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LEDERVAN VIEIRA CAZÉ

A HETEROGENEIDADE DA CONDIÇÃO POLICIAL: UMA ANÁLISE DE


EXPERIÊNCIAS, VIVÊNCIAS E DISTINTAS PERCEPÇÕES DO SER “AGENTE DA
LEI”

FORTALEZA
2020
“É nos dossiês dos arquivos da polícia que se encontra
nossa única imortalidade.” (KUNDERA, 2008, p. 106).
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 05
2 “ENTRE ARMAS E LIVROS”: NOTAS DE ANÁLISE SOBRE A PES-
QUISA DE CAMPO E O LUGAR DE FALA DO POLICIAL-PESQUISA-
DOR ...................................................................................................................... 09
2.1 “Esse cara não parece mais policial”: desagregando o hábitus policial e
formulando caminhos para a compreensão do objeto ....................................... 09
2.2 A superação das primeiras impressões: narrativas comuns e
desconstruções de imagens e marcas da polícia de “antigamente” ............... 20
2.3 Trajetória, investigação e estudo: campo e pesquisa itinerante na Guarda
Municipal de Fortaleza, na Polícia Militar e na Polícia Civil do
Ceará ..................................................................................................................... 27
2.3.1 “A guarda não é mais a mesma”: percepção da organização política e profissional da
Guarda Municipal de Fortaleza e outras impressões do campo na primeira
visita ................................................................................................................................. 31
2.3.2 “A delegacia de polícia é um lugar de desalento”: campo e cotidiano de trabalho na
Delegacia de Capturas e Polinter ..................................................................................... 44
2.3.3 “Um civil no quartel”: recepção, impressões do campo e contato com os policiais
militares na 3ªCIA/5ºBPM ................................................................................................ 53
3 “TRAÇOS E CONTRASTES DA POLÍCIA CEARENSE”: UM OLHAR
SOBRE A CONSTRUÇÃO DAS DISTINTAS PERSONALIDADES
PROFISSIONAIS DOS AGENTES DA LEI ...................................................... 63
3.1 “NOS BASTIDORES DA POLÍCIA LOCAL”: conservadorismo,
informalidade e transformação do trabalho policial ......................................... 63
3.1.1 Visão Reativa: a internalização da autoridade policial, da ação e da dramatização do
fenômeno criminal ........................................................................................................... 70
3.1.2 Visão Normativa: um conflito elementar entre legalidade, discricionariedade e
realidade do trabalho policial ........................................................................................... 79
3.1.3 Visão Crítica: uma ilustração do paradigma clássico e o prefácio da mudança na
atividade policial ............................................................................................................... 85
4 “MANDA QUEM PODE, OBEDECE QUEM TEM JUÍZO”: A OUTRA
FACE DA HIERARQUIA E DA DISCIPLINA NAS ORGANIZAÇÕES
POLICIAIS .......................................................................................................... 92
4.1 O “Espírito de corpo” e a sujeição do indivíduo policial: a internalização da
disciplina (e da hierarquia) e o cenário de isolamento social da polícia ............ 94
4.2 “Peixe, peixinho e peixada”: a (des) valorização profissional dos agentes
menores e os arranjos hierárquicos na polícia cearense .................................... 98
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 104
REFERÊNCIAS ................................................................................................... 113
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1 INTRODUÇÃO

Afinal, como surgem os policiais?


Como sujeitos do povo, homens comuns, internalizam a lógica profissional da segurança
pública e transformam-se nos mais distintos tipos de agentes da lei?
Desde outrora, essa indagação percorreu o imaginário de muitos curiosos e despertou
diferentes perspectivas a seu respeito. De especialistas a admiradores da cultura policial as
opiniões se multiplicam e os profissionais da segurança ganham muitas significações a partir
das funções que desempenham e da opinião de outros sujeitos, “não policiais”, que partilham
definições e contribuem para a produção dos diversos sentidos de polícia.
De heróis à vilões, esses sujeitos são amados, odiados, compreendidos e
incompreendidos. Se deparam com um pluralismo de classificações que permeia sua cultura e
os caracterizam a partir de definições normativas, institucionais ou daquelas construídas na
dimensão do senso comum, que os rotulam, quase sempre, como agressivos, protetores ou
indiferentes.
Todavia e ainda que se prepondere uma visão puramente instrumental, ou seja, aquela
que eleva à polícia a condição de ferramenta de repressão, operando polos opostos e produzindo
reflexões superficiais do seu conteúdo, é necessário compreender que não existe organização
formal sem qualquer disposição informal que acompanhe sua execução.
De forma sucinta e mesmo que a polícia encarne a força coercitiva do Estado, quase
sempre, o fazer policial acontece nas incertezas do cotidiano profissional, pelas práticas e pelas
vivências. Nesse sentido, esse arranjo foge à estrutura e é tecido nas relações sociais
alimentadas pela sociabilidade policial, a partir de um paradigma próprio.
Em suma, os “agentes da lei” são homens e mulheres que sob a responsabilidade de
garantir segurança à sociedade assumem respectivos comportamentos profissionais e
reverberam a própria natureza do seu ofício e de sua missão.
No âmbito de sua especialização, esses sujeitos encaram um cotidiano de relações
densas, onde o poder propaga-se num limiar tênue entre o público e o privado. Em busca daquilo
que se configura como justiça, esses profissionais precisam apresentar uma conduta legalista,
mas acabam por operar um serviço marcadamente agregado e caracterizado por um respectivo
“modo de ser” policialesco.
Assim, ressalta-se que desde o primeiro momento desse desafio acadêmico, almeja-se
com essa pesquisa responder como diferentes pessoas, que integram distintas instituições de
segurança pública, experimentam e percebem a sua condição policial. Enfim, como se
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constroem as identidades policiais e como essa multiplicidade de significados projeta sentido


prático na ação policial cotidiana.
Desse modo, evidencia-se o interesse em conhecer o policial enquanto sujeito social a
partir de um estudo que contemple as diferentes percepções que esses agentes constroem de si,
dos ofícios e das funções que executam.
Mesmo numa concepção germinal para o momento, pode-se afirmar que o “fazer
policial”, a partir de uma leitura múltipla de narrativas e cotidianos policiais, observados,
catalogados e vividos por esse policial-pesquisador, é uma ação social conflituosa onde as
regras do sistema normativo apenas cooperam para o fim mais ajustado, sem dar conta de
responder todas as perguntas, de alcançar todas as expectativas ou de servir de orientação mais
sensata para uma ação policial realmente próspera.
Outro não e ao procurarmos uma definição comum acerca do sujeito policial, nos
deparamos apenas com descrições elaboradas do conceito de polícia que, entre outras
abordagens, define seu instituto como um “conjunto de regras impostas aos membros de uma
coletividade” (DICIO, Dicionário online de Português. Disponível em:
https://www.dicio.com.br/policia).
Sobre o policial, é corriqueiro apenas encontrar a expressão: “membro da polícia”. Em
outras palavras, não há uma definição convincente do que é ser agente da lei, de seu significado
ou de sua condição. Este ente desconhecido é, quando muito, um “vigilante”, cuja função é
zelar pela segurança pública.
Assim e reconhecendo, já em primeiro momento, que a condição policial é algo que se
aproxima de um modelo recorrente, comum e animador das ações do agente, entende-se o
objeto dessa pesquisa como um conceito extraído do exercício prático, ou seja, do campo de
atuação profissional, onde os policiais podem ser analisados.
Dito isso e para alcançar tal expectativa, optou-se por uma abordagem essencialmente
qualitativa, acontecendo a partir de observação participante, entrevistas e conversas informais
com agentes mais experientes e outros recém-egressos dos cursos de formação. De forma
simples, o campo aconteceu como um processo itinerante na Guarda Municipal de Fortaleza, e
em unidades da Polícia Militar e da Polícia Civil do Ceará.
A fim de esclarecer o posicionamento do autor no campo, destaca-se a polícia nesse
estudo como um “estilo de vida” que, compartilhado por um grupo de sujeitos, torna-se um
Ethus comum em uma rede de relações sociais específica e compartilhada.
Em suma e tomando parte desse círculo profissional, esse policial-pesquisador comunga
de um entendimento mais íntimo sobre o ofício e carrega, por consequência, parte circunstancial
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do conhecimento que pretendeu investigar. Observando o familiar, mas executando um


estranhamento fundamental, pude construir uma reflexão sobre a singularidade do sujeito
policial como objeto de pesquisa sociológica, entendendo esse ente como um intérprete de
códigos socioculturais da polícia.
Prosseguindo e além da revisão dos aspectos teóricos, do trabalho de produção e coleta
de informações e da análise e interpretação dos dados coletados, dividiu-se a dissertação em
três capítulos distintos, mas complementares no desvendamento da condição policial.
O primeiro, de caráter metodológico, enfatiza o desenvolvimento do objeto, a trajetória
da pesquisa (seus cenários e sutilezas) e o lugar de fala desse pesquisador que, a partir de uma
leitura suspensa de sua atividade profissional, assumiu o compromisso de analisar o fenômeno
policial.
Intitulado de “ENTRE ARMAS E LIVROS”: NOTAS DE ANÁLISE SOBRE A
PESQUISA DE CAMPO E O LUGAR DE FALA DO POLICIAL-PESQUISADOR.”, o
capítulo revela ao leitor o nível de comprometimento do autor que, na condição de policial civil,
ex-Guarda Municipal e pesquisador do fenômeno policial, sente-se na responsabilidade de
comunicar as sutilezas da segurança pública.
O segundo, de caráter descritivo-analítico, expõe as nuanças e perspectivas extraídas da
pesquisa de campo, ou seja, daquela dirigida aos setenta e um (71) agentes, nas três forças de
segurança analisadas.
Intitulado de “TRAÇOS E CONTRASTES DA POLÍCIA CEARENSE”: UM OLHAR
SOBRE A CONSTRUÇÃO DAS DISTINTAS PERSONALIDADES PROFISSIONAIS DOS
AGENTES DA LEI, o recorte objetiva debater as singularidades e a formação da personalidade
policial. Como, quando e em que condições os policiais desenvolvem suas percepções e
fomentam distintos panoramas e modelos de comportamentos.
Ainda na matéria, o texto debate três visões da atividade policial que avoca distintas
perspectivas construídas à luz das particularidades encontradas no campo. Na primeira, de
origem reativa, o trabalho debate as categorias de autoridade, ação policial e dramatização do
fenômeno criminal; na segunda, marcadamente normativa, o texto analisa o conflito entre
legalidade, discricionariedade e prática profissional e, na terceira, questiona o paradigma
clássico e reflete o processo de mudança que aponta uma visão mais crítica para o trabalho
policial.
Avançando na exposição, o terceiro capítulo compreende uma análise de categorias
nativas da polícia que, partilhadas com esse policial-pesquisador, auxiliaram no desvendamento
da personalidade profissional dos sujeitos estudados. Intitulado de “MANDA QUEM PODE,
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OBEDECE QUEM TEM JUÍZO”: A OUTRA FACE DA HIERARQUIA E DA DISCIPLINA


NAS ORGANIZAÇÕES POLICIAIS, o escrito objetivou descrever e investigar os dois
aspectos citados no título como características reincidentes nas falas dos agentes, mas que, no
cenário da pesquisa, acaba assumindo figuração própria.
Nesse sentido, mesmo reconhecendo a existência de individualidades nas organizações
estudadas, posto que se evidenciam conflitos institucionais distintos entre elas, a pesquisa
destaca que parte da amostragem analisada apresentou traços comuns de uma personalidade
policial coletiva, mas ampliando essa compreensão, os indivíduos também revelaram diferentes
perspectivas do sentido prático, conceitual e político de polícia.
Por fim, o estudo deixa evidente que os agentes compartilham uma multiplicidade de
sentidos que justifica a ideia de heterogeneidade da condição policial e que, por consequência,
vai se ajustando no tempo, na conveniência, na expectativa, ou na frustração, de cada
profissional. Não obstante, a condição policial é um fenômeno de muitas faces que precisa de
reconhecimento, ou ainda ser construído nas Ciências Sociais.
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2 “ENTRE ARMAS E LIVROS”: NOTAS DE ANÁLISE SOBRE A PESQUISA DE


CAMPO E O LUGAR DE FALA DO POLICIAL-PESQUISADOR

[...] Sei não viu, esse cara não parece mais policial! Tu não é “cana” de
verdade mais não, porra? [...] (POLICIAL CIVIL, 6 anos de carreira).

2.1 “Esse cara não parece mais policial”: desagregando o hábitus policial e formulando
caminhos para a compreensão do objeto

Era uma sexta feira (13 de julho de 2018). Faltavam apenas quinze minutos para o final
do expediente e metade da porta de entrada da delegacia já estava fechada. A maioria dos
policiais se encontrava “batendo papo” na recepção e o som predominante no saguão vinha de
um acalorado debate sobre as eleições presidenciais daquele ano.
Recordo-me que mesmo participando do grupo de discussão, observava tudo meio
apreensivo e calado, pois sabia que minha posição política ali não seria tão aceita quanto as
demais. Também não queria promover nenhuma desavença ou exaltar os ânimos; afinal, tudo
que eu desejava naquele momento era ir para casa. A semana tinha sido puxada e eu estava
bastante cansado.
Todavia e na medida em que a conversa avançava, veio à tona, como tema central da
controvérsia, certos privilégios policiais advento das promessas de campanha de um dos
candidatos do pleito. Argumentava a maioria dos debatedores que, de acordo com a pretensão
de um dos presidenciáveis, a polícia restauraria a sua “glória” de outrora, pois, uma vez
presidente, esse candidato daria “carta branca” para que os policiais pudessem exercer seu papel
profissional de combater o crime. Provavelmente, colocou outro orador, o então postulante a
presidente extinguiria os órgãos de controle interno e os agentes de segurança, a partir de então,
poderiam agir com “energia” ao confrontarem-se com criminosos.
Nesse instante e de maneira introspectiva, recordei alguns episódios em que, na
condição de policial, presenciei colegas exercerem sua “energia” contra pessoas socialmente
vulneráveis, sem o menor pudor ou receio de represália. De forma geral, esses profissionais
simplesmente fizeram valer sua autoridade, promoveram injustiça, dor e ilegalidades sem
autorização nenhuma para isso. Imaginei temeroso o que fariam se tivessem, por força de lei
(sob a proteção de um governo autoritário, por exemplo), o consentimento do Estado.
Destarte e como um reflexo involuntário daquela memória, acabei expressando
oralmente parte da reflexão, opinando sobre a importância da Controladoria Geral de Disciplina
(CGD) e sobre a necessidade de conter qualquer ação mais abusiva dos agentes policiais no
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campo. Sem calcular o teor da expressão, questionei a suposta liberdade de atuação com a
seguinte indagação: “[…] Senhores, mas vocês não acham que a polícia também precisa de
‘controle’? […]”.
De um salto e como resposta imediata ao meu questionamento, um de meus colegas de
profissão retrucou feroz meu ponto de vista e reivindicou o argumento que entende a polícia
como um órgão burocraticamente retido e sem liberdade direta de ação. De forma hostil,
argumentou que: “[…] a polícia perdeu (tinha perdido) o respeito (no sentido de autoridade,
acredito eu.) e (que), por causa disso, a ‘bandidagem’ tomou (tinha tomado de conta) conta da
sociedade […]”.
Não obstante e como já esperado, não me admirei em atestar, através da respectiva fala,
o que já sabia decorado dos livros e do cotidiano de trabalho. Nesse sentido, é até comum
evidenciar que parte dos policiais espera da polícia certa quantidade de poder que, superior a
todos os outros, faz dessa instituição o “martelo”, ou seja, uma entidade apartada, suspensa e
reguladora do resto da sociedade (a “bigorna”) que, passiva, apenas aceita o açoite
(DESAUNAY & VILORIN, 1989).
De fato, isso não me trouxe nada de novo. Todavia e como uma descoberta incômoda
naquele momento, o comentário posterior do policial foi o que provocou em min certo espanto
e me tirou da zona de conforto. Como um impulso imediato, me fez pegar meu diário de campo
e anotar o que viria a ser meu lugar de fala mais específico nesse estudo. Disse ele, de forma
irônica, o recorte de texto que inicia essa sessão e que coloca em contradição minha condição
profissional. Ao final, questionou se sou, ou se não sou, um “verdadeiro” policial; indagação
que me fez enxergar, enfim, um caminho metodológico para investigar o fenômeno proposto
nessa pesquisa.
Qualquer observador mais atento já perceberia (de pronto) que a pergunta entusiasmada
do rapaz não passava de uma colocação retórica e sarcástica. Bem no fundo, o juízo de valor
que ele produziu a meu respeito já parecia bastante desenvolvido e conformava a ideia de me
ver como um agente subversivo, ou seja, como um alguém cuja presença ali existia em
desacordo com os estatutos mais ortodoxos da polícia e provocava certa ojeriza. Na apreciação
dele, um “cana” de verdade jamais levantaria tal controvérsia contra sua própria instituição.
Em parte, ele estava certo e lhe sou muito grato por isso. Mesmo policial há pouco mais
de dez anos (naquele momento), não me sentia completamente igual aos demais e, naquele
instante, percebi um dos muitos porquês desse “mal-estar”.
Explicando o ocorrido e introduzindo o que chamei de “tomada de consciência
metodológica”, recordo-me dos ensinamentos de Velho (2004, p. 132) ao revelar que “[…] O
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estudo do rompimento e (da) rejeição do cotidiano por parte de grupos ou indivíduos desviantes
ajuda-nos a iluminar, como casos limites, a rotina e os mecanismos de conservação e dominação
existentes […]”.
Em suma e desde que ingressei nas Ciências Sociais me pus a analisar minha realidade
profissional com criticidade e, como consequência desse processo, acabei por desnaturalizar
parte significante do meu próprio hábitus policial, passando a elaborar uma visão suspensa
sobre minha prática. Destarte, minha posição intelectual misturou-se ao meu mundo do trabalho
e, desde então, elaboro percepções livres e divergentes da cultura da polícia.
Formulando meu papel, entendi que sou um policial localizado no rol de policiais que
percebem, de dentro, a grandeza de ser um agente da lei a partir de uma visão crítica1 e ampliada
das práticas, saberes e nuanças da polícia. Dito de outra forma, tenho sobre meu ofício uma
percepção privilegiada, advento de uma conciliação de contrários ou, conforme coloca
Bourdieu (2005), fruto da incorporação de um hábitus clivado (desagregado), que potencializa
minha compreensão e me permite produzir análises parciais daquilo que questiono no mundo
da polícia, fazendo de mim, ao mesmo tempo, um Policial e um Pesquisador.
Ainda sob orientação de Bourdieu (2005), minha posição na pesquisa é, ao mesmo
tempo, conflitante e conciliadora, uma vez que, os objetivos que almejo perpassam pela
intenção de promover transformações na prática policial, mas, sobretudo, elaborar compreensão
e entendimento de seus significados. Em suma, vivo e questiono aquilo que analiso, pois, em
grande demanda, parto da observação de práticas contraditórias que preenchem minha realidade
profissional e que marcam minha personalidade com indignação e vontade de mudança.
Prosseguindo e tentando pensar o desafio que se almeja nessa dissertação, destaco que
meu lugar de fala é de um policial que quer descobrir, através de outros policiais, o que é ser
policial. De forma muito evidente, falo sobre algo que não posso evitar, que me é familiar,
reconheço e sou, mas que carece de entendimento diante das muitas sutilezas que o objeto ocupa
no universo da segurança pública e na própria sociedade que, assistida por esses sujeitos,
também não os compreende e não é, em muitos momentos, compreendida por eles.
Tal reflexão se faz necessária por reconhecer o mundo policial como um todo complexo
que, embora íntimo desse pesquisador, esconde uma rede de interações, um mosaico dinâmico
de sentidos e representações que sempre supera o já previamente estabelecido e certo.

