidiano que parece
acompanhar todo o expediente ordinário e acaba produzindo efeitos colaterais no contato direto
com a sociedade e na percepção que os policiais concebem de si.
Agir ou omitir-se, nesse sentido, torna-se um dilema corriqueiro, pois o medo de censura
institucional (e social) é uma realidade marcante no serviço policial e produz subversão e
vergonha, como bem preceitua o colega Guarda Municipal (52 anos, 27 anos de carreira)
quando revela um receio comum:
‘[…] aqui tem muita cobrança […] tá (está) todo mundo de olho […]
quem não é visto não é lembrado, mas quem é lembrado é sempre
perseguido […] pelo sim ou pelo não, o ‘bizú’25 é se ‘amoitar’26 […]”.
Analisando a fala acima, Muniz (1999, p. 256) nos ensina que “[…] as organizações
policiais e seus integrantes sempre estiveram sob a mira (de) dos olhares atentos e vigilantes
[…]” o que, como uma divergência da própria subordinação que impõe, revela uma verdade
inconveniente sobre suas interações sociais.
Polícia e sociedade se isolam a partir do “choque de realidade” que produzem de si e,
tal ruptura, acontece no exato momento onde a “[…] coerência entre a regra jurídica e as
práticas da vida diária […]” torna-se vazia. Sucintamente, ambos são absorvidos pela dimensão
do privado e os segredos dessa proximidade são ocultados para o “bem-estar” da primeira e por
conveniência da segunda (DAMATTA, 1986, p. 65).
25
Expressão doravante do Jargão Policial ordinário. Significa “informação privilegiada”.
26
Expressão doravante do Jargão Policial ordinário. Significa “omitir-se sorrateiramente às obrigações do serviço”.
98
Como bem coloca Simmel (2004, p. 145-146), “[…] o segredo é também a expressão
sociológica da maldade moral […] dar-nos uma posição de exceção […] é tanto mais eficaz
quanto a sua posse exclusiva […]” (pois) aquilo que é negado a muitos deve ter um valor
especial […]”.
Sobre a questão, Monjardet (2012, p. 198-200) coloca que:
A distância policial não é “proativa”, ela não tem raízes numa dúvida
policial universal sobre a honestidade de todo cidadão, ela é “reativa”:
proteção dirigida contra a suspeita voltada para o outro […] (Ou) se é
policial ou não se é […] o outro é a favor ou contra a polícia e os
policiais.
Na mesma linha, o autor (MONJARDET, 2012, p. 197) também nos ensina que o
processo de aliciamento profissional enseja “[…] uma cultura policial do sigilo que impregna
toda a profissão e o funcionamento policial até as atividades mais anódinas e mais triviais […]”;
o que, historicamente, limitou a liberdade e promoveu mais resignação interna, como um quadro
incoerente do processo de sujeição disciplinar.
A negação dos erros e dos vícios policiais, pela “síndrome da honra”, imposta pela
doutrinação ou por simples conveniência administrativa, fez da polícia uma organização
fundamentalmente reativa a qualquer outra que não experimenta empiricamente a sua condição
profissional.
Em suma e ainda de acordo com Monjardet (2012, p. 200), “[…] as mais vivas críticas
são negadas com convicção […]” porque é preferível enxuga-las internamente e ser solidário
aos colegas que cometem os erros, do que reconhecer publicamente as falhas da polícia.
Qualquer outro, “não policial”, só pode ser aceito se aderir à respectiva conjuntura,
legitimar e assumir uma postura de aliado; entoar um discurso a favor da polícia e ascender
suas bandeiras com convicção.
Nesse viés, as organizações policiais afastam-se de qualquer discussão mais abrangente
a seu respeito. Isolando-se e denegando progressivamente a dimensão participativa, acabam
provocando corrupção administrativa e produzindo opressão social em vez de liberdade
democrática. De forma geral, apenas reproduzem os muitos estereótipos que são construídos
equivocadamente a seu respeito.
4.2 “Peixe, peixinho e peixada”: a (des) valorização profissional dos agentes menores e os
arranjos hierárquicos na polícia cearense
Sempre fui curioso a respeito dos colegas policiais egressos das forças armadas. Me
perguntava constantemente, como esses jovens agentes se adaptavam tão facilmente àquela
99
rotina disciplinada e como, de forma peculiar, absorviam as noções de hierarquia doravante das
instâncias policiais. É obvio que, em um primeiro momento, o leitor vai achar típico esse ajuste,
posto que esses sujeitos viveram sob o limiar do militarismo e que essa condição produz homens
dispostos ao serviço da segurança.