1
Vide – 2 “TRAÇOS E CONTRASTES DA POLÍCIA CEARENSE”: UM OLHAR SOBRE A CONSTRUÇÃO
DAS DISTINTAS PERSONALIDADES PROFISSIONAIS DOS AGENTES DA LEI; 2.1.3 VISÃO CRÍTICA:
uma ilustração do paradigma clássico e o prefácio da mudança na atividade policial.
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Assim e para dar conta do desafio posto nessa pesquisa, foi necessário transformar o
exótico em familiar e o familiar em exótico para perceber que, o até então, aparentemente
familiar, ainda não é necessariamente conhecido na sua totalidade (DAMATTA, 1978).
Destarte, quando o desafio proposto assume determinada grandeza é necessário refletir
para além da rigidez do modelo clássico e invocar uma metodologia que dê conta de, pelo
menos, interpretar os significados mais íntimos do respectivo fenômeno, pois o “eu” policial é
uma manifestação particular, mas também uma construção de influências externas e maiores
que o indivíduo portador do estatuto da polícia (MAUSS, 2003).
Segundo Bourdieu (1996, p. 15), parafraseando Gaston Bachelard, “[…] o particular é
tão somente uma figura num universo de figurações possíveis […]”, ou seja, o real é relacional
e atende a necessidade de múltiplas interpretações. Todavia e para capturar a lógica mais
profunda da vida social, é através do particular que se deve observar o geral. Assim, o
pesquisador tem por objetivo apreender estruturas e mecanismos de produção do espaço social
dissecando todas as partes e entendendo seus processos de atuação. De forma geral, o sociólogo
almeja entender as diferenças que separam o que é o poder da estrutura e o que são as
disposições mais elementares e individuais da vida social.
Nesse sentido e ainda para Bourdieu (1996, p.15):
[…] todo empreendimento científico se inspira na convicção de que não
podemos capturar a lógica mais profunda do mundo social a não ser
submergindo na particularidade de uma realidade empírica,
historicamente situada e datada, para construí-la, porém, como caso
particular do possível […] o objetivo é apanhar o invariante, a estrutura,
na variante observada […].

Dito isso, a abordagem qualitativa, com observação participante do cotidiano


profissional, análise das vivências, das subjetividades e das falas, bem como de parte dos
sistemas simbólicos que cooperam para formular a lógica e as representações policiais, toma
seu lugar de destaque nesse estudo e produz uma verdade que, mesmo parcial, proporciona um
momento de consenso entre aqueles que comungam do ideal de entender os sujeitos policiais.
Me ajudando a elaborar uma abordagem possível para o estudo, Velho (2004) esclarece
que é necessário promover um desprendimento científico no sentido de mergulhar em
profundidade no fenômeno estudado, ou seja, é o devir de uma análise intima, empática e com
alteridade sobre o fenômeno que lança luz sobre seu entendimento. É, no entendimento de
DaMatta (1978), a dicotomia do que parece familiar versus aquilo que precisa ser, em muitos
momentos, entendido como exótico.
Em suma, tais objetos da cultura policial, não tão autoevidentes, carecem de maior
aprofundamento e, por vezes, precisam ser conhecidos para além do que lhes é familiar ou
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próprio. Assim, a noção mínima de distanciamento existe a partir de níveis distintos de interação
e o que se reconhece na dimensão policial é, apenas, recorrente dos mapas sociais produzidos
pelas suas representações. Tal premissa talvez justifique os numerosos “desvios” e
informalidades que se opõem aos valores dominantes que organizam os grupos policiais
(VELHO, 2004; MUNIZ, 1999).
Não obstante, é fundamental entender que, por questão situacional, o fenômeno
estudado nessa pesquisa existe em um nível de proximidade e incorporação com este
pesquisador e que, portanto, já se encontra naquilo que DaMatta (1978) chamou de dimensão
existencial. O celebre autor nos orienta para a necessidade de avançar na pesquisa até o
momento ímpar de sentir o campo como parte do pesquisador, ou seja, até sua fase pessoal ou
interacional.
Justificando a premissa, Velho (2004, p. 123-124) também entende que:
[…] a noção de que existe um envolvimento inevitável com o objeto de
estudo e de que isso não constitui um defeito ou imperfeição já foi clara
e precisamente enunciada […] insiste-se na ideia de que para conhecer
certas áreas ou dimensões de uma sociedade é necessário um contato,
uma vivência durante um período de tempo razoavelmente longo, pois
existem aspectos da cultura e de uma sociedade que não são
explicitados, que não aparecem à superfície e que exigem um esforço
maior, mais detalhado e aprofundado de observação e empatia.

Por esse motivo, também considero esse estudo como parte de uma experiência
observada, participativa, intima e vivida, pois parcela significante do traquejo profissional que
adquiri nos últimos doze anos contribuiu para fundamentar as análises que se construíram ao
longo da pesquisa. Em suma e quando debruço olhar sobre o cotidiano profissional da polícia,
recordo-me dos ensinamentos de Malinowski (1978) ao observar, além da forma, as muitas
representações da prática, ou seja, os sentidos materiais, sociais e simbólicos das ações dos
sujeitos no campo.
Avançando e ainda segundo DaMatta (1978), enquanto que nas fases anteriores (plano
teórico e plano prático, respectivamente) a empatia com o objeto é medida pela competência
acadêmica (absorção da bibliografia) e pela perturbação de uma realidade dada (técnica e
empirismo antropológico, no meu entender), o terceiro e último momento de aproximação com
o fenômeno evidencia a dimensão integradora da pesquisa, ou seja, é uma síntese bem elaborada
da construção teórica, da prática no campo e do significado mais elementar do ofício
antropológico, ou seja, o encontro com culturas diversas e os questionamentos acerca da
“naturalização” de seus respectivos cotidianos.
Nesse sentido, o exercício proposto é, racionalmente, também um exercício de empatia
com o diferente, pois reconheço que aquilo que tomo por familiar no universo policial é apenas
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superficial e parte de um todo que é construído e desconstruído constantemente por nós policiais
e por cada instituição especificamente. A lógica desse campo é produzida com bem mais do
que o imediatamente dado ou a partir de macroestruturas preconcebidas. Ao contrário, o
raciocínio aqui é dinâmico e precisa ser captado como um movimento, nunca efêmero, entre o
aparentemente normal e o essencialmente diferente.
Como bem preceitua DaMatta (1978, p. 29):
[…] as duas transformações estão, pois, intimamente relacionadas e
ambas sujeitas a uma série de resíduos, nunca sendo realmente perfeitas.
De fato, o exótico nunca pode passar a ser familiar; e o familiar nunca
deixa de ser exótico […].

Prosseguindo e antes de qualquer perspectiva mais elaborada, é importante destacar que


essa pesquisa não aconteceu de modo linear, nem tão pouco como um conjunto de ações exatas
e certas no âmbito do processo metodológico.
Diferente do esperado e conforme nos ensina Velho (2004, p.18), tudo aconteceu em
caráter experimental, em momentos esporádicos e a partir de um “[…] repertório de mapas
possíveis […]” da dimensão profissional desses sujeitos e das possibilidades que se
apresentaram ao desafio de investigar o campo da segurança pública.
Buscando a objetividade que qualquer capítulo metodológico exige, ressalto que dividi
a pesquisa em três partes distintas, mas complementares no âmbito do trabalho: a primeira
correspondeu à revisão dos aspectos teóricos da temática, através do aprofundamento
conceitual de literaturas específicas e sua aplicação junto à investigação do objeto; a segunda
consistiu no trabalho de produção e coleta de dados através da aplicação de entrevistas escritas
e semiestruturadas, conversas informais e de observação participante no campo e, a terceira, na
análise e interpretação dos dados coletados.
Também de forma geral, destaca-se que a pesquisa prosperou de forma itinerante, no
ambiente de trabalho e no contexto dos cursos de formação policial dos quais participei como
instrutor ou colaborador e consegui superar alguns obstáculos que a disciplina e a hierarquia,
próprias da polícia, apresentavam como percalço.
Corroborando com a sistematização das etapas da pesquisa, Gil (2008, p.37) nos ensina
que:
[…] o ponto de partida de uma investigação científica deve basear-se
em um levantamento de dados. Para esse levantamento é necessário,
num primeiro momento, que se faça uma pesquisa bibliográfica. No
segundo momento, o pesquisador deve realizar uma observação dos
fatos ou fenômenos para que ele obtenha maiores informações e, em um
terceiro momento da pesquisa, o objetivo do pesquisador é conseguir
informações ou coletar dados que não seriam possíveis somente através
da pesquisa bibliográfica e da observação.
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De forma muito clara, utilizou-se uma abordagem qualitativa, com alguns instrumentos
graficamente quantitativos por ter sido possível, apesar da pouca amostragem (71
colaboradores), elaborar tabelas, quadros e figuras para análise dos dados. Não obstante, a
abordagem qualitativa utilizada no campo foi justificada pela complexidade teórica e concreta
do fenômeno policial e pela condição de impedimentos que marcam qualquer pesquisa sobre
segurança pública no estado do Ceará. Logo, as circunstâncias do campo condicionaram, em
parte, os dados construídos sem esconder os desdobramentos revelados pela pesquisa, bem
como os fatores que foram evidenciados nas instituições estudadas.
Assim e pela sensibilidade que as causas do fenômeno exigiu desse pesquisador, optou-
se por uma percepção qualitativa, pela aproximação amigável com os sujeitos policiais e pela
observação participante na totalidade das três organizações analisadas. Corroborando com o
conjunto de justificativas acima, Straus & Corbin (2008, p. 129) nos ensinam que a abordagem
qualitativa:
[…] analisa o comportamento humano, do ponto de vista do ator,
utilizando a observação naturalista e não controlada […] é subjetiva e
está perto dos dados (perspectiva de dentro, insider) [...] é orientada ao
desenvolvimento; é exploratória, descritiva e indutiva [...] é orientada
ao processo e assume uma realidade dinâmica; é holística e não
generalizável, porém seus resultados podem ser transferidos.

Contudo e desde já, julgo necessário colocar que mesmo tendo um caráter
essencialmente qualitativo, a pesquisa não deixou de ter um forte rigor acadêmico, pois tratou
de sistematizar qualquer informação construída no campo, bem como nas outras fases de sua
elaboração (MARCONI; LAKATOS, 2005).
[...] é um procedimento racional e sistemático que tem como objetivo
proporcionar respostas aos problemas que são propostos [...] a pesquisa
é desenvolvida mediante o concurso dos conhecimentos disponíveis e a
utilização cuidadosa de métodos, técnicas e outros procedimento
científicos [...] ao longo de um processo que envolve inúmeras fases,
desde a adequada formulação do problema até a satisfatória
apresentação dos resultados (GIL, 2008, p. 45).

Nesse viés e por condição de logística, a aproximação metodológica mais viável foi à
utilização de grafia e de oralidade, ou seja, o exercício de percepção entre mim e meus
colaboradores aconteceu através de aplicação de entrevistas escritas ou por meios digitais (e-
mail, whatsapp e afins) de conversas informais, mas direcionadas, no âmbito da pesquisa de
campo que transcorreu, apesar das barreiras materiais e daquelas de cunho ideológico, de forma
livre, espontânea e dialética, ainda que orientadas por um objetivo formal e obedecendo aos
regulamentos institucionais.
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Em suma, tentar transpor o ambiente dos quartéis, sedes e delegacias foi uma grande
provocação já que tais lugares são formalmente lacrados ao público em geral, mas também à
qualquer outro policial que não preste serviço no local. Tal situação é quase sempre justificada
por questões administrativas, segredos institucionais e até nuanças políticas.
Assim e com exceção do meu próprio local de trabalho (Delegacia de Capturas e
Polinter), ultrapassar tais situações foi possível somente nas salas de aula que, improvisadas em
auditórios ou em locais de reuniões, funcionaram como ambientes isolados; “ilhas” de
autonomia onde a pesquisa pode transcorrer sem maiores intervenções. Tais impasses é o que
Silva (2007, p. 179) compreende por “poder do campo”, ou seja, por um conjunto demarcado
de possibilidades assistidas e impostas ao pesquisador “[…] quando fazemos uma antropologia
daqueles que detêm poder e estamos, nós, antropólogos, numa condição de relativa
subalternidade diante deles […]”.
Nesse sentido, destaca-se que o respectivo objeto foi desenvolvido espontaneamente, a
partir das falas dos sujeitos e das opiniões e relatos acerca de suas práticas, bem como através
das expectativas que teciam de sua profissão e daquilo que entendiam por ser “agente da lei”.
Tais testemunhos foram escritos, em sua maioria, nas fichas abertas que recebiam para
responder meus questionamentos mais íntimos e que exigiam certa discrição do colaborador,
mas também de forma verbal, como desabafos voluntários compartilhados com esse
pesquisador ao longo das oportunidades de intervalo ou mesmo nas instruções oficiais, como
experiências formativas.
Sobre a respectiva estratégia metodológica, Moita Lopes (2001) nos ensina que é pelo
discurso que as pessoas constroem o mundo e se constroem nele, compondo a estrutura e todas
as ramificações que possibilitam, nela, as interações. Enfim, o discurso é uma força constitutiva
da própria vida social.
Assim, ter acesso aos policiais (em formação, em exercício ou em processo de
reciclagem profissional), obter autorização para aplicar questões, bem como extrair e
documentar falas e pensamentos que me auxiliassem nessa investigação, foi um processo longo
e possível de ser alcançado esporadicamente em meio a arranjos, “conchavos” profissionais e
diálogos.
Dito de outra forma, somente foi possível pela empatia e por coleguismos informais e
negociáveis dentro e fora das respectivas instituições. Em suma, foi gasto bastante “capital
social e político” nessa empreitada. Todavia e pelo mesmo motivo, em muitos momentos sofri
supervisão constante e olhares desconfiados, não somente dos superiores que me permitiram a
aproximação, mas dos demais policiais, de igual graduação, que não entendiam muito bem meu
17