Todavia, ressalto que na polícia essas noções assumem um caráter singular e que, para
esses sujeitos, a adaptação sempre foi mais traumática do que para os demais. Em muito, esses
agentes revelam um choque de interpretações ao fazer qualquer comparação entre suas antigas
ocupações (nas forças armadas) e o seu trabalho na polícia. Em cada ofício, existem aspectos
profissionais bem diferentes e a hierarquia e a disciplina tomam sentidos mais confusos.
Conversando com um dos respectivos colegas sobre a questão (GUARDA MUNICIPAL,
41 anos, 12 anos de carreira e ex-soldado da aeronáutica), perguntei incisivo que diferenças ele
encontrava entre sua instituição atual e a Aeronáutica, onde “serviu” por mais de seis anos.
De pronto, ele revelou com certa indignação a natureza patrimonial da polícia que, sob
certa conveniência, funciona a partir de privilégio e regalismo. Conforme seu depoimento e a
semelhança de outras instâncias do serviço público, a “cadeia de comando” policial opera por
meio de negociações e “conchavos”, rompendo com o ordenamento e promovendo nepotismo.
O que, segundo ele, não era comum na sua antiga instituição.
“[…] Uma grande diferença que vi entre as duas instituições com
relação a hierarquia e disciplina é o fato que na guarda municipal a
política interfere nesses dois pilares, pois tem guarda que através de
alguma influência política quebra as ordens do superior hierárquico
ferindo assim gravemente a hierarquia e disciplina […] na aeronáutica,
é levado ao pé da letra esses dois institutos que independente do posto
do militar, caso descubra será penalizado para servir de exemplo […]
um Guarda recém-chegado na instituição é lotado no terminal de
ônibus, porém ele procura sua influência dentro da prefeitura para
trabalhar em outro local que o servidor bem quiser ao seu livre arbítrio
[…]”.
Ainda que a ascensão hierárquica seja possível dentro de um contexto profissional “mais
ou menos” meritocrático, no geral, os agentes resignam-se na conformação de exercer,
diariamente, uma função obrigatória. Os elementos de coesão aqui são, tão somente, a moral e
a ética que fazem da polícia um lugar desejado e valorizado por todos (comandantes e
comandados) (DURKHEIM, 2016).
Sobre a premissa, Durkheim (2016) nos ensina que a moral profissional existe numa
lógica dualista, mas torna-se mais “robusta” na medida em que um determinado grupo
profissional organiza-se e impõe seu “modo de viver” aos demais. Mesmo que seja a partir de
um discurso específico.
Orienta ainda o autor, que os grupos profissionais que manifestam a premissa econômica
não compartilham uma vida moral comum, pois promovem suas atividades de forma isolada, à
próprio gosto, a partir da concorrência. Nesse viés, as organizações policiais, demandas de
serviço público, exercem sua moral profissional na contramão da polarização, ou seja,
apropriam-se da coesão e apresentam forte regulamentação e participação afetiva.
Por tais características, a polícia acaba repercutindo o caráter patrimonialista de certas
instâncias públicas, assumindo ainda a capacidade de potencializá-lo já que sua manutenção
101
particular ele ofende a totalidade da polícia e, por extensão, toda a sociedade, a quem realmente
se deve respeito e obediência.
Como uma intransigência recorrente na maioria das falas, atesta-se certos privilégios de
autoridade que, independente da corporação ou do cargo que ocupa, emerge dos sujeitos
policiais como uma necessidade de auferir superioridade geral e total sobre os demais sujeitos,
não sujeitados à disciplina e a hierarquia.
Me parece que tal característica apresenta-se na condição policial, como um
entendimento mal elaborado do poder de polícia (ofertado pela sociedade) que apenas colabora
para mais desentendimento do Ethus profissional. Em suma, o agente da lei que não cumpre os
princípios democráticos é, além de corrupto, autodestrutivo.
Se numa perspectiva geral a responsabilidade policial implica controle, em sentido
ampliado, o controle enseja responsabilização e “[…] ambos referem-se a processos em que os
comportamentos da polícia são manifestos em conformidade com as necessidades da sociedade
da qual essa polícia faz parte […]” (RIBEIRO, 2002, p. 450).