real objetivo com a pesquisa e sempre expressaram certa ojeriza a esse campo de estudo. A
suposta situação de acesso revelou ser um caminho de “via dupla”.
Aos olhos de alguns amigos de trabalho, como evidenciado no diálogo que inicia esse
capítulo, sou um estudante de sociologia e, como tal, sou interpretado como alguém que se
posiciona politicamente a “esquerda” e que, provavelmente, esconde simpatia por organizações
de direitos humanos e órgãos de controle interno; instituições que, classicamente, são
entendidas como avessas à polícia. Em outras palavras, me distinguem como contrário a tudo
aquilo que a tradicionalidade policial entende por correto e “traidor do espírito de corpo”, ou
seja, daquele panorama que entende a coletividade policial como um conjunto fechado e única
detentora da condição policial.
Assim, entre “armas e livros”, vou seguindo o meu caminho. Todavia, me sentindo um
outsider nos dois mundos que frequento. Na Polícia sou um pesquisador e, como tal, carrego
comigo a curiosidade e a inconveniência própria desse campo de atuação. Na Universidade, sou
um policial, que sempre desperta olhares desconfiados e provoca até certa aversão de alguns
alunos que, assustados, especulam sutilmente se sou ou se não sou um policial hostil, se carrego
armas ou se já “bati” em alguém por puro preconceito, escárnio ou brutalidade. É, sem dúvida,
uma situação curiosa.
Retomando a descrição da pesquisa, ressalta-se que, em alguns momentos, os
procedimentos de campo seguiram a conveniência espacial de atuar profissionalmente na
Delegacia de Capturas e Polinter (DECAP), para onde converge boa parte do serviço diário dos
policiais civis e que, por questão estratégica, se estabelece metodologicamente como um
observatório privilegiado das situações típicas da “PCCE” (Polícia Civil do Ceará) e permite o
contato mais rápido com seus agentes.
Em outras circunstâncias, a pesquisa de campo aconteceu como convite ao exercício do
magistério, que no caso da Guarda Municipal de Fortaleza existiu como uma oportunidade junto
a Escola de Governo, órgão da prefeitura que, em parceria com o IMPARH e a Assessoria de
Planejamento e Desenvolvimento Institucional da Guarda Municipal de Fortaleza, promove a
difusão de cursos de formação e de reciclagem aos profissionais da segurança pública.
Na Polícia Militar, a oportunidade de aplicar o estudo aconteceu na Terceira Companhia
do Quinto Batalhão (3ª CIA\5º BPM), localizada no bairro Pirambú, quando no contexto do
Curso de Formação Policial para o provimento do cargo de soldado, realizado pela Academia
Estadual de Segurança Pública (AESP) em 2018. Situação que me permitiu investigar o que
observei como um incipiente processo de significação profissional, superação de um olhar mais
vulgar a respeito da polícia e a assimilação de uma cultura policial propriamente dita, uma vez
18

que os candidatos em formação interagiam livremente com os agentes em exercício e


partilhavam, também com eles, um ambiente real de ofício e de prática.
Como já colocado, para a obtenção da coleta de dados aplicou-se um conjunto de
indagações objetivas, mas abertas e com viés especulativo, onde os policiais puderam expor
suas opiniões acerca de sua atuação, da sua motivação, do sentimento de atuarem
profissionalmente como agentes da lei e das dificuldades que acreditam encontrar ao longo da
carreira. Nas conversas informais, por sua vez, os colaboradores debateram sobre suas
perspectivas e convicções, “tabus” e cultura policial; proporcionando uma compreensão do
universo policial e a possibilidade de elucidar a pergunta/problema que justifica esse
empreendimento: “O que é ser policial?”
Cabe salientar ainda que as entrevistas foram elaboradas na perspectiva de tentar
alcançar a real sensação do policial sobre a temática, objetivando alcançar a intimidade do
colaborador, perpassando por características de reconhecimento e identificação, mas
principalmente a partir de empatia com a respectiva atuação profissional, além de opiniões
acerca dos enfrentamentos, conflitos institucionais e de ofício no âmbito da segurança pública.
Em suma, objetivou-se investigar os policiais como categoria profissional, entendendo ser o
trabalho, enquanto trabalho, fonte de sociabilidade, sentido e representação (ELIAS, 1997).
Direcionando olhar para o mundo do trabalho, a pesquisa caminhou na compreensão de
uma rede invisível, móvel e interdependente de funções policiais que é tecida e compartilhada
por todos os profissionais da polícia. Tal horizonte é o próprio ordenamento policial que,
entendido como condição, coopta o indivíduo e acontece velada na informalidade do cotidiano.
Tal nuança concede ao policial um respectivo “modo de vida” que o conforma e o
desenvolve, mas nunca permite sua superação, pois é seu campo de ofício “[…] a principal
fonte donde uma pessoa deriva seu valor, seu significado a mais logo prazo […]” (ELIAS, 1997,
p. 311).
Assim, a carreira policial implica, desde o início, certa determinação do comportamento
social, ou seja, impõe uma administração da conduta dos sujeitos policiais que, como aspecto
visceral do Ethus policial2, passa a configurar como grupo de referência que salta da dimensão
profissional e toma a vida social total; implicando domínio e transmissão através de um
processo de subordinação específico (SÁ, 2002).

2
A expressão Ethos designa as características morais, sociais e afetivas que definem o comportamento de uma
determinada pessoa, grupo de pessoas ou cultura. Nessa pesquisa, o Ethos Policial se refere ao espírito motivador
das ideias e costumes dos membros da polícia, ou seja, seus mais diversos traços comportamentais.
19

Dito de outra forma e ainda segundo Elias (1993), tal docilização dos sujeitos policiais
compreende uma perspectiva holística onde o “todo policial” formula conformações que, pouco
a pouco, superam parte relevante da autonomia dos indivíduos isoladamente.
Outro não, a dimensão simbólica da profissão policial enseja aspectos próprios sobre a
ética individual, sobre os valores e sobre a concepção que os agentes constroem dos outros,
“não policiais” (SÁ, 2002). Em verdade, os policiais sofrem sujeição no seu campo de atuação
na mesma medida em que são instrumentos, desse mesmo campo, de submissão alheia.
Concordando com Sá (2002) e a partir de qualquer observação mais apurada desse
universo, a regulação das disposições fica evidente ao perceber, através da postura, de
expressões típicas e de todo o discurso peculiar de sua cultura policialesca, o autocontrole
individual como um dogma sagrado, ou seja, como um princípio geral, doravante da condição
e da estrutura policial que é compartilhado e promovido por todos nós agentes da lei.
Todavia e assim como a totalidade da diferenciação social, o autocontrole policial
também varia de acordo com a posição e a função que o sujeito ocupa no ordenamento ou, ainda,
com um momento de maior ou menor intensidade de regulação interna ou social (ELIAS, 1993).
Destarte, policiais e polícia, agentes e campo, trocam singularidades e exercem, um
sobre o outro, uma força criadora de sentido próprio. Contudo, é difícil determinar quem
escolhe quem, ou seja, quem exerce a maior força de socialização, uma vez que, a construção
da illusio 3 dociliza as condutas quando da busca pelo reconhecimento e pela aprovação
(BOURDIEU, 2001).
Não obstante, mas a partir desse entendimento, podemos afirmar que o capital simbólico
(específico do campo profissional da polícia), ou seja, aquilo que anima esse respectivo jogo
social, existe apenas pela crença, legítima e total, do reconhecimento de sua valoração por todos
aqueles que comungam da sua existência (BOURDIEU, 2001).
A dominação dos sujeitos policiais, a semelhança de todo e qualquer agente social, é
exercida, velada e aceita nas disposições do hábitus, ou seja, a partir de um sistema de ações,
disposições e percepções aberto e construído sob estruturas predispostas, reguladoras e
regularizadas pela interação dos agentes no campo e com o campo.
Destarte, quando Bourdieu (2001, p. 205) conceitua hábitus como: “[…] produto da
incorporação de uma estrutura social sob a forma de uma disposição quase natural […]” ele

3
Illusio [...] é dar importância a um jogo social, perceber que o que se passa aí é importante para os envolvidos,
para os que estão nele [...] é reconhecer o jogo e reconhecer os alvos [...] illusio é essa relação encantada com
um jogo que é o produto de uma relação de cumplicidade ontológica entre as estruturas mentais e as estruturas
objetivas do espaço social" (BOURDIEU, 1996, p. 139-140).
20

evidencia a existência de um disciplinamento velado, mas efetivo e semiconsciente que, na


polícia, estrutura-se sob o discurso da disciplina e da ordem. Em suma, as instituições
constroem e condicionam o hábitus tornando-o “senso comum”, sistematizando a própria vida
desses sujeitos e de pessoas próximas que são cooptadas por eles.
Prosseguindo e para compreender esse conjunto de percepções, os setenta e um (71)
operadores de segurança (considerando os vinte e nove candidatos ao posto de soldado da
Polícia Militar) que colaboraram diretamente com a pesquisa foram questionados sobre a
instituição policial e seu papel, sobre o que é “ser” policial e quais as funções que esse ente
desempenha no serviço público, bem como as motivações que os conduziram até esse campo
profissional e os fizeram permanecer (ou acham que vão permanecer, no caso dos jovens
militares em formação); além do advento da “missão” policial como ofício, prática e sentido
das ações que desenvolvem.
Outro não, também responderam questões que exigiram uma crítica a formação policial
propriamente dita; indagados acerca das qualidades, atributos e saberes próprios dos sujeitos
policiais e de como essa celeuma de conhecimentos projeta significado, dentro do universo
policial, numa cultura própria, restrita e até avessa (ou não), a qualquer outra que não a sua, ou
seja, que se apresente contrária aos estatutos da polícia.
Não obstante, mas absolutamente necessário ao estudo, também relataram experiências
e expectativas acerca do contato prático com o fenômeno criminal e seus sujeitos, nuanças e
peculiaridades; conflitos, violências e marginalidades e suas respectivas funções institucionais,
bem como as muitas práticas informais inerentes ao seu cotidiano profissional que são
adquiridas nos processos de transmissão cultural.

2.2 A superação das primeiras impressões: narrativas comuns e desconstruções de


imagens e marcas da polícia de “antigamente”

A exemplo dos muitos policiais que compartilharam informalmente sua trajetória


pessoal nessa pesquisa, pertenço a uma família pobre, periférica e de situação financeira
pauperizada da Região Metropolitana de Fortaleza-CE. De forma geral e desde muito cedo, tive
que estabelecer estratégias de sobrevivência e individualizar conquistas que me foram possíveis
através do estudo, do trabalho e da boa convivência social. Pelo menos daquela que me foi
possível ter nesse percurso.
Nesse sentido e a semelhança de parte relevante dos colaboradores da pesquisa, construí
minha carreira profissional, em um primeiro momento, motivado pela estabilidade financeira
21

como referência profissional e a possibilidade de sustento digno. Em suma, a polícia surgiu


como uma oportunidade de fugir do desemprego e de ter acesso ao serviço público.
Como bem confessou o Colaborador 10 (Guarda Municipal, 29 anos), o Colaborador 18
(Guarda Municipal, 38 anos) e o Colaborador 35 (CANDIDATO AO CARGO DE POLICIAL
MILITAR, 19 anos), por exemplo, grande parte dos jovens entram para a polícia pela
oportunidade “[…] de ser (serem) servidor (es) público (s) e por ter maior quantidade de vagas
nos certames públicos […]”, bem como pela “[…] estabilidade profissional […]” ou por uma
“[…] melhor condição financeira […]” ou, ainda, pela oportunidade de exercer poder quando
na superação de uma opressão qualquer.
Todavia e como fala recorrente entre os policiais pesquisados, acabei desenvolvendo
estímulo profissional em meio à prática e a totalidade de competências que revelam, na maioria
dos operadores de segurança, certa identificação com o ofício policial. Em suma, entendi logo
cedo que ser agente de segurança pública oportuniza homens e mulheres a chance de ajudar a
sociedade, fazer certo e o justo. Pelo menos é nisso que se acredita em um primeiro momento,
pois de maneira ambígua, aprendi facilmente que nos oportuniza prejudicar pessoas, fazer o
errado e o convenientemente injusto.
Não obstante e para exemplificar tal sentimento, reconheço, desde já, que meu lugar de
fala é privilegiado e me permite analisar a polícia e seus membros como iguais, como
companheiros, como amigos e parceiros de profissão, que compartilham referências vividas da
condição policial e dividem um conjunto de percepções subjetivas que ecoa da polícia, mas que
é experimentado individualmente por todos nós.
Dito de forma simples, também detenho o monopólio da condição policial e tenho
acesso a um conjunto de disposições observáveis dentro do universo da polícia que perpassam
por aquilo que Gil (2008, p. 105) elencou como categorias que nos auxiliam a organizar as
percepções do campo. Conforme o autor, os Atos (ações breves), as Atividades (ações de maior
envolvimento), os Significados (condicionamentos subjetivos das ações), a Participação
(envolvimento geral dos sujeitos na ação) e os Relacionamentos (interações sociais
simultâneas), além da completa situação concebida dentro do estudo (cenário e objetivos da
pesquisa) funcionaram como guias de minha investigação.
Metodologicamente adotei o que Wacquant (2002) chamou de observação participante,
que em meu caso aconteceu na sua vertente mais natural, dado a minha condição profissional e
por entender compartilhar junto dos sujeitos que estudo um convívio próprio do cotidiano
policial que engloba um conjunto específico de percepções e sentidos.
Todavia e como bem coloca Gil (2008, p. 101):
22

O principal inconveniente da observação está em que a presença do pes-


quisador pode provocar alterações no comportamento dos observados,
destruindo a espontaneidade dos mesmos e produzindo resultados
pouco confiáveis. As pessoas, de modo geral, ao se sentirem observadas,
tendem a ocultar seu comportamento, pois temem ameaças à sua priva-
cidade.

Nesse sentido e a semelhança das declarações que Wacquant (2002, p. 23) extraia dos
boxeadores em seu estudo, os policiais que colaboraram com essa pesquisa também não se
comunicaram como uma “[…] (re) apresentação teatralizada e altamente codificada que eles
gostam de fazer de si mesmos em público […]”, mas pela segurança espontânea e despercebida
do cotidiano profissional, ou seja, através de um “modo de vida” bem peculiar que é construído
e reconstruído por nós a cada momento do trabalho e que acontece na espontaneidade do “dia
a dia”, fazendo de min um expectador favorecido dos hábitos, costumes e traços da polícia.
Para melhor entender a questão, Muniz (1999, p 89) nos ensina que o Ethus policial
pode ser descrito como “[…] um espírito de corporação (“espírito de corpo”) […]”, ou seja, é
algo que “[…] que encontra-se cuidadosamente inscrito no gestual dos policiais, no modo como
se expressam, na distribuição de recurso à palavra, na forma de ingressar socialmente nos
lugares, no jeito mesmo de interagir com as pessoas etc. […]”.
Destarte e para compreender a construção de toda essa autoimagem coletiva (em mim e
nos demais agentes), debrucei o olhar sobre universo profissional da polícia que, mesmo
evidenciando diferentes peculiaridades entre as forças de segurança analisadas na pesquisa,
revela certo valor e status geral que, representativo de uma vida significativa para esses sujeitos,
condiciona a construção das suas identidades sociais e de um hábitus propriamente policial.
Conforme nos ensina Sá (2002, p. 13):
[…] o status do grupo profissional escolhido, com suas hierarquias de
valores e códigos sociais próprios, orientará e alimentará – através de
expectativas, disposições e motivações próprias – a construção do
significado de sua identidade social, e vice-versa. A incorporação do
indivíduo ao grupo profissional poderá implicar uma adoção “natural”
e “espontânea” do grupo pelo indivíduo, transformando em um grupo
de status, de referência e de participação social de primeira grandeza
para a sua vida social total.