Assim e antes de qualquer discurso institucional de poder, fica claro compreender que
o dinamismo policial deve ser proveniente das distintas necessidades sociais, pois qualquer
entendimento mais ampliado de autoridade conforma a ideia de um consenso legítimo.
103
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Existe uma contradição dentro de cada sujeito que o inspira a sentir e compartilhar o
mundo como um mosaico de muitas possibilidades e sentidos. A dualidade entre o único e o
plural faz do homem um ser diverso que, dentro e fora de si mesmo, constrói e reedita a
realidade social a partir de interpretação própria, efêmera e as vezes recíproca com seus
semelhantes.
Assim e assumindo o risco de apresentar um argumento apressado, ressalto que o
operador de segurança é sem dúvida um ente em constante construção. Outro não, germina do
diálogo sensível entre o condicionamento estrutural (esquemas de incorporação profissional) e
a emancipação que, individualmente, projeta a própria multiplicidade de sua condição policial
e deflagra um cabedal de possibilidades formativas e identitárias. Os policiais são, ao mesmo
tempo, um todo coerente, mas fragmentado no contato diário com o dinamismo social.
Avançando e para subsidiar uma reflexão final, destacando ainda a dualidade exposta
entre a aquisição de um hábitus propriamente policial (e homogeneizador) e a ruptura desse, a
partir de um processo de fragmentação da identidade profissional dos agentes (heterogeneidade
da condição policial), a sessão procura pontuar uma análise sobre a inconstância situacional da
atividade de segurança (como pressuposto para a ruptura de qualquer perspectiva mais estática
e ortodoxa de segurança), o pluralismo do “ser agente da lei” (que humaniza o sujeito policial,
reduzindo-o a um compêndio de muitas formas de ver a si mesmo e a sua profissão) e as
situações de ajuste e desajuste que tecem distintos “modos e ser” definidores do universo da
segurança e do policial.
Como produto da polícia, o operador de segurança é um profissional dotado de “espírito
de classe”, carrega consigo um sentimento de pertencimento coletivo que o eleva a condição de
membro de um grupo seleto. Dito de forma simples e mesmo no contexto de diferenciação
social, este sujeito é capaz de produzir uma interação marcadamente coerente com seus pares
(dentro do universo corporativo do trabalho) e de prolongá-la para as outras esferas de sua vida
social total produzindo um “modo de vida” específico, dentro e fora do universo da segurança
pública.
Nesse cenário, a polícia é interpretada como um corpo profissional específico, cuja
cultura é internalizada nos seus operadores como uma memória coletiva ainda pulsante e eficaz;
uma obra universal do grupo, por assim dizer. Tal circunstância é condição de um incessante
104
processo de transmissão funcional que produz sentido ao campo da segurança e impõe aos seus
membros a lógica de um trabalho comum (missão policial), tecendo diferenciação apenas para
com os demais sujeitos (“não policiais”) que não podem herdar esse capital imaterial.
Destarte, falo aqui do universo profissional da polícia que pensado nos limites sociais
do trabalho (formulador do ser profissional) reproduz, mesmo dentro de sociedades
diferenciadas, condições para uma socialização comum, coerente e animadora de disposições
semelhantes. Em suma e ao longo da carreira, com mais ou menos intensidade, somos todos
seduzidos por um sentimento grupal que nos faz reconhecer o outro (policial) como um igual,
como um “irmão” que comunga das dificuldades do trabalho e assume uma postura de embate
ou de auxilio, caso seja necessário.
Não obstante, essa nuança é geradora de uma certa concorrência, projetando resistência
a qualquer outra lógica que não seja internamente equivalente àquela proferida pelos sujeitos
policiais, pois como nos ensina Lahire (2002, p. 28), “[…] para resistir àqueles que muitas vezes
lhes opõem (outras) crenças e tradições coletivas, é preciso que se apoiem em crenças e
tradições próprias ao seu grupo […]”.
Em contrapartida e no contexto da pluralidade, os hábitos policiais mais tradicionais,
aqueles promovidos na formação e no cotidiano do trabalho ordinário, perdem hegemonia e
cedem lugar as novas sociabilidades. Tal flexibilidade é advento das mudanças históricas e
sociais que acompanharam a polícia e permitiram certa abertura de seu estatuto. Dito de forma
simples, é a circunstância que pontua as muitas transformações sociais que obrigou as
organizações policiais a reformularem seus campos de atuação e a ampliar o poder de agência
de seus operadores.