Nesse sentido e depois de doze anos de carreira, reconheço o consumo espontâneo dos
símbolos policiais, do seu modo de ser, falar, vestir, ver, sentir e das disposições
semiconscientes que a imersão objetivada no campo cultural da polícia promoveu em mim. Dito
de forma geral e à semelhança dos demais, o campo policial funciona a partir de disposição
própria, obedecendo seu jogo social e negociando capital simbólico específico (BOURDIEU,
2013).
23

Em verdade, posso afirmar que esse capital profissional internalizado, no hábitus e pelo
hábitus, impacta a atuação dos agentes no campo e os potencializam de sucesso (ou não). Ser
“mais” ou “menos” policial, como advento de reconhecimento interno e externo, é condição da
interação do sujeito com seus pares e com o campo profissional da polícia (BOURDIEU, 2013).
Tomando como minha a fala do Colaborador 40 (CANDIDATO AO CARGO DE
POLICIAL MILITAR, 27 anos) que nos revela ter entrado para a polícia porque “[…] sempre
tive (teve) admiração pelo trabalho policial […]” inicio minha breve narrativa como um eco
reincidente nas falas dos colabores abaixo, cuja impressão primeira da profissão policial sempre
espelhou enaltecimento, certa simpatia, mas também curiosidade, respeito, estranhamento e,
claro, medo; sentimento que compartilhei durante muito tempo e ainda compartilho.
“[…] (Entrei para a polícia porque) gosto de proteger as pessoas. Entrei,
pois me identifico com a profissão […]” (COLABORADOR 03,
Guarda Municipal, 39 anos).
“[…] (Entrei para a polícia porque) Desde pequeno sonhava em ser
policial, como não tive mérito e hoje não tenho mais idade para a PM,
virei Guarda Municipal com muito orgulho […]” (COLABORADOR
12, Guarda Municipal, 34 anos).
“[…] (Entrei para a polícia porque) Me sinto no dever de ajudar a
construir uma sociedade melhor […]” (COLABORADOR 01, Guarda
Municipal, 29 anos).
“[…] (Entrei para a polícia por) Afinidade com a área profissional […]”
(COLABORADOR 31, CANDIDATO AO CARGO DE POLICIAL
MILITAR, 27 anos).
“[…] (Entrei para a polícia) por respeito e afinidade por essa atividade.
Para ajudar e proteger as pessoas e o patrimônio público […]”
(COLABORADOR 20, Guarda Municipal, 49 anos).
“[…] (Entrei para a polícia para) buscar um lugar em que me sinta bem
e que consiga contribuir de alguma forma […]” (COLABORADOR 24,
Guarda Municipal, 33 anos).

Prosseguindo e como a maioria esmagadora dos “meninos periféricos”, na infância fui


vitimado com todas as dificuldades sociais que crianças e adolescentes pobres, e brasileiros,
sofrem durante a vida. De família humilde, logo cedo descobri o que é ser um paciente na fila
de um hospital público. Entendi o que é ser aluno da precária educação pública; ou, ainda, um
usuário do transporte público urbano que na busca por emprego, percorre quilômetros e
quilômetros, sem ter dinheiro suficiente para almoçar e precisa voltar para casa faminto.
Todavia e, sobretudo, sei o que é ser abordado pela polícia que na sua faceta mais
truculenta e sob o dissimulado discurso da prevenção e da segurança (no bairro), definia quem,
ou o que, era considerado “marginal” e perigoso na periferia e que, por consequência, assumia
o papel de ameaça a ser neutralizada em nome da ordem e de tudo aquilo que o discurso policial
percebia como crime.
De forma clara e sobre a premissa, Sá (2011, p. 348) destaca que:
24

[…] a relação do “mundo de lá” da cidade (bairros nobres) com o


“mundo de cá” da favela (periferia) é baseada em uma contínua e
sistemática quebra de relações […] A ordem da cidade, em aliança com
a ordem estatal, age como força de constrangimento cotidiano para os
jovens da favela. Essa ordem em que a partilha de poder é negada, é
oferecida de modo restrito e quase sempre subalterno (ao “favelado”)
[…].

Recordo-me que, quando criança (e adolescente) foram muitas as situações de violência


e de abuso policial propriamente dito. De tapas a chutes, os alvos das abordagens quase nunca
tinham direito de defesa e eram sumariamente “julgados”. Qualquer voz de apelo, por menor
que fosse, era quase sempre cerceada em nome da autoridade policial.
Nesse sentido, a produção social do “jovem marginal”, morador da favela, foi (e ainda
é) também proveniente do processo de estigmatização que as forças policiais ajudam a construir
nas relações de poder que estabelecem com a “sociedade periférica” (SÁ, 2011).
Nas esquinas, praças, ruas e vielas do meu bairro, meninos, em sua maioria, corriam em
desespero ao primeiro ruído da sirene policial. “_La vem os homens!”, gritavam em disparada.
O que despertava, por diversão ou apenas para superar o tédio do expediente policial (acredito
eu), a vontade de capturar os “jovens marginais” em fuga.
Em verdade, o cenário de violência crescente marcou o bairro nos anos de 1990. A
expansão das gangues (na sua maioria, pichadores e usuários de drogas) e do cotidiano de
criminalidade acompanhou o próprio crescimento da comunidade, o que acentuou,
sobremaneira, a sensação de insegurança dos residentes.
Os índices de roubos, furtos e alguns homicídios foram crescendo e desenvolvendo uma
sensação de medo que acompanhava as conversas de calçada e fundamentava a realidade local
na forma de narrativas sensacionais. As pessoas comentavam, em toda conversa de final de
tarde, sobre os sucessivos episódios em que foram vitimadas ou de alguém próximo, ou não,
que protagonizou, como vítima ou como infrator, uma ação criminosa.
A criminalidade era um assunto do “dia a dia” e os bandidos assumiam, disputando com
alguns policiais de destaque, o protagonismo das histórias. Tal realidade advém, em parte, da
“cultura truculenta” formulada e compartilhada por todos nós. Em suma, “[…] o policial da
tropa, o morador da periferia e o responsável por pequenos furtos e delitos estão imersos no
mesmo cadinho cultural, que entende a política de segurança pública como uma política que
deve fazer uso da violência física […]” (BARREIRA; ABREU; ALMEIDA, 2004, p. 102).
Nesse sentido e diante de tal contexto, onde o clamor popular exigia intervenção das
forças de segurança, os jovens, “não criminosos” do bairro, eram comicamente perseguidos
pela polícia e somente escapava quem, com muita presteza, conseguia atravessar o portão do
25

muro e chegar, são e salvo, em sua casa. Em suma, a lei reinante nas ruas era: “Cada um por si
e pernas pra que te quero” (evadir-se rapidamente). Quem não corresse, “pagava o pato”
(assumia o risco de ser detido e sofrer abuso policial).
Infelizmente, aos que ficavam pelo caminho, por falta de “habilidade furtiva”, destreza
ou por pura falta de opção, restava, como de costume, reproduzir e responder, sob o comando
do “senhor policial”, o já conhecido e famigerado discurso do “baculejo” (abordagem e revista):
“_Mão na cabeça, vagabundo!”; “_Encosta na parede!”; “_Abre as pernas!”; “_Tá fazendo o
que na rua uma hora dessas?”. Também de forma geral e nessa situação prévia de interrogatório,
gaguejar, soluçar ou chorar de medo era inevitável, mas também inaceitável.
Sobre a ação policial do “baculejo” (abordagem e revista), Sá & Santiago Neto (2011,
p. 04) nos ensinam que:
Esse tipo de interação simbólica é, fundamentalmente, um ritual de
poder, ele é revelador das difíceis e intricadas relações de poder entre
policiais e jovens no cotidiano da cidade. É um evento que se realiza
sob a égide de um discurso que, às vezes, é proferido pela fala, mas na
maioria das vezes permanece implícito, que diz, da parte do policial, o
seguinte: “respeita a polícia, vagabundo”. Os atos policiais de prender,
bater e amaciar numa perspectiva antropológica passa, por conseguinte,
pela análise da expressividade simbólica que marca esta palavra de
ordem.

Fazendo certo esforço de recordação, lembro que em uma das muitas situações de
abordagem, um de meus amigos teve um brinco arrancado da orelha por um poderoso “puxão”
de um agente. Muito provavelmente e na visão do sujeito fardado, o adorno do garoto estava
em desacordo com aquilo que ele acreditava ser apetrecho de menina e não de menino. Além
da vergonha e da dor excruciante, o rapaz ainda levou uma lição sobre preconceito de gênero:
“_Brinco é coisa de mulher, moleque!”, disse o policial.
Outro não, a grande maioria das abordagens policiais era motivada por considerar que
os jovens estavam no “local errado”, na “hora errada” e serem taxados por tamanha
contravenção de “vagabundinhos”. Por consequência e através da “pedagogia do cassetete (hoje
Tonfa)”, os policiais ensinavam aos adolescentes do bairro que lugar de cidadão não era na rua
quando o relógio já marcava o “tarde da hora”.
De antes até o presente momento:
[…] observa-se que os policiais postados na “ponta”, nas viaturas, nas
ruas enfrentando a violência, não absorvem o discurso da “nova
mentalidade (policial)” e esbarra ainda na cultura autoritária da
violência policial […] Acostumados a prender, bater e concluir de
imediato que está defronte de um bandido, não sabem mais conversar e
assimilar a ideia de que se trata de um cidadão que desvirtuou a ordem,
mas continua cidadão (BARREIRA; ALMEIDA; BRASIL, 2004, p.
125).
26

Sem o risco de forçar qualquer análise mais evidente, o relato apenas corrobora com o
que Costa (2004, p. 65) entende por interação desigual entre o Estado, por extensão a polícia, e
as classes menos abastadas e marginalizadas da sociedade, uma vez que, “[…] as relações entre
algumas instituições estatais e a sociedade, em especial os segmentos mais pobres, continuam
sendo marcadas pelo exercício arbitrário e muitas vezes ilegal do poder […]”.
Sobre a questão, Misse (1996, p. 4) também evidencia que essa prática nefasta não
apenas existe, mas desenvolve-se, sobretudo, no “[…] respaldo social e (na) legitimidade
política porque a direção hegemônica das agências de vigilância, repressão e punição está
construída sobre a visibilidade social de certos tipos de crimes e de (certos tipos de) agentes
(marginais) mais que de outros […]”.
Perseverando no depoimento e destacando outro grande estímulo à atividade policial no
bairro quando no tempo de criança, arrisco-me a reproduzir “clichês” que, até hoje, parecem se
manter fortes e vívidos no discurso policial mais nefasto. De forma geral, as abordagens
também aconteciam por critérios de imagem, ou seja, a partir de arquétipos mal construídos que
elegiam os meninos dessa ou daquela aparência para se prostrarem, mais uma vez, na posição
de “baculejo”.
Geralmente eram jovens franzinos, negros em sua maioria, com roupa específica
(“calção de surfista”) e chinelas de borracha; também com especificidade de algumas marcas e
modelos (na minha época de adolescente, sandálias “Opanka” ou “Kenner”).
Na época (mas ainda hoje), os garotos também se tornavam alvos das abordagens se
ostentassem tatuagens ou alguma outra característica no visual que o definia como desordeiro
ou que aparentasse, por consequência, uma personalidade subversiva. Não encaixando nesse
padrão, os negros e os pardos, eram os alvos prediletos e corriqueiros. Sem medo de qualquer
apreciação exagerada, ressalto a atemporalidade notória e evidente dessas circunstâncias.
Nesse sentido, confesso, e o leitor há de convir, que o “tornar-me policial” também
aconteceu como uma resposta reativa à opressão policial da adolescência. Arbitrariedade essa
que, a despeito do discurso oficial e “politicamente correto” dos gestores da segurança pública,
acontecia e acontece corriqueiramente nos guetos e favelas de nosso estado, como um cotidiano
quase imutável, transfigurado e pormenorizado como uma rotina do próprio trabalho policial
ostensivo.
O que o discurso policial invoca como negação dessa realidade é que “[…] é impossível
não trabalhar com estereótipos […]”. Opinião revelada na prática profissional e testemunhada
inúmeras vezes por esse Policial-Pesquisador (no âmbito do trabalho), bem como criticada por
Muniz (1999, p. 201) quando destaca que:
27

Inescapável ao trabalho policial, a elaboração de estereótipos sobre


indivíduos suspeitos têm sido, não sem fundamento, objeto de críticas
sistemáticas por parte da comunidade científica e das representações
das chamadas minorias sociais e políticas.

De forma pormenorizada para o momento, de antes, até os dias atuais, eu sempre percebi
a segurança pública no bairro como uma celeuma de “ausências” de interesse, descaso de gestão
e falta de investimento adequado (estrutural e humano). Outro não e salvaguardando
especificidades mais gerais, não é tolice tomar meu bairro como um recorte revelador da
realidade policial que ainda é marcante e procedente na atualidade.
Em outras palavras, nunca houve uma preocupação real com o corpo policial
propriamente dito; nem numa perspectiva instrumental, com relação aos equipamentos
utilizados por esses agentes de segurança pública, nem com a demanda humana e de formação
que, outro não, apenas revelou uma perda profunda do significado mais nobre de “ser policial”
(servir e proteger a comunidade) e promoveu uma relação conflituosa, de oposição, embate e
injustiça com a população.
Tal realidade, aliada a inexistência de um estreitamento eficaz entre policiais e
comunidade, fez com que a criminalidade se adaptasse facilmente a metodologia aplicada pelas
forças policiais locais e os resultados mais efetivos da atuação policial são comumente
frustrados. Como antes, tudo pode ser comparado a um grande “teatro” de ações e, os jovens,
no bojo dessa política de “insegurança”, ainda são condenados indiscriminadamente ao
“Baculejo” enquanto os grupos criminosos continuam operando furtivamente um Estado
paralelo.

2.3 Trajetória, investigação e estudo: campo e pesquisa itinerante na Guarda Municipal


de Fortaleza, na Polícia Militar e na Polícia Civil do Ceará

Da literatura de Arthur Conan Doyle, Georges Simenon, Raymond Chandler e Agatha


Christie aos filmes clássicos de Orson Welles, Roman Polanski, Francis Ford Coppola, Héctor
Babenco e do fabuloso Quentin Tarantino, as narrativas policiais ultrapassam a arte e avançam
seduzindo o imaginário de homens e mulheres que comungam, através do gênero, o apreço pelo
mundo misterioso e repleto de ação que supostamente caracteriza o cotidiano policial.
Ainda que clichês, os enredos trazem à tona, além do crime, da ação, da investigação e
da retórica da “justiça alcançada”, a exaltação do sujeito policial que, imbuído de uma “gloriosa
missão”, torna-se o protagonista de uma incumbência tão nobre e mítica que, apenas ele, e
somente ele, é capaz de superar. Essa personagem, em muitas oportunidades “mocinho” e
28

amado pelo público, também é marcado por ambiguidades que são retratadas pela arte, mas que
encontram sentido real no dinamismo do trabalho policial ordinário.
Ainda que a realidade profissional dos policiais não apresente o mesmo romantismo
ficcional da arte, a celeuma de funções que marca o cotidiano desses agentes justifica a
formulação de sua imagem heroica. Esses sujeitos, de um jeito ou de outro, são responsáveis
por proteger pessoas e tal missão é imbuída de nobreza. Em verdade, ao elaborar tais narrativas,
as pessoas transmitem o sentido mais puro de quem são, de suas crenças, das relações que
constroem uns com os outros e das possibilidades que inventam para a polícia e para o mundo
da segurança (ARAÚJO & BASTOS, 2018).
No seio dessa premissa, localiza-se esse pesquisador que, consumidor de todos os
produtos da ficção policial, quando criança e adolescente, almejava ser como “Hercule Poirot”
e “Sherlock Holmes” ou, ainda, como “John McClane” e superar todos os desafios do caminho,
concebendo um imaginário encantado para esse cenário real4.
Todavia e a contrassenso das expectativas tecidas com toda essa narrativa fantástica,
esse policial adulto (hoje) apenas se depara com um conjunto de realidades profissionais que o
põe a prova “todo santo dia”, pois como nos ensinou Malinowski (1978, p. 47) “[...] toda a
estrutura de uma sociedade encontra-se incorporada na mais evasiva de todas as matérias: o ser
humano [...].”
Muito aquém de revelar certezas e controle, o cotidiano policial não existe a partir de
um enredo fixo ou previamente estabelecido. Em maior demanda, ele transmite receios,
contradições e ambiguidades; pois é construído, sobretudo, no improviso do expediente de
serviço.
De prisões à investigações complexas, de abordagens rotineiras a um simples lanche na
barraquinha de cachorro quente, o universo policial vai se desenhando e formulando um rol de
singularidades que compõe o pensar e o fazer policial como um todo exposto, mas por vezes
velado e restrito àqueles, e apenas àqueles, que compartilham da sua condição profissional.
De forma geral e por toda idealização da atividade policial existente em livros, filmes,
jogos eletrônicos e de todo tipo de referência “pop”, desenvolve-se meu lugar de fala que, dito
de forma simples, é condição dos cinco anos de prática profissional na Guarda Municipal de
Fortaleza (GMF) e, hoje, de sete anos na Polícia Civil do Ceará (PCCE), do contato com a

4
Hercule Poirot é um detetive fictício da maioria dos livros da escritora Agatha Christie; assim como Sherlock
Holmes é um detetive fictício do escritor Sir Arthur Conan Doyle e John McClane é uma personagem
protagonista da franquia cinematográfica Die Hard (“Duro de Matar”).
29

Polícia Militar do Ceará (PMCE) e da curiosidade científica imanente da condição de


Aluno/Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do
Ceará (UFC).
A condição de Policial aliada à condição de Pesquisador me concedeu a chance de
elaborar uma leitura privilegiada da prática e do cotidiano profissional dos sujeitos que, como
pares no contexto do trabalho, me relevam, com a franqueza do cotidiano, falas,
comportamentos e certas circunstâncias ocultas do serviço policial.
Como bem me orienta Velho (2004), o desafio que interpela esse Policial-Pesquisador
é duplo e começa por desnaturalizar noções previamente estabelecidas pela prática profissional.
Em suma, é preciso reconhecer a polícia como um cenário previamente familiar e os policiais
estudados como uma complexa rede de relações íntimas. Todavia e como um processo
fundamental ao desafio, é também necessário desconstruir o aparentemente posto e questionar
o mecanismo de produção das disposições.
Nesse sentido, conviver com meus iguais me tornou apto a aprender, em cada força de
segurança analisada, as distintas normalidades e as muitas estranhezas inerentes, pois como já
colocado no texto, todas as vivências e experiências que marcaram meu percurso, desde o
primeiro contato com a polícia (na infância) até o decurso profissional na idade adulta (na
condição de policial), são memórias construídas que, de forma positiva ou negativa, se tornaram
significativas e contribuíram para o entendimento do sujeito policial como intérprete dos
códigos socioculturais da polícia (ARAÚJO & BASTOS, 2018).
Assim e reconhecendo que o objeto dessa pesquisa já existe há certo tempo em minha
vida, o policial, na sua singularidade, é entendido por mim como um objeto de estudo
sociológico e carrega, enquanto sujeito histórico, uma posição repleta de legitimidade, uma vez
que, e geralmente, o lugar de fala desse sujeito também expõe uma busca infindável por
reconhecimento e acesso.
Toda instituição constrói relatos que a sustentam - narrativas que
encenam discursos, vivências e valorizações e que a permitem pensar a
si mesma como grupo social e como instituição. Trata-se de estabelecer
diretrizes que pretendem guiar os próprios integrantes ou os de fora em
busca de uma determinada apreensão da realidade social. Os relatos
institucionais condensam significados: contam uma história que todos
julgam compartilhada, instituem uma gama de sentidos que deverão ser
traduzidos em entendimentos totais. Dizem quem e como se é, tanto aos
pertencentes como aos não pertencentes ao grupo (SIRIMARCO, 2013,
p. 31).

De forma geral, enfatizar esse breve caminho pessoal é fundamental para tentar anunciar
ao leitor que a construção do olhar sociológico sobre os sujeitos policiais nessa pesquisa
aconteceu, concomitante, a um conjunto de nuanças que me levaram a repensar muitos aspectos
30

profissionais de minha carreira. Essas percepções, ainda que parciais, ajudaram a forjar meu
objeto de pesquisa, mas me colocaram sob o limiar de um estranhamento constante e necessário.
Justificando a premissa, Minayo (2001, p. 15) coloca que:
Na investigação social, a relação entre o pesquisador e seu campo de
estudo se estabelecem definitivamente. A visão de mundo de ambos
está implicada em todo o processo de conhecimento, desde a concepção
do objeto, aos resultados do trabalho e à sua aplicação [...] Trata-se aqui
de uma condição da pesquisa que deve ser incorporada como critério de
realidade e busca de objetivação.

Outro não, almejo a desconexão que Bourdieu (2005, p. 90) entendeu como “[…] o
retorno às origens (que) faz-se acompanhar de um retorno, embora controlado, do que fora
recalcado. […] de tudo isso, o texto não guarda mais nenhum resquício […]”.
De modo mais simples e ainda tomando como referência o emblemático autor, os muitos
paradoxos e tensões que permeiam meus dois mundos, a Polícia e a Universidade, produzem
meu olhar sociológico e possibilitam a materialidade desse estudo. Destarte, só me resta à
aceitação dessa instabilidade como uma ferramenta impulsionadora desse estudo.
Vivenciar a prática policial e em seguida estudá-la a partir de teorias sociológicas que
apresentam reflexões tão provocadoras sobre seu sentido é um exercício marcante, percebido
apenas e como já evidenciado no texto, por uma visão subversiva da polícia e de seus membros
no âmbito do trabalho. Tais conflitos são fundantes das indagações que fundamentam esse
estudo e funcionam como essência de uma experiência transformadora.
Por fim e avançando no capítulo sobre o desenvolvimento da pesquisa e sobre a
sistematização dos dados no campo, ressalta-se que as sucessivas visitas a sede da Guarda
Municipal de Fortaleza e a 3ªCIA/5ºBPM, bem como, a observação constante de meu cotidiano
de trabalho na Delegacia de Capturas e Polinter (DECAP) em muito contribuíram para
desenvolver o presente estudo, mas longe de oferecer caminhos absolutos quando se objetiva
perceber aspectos subjetivos da prática e da cultura policial, esses lugares apenas ofertaram
cenários estáticos que me oportunizaram acesso à riqueza dos pessoas, ou seja, aos muitos
relatos, falas e desabafos que fundamentaram a totalidade dessa pesquisa.
Sobre (e muitas vezes sob) as instituições de segurança, os sujeitos detentores da
condição policial, formuladores das situações do cotidiano e dos acontecimentos da vida
real/profissional da polícia destacam-se nesse empreendimento como as verdadeiras fontes de
pesquisa, pois trazem consigo o mérito de serem e de tecerem (inconstantemente) tudo que se
debate nesse estudo, bem como tudo que ainda se pretende desvendar nesse campo de estudo.
31

2.3.1 “A Guarda não é mais a mesma”: percepção da organização política e profissional da


Guarda Municipal de Fortaleza e outras impressões do campo na primeira visita

Certa vez disse o escritor Adauto Neves5: “[...] toda jornada é finita, de repente, o retorno
chega sem avisar [...]”. De fato existe algo de sublime no ato de retornar. Para além da nostalgia
e das recordações de um passado imutável, regressamos por acreditar que deixamos algo de
muito especial pelo caminho. Retornamos por saudade de um estado de graça. Voltamos ao
lugar de origem para corrigir erros iniciais ou reforçar acertos importantes. Reaparecemos,
enfim, pela expectativa de saber como estar aquilo que, na nossa ausência, continuou seu
dinâmico movimento de transformação e é capaz de despertar, quando no nosso retorno, a
qualidade da boa surpresa e o sentimento de bem-estar ao pensar que também nos
responsabilizamos por essa alegria.
De fato, foi isso que aconteceu comigo ao revisitar a nova sede da Guarda Municipal de
Fortaleza.
“[…] A Guarda não é mais a mesma meu parceiro; ganhou moral! Tudo
mudou por aqui […] agora, somos a ‘polícia municipal’ […] (M. T. “O
Guarda Municipal da Portaria”, 38 anos de idade e 11 anos de carreira).

Desde o primeiro momento desse tópico ressalto que, de abraços à apertos de mão, ao
retornar à minha antiga instituição fui recepcionado com enorme carinho, respeito e
reconhecimento. Além do encantamento com a novíssima estrutura que a Guarda Municipal de
Fortaleza adquirira nos últimos anos e que “salta aos olhos” de imediato, entendi logo cedo,
para meu contentamento, que os laços de amizade que deixei naquele lugar estavam vívidos e
fortes.
Nesse sentido, tive a impressão que a pesquisa poderia prosperar sem maiores
dificuldades, pois me senti como alguém que partiu, mas que deixou, enquanto ainda pertencia
ao local, uma história marcada por sólida empatia. Percebi que, profissionalmente ou por algum
outro motivo que não compreendi muito bem, fiz algo de muito significativo e valorizado por
todos que me recepcionaram.
Não obstante, aquele tratamento era algo que compreenderia depois, ao longo das outras
visitas que realizei. Em suma, ele estava associado ao reconhecimento acadêmico, prestígio
intelectual e poder professoral que adquiri na condição de mestrando em Sociologia e de
docente da academia de segurança pública. Destarte, acredito ter trazido comigo um capital

5
Escritor e pensador brasileiro. Sua principal obra foi “Retrato D’alma”, publicada em 2007 (São Paulo).
Disponível em: https://rl.art.br/arquivos/689272.pdf.
32

social institucionalizado6 que, de imediato, foi reconhecido e, para além, possibilitou o próprio
retorno aqui descrito.
Por fim, o que estranhamente me entusiasmava era perceber que minha trajetória
acadêmica, por assim dizer, era conhecida por meus antigos colegas de trabalho e que, de forma
coletiva, provocava neles orgulho e aprovação. Confesso que é um sentimento reconfortante.
Prosseguindo. Era uma tarde de quarta-feira (27 de Março de 2019), ainda não tinha
almoçado e agia apressado a fim de tentar conseguir comer algo antes de começar a instrução
na “Turma Alfa”, formada essencialmente por jovens guardas municipais. Com o
consentimento de meu chefe imediato (Delegado Titular), atravessei a cidade às pressas e
mesmo conduzindo minha motocicleta com presteza, a distância entre a Delegacia de Capturas
(DECAP), localizada no centro de cidade, e a sede da Secretaria Municipal de Segurança
Cidadã, localizada no bairro da Messejana, era imensa. Considerando o estado de fome em que
me encontrava, esse intervalo parecia ainda maior.
Depois de certo tempo e ao despontar no portão de entrada, avancei um pouco e parei
ao lado do agente de segurança que, aparentemente, era responsável pelo trânsito de pessoas e
o acesso de veículos no interior da edificação. Enfim, retirei o capacete e, por uma fração de
segundos, analisei a estética do sujeito. Embora fossemos antigos colegas de trabalho, de
imediato, não nos reconhecemos e a única coisa que chamou minha atenção foi à espingarda
“calibre 12” que ele ostentava acoplada ao colete balístico e segurava com as duas mãos; dado
o peso e as dimensões da arma, acredito eu.
De fato, tanto para mim como para qualquer outro cidadão, é sempre muito difícil
disfarçar o espanto ao olhar um armamento tão grande e a imagem agressiva que as vestimentas
policiais passam ao público em geral. Outrora, quando ainda era membro da organização, a
guarda municipal não podia portar armas de fogo. Essa mudança aconteceu de forma periódica
e escalonada ao longo dos anos, através de leis (Estatuto do Desarmamento) e acordos políticos
(convênio entre a Polícia Federal e a prefeitura municipal).
Após essa impressão inicial, me identifiquei e, para minha surpresa, recebi um caloroso
abraço. Com “arma e tudo”, diga-se de passagem. “[…] Não está me reconhecendo não? […]”,
indagou-me o rapaz. Retomando a compostura, exercitei a memória e, sem muito esforço,
lembrei a identidade do meu interlocutor. Como exige a boa conduta social e de forma amistosa,
desci da moto, retribui o abraço e desejei-lhe felicitações. Também como condição quase

6
Recursos reais e potenciais que podem ser vinculados à posse de uma rede durável de relações institucionalizadas
de conhecimento mútuo e reconhecimento (BOURDIEU, Pierre. As formas do capital (1985). In. Manual de
Teoria da Pesquisa para a Sociologia da Educação, 1986, p. 56)
33

involuntária do ato de conversar, perguntei sobre sua saúde e família, sobre seu trabalho e sobre
sua instituição; como estavam as “coisas” por ali. Logo e como uma resposta “engatilhada”
para o momento, ele disparou o recorte de fala que ornamenta o começo desse tópico. Usando
a expressão “polícia municipal” e sem largar a espingarda, despejou orgulhoso que, “da minha
época” de agente municipal até o presente momento, a Guarda Municipal de Fortaleza se
encontrava em outro “patamar”.
Criada por força da Lei Nº 1.396, a Guarda Civil Metropolitana de Fortaleza data
oficialmente de 10 de julho de 1959 e desde o início de sua genealogia atuou como força de
segurança local, ostentando, formalmente e informalmente, a prerrogativa da vigilância, da
proteção de bens e instalações e da ação de embate à violência no âmbito do município. Enfim
e para usar a mesma expressão do meu interlocutor, mesmo antes “do meu tempo”, até o
presente momento, a Guarda Municipal sempre foi o órgão executor da política municipal de
segurança.
Todavia, sempre sofreu com uma certa ambiguidade de suas práticas ao entender
legalmente a vigilância, a fiscalização e a garantia dos serviços públicos municipais como suas
competências principais, mas operar, por força das circunstâncias e desmandos governamentais,
um modelo policial ostensivo e informal, de caráter militar e destinado ao combate aberto e
geral à criminalidade.
Destarte, o respectivo conflito existe a partir da redação do Art. 144 da Constituição
Federal de 1988 7 que, no parágrafo oitavo, apenas torna possível a existência das Guardas
Municipais, mas não desenvolve bem suas qualidades, funções ou prerrogativas, deixando para
outros estatutos essa responsabilidade. Assim e combinado com o inciso XII, do Art.76 da Lei
Orgânica do município8. (Conforme a Lei complementar nº 0019 de 08 de setembro de 2004,
que alterou a lei complementar nº 0004, de 16 de julho de 1991, bem como a lei nº 8.811, de 30
de dezembro de 2003) 9, a finalidade, a competência e a estrutura organizacional básica da
Guarda Municipal de Fortaleza foi, de forma conflituosa, se delineando a partir das demandas
da urbe.

7
Art.144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação
da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:§8º. Os
Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações,
conforme dispuser a lei.
8
Lei Orgânica do município. Art. 76. Compete ao Prefeito, entre outras atribuições: XII – dispor sobre a
estruturação, as atribuições e o funcionamento dos órgãos da administração pública;
9
Lei Complementar nº 0019 de 08 de setembro de 2004, que dispõe sobre a finalidade, competência e estrutura
organizacional básica da Guarda Municipal de Fortaleza. Disponível:
http://www.imparh.ce.gov.br/concursos/Guarda%20Municipal/LEIS%20COMPLEMENTARES.pdf7;
34

Avançando e segundo bibliografia disponível em revista informativa, publicada


recentemente (julho de 2019)10 pela Secretaria Municipal da Segurança Cidadã e gentilmente
cedida a esse pesquisador como um recorte da pesquisa documental, os sessenta anos de
existência concedeu a Guarda Municipal de Fortaleza seis diferentes gerações de agentes e
múltiplas transformações organizacionais, culturais e ideológicas.
Não obstante e paralelo ao desenvolvimento das ações de segurança municipal e da
perspectiva integradora, doravante da Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), a
instituição ganhou maturidade e reconhecimento quando, nos anos 2000, passou a vigorar no
Plano Nacional de Segurança Pública, surgindo à oportunidade de convênios junto ao Governo
Federal (BEATO FILHO, 1999).
Dito de forma simples e a partir do discurso de seus gestores, a Guarda Municipal de
Fortaleza é uma força de segurança que, teoricamente, atua numa perspectiva cidadã, voltada
para a interação com a comunidade, com o objetivo maior de evitar as ações criminosas e
operando, para isso, uma política de segurança preventiva.
Assim e considerando como marcos evolutivos o ingresso de seus agentes, a conquista
política de competências e o desenvolvimento profissional de suas práticas, saberes e imagem,
meu velho companheiro de trabalho resume muito bem esse novo panorama ao expressar com
entusiasmo que sua instituição “[…] ganhou moral! […]”, ao compará-la, acredito eu, aos
demais órgãos de segurança pública e inseri-la num sistema policial geral, no âmbito do
município.
Não há como negar o orgulho evidente com que contava as “novidades” que sucederam
a minha saída da Guarda e meu ingresso na Polícia Civil, cerca de seis anos atrás. A
prosperidade aparente e expressada no discurso de meu amigo era envolvente, mas me atrasara
ainda mais e, naquele momento, sabia que teria que ficar até as 17:00 sem comer. Todavia e
mesmo correndo para a sala de aula, refleti como o rapaz encarnou a narrativa institucional que
fez da guarda-civil a instituição que é hoje
Mesmo não revelando os bastidores desse desenvolvimento profissional, pois é evidente
que de imediato era preciso emitir as melhores impressões, conforme nos ensina Goffman (2011,
p. 13) quando coloca que “[…] o indivíduo terá que agir de tal modo que, com ou sem intenção,
expresse a si mesmo, e, os outros, por sua vez terão de ser, de algum modo, impressionados por
ele […]”, meu ex companheiro de trabalho encenou um discurso de valorização que permitiu

10
Revista Guarda Municipal de Fortaleza: Protetora e Cidadã. Julho de 2019 – Ano I – Ed. I. SESEC/PMF.
35

pensar a si mesmo como membro de um grupo social integrado, ou melhor, como parte
importante de sua própria instituição.
Enfim, não há como duvidar da incorporação total dos sentidos e significados que fazem
da Guarda Municipal, a “polícia municipal” da qual ele se envaidece. Sem medo de exageros,
percebi que a sugestão da instituição se reproduziu por completo em suas falas e recordei o que
nos ensinou Bourdieu (2005, p.18) ao colocar que:
A influência dos grupos fortemente integrados [...] dever-se, em grande
parte, a facto de estarem unidos por uma collusio na illusion, por uma
cumplicidade natural em torno da fantasia coletiva que assegura a cada
um dos seus membros a experiência de uma exaltação do eu, princípio
de uma solidariedade enraizada na adesão à imagem do grupo como
imagem encantada de si [...].