Como instituição reguladora de liberdades individuais a polícia é um aparelho
governamental que, opaca, apenas se perpetua como força a partir do monopólio do uso da
violência e dos muitos usos que o Estado faz de suas funções. Todavia e como organização de
trabalho, a polícia produz uma cultura de ofício que, fragmentada, acontece de forma dinâmica
e condicionada por influências sociais externas e alheias a sua dimensão institucional.
Dentro desse cenário e forjado sob o limiar de muitos processos socioculturais, o
indivíduo policial persiste como um produto da polícia, mas também de tudo que existe fora
dela ou que nela deposita sentido. Os distintos espaços de convivência (oficiais e extraoficiais)
onde os operadores de segurança compartilham saberes policiais (ortodoxos ou subversivos)
projetam sentido ao seu Ethus e condicionam suas disposições e comportamentos.
Dito de forma simples, o “modo de ser” policialesco se delineia nas instituições policiais,
mas também transita fora nela, em espaços de lazer mais gerais (entretenimento específico), de
105
27
Clubes de tiro esportivo, academias de musculação e artes marciais, lojas de artigos militares ou de
sobrevivência, etc.
106
28
Clivage du moi – “hábitus dilacerados” (BOURDIEU, 2001, p.79).
110
significados com os quais os policiais se identificam, reconhecem e aceitam seus pares de modo
geral perpetuando, mas também desconstruindo, a experiência das gerações anteriores.
De forma geral, alguns seguimentos da polícia ainda resistem às mudanças porque “[…]
as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz das informações
recebidas sobre aquelas próprias práticas, alterando, assim e constitutivamente, seu caráter […]”
(GIDDENS, 1991, p. 37-38). Nesse sentido e como um dogma quase estrutural, a
tradicionalidade policial persiste porque não permite críticas a si mesma e ao estatuto da polícia.
Contudo e considerando o caráter diligente com que os operadores de segurança
encaram o “sentir-se” e o “fazer-se” policial na intimidade do serviço diário (o que é ser policial
e qual a sua função?), deflagra-se a fragmentação dos processos de reconhecimento e a ruptura
de referências policiais outrora sedimentadas por um hábitus de classe mais elementar. O Ethus
policial ganha novo conteúdo e repercute esporadicamente na atividade profissional da polícia.
[…] as transferências e transposições dos esquemas de ação são
raramente transversais ao conjunto dos contextos sociais, mas efetuam-
se no interior dos limites – imprecisos – de cada contexto social e,
portanto, de cada repertório […] O que é incorporado ou interiorizado
não existe como tal no mundo social “exterior”, mas reconstrói-se
pouco a pouco para cada ser singular, nas interações repetidas que tem
com outros atores, através de objetos e em situações particulares
(LAHIRE, 2002, p. 37, p.174).
A verdade é que, intimamente, “[…] não existem mentalidades gerais […]” e a polícia
não é uma instituição social total. Em suma, ela existe aberta e para além de um mundo único;
ainda que resista às mudanças e persista a partir da homogeneidade histórica de alguns de seus
seguimentos, como evidenciado nessa pesquisa (LLOYD, 1993, p. 17).
Fora isso, a polícia é apenas um mosaico de oportunidades furtivas e divergentes. Por
sua vez, a identidade social de seus membros acaba por dividir-se, tornando-se uma perspectiva
112
sempre aberta entre o mundo profissional (público) e o mundo pessoal (particular) de cada
sujeito detentor da condição policial.
Como já colocado, existem tipos distintos de policiais porque existem tipos distintos de
experiências profissionais dentro da polícia. De forma simples, esses sujeitos experimentam a
sua condição profissional de forma diferenciada, lhes conferindo significado próprio a partir do
cenário que projetam de si, da sua instituição e de seu papel na sociedade.
Contudo e dentro de um conjunto maior de agentes observados, encontram-se sempre
aqueles que conseguem ajustar o equilíbrio entre o seu repertorio de vida (os outros universos
de sua vida pessoal) e o hábitus policial recentemente apresentado e ainda raso (desenvolvendo-
se). Todavia e a contrassenso desse grupo, existem aqueles que, desde o primeiro momento,
travam certo embate ideológico com o universo da segurança e promovem tensões entre suas
lógicas concorrentes.