Ainda sobre a questão, Sirimarco (2013, p. 32) coloca que:


Como instâncias de representação da realidade social e de ação sobre
ela, o relato e a instituição tornam-se inseparáveis. Para existir como tal,
a instituição deve narrar-se, isto é, reproduzir-se (no narrador). Nenhum
fato é viável enquanto não for categorizado.

Eram 13:30 e enfim eu estava chegando na sala de aula. Atravessei dois andares e quatro
rampas, conversei com, pelo menos, uns dez amigos e recordei, ao sentar na cadeira do instrutor,
que um de meus colaboradores relevou o passado recente daquelas instalações como um grande
hotel e que, para parecer uma sede de segurança, tentaram remodelar as paredes e as salas, mas
que não tinham conseguido reformar a totalidade do prédio. Todavia, os servidores pareciam
satisfeitos com o local, embora ainda aguardassem reconhecimento social, político e, sem
dúvida, melhorias salariais. Reivindicação comum na totalidade das instituições de segurança,
diga-se de passagem.
Prosseguindo com o relato e ao observar a classe, identifiquei olhares curiosos, outros
entusiasmados, mas também alguns bem desatenciosos e sem nenhuma pretensão. Era sem
dúvida uma turma heterogênea e, como tal, percebi ali um celeiro de possibilidades. Imaginei
por um instante que estava contemplando a própria formação da identidade policial, ou seja,
um Ethus puro e raso que germinava a partir do “não tão recente” curso de formação, do contato,
ainda na sede, com as gerações de agentes mais antigos e do currículo oculto que cada um trazia
consigo.
Me perguntei, introspectivo, o que esses jovens sabiam sobre a dinâmica do trabalho
policial? Sobre o que é ser um agente da lei? Sobre o que é ser um profissional da segurança
pública? Enfim, sobre os questionamentos que davam sentindo a minha pesquisa.
Retomando o foco, retirei da mochila meus materiais de apoio, instalei meus
equipamentos, dei boa tarde e anunciei o início da instrução me apresentando e descrevendo o
36

título da disciplina. De imediato, uma das jovens levantou-se de um salto e, com uma energia
assustadora, ordenou que os demais também levantassem e se prostrassem na posição de sentido,
ou seja, naquela disposição corporal cívica e “rígida” da qual se espera o próximo comando;
típica dos militares.
De forma geral, sempre achei estranho e incômodo uma instituição civil com uma
personalidade profissional militarizada. Não obstante, esse sentimento também era bastante
compartilhado com a turma de agentes em 2008, mas, ainda hoje, desponta como algo de
polêmico no Ethus da Guarda Municipal de Fortaleza. Todavia e segundo meus interlocutores,
nos últimos anos isso havia diminuído substancialmente. Diante da situação, desconfiei da
afirmação, mas não fiz nenhuma objeção a respeito.
Com certa relutância de minha parte, pois por determinação da coordenação do curso
eu não poderia dispensar a cerimônia, a senhorita guarda municipal findou o “ritual” de
apresentação, expôs o relatório verbal de ausências discentes, operou a execução do “brado”
final (urro coletivo e “entusiasmado”, de referência militar, que caracteriza os objetivos daquele
grupo) e ordenou o retorno à posição inicial, preparando todos para a instrução que viria.
Cauteloso com aquela demonstração de força e usando a disciplina de “Técnicas de
Preservação do local de Ocorrência (T.P.O)” para incitar debates sobre as ações policiais ou, no
caso específico, para compreender as expectativas da prática profissional que esses jovens
agentes desenvolveriam no âmbito do trabalho, tomei boa parte do início da aula apenas
conversando com meus interlocutores sobre temas da polícia, ambiguidades e saberes típicos.
Nesse sentido e como uma situação que fluentemente vem tona em um bom diálogo, o
desafio de entender as características que projetam sentindo ao universo policial surgiam nas
falas e nas colocações do debate.
Como um momento de reflexão advento das muitas inquietações sobre a postura
profissional mais adequada, imaginei por um segundo que parte do significado que se projeta
nas práticas policiais parece formular-se, em maior demanda, na tradicionalidade das relações
profissionais. Dito de forma simples, parece coincidir do reconhecimento, por parte das
gerações mais novas, de um “capital policial” que, como sugestão mais evidente, justifica o
modelo de exercício que se pretende espelhar-se.
No mesmo instante, pensei como seria difícil romper com essa matriz formativa mais
convencional, que se fomenta a partir da cultura policialesca, da transmissão de saberes
específicos, das vivências compartilhadas no âmbito do trabalho, mas, também, através de um
conjunto de narrativas fantásticas que, partilhadas entre as gerações, desenvolve um folclore
próprio que orienta, equivocadamente a conduta dos policiais mais jovens.
37

Nesse sentido e embora existam protocolos para a prática e uma celeuma de técnicas e
instrumentos de ação, esse paradigma formativo parece não saber muito o que fazer quando a
situação exige da polícia mais sensibilidade e desenvolve-se no limiar do contato mais íntimo
com as demandas sociais.
De forma geral, tal percepção veio à tona quando me via “bombardeado” por perguntas,
mas ficava sem resposta para a multiplicidade de questões colocadas pelos jovens guardas
municipais que, receosos quanto à aplicabilidade dos saberes que adquiriram no curso de
formação, não sentiam confiança de atuarem junto à população.
As circunstâncias situacionais, inerentes à segurança pública, colocam seus operadores
na dimensão do “sempre inesperado”, o que provoca imprecisão e deslocamento do exercício
profissional para o que chamamos, convencionalmente, de “bom senso”, ou seja, qualquer ação
informal que não provoque maiores prejuízos, sobretudo, para o agente (MUNIZ, 1999).
Outro não e especificamente na Guarda Municipal de Fortaleza, o “não saber o que fazer”
ainda permeia uma crise de identidade que envolve o modelo profissional imediatamente
referenciado, ou seja, aquele que enseja uma matriz de prática ostensiva e reativa ao fenômeno
criminal, distintiva da polícia militar e das forças armadas.
Ainda que a argumentação já esteja bastante desenvolvida, é o conflito ideológico que
mesmo velado sob a narrativa da cooperação profissional, acontece como uma disputa no plano
do discurso e acaba por formular um “complexo de inferioridade” que marca, aparentemente, a
personalidade profissional dessa instituição.
Tal circunstância é percebida em muitos momentos nas falas dos interlocutores ao não
entenderem muito bem o seu papel e o confundirem com as funções dos demais órgãos de
segurança pública, conforme se observa nas falas abaixo:
“[…] (a Guarda Municipal) Tem o papel de controlar, inibir crimes e
ser prestativa a sociedade […]” (COLABORADOR 09, Guarda
Municipal, 37 anos).
“[…] (a Guarda Municipal) É a polícia mais próxima. Assim, com
atuação mais diversa na sociedade. Para a segurança pública, a vejo
como a primeira força de atuação preventiva, coercitiva e combativa da
violência […]” (COLABORADOR 14, Guarda Municipal, 36 anos).
“[…] (a Guarda Municipal faz) O mesmo que a Polícia Militar […]”
(COLABORADOR 15, Guarda Municipal, 31 anos).
“[…] (O papel da Guarda Municipal é o de) Descentralizar a Segurança
Pública, passando do âmbito estadual para o municipal […]”
(COLABORADOR 19, Guarda Municipal, 35 anos).
“[…] Além de proteger e preservar o patrimônio, também tem como
papel fazer valer a lei e a justiça para todos […]” (COLABORADOR
23, Guarda Municipal, 29 anos).
“[…] O papel da Guarda Municipal é também o de proteger a sociedade
na prevenção […]” (COLABORADOR 27, Guarda Municipal, 40 anos).
38

A confusão é promovida, a meu ver, por conta dos arranjos associados ao modelo de
segurança mais clássico, mas também, pela súbita mudança que acompanhou a oferta de
violência na cidade e que exige dos agentes municipais uma postura policial mais “enérgica”;
classicamente adquirida quando se espelha um modelo de segurança reativo. De modo mais
ampliado, penso ainda que pode ser mais um reflexo da violência generalizada, que nos faz
conceber uma sociedade (e por extensão a polícia) cada vez mais punitiva.
Independente da resposta, mas em constante estado de comparação com a polícia militar,
fica evidente que o Ethus policial da Guarda Municipal de Fortaleza permeia o militarismo
característico da instituição sugerida e se constrói a partir dessa matriz, ainda que, ganhando
“cor própria” ao semear uma perspectiva preventiva e reconhecer, a si mesma, como uma
legítima organização de segurança pública, detentora do estatuto de polícia.
Como organização formal, a Guarda Municipal de Fortaleza é dividida em quatro
coordenadorias distintas, mas integradas e complementares. A Coordenadoria de Inspetorias
Cidadãs (COINSP), atuante em toda cidade, que conta com um efetivo de 768 Guardas
Municipais e protege o parque patrimonial, usuários e transeuntes desses logradouros. A
Coordenadoria de Inspetorias Especializadas que opera junto a proteção do meio ambiente, por
intermédio da Inspetoria de Proteção Ambiental; no salvamento de banhistas, por meio da
Inspetoria de salvamento Aquático; na proteção e assistência pedagógica às escolas da rede
municipal, por meio da Inspetoria de Segurança Escolar e no patrulhamento urbano comunitário,
por meio da Inspetoria de Ciclo Patrulhamento. A Coordenadoria de Proteção Comunitária
(COPCOM), onde atuam os Núcleos de Mediação de Conflitos, as Células de Proteção
Comunitárias (“Torres”) e outras ações integradoras e, por fim, a Coordenadoria
Administrativo-Financeira, onde se desenvolve boa parte da gestão e administração
institucional.
A partir de qualquer leitura simples da ordenação acima, fica evidente que a Guarda
Municipal carrega, nos últimos anos, uma preocupação aparente com a categoria cidadania.
Outro não e executando serviços de utilidade social através de núcleos especializados, proteção
e policiamento, com integração com outras forças de segurança e profissionalização constante
de seus membros, a instituição chega ao século XXI como uma alternativa viável ao cenário
violento que desponta na cidade.
Todavia e para além dessa leitura estática de seu desenho institucional, a Guarda
Municipal de Fortaleza assume, na prática, a responsabilidade de atuar como força ostensiva e
preventiva no âmbito do município e supera, em muito, sua prerrogativa normativa e o “desenho
militar” que perpassa sua existência institucional.
39

Em suma e conforme nos orienta Ricardo & Caruso, (2007, p. 107):


[…] o papel (legalista) das guardas está restrito ao policiamento dos
bens, serviços e propriedades públicas. Entretanto, no mundo real as
guardas são acionadas cotidianamente para mediar e administrar
conflitos no espaço público. Seja na escola, na praça, no trânsito, nas
quadras de um bairro, nos corredores comerciais e culturais, os (as)
guardas são exigidos e deles se espera uma “resposta” um
“encaminhamento”, uma “atuação”.

Tal premissa, em muitos momentos, foi vivenciada por mim ao longo dos cinco anos de
trabalho na instituição. De forma geral, a perspectiva normativa era questionada quando tinha
que atuar como “policial municipal” junto à população e a partir de uma rede confusa, mas real
e recorrente, de ações policiais de contato direto com o fenômeno criminal.
Mesmo relutante e numa escala de “12/36” (“doze por trinta e seis”: serviço de doze
horas ininterruptas, com folga de trinta e seis), embarcava quase que diariamente numa viatura
policial caracterizada (institucionalmente ornamentada) e operava um modelo ostensivo de
polícia que atendia aos munícipes, coibia situações suspeitas, bem como perseguia, prendia e
conduzia infratores às delegacias plantonistas.
Todavia, meu cotidiano de trabalho ali sempre experimentou a incerteza de não entender
muito bem o ofício que desempenhava, pois para todos os fins legais, eu exercia uma respectiva
função, mas, na prática, a instituição exigia de mim e dos demais agentes de campo um conjunto
informal de outras práticas policiais que, beirando a ilegalidade, sempre provocou contradições
e constrangimentos.
A “crise de identidade” e o “complexo de inferioridade” em relação às outras
organizações policiais sempre foram questões marcantes e amplamente debatidas nos bastidores
do serviço. Dentro das viaturas, na sede ou nos postos fixos e patrimoniais, os agentes
confessavam o receio de atuar conforme preconizava os setores de comando operacional.
Todavia, “de minha época” até o presente momento, tais nuanças nunca foram realmente
elevadas à condição de problemas institucionais e encaminhadas a gestão, como demandas que
precipitam debates importantes e exigem soluções providenciais.
De repente e como uma percepção mais crítica para aquela situação, me ocorreu que o
desenvolvimento aparente da instituição não tinha acontecido na totalidade daquilo que meu
anfitrião celebrava na recepção. Enfim, era uma questão curiosa que tinha que ser debatida;
pelo menos naquela sala de aula.
Já eram 15:30 e a instrução estava a “pleno vapor”. Tais indagações acabavam vindo à
tona quando, em meio a formação, alguns alunos sempre questionavam o papel profissional da
guarda municipal no combate ao crime e demonstravam descontentamento, incerteza e até
40

confusão quando na expectativa de agir dessa ou daquela forma no âmbito do trabalho.


Infelizmente, as perguntas eram frequentes e exigiam respostas contundentes para além do
conhecimento disponibilizado pela disciplina ofertada naquele momento.
Minha alternativa mais viável, no contexto, era apenas compartilhar vivências
profissionais que pudessem auxiliá-los nessa empreitada, ou seja, era ofertar qualquer
orientação mais substancial que pudesse servir de suporte, já experimentado, para a melhor
decisão ou, pelo menos, para aquela eticamente possível nos muitos cenários que poderiam
surgir.
Confesso que podia sentir o medo que emanava de seus desabafos e uma parada para
reanimar as esperanças, naquele momento, era necessária. Resolvi decretar o “intervalo para o
café”. Sem dúvida, era uma questão de ordem e uma oportunidade de saciar a fome que ainda
me consumia.
Em meio ao lanche e sobre a reflexão, recordei o que li de Ricardo & Caruso (2017, p.
108) e Evangelista (2013, p. 17) ao colocarem, respectivamente, que a personalidade
profissional sempre foi uma questão difícil para as Guardas Municipais porque seus membros:
[…] vivem em permanente tensão com a polícia militar visto não estar
claramente definido o que a guarda municipal pode fazer. Na prática,
todos sabem e exigem que os guardas municipais façam policiamento
preventivo, entretanto, legalmente não possuem “poder de polícia”.
[…] a influência do militarismo dentro das Guardas Municipais
brasileiras é um obstáculo para se criar uma identidade própria, pois,
elas incorporam um modelo policial que já é ultrapassado. Tal
influência é observada dentro da Guarda Municipal de Fortaleza com
modelos de fardamentos, equipamentos, regulamento disciplinar e a
maneira de agir militarizado […] a ausência de regras claras que
regulamentam as atividades da Guarda Municipal de Fortaleza e a
influência do militarismo é observada segundo as ocorrências atendidas
pela mesma […].

Outro não e ainda sobre a temática, Bretas & Morais (2009, p. 160) destacam que as
Guardas Municipais acabaram por internalizarem uma perspectiva clássica de policiamento,
distorcendo, em parte, dos reais objetivos de sua formulação.
Criadas num quadro de busca de alternativas e soluções para os
problemas sociais crescentes, quase sempre ligados à expansão da
violência e do crime, em seus diferentes formatos as guardas repre-
sentam uma tentativa de inovação no quadro das políticas de segurança.
Mas a base que promovia a criação dessa nova força, além das
limitações estabelecidas pela manutenção das atribuições das forças
tradicionais, padecia também da indefinição, que permitia que se
fizessem guardas municipais com os propósitos e métodos os mais
diversos.

Prosseguindo e ampliando o raciocínio disponibilizado a essa instituição, fica evidente


que diante de um rol imenso de atribuições e do leque de interpretações que a noção de “poder”
41

traz a qualquer organização que ostente uma função garantidora de direitos, esse limiar
legislativo impetrado pelo artigo constitucional às guardas municipais iria ser ultrapassado
quando no contato mais íntimo com a sociedade e na efetivação das práticas preventivas
(MUNIZ, 1999).
Tal perspectiva também é desenvolvida na premissa de superação do modelo repressivo
que marca as polícias militares e elege o combate ao crime mais grave como objetivo mais
essencial das políticas de segurança. Todavia e como alternativa possível e viável, desponta na
atualidade um modelo de segurança que ultrapassa tal viés e foi incorporado, pelo menos em
um primeiro momento, às guardas municipais.
Nesse sentido, qualquer leitor mais atento há de convir que os guardas municipais são
policiais “de fato” quando têm que executar, dentro de uma viatura, o serviço de policiamento
municipal e atender, junto a Coordenadoria Integrada de Operação de Segurança (CIOPS), os
mais diferentes tipos de ocorrência, conforme podemos verificar na tabela abaixo construída a
partir dos dados oficiais de ocorrências atendidas pela instituição.