A experiência me fez verificar que, no segundo caso, os agentes assumem uma postura
subversiva aos ordenamentos mais tradicionais e, por consequência, optam por viver uma
carreira profissional de constante desvio, atuando distantes das convicções institucionais
esperadas. Em outros termos, burlam o senso corporativo e reconfiguram o seu papel
profissional a partir de um ajuste, por vezes forçado, entre suas concepções ideológicas e
àquelas que são possíveis de se adquirir no domínio policial mais clássico. Em suma, as rupturas
e os novos paradigmas profissionais surgem através desse grupo.
Entretanto e longe de reduzir a dimensão policial a essa bipolaridade dos hábitus ou a
tríade de “tipos ideais” apresentada no capítulo dois dessa dissertação, o mundo da segurança
deve ser entendido para além do aparentemente exposto ou das informações produzidas na
dimensão do lato senso.
Merece ser analisado de forma intrínseca, a partir de configurações próprias e a luz de
suas singularidades. Entender o mundo da polícia exige um mergulho profundo nos seus
bastidores e uma leitura mais íntima de seus atores, os operadores de segurança, que, não
obstante, produzem e redistribuem os muitos significados que dão sentido ao campo social da
segurança pública.
Por fim, é fácil reconhecer que não existe uma fórmula mais geral que defina por
completo a síntese de quem nós (os policiais) somos. Somos o princípio de muitos movimentos
do passado, do presente e do futuro. Talvez adventos de uma pluralidade de lógicas que se
constitui como história, mas que também se concretiza nela, como definidora de nosso lugar de
fala na sociedade. Como todo ator social e mesmo “filhos do Estado” (SÁ, 2002),
113
REFERÊNCIAS
ARAUJO, Etyelle Pinheiro de; BASTOS, Liliana Cabral. Militância e ocupação: dimensões
autoetnográficas na pesquisa sobre movimentos sociais. Veredas Temática, Juiz de Fora, v.
22, n. 1, p. 168-188, 2018. ISSN 1982-2243.
BALESTRERI Ricardo Brisola. Direitos humanos: coisa de polícia. Passo fundo: CAPEC:
Paster Editora, 1998.
BEATO FILHO, Cláudio C. Políticas públicas de segurança e a questão policial. São Paulo
Perspec. [online], São Paulo, v.13, n.4, p.13-27, 1999. ISSN 1806-9452
BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio; tradução Maria Luiza
X. de Borges; revisão técnica Karina Kuschnir. 1. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
BITTNER, Egon. Aspectos do trabalho policial. Tradução de Ana Luísa Amêndola Pi-
nheiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2017.
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk, 2013.
BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas. Tradução: Sérgio Miceli. Rio de Janeiro: Ber-
trand Brasil, 2001.
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Trad. Mariza Corrêa. Campi-
nas: Papirus, 1996.
115
BRASIL. Ministério da Justiça. Matriz curricular nacional para ações formativas dos pro-
fissionais da área de segurança pública. Brasília, DF: Secretaria Nacional de Segurança Pú-
blica, 2014.
BRETAS, Marco Luiz. A guerra das ruas: povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro: Arquivo Nacional: Ministério da Justiça, 1997.
BRETAS, Marco Luiz. Observações sobre a falência dos modelos policiais. Tempo Social,
São Paulo, v. 9, n. 1, p. 79-94, 1997.
BRETAS, Marcos Luiz; MORAIS, David Pereira. Guardas municipais: resistências e inova-
ções. Brasília, DF: Secretaria Nacional de Segurança Pública: Editora da UFRGS, 2009.
CARVALHO, Vilobaldo Adelídio de; SILVA Maria do Rosário de Fátima. Política de segu-
rança pública no Brasil: avanços, limites e desafios. R. Katál., Florianópolis, v. 14, n. 1, p.
59-67, jan./jun. 2011.
CATHALA, F. Polícia: mito e realidade. Tradução João Milanez da Cunha Lima. São Paulo:
Mestre Jou, 1995. Título original: Cette police si décriée.
COSTA, Arthur T. M. Como as democracias controlam as polícias. São Paulo: Novos Estu-
dos, 2004.
DA MATTA, Roberto. A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de
Janeiro: Guanabara, 1987.
DA MATTA, Roberto. O ofício do Etnólogo, ou como ter “Anthropological Blues” In: NU-
NES, Edison de O. A aventura sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p. 23-35.
DA MATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. Disponível
em: http://hugoribeiro.com.br/biblioteca-digital/Da_Matta-O_que_faz_Brasil_Brasil.pdf.
Acesso em: 26 jan. 2020.
DESAUNAY, G.; VILORIN, J. de. Enquête sur les motivations des policiers em tenue du
SGAP de Paris. Paris: CCI: Centre HEC-ISA, 1989.
DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Editora Nacional, 1990.
DUSSEL, Enrique. 20 Teses de política. 1. ed. Buenos Aires: CLACSO; São Paulo: Expres-
são Popular, 2007.
116
ELIAS, N. Os alemães: a luta pelo poder e a evolução dos hábitos nos séculos XIX e XX.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes,
1997.
GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
KANT DE LIMA, Roberto. A polícia da cidade do Rio de Janeiro: seus dilemas e parado-
xos. Tradução de Otto Miler. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995.
KUNDERA, Milan. O livro do riso e do esquecimento. São Paulo: Companhia das Letras,
2008.
LAHIRE, Bernard. Homem plural: os determinantes da ação. Tradução Jaime A. Clasen. Pe-
trópoles: Vozes, 2002.
LLOYD, G.E.R. Pour en finir avec les mentalités. Paris: Le Sycomore, 1993.
MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
MENANDRO, P.R.M. Um levantamento dos fatores responsáveis pela violência policial. En-
contros com a Civilização Brasileira, São Paulo, n. 2, p. 141-50, 1979.
MINAYO, Maria Cecília de Souza (org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 18.
ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
MISSE, Michel. Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição analítica so-
bre a categoria “bandido”. Lua Nova, São Paulo, n. 79, p. 15-38, 2010.
MISSE, Michel. Rio como um bazar: a conversão da ilegalidade em mercadoria política. In-
sight – Inteligência, Rio de Janeiro, v. 5, n. 18, p. 68-79, jul./set. 2002
MOITA LOPES, L.P. Práticas narrativas como espaço de construção das identidades sociais:
uma abordagem socioconstrucionista. In: RIBEIRO, B. T. et al. Narrativa, Identidade e Clí-
nica. Rio de Janeiro: IPUB, 2001. p. 55-71.
MONJARDET, Dominique. O que faz a polícia: sociologia da força pública. São Paulo: Edi-
tora da Universidade de São Paulo, 2012.
118
MUNIZ, Jacqueline. Ser policial é sobretudo uma razão de ser: cultura e cotidiano da Polí-
cia Militar do Estado do Rio de Janeiro. 1999. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Gradua-
ção em Ciência Política, Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
1999.
MUNIZ, Jaqueline de Oliveira. A crise de identidade das polícia militares brasileiras: dilemas
e paradoxos da formação educacional. Security and Defense Studies Review, Washington,
DC, v. 1, p. 177-198, Winter 2001.
RIBEIRO, Iselda Corrêa. Polícia: tem futuro? Polícia e sociedade em David Bayley. Sociolo-
gias, Porto Alegre, n. 8, p. 444-453, jul./dez. 2002.
SÁ, Leonardo Damasceno; SANTIAGO NETO, João Pedro de. Entre tapas e chutes: um es-
tudo antropológico do baculejo como exercício de poder policial no cotidiano da cidade. O
Público e o Privado, Fortaleza, n. 18, p. 147-163, jul./dez. 2011. Disponível em:
http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/33153/1/2011_art_ldsajpsantiagoneto.pdf.
Acesso em: 20 ago. 2020.
SIMMEL, Georg. Fidelidade e gratidão e outros textos. Tradução: Maria João Costa Pe-
reira. Rio de Janeiro: Relógio D' Água Editores, 2004.
SIRIMARCO, Mariana. A vida com farda: a vestimenta policial como relato institucional em
disputa. Tradução de Gértea Oliveira e Ivone Pereira Lima. Revista Brasileira de Ciências
Sociais, São Paulo, v. 28, n. 82, p. 31-43, 2013. ISSN 0102-6909.
SOUZA, L.A.F de. Polícia, violência e patrimonialismo em São Paulo (1889-1930). Métis:
história & cultura, Caxias do Sul, v. 6, n. 11, p. 69-91, jan./jun. 2007. ISSN 2236-2762.
119
VALE, Ciro de Sousa; MACIEL, Freitas de Barros. Áreas malditas: a estigmatização de espa-
ços urbanos. Caderno de Geografia, Belo Horizonte, v. 26, n. 45, p. 255-267, 2016.
WACQUANT, Loïc. Corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de Ja-
neiro: Relume Dumará, 2002.