Tabela 1 - Distribuição de algumas ocorrências mais


atendidas pela Guarda Municipal de Fortaleza entre o ano de
2016 e 2020

OCORRÊNCIAS MAIS ATENDIDAS/ANO QUANTIDADES


(TIPOLOGIAS) 2016/2020
OCORRÊNCIAS COM BANHISTAS 608
OCORRÊNCIAS DE APOIO 894
OCORRÊNCIAS DE TRANSITO 841
OUTROS ATENDIMENTOS 462
OCORRÊNCIAS CONTRA O PATRIMÔNIO 596
OCORRÊNCIAS DE MANIFESTAÇÃO PÚBLICA 86
OCORRÊNCIAS CONTRA A PAZ PÚBLICA 138
OCORRÊNCIAS CONTRA A PESSOA 279
OCORRÊNCIAS DE AUXÍLIO AO PÚBLICO 110
OCORRÊNCIAS CONTRA OS COSTUMES 71
OCORRÊNCIAS CONTRA ADM, PÚBLICA 100
OCORRÊNCIAS COM ENTORPECENTES 150
OCORRÊNCIAS CONTRA O MEIO AMBIENTE. 60
OCORRÊNCIAS DE ILÍCITOS PENAIS 62
OCORRÊNCIAS COM PESSOAS PRESAS 33
TOTAL 4.490
Fonte: FORTALEZA/Secretaria de Segurança Cidadã – SESEC. Sistema de
Gerenciamento de Atividades e Ocorrência – ATIVO, com base nos dados da
Coordenadoria Integrada de Operações de Segurança – CIOPS, 2020.

Não obstante e ainda de acordo com o rol de práticas policiais registradas na tabela
acima, a Guarda Municipal de Fortaleza avança nos últimos anos como uma força policial que
abrange uma totalidade de políticas de segurança e responde a diversas demandas localizadas.
42

Outro não e ideologicamente, desenvolve um processo de superação identitária que, quase


sempre, promoveu tensões profissionais com outras instituições de segurança.
Contudo e mesmo relacionada a um padrão de policiamento marcadamente reativo e
essencialmente ostensivo da prática, oriundo de um modelo formativo que sempre buscou
referência no militarismo, a Guarda Municipal de Fortaleza tende a assumir, hoje, uma
personalidade profissional peculiar e até certo ponto parece caminhar a partir de suas próprias
convicções, considerando que a “[…] a cultura (também policial) nunca é transmitida de modo
idêntico, mas deforma-se em função das condições de sua transmissão e da relação social que
se instaura entre o que se sabe e o que (ainda vai) se saber […]” (LAHIRE, 2002, p. 175).
Tal reflexão ganha propriedade quando se observa o orgulho com que seus jovens
agentes projetam as expectativas e possibilidades de sua prática. Mesmo confusos e até receosos,
esses policiais deixam claro que existe um processo de ruptura com o modelo anterior, pois em
muitos momentos, protagonizam uma postura subversiva aos estatutos mais ortodoxos de sua
instituição, sem deixar de expressar a vaidade e o mérito de ter superado um certame público,
de fazerem parte do corpo profissional da guarda municipal e de compartilharem, assim como
meu amigo acolhedor do estacionamento, os feitos e avanços da sua instituição.
Fundamentando a premissa e segundo o Relatório da Transcrição das Fichas Físicas para
o Ambiente Virtual do Sistema ATIVO (Sistema de Gerenciamento de Atividades e
Ocorrências), a guarda municipal realizou nos anos de 2016/2017, 69.308 ações efetivas, ou
seja, produziu resposta as demandas geradas a partir do registro de atividades que exigiu
intervenção prática das equipes moveis ou das guarnições fixas. Dessas, 29.950 foram
contabilizadas como serviço de permanência, ou seja, vigilância preventiva e ostensiva em
instalações ou logradouros públicos e outras 25.125 foram registradas como patrulhamento em
veículos itinerantes pela cidade.
Obedecendo a uma lógica de crescimento e tornando hegemônico o argumento que lhe
concede a condição policial, a Guarda Municipal de Fortaleza contabilizou 78.165 ações
efetivas nos anos de 2018/2019 com jovens servidores recém-formados e egressos do curso de
formação, cuja identidade profissional abraça essa noção mais policialesca, sem destoar, pelo
menos em um primeiro momento, do projeto de segurança cidadã.
Outro não e como expressão reincidente entre os colaboradores da pesquisa, prepondera
uma consciência profissional de fazer parte de uma corporação policial o que, a meu ver, encerra
em parte o debate que colocava a guarda como instituição menor e fora do sistema de segurança
pública.
43

Evidencia-se uma vaidade individual e uma consciência de classe que reverbera o


próprio desenvolvimento da instituição e celebra, ainda que incipientemente e a partir de um
paradigma em construção, uma novíssima identidade profissional no campo da segurança
pública, ou seja, aquela que meu amigo destacou como “polícia municipal”.
Retomando a narrativa, já eram 16:45, havíamos voltado do café há um certo tempo e,
às pressas, desligava e recolhia o equipamento pedagógico. Não atentei para o tempo e recordei,
de súbito, que a instrução ia, impreterivelmente, até as cinco da tarde. Sem demora e
aproveitado os quinze minutos finais, passei a distribuir as fichas da minha pesquisa que, de
imediato, despertou curiosidade e um receio de ser aquilo uma atividade avaliativa da disciplina.
Percebendo o embaraço, dado a ação desorganizada que criei, tratei de explicar o contexto
daquilo e pedi gentilmente que me ajudassem com a pesquisa.
Todavia, percebi que não havia tempo hábil para que todos pudessem responder com
calma os questionamentos que elaborei no papel. Como já colocado nesse capítulo, as enquetes
que justificam esse desafio possuem um caráter subjetivo que exige do pesquisado um
pensamento livre de condicionamentos e, portanto, a ponderação demandaria tempo e atenção;
o que, com certeza, não tínhamos naquele momento final. Todos estavam exaustos e queriam
retornar para suas casas.
Enfim, mudei de estratégia e utilizei os instantes que restavam para apresentar a temática,
explicar a dinâmica da pesquisa, revelar a importância que os colaboradores tinham, bem como
estender a oportunidade de levarem os questionários para casa e com calma textualizarem suas
respostas, me entregando no intervalo de quinze dias. Ocasião em que retornaria a instituição e
recolheria o material.
Às 17:10 a coordenadora do curso surgiu na porta de entrada e mais uma vez me vi
numa risível situação. Com um sorriso largo e um olhar provocador, ela perguntou se a aula já
estava perto do fim, pois precisaria fazer algumas ressalvas e apresentar alguns informes à
turma. Sem dúvida, percebi de imediato que aquilo era um “convite” à minha retirada.
Aproveitando a deixa e escapando de mais um constrangimento que a situação de atraso
me impôs, me despedi da sala, recolhi minha mochila e reforcei, apressadamente, o
compromisso da turma com minha pesquisa.
Sem mais, refiz meu caminho de volta, descendo as quatro rampas e atravessando os
dois andares. No percurso, cumprimentei mais amigos, distribui mais abraços e recordei, com
saudade, mais histórias do “meu tempo de guarda”.
Ressalto que o retorno a guarda municipal revelou certa nostalgia e um sentimento de
orgulho ao contribuir, como docente, para a formação dos jovens guardas municipais e para
44

todo esse movimento histórico e institucional que coloca essa instituição em um novíssimo
momento no sistema de segurança pública, como bem me alertou meu anfitrião inicial.

2.3.2 “A delegacia de polícia é um lugar de desalento”: campo e cotidiano de trabalho na


Delegacia de Capturas e Polinter

Era uma manhã de quarta-feira (16 de Novembro de 2019) e ao iniciar uma singela
conversa na recepção, indaguei a uma colega policial (Escrivã de Polícia Civil, 32 anos de
carreira) sobre seus sentimentos a respeito daquele lugar, ou seja, de como ela percebia aquela
delegacia de polícia e que ideia projetava do trabalho que desenvolvia ali.
Confusa e não compreendendo os reais objetivos da pergunta, ela me interpelou de volta
tentando esclarecer os motivos do questionamento. “[…] Por que você quer saber isso? […]”,
perguntou ela. Insistindo no assunto, esclareci que estava tentando realizar uma pesquisa
acadêmica e gostaria de saber como os profissionais daquela repartição policial compreendiam
a si mesmos e o seu lugar de trabalho.
Já direcionada e entendendo o contexto que lhe foi apresentado, minha amiga não
demorou muito para inquirir se minha curiosidade estaria orientada para uma noção idealizada
de delegacia (e de polícia civil) ou se eu desejaria saber a realidade “nua e crua”, entendida a
partir de sua visão, ou seja, se eu gostaria que ela fosse “politicamente correta” na declaração
ou se, de fato, ela poderia revelar o que sentia, observava e vivia através de seu cotidiano de
trabalho.
Entendendo a pertinência de sua observação preliminar, apenas dei um sorriso e percebi,
como que uma expiação privilegiada naquele momento, as muitas possibilidades que aquela
contestação poderia trazer para minha análise.
De forma geral, minha amiga apenas revelou a ambiguidade característica de uma
delegacia de polícia que, entendida a partir de referências localizadas na cidade de Fortaleza-
CE, funciona como um local de expectativas e de frustrações. Dito de forma simples e a partir
de experiências compartilhadas por esse Policial-Pesquisador, nesse espaço dual existe um
choque de perspectivas que envolvem todos aqueles que na delegacia e da delegacia esperam
algo de reconfortante.
Antes de qualquer compreensão mais abrangente do cenário e das relações sociais que
se desenvolvem ali, é fácil perceber que qualquer delegacia de polícia é um espaço de poder,
ou seja, um território de segurança específico e dinâmico, pois é naturalmente percebida como
uma unidade policial fixa, que objetiva assistir ao público em geral, mas também estabelecer
45

uma base logística para subsidiar operações policiais e promover a detenção temporária de
suspeitos em flagrante delito. Outro não, de forma analítica e como bem preceitua outro amigo
Inspetor de Polícia Civil (13 anos de carreira) “[…] uma delegacia é um órgão público,
responsável por resolver problemas criminais […]”
Todavia e ampliando a reflexão. O público, ou seja, as pessoas comuns do povo,
cidadãos e beneficiários das políticas de segurança no estado, depositam esperança nesse local
e aguardam dele a resolução de suas solicitações, ansiedades e desesperos. Em suma, apenas
almejam suprir expectativas sobre uma infinidade de demandas que, para além da dimensão
normativa, abrange outras de caráter tradicional, subjetivo e, em muitos momentos, informal.
A delegacia é, costumeiramente, um lugar de promessas, fé e esperança para as pessoas
que se deslocam até ela, pois se observa nesses diversificados usos do espaço policial uma
importância significante concedida à crença de que lá, e somente lá, se encontra compreensão
e segurança.
Em parte e a meu ver, essa convicção é apoiada no crédito social depositado na
capacidade dos agentes policiais que, sob uma apreciação geral e antes de juízes, promotores e
outros operadores da justiça (de “maior escalão”), estão mais próximos do povo e são
interpretados como personagens de relevância, com forte poder de intervenção e dotados de
destreza e astúcia. Portanto, capazes de responder, em um primeiro momento, as muitas
emergências do cidadão.
Dito de outra forma, é fácil perceber uma delegacia de polícia como um lugar onde se
pode entrar facilmente, ou seja, como um recorte do Estado de portas abertas em que, mesmo
com certa relutância, os cidadãos acessam de forma casual; sem barreiras econômicas, sociais
ou políticas. As pessoas comuns entendem a delegacia como um espaço aparentemente
democrático, onde podem narrar suas frustrações e serem ouvidos, pois “[…] a experiência
mostra que nem sempre as pessoas querem dar queixas de crimes, mas […] (apenas) relatar
suas histórias e serem ouvidas […]” (BARREIRA; ALMEIDA; BRASIL, 2004, p.171).
Diferente de outras instâncias de justiça e, mesmo ambíguas na sua essência, é
escrachadamente notório o apelo popular que essas repartições possuem junto à sociedade. Em
parte, tal conjuntura existe a partir da ideia que concebe a delegacia de polícia “[...] como um
lugar de ausência de regras rígidas e de trabalho mais livre [...]”, que até obedece a certas
formalidades, mas acontece, em maior demanda, na dimensão do senso comum (BARREIRA;
ALMEIDA; BRASIL, 2004, p.122).
Como policial, é interessante, mas igualmente angustiante, pensar as muitas imagens
que se projetam desses órgãos públicos e dos profissionais que lá trabalham. Destarte, as
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pessoas percebem esses prédios como um lócus de segurança que ultrapassa suas paredes e se
estende, como ideia, até uma circunscrição imaginada nas suas proximidades.
A figura comum de alguém buscando abrigo às portas de uma delegacia fechada quando
sente insegurança, por exemplo, ilustra esse sentimento típico e corriqueiro das pessoas que, de
forma simples, apenas esperam proteção. De forma geral, tal atitude também representa um
significado coletivo a respeito dos agentes de segurança que lá trabalham e que deles se espera,
no mínimo, acolhimento.
Avançando e depois de alguns segundos de “diversão maliciosa”, dado a pergunta
capciosa que ela havia me feito preliminarmente, revelando a impressão velada, mas
característica das delegacias de polícia civil que, não obstante, é sabida e compartilhada por
todos os agentes que lá trabalham e possuem acesso as suas informações, minha amiga acabou
por definir aquele espaço como:
“[…] um lugar de desalento para a população […] um lugar que deveria
servir de refúgio para a sociedade, mas, na verdade, está muito aquém
dessa fantasia […] um lugar onde se prende gente pobre […]
Teoricamente, é onde se dá as investigações de crimes, mas esse índice
de resolução é baixíssimo. A coisa muda de figura quando é um rico que
morre […]”.

Não obstante, a percepção de minha interlocutora reflete o que muitos profissionais da


segurança pública gostariam de dizer e que percebem como comum no âmbito do trabalho, mas
que, por questão ideológica, vaidade profissional ou imposição institucional, não expressam
publicamente. É um cotidiano oculto da condição policial que, embora real, não é admitido e,
por muitos colegas, ainda é negado. Outro não, é preferível o silêncio, ou a dissimulação, à
frágil verdade que deflagra qualquer fracasso profissional na polícia.
Embora carregue a responsabilidade de cumprir mandados de prisão (CAPTURA) e
interaja profissionalmente com outros estados da união nas questões de segurança (Polícia
Interestadual - POLINTER), a Delegacia de Capturas e Polinter (DECAP) também funciona
como um local de desencanto. Localizada no centro da cidade e diferente das demais unidades
de polícia civil, esse espaço é caracterizado por uma convergência de antipatias que ganha
referência no mundo policial, mas também se estende ao universo dos “não policiais”, a partir
de narrativas de sofrimento, dor e angústia.
Embora “sui generis”, dado a sua história e sua especialidade, a DECAP carrega no seu
ordenamento uma gestão que representa parte circunstancial da própria polícia civil no estado,
quando tem que lidar com um inconveniente deslocamento de função e atuar, como uma
“polícia penal”, na administração carcerária de suas instalações. Não obstante e ainda que em
47

menor escala, esse cenário também se reproduz em outras unidades; mas aqui e em virtude da
demanda, tal situação se propaga em números alarmantes.
Local de intensa movimentação, essa delegacia destaca-se na instituição como uma
entidade que, “mais cedo ou mais tarde”, acaba por obrigar todos os outros policiais a se
deslocarem até ela, escoltando pessoas presas ou para resolver situações diversas do trabalho.
Oportunidade em que aplico minha pesquisa e em que amplio, substancialmente, meu
entendimento acerca dos sujeitos que se reconhecem policiais civis.
Nessas ocasiões, a DECAP se torna um celeiro de muitos rostos e formas de pensar a
segurança. A celeuma de opiniões e as muitas conversas que emergem de seus corredores é
como um mosaico dinâmico que reedita a polícia e suas ideologias. Tais momentos despontam
como oportunidades valiosas para o desenvolvimento dessa pesquisa porque, longe do público,
os sujeitos policiais se permitem elaborar uma autorreflexão sobre suas práticas e seus saberes.
De forma geral, existe uma centralização evidente nesse espaço por figurar como uma
delegacia que absorve, sobretudo na atualidade, a totalidade dos presos provisórios e a
diversidade de contextos que essas prisões acarretam, o que, outrora, era igualmente distribuído
nas demais delegacias plantonistas e nas da região metropolitana.
Dando voz a um amigo de trabalho (INSPETOR DE POLÍCIA CIVIL, 13 anos de
carreira) com “dez anos de casa” (dez anos de experiência na repartição), pode-se dizer que a
Delegacia de Capturas “[…] é um local muito ‘carregado’ […] por aqui (lá) passa todo tipo de
pessoa e, com elas, todo tipo de sentimento […] tem muita maldade aqui (lá) […]”.
Consubstanciando com o depoimento do colega e na condição de alguém que também trabalha
no local, testemunhei (direto e indiretamente) muitos episódios de tormento que, em casos
extremos, desencadearam vítimas fatais.
Entre desafetos, brigas, homicídios e até suicídios, a DECAP é estigmatizada como local
de terror e medo, pois é capaz de suscitar receio no mais corajoso dos sujeitos que, por força
das circunstâncias, é obrigado a deter-se ali e aguardar autorização para o deslocamento.
Diferente de outras unidades prisionais, aqui não existe nenhum plano de ação contundente ou
qualquer repartição adequada dos internos. Em verdade, também nunca houve nenhum projeto
nesse sentido e, salvo algumas reformas estruturais, muito pouco se fez ao longo dos anos.
Com a exceção de categorias bem específicas, os quase cento e cinquenta prisioneiros
(média diária) compartilham quinze xadrezes de aproximadamente 15 m² e comungam de um
convívio forçado pelo cárcere que impõe a necessidade de regras paralelas, não formais e
marginais, mas que subsidiam uma atmosfera de respeito entre os detentos e entre esses e os
policiais. Estimar a história de cada homem ou mulher que entra na detenção, não depreciar,
48

independente da “ideologia faccional” (Comando Vermelho 11 ou Guardiões do Estado 12),


qualquer manifestação de fé ou simplesmente retirar os calçados ao entrar na cela, por exemplo,
são normas sociais de boa convivência que, observadas por esse Policial-Pesquisador, tecem o
“dia a dia” naquele espaço prisional e ajudam a garantir a segurança.
Ao longo de sua existência, essa unidade de polícia civil passou a projetar-se no
imaginário da cultura policial cearense como um lugar profano, insalubre e nefasto, onde
criminosos e policiais, grupos antagônicos, comungam de um mesmo processo de
estigmatização advento da vigilância e da punição.
Destarte, o primeiro grupo, ou seja, as pessoas em situação de cárcere, convergem para
esse lugar por imposição do rito policial propriamente dito. De forma geral, são apenas
instrumentos do procedimento penal que os obriga a fazer “pouso” nesse espaço quando no
aguardo da audiência de custódia13ou esperando autorização de transferência para o sistema
penal. Não obstante e como testemunha desses casos, recordo de prazos absurdos onde detentos
aguardaram mais de dois anos para deslocarem-se até uma unidade prisional adequada.
Prosseguindo e quanto ao segundo grupo, posso afirmar que, de forma recorrente, os
policiais civis “ganham lotação” nessa repartição a contragosto, como uma obrigação imposta
pela hierarquia ou como uma mácula de conduta que faz desses profissionais sujeitos propensos
a repreensão administrativa. Tradicionalmente, a Delegacia de Capturas acaba se tornando a
delegacia mais sugerida para policiais em processo de investigação interna (ainda não
afastados), insubordinados ou marginalizados pela gestão.
Sem o risco de proferir qualquer opinião mais exagerada, afirmo que essa delegacia é
percebida como um “espaço maldito”, um lugar de punição para profissionais subversivos e um
local de “morte social” para indivíduos marginais que, “[…] não se adéquam a uma sociedade
organizada e cheia de regras […]”. Não obstante, esse espaço prisional retarda o tempo e
designa aos seus “hóspedes” uma falta de perspectiva, típica do cárcere (VALE & MACIEL,
2016, p. 6).

11
Comando Vermelho Rogério Lemgruber (Comando Vermelho - CV), é uma das maiores organizações
criminosas do Brasil. Foi criada em 1979, na Prisão Cândido Mendes, Rio de Janeiro. (VER: AMORIM, C.
CV-PCC: a irmandade do crime. 4 ed. Rio de Janeiro: Record, 2004).
12
Guardiões do Estado (G.D.E) é uma facção criminosa originária da cidade de Fortaleza. É considerada a terceira
maior organização do Estado do Ceará. Estima-se que o grupo tenha cerca de 600 filiados nos presídios
cearenses, e disputa território com o Comando Vermelho (VER: Diário do Nordeste. “Facções avançam e
travam guerra no Ceará”. 16 de Junho de 2017. Acessado em 09 de outubro de 2017).
13
A audiência de custódia consiste na condução do preso, sem demora (em até 24 horas), à presença de uma
autoridade judicial para fins de apreciação de sua prisão (averiguar a legalidade do flagrante e da conduta dos
policiais).
49

Todavia e para os demais servidores que não se encaixam nesses modelos, mas que
prestam serviço no local, resta apenas a conformação da infâmia de serem confundidos, a todo
o momento, com os tipos descritos. Outro não, tal situação é um reflexo evidente da
representação social que é construída para a DECAP no âmbito da polícia civil e que a descreve
como um local “herético”, “demonizado” e de “má reputação”. Para onde converge tudo aquilo
que diverge do padrão e que impede o funcionamento esperado e desejado nas demais
delegacias de polícia.
Revelando um cotidiano censurado, posso afirmar que apenas em raríssimos casos os
profissionais dessa instituição optam livremente por trabalhar nessa repartição. Ao contrário e
como resultado de um descrédito profissional empreendido, em parte pela lógica funcional
imposta pela gestão, os policiais constroem um estigma 14 à imposição de executarem uma
atividade reconhecidamente menor e que envolve, em muitos momentos, a rejeição de
proximidade com os sujeitos encarcerados e estabelecer, também com eles, qualquer tipo de
vínculo.
Durante todo o horário de trabalho, os profissionais, fixos (“policiais permanentes”:
aqueles que executam suas funções dentro da delegacia) ou itinerantes (“policiais de campo ou
de expediente”: aqueles que executam suas funções fora da delegacia; em deslocamento),
executam a função de custodiar ou escoltar pessoas em situação de cárcere.
Em suma, essa é uma atividade desagradável e desqualificada que, rotulada como um
serviço ultrajante, apenas atrapalha o real ofício da polícia judiciária, ou seja, aquele que diz
respeito à nobre e prestigiada competência de investigar crimes. Nesse sentido e como uma
marca proveniente de sua função, a DECAP acaba por simbolizar tudo aquilo que mais se
despreza e se omite na cultura profissional da polícia civil.
Pensando essa distinção e recordando o que outro colega de trabalho colocou sobre a
questão, a Delegacia de Capturas e Polinter é, genericamente, um lugar ruim, ou seja, um espaço
estigmatizado e estigmatizante daqueles que nela desenvolvem suas funções ou simplesmente
lá estão por sujeição jurisdicional. Em suma e segundo ele, nossa delegacia “[…] é
simplesmente um mal necessário […]”, ou seja, um lugar “[…] para onde todos os problemas
convergem […] um atraso […] um lugar de aflição […]” (INSPETOR DE POLÍCIA CIVIL, 6
anos de carreira).

14
Dentro da cultura profissional da Polícia Civil, o trabalho de custodiar presos provisórios dentro das delegacias
de polícia, sempre foi mal visto pelos agentes. Considerado como um trabalho indigno, sempre provocou
resignação.
50

Com liberdade para se expressar, meu companheiro de profissão apenas projetou sentido
na classificação geral que recebeu de seu lugar de trabalho e expôs o que Goffman (2004)
colocou como condição de inferioridade, ou seja, como um aspecto proveniente da repartição
entre o que é notoriamente adequado e aquilo que é reconhecidamente diferente e menor,
produzindo, com isso, um estigma social. Segundo o autor (GOFFMAN, 2004, p. 4), tal
condição é definida “[…] enquanto marca ou sinal que designa o seu portador como
desqualificado ou menos valorizado […]” é ainda, na sua visão, “[…] a situação do indivíduo
que está inabilitado para aceitação social plena […]”. Ampliando a questão, Goffman (2004, p.
5) também coloca que “[…] os ambientes sociais estabelecem as categorias de pessoas que têm
probabilidade de serem neles encontradas […]”. Nesse sentido, podemos imaginar que tal
situação estigmatizante manifesta-se na DECAP e, como já colocado no texto, parece se
propagar nos seus servidores.
Resgatando a apresentação da sessão e avançando no relato do campo, já estamos na
quinta feira (17 de Novembro de 2019) e hoje é dia de “bonde” (escolta policial para o centro
de triagem prisional). O ambiente na delegacia é caracterizado pelo “corre-corre” típico desses
episódios semanais e tanto os policiais, como os detentos, estão agitados e ansiosos aguardando
a “lista da SEJUS (lista de detentos escolhidos para recambiamento ao Centro de Triagem
Carcerária – CTC, segundo a Secretaria de Justiça e Cidadania)”. Nesse dia, o movimento é
aparentemente caótico. Os arranjos, ajustes e reparos que subsidiam a execução da respectiva
“missão” tornam-se mais evidentes e revelam uma informalidade tensa e constrangedora para
os agentes da lei.
Outro não e como colocado no texto, essa tão esperada “lista de vagas” é um documento
que elenca a quantidade de pessoas presas, custodiadas na delegacia, que serão recambiadas
para o sistema prisional. De forma geral, esse catálogo é uma relação que qualifica esse ou
aquele sujeito, a partir do “teor criminal” e de outros critérios sociais para, enfim, “descer” (se
deslocar) para a uma unidade prisional adequada.
Nesse sentindo, a expectativa de ser escolhido percorre todos os xadrezes da delegacia
e se estende aos outros compartimentos, como um segredo que, guardado a “sete chaves”, revela
o destino de muitos homens e determina os protocolos de ação que serão estabelecidos a partir
de então. Para os policiais, é impossível esconder a satisfação de esvaziar a delegacia e de se
“livrar” da responsabilidade de custodiar os detentos, embora esse deleite seja efêmero e finde
no próximo expediente de serviço, quando novos detentos preenchem as vagas deixadas pelos
que saíram.
51

Todavia e para alguns sujeitos encarcerados, esse papel representa um símbolo de


esperança e oportuniza o acesso a direitos que, no estado do Ceará, somente são concedidos a
partir desse movimento e na condição de “internos” do sistema penitenciário. O acesso a
cuidados médicos, prerrogativa de visitas, assistência social, amparo jurídico e outras condições
importantes da política de ressocialização no estado, acontecem quando o detento é transferido
da delegacia e é acolhido pela Secretaria de Administração Penitenciária (SAP). Em qualquer
outra situação, tais benefícios são negociados informalmente ou negados sob o discurso da falta
de logística ou por entender que tais ações configuram um demérito para a função policial
propriamente dita.
Prosseguindo e para outros detentos, esse inventário é assustador. Estar com o nome na
lista significa sair de uma situação ruim e decair para outra ainda pior. Para estes, deslocar-se
para o presídio é uma circunstância que não desejariam em momento algum, pois estar lá quer
dizer um reconhecimento formal da condição criminal que carregam como mácula. Dito de
outra forma e para esses sujeitos, a delegacia ainda é um lugar de prestígio e esperança,
enquanto o presídio é, sem dúvida, um lugar de “bandido”, ou seja, é um espaço prisional onde
se assume coercitivamente uma identidade estigmatizada (BECKER, 2008; GOFFMAN, 2004;
MISSE, 1996).
Sobre a questão, Onofre (2010) explica que é no presídio que o indivíduo perde sua
identidade por completo, pois em virtude da disciplina, da restrição de liberdade e da gestão
prisional sobre o corpo, constrói-se sobre os sujeitos encarcerados um “calabouço” psicológico
que os transformam em homens incompletos, incapazes de exercer qualquer arbítrio.
Projeta-se sobre eles uma segregação que os excluem do seu lugar de origem por não
mais partilharem um mesmo “modo de ser” e terem que, por questão de interação, introjetar
outro panorama que, muito corriqueiramente, possui um caráter ainda mais marginal. Nesse
sentido, a prisão “[…] em vez de devolver à liberdade indivíduos corrigidos, espalha, na
população, delinquentes (ainda mais) perigosos […]” (FOUCAULT, 1987 p. 221)
Retomando a narrativa e depois de superada a parte preparatória, às 14:45 a escolta
policial já estava quase pronta para partir em direção ao Complexo Penitenciário de Itaitinga-
CE (Região Metropolitana de Fortaleza). Na ocasião, a “lista” da SEJUS escolheu cerca de
cinquenta detentos que, depois de algemados e sob a orientação do policial, iam se enfileirando
na parte traseira do ônibus carcerário. Um a um, os sujeitos descem as escadas que separam os
xadrezes superiores e avançam pela delegacia até a parte exterior, ou seja, até a rua de acesso
onde os veículos da escolta aguardavam o embarque.
52

Do lado de fora, o cenário é de “guerra” e de preocupação. Além das três viaturas que
protegem o coletivo oficial, cerca de seis policiais, bem armados e tensos, estabelecem um
espaço de isolamento entre os familiares que aguardam ansiosamente notícias de seus parentes
e os sujeitos encarcerados que, numa fração de segundos e sob o comando dos profissionais,
apressam-se em subir a bordo.
Outro não, cabe destacar que a atmosfera de pranto familiar e o improviso com que esse
empreendimento é tocado, são reveladores da condição negligente com que essas ações são
impostas e estabelecidas pelo Estado. Sem contato com a família, os detentos apenas trocam,
aos gritos e já dentro do ônibus, palavras de conforto e resiliência com suas mães, irmãos,
esposas e filhos e, os policiais, sem melhores opções, esbravejam palavras de ordem e impõem
sua autoridade que, de certa forma, acontece de forma descoordenada e a mercê de qualquer
retaliação criminal aberta, resgate de detento ou conflito armado que colocaria todos ao redor
em perigo de morte.
A verdade inapropriada é que:
[…] Na maioria das vezes, a assimilação das funções policiais são
simplesmente obedecidas ou “levadas a cabo” conforme o desenrolar
do “dia a dia”. Na prática, tais princípios democráticos entram em
choque com a demanda por mais segurança e diminuição das taxas de
criminalidade, como também com a “cultura policialesca” que
predomina nas corporações (BARREIRA; ALMEIDA; BRASIL, 2004,
p. 120).

Correndo o risco de exageros literais, mas parafraseando George Eliot (Mary Ann
Evans)15 ao observar o lamento das pessoas pelo retrovisor da viatura e o olhar apreensivo do
amigo inspetor que compartilhava um dos veículos comigo, é realmente triste perceber que “[…]
Em cada despedida existe realmente uma imagem da morte […]”.
A reflexão descrita traz consigo a evidência de que toda escolta policial é um episódio
de desalento para os familiares, mas também para os policiais que, angustiados e com medo,
são obrigados pelo contexto profissional a arriscarem suas vidas. Esses sujeitos experimentam
a ambiguidade de terem um emprego público que lhes garante estabilidade financeira, mas a
contrassenso, vivenciam o temor de exercerem funções inseguras, a mercê de um cotidiano de
risco.
As muitas situações de despedida que provoquei e presenciei no âmbito do trabalho,
além de outros episódios de agonia que marcaram e marcam minha trajetória na DECAP,

15
George Eliot era o pseudônimo de Mary Ann Evans (22 de novembro de 1819 a 22 de dezembro de 1880). Foi
uma romancista autodidata britânica. Usava um nome masculino para que seus trabalhos fossem levados a
sério. À época, outras autoras publicavam trabalhos sob seus verdadeiros nomes, porém, Eliot queria escapar
de estereótipos que ditavam que mulheres só escreviam romances leves.
53

justificam os desabafos das pessoas que colaboraram com essa análise, mas também a
percepção de um campo de pesquisa repleto de possibilidades onde as vozes dos sujeitos
responsáveis por aquele domínio podem relevar incontáveis verdades sobre a polícia.
Embora necessário, desnaturalizar metodologicamente essa atmosfera incômoda não foi
um desafio fácil de ser alcançado, pois “[…] as vezes seu coração pode não estar onde a ocasião
social exige que esteja […]” (GOFFMAN, 2010, p. 47). De forma geral, careceu de bastante
desconexão, mas também de mediação acadêmica, sistematização, foco e retorno (dado minha
obrigação profissional). Olhar meus interlocutores de perto e partilhar com eles as ações que
desenvolvemos no cotidiano de trabalho, foi um uma experiência única e sensível, que não teria
sido compreendida dessa forma se eu não tivesse o amparo bibliográfico que subsidiou esse
estudo.
Sem mais e ao final daquela jornada de trabalho, tudo que mais queria era guardar minha
arma e retornar para a minha família; desejo compartilhado por boa parte dos colegas policiais
que prestaram serviço comigo naquele dia.
Não obstante, reverbero o que outro colega de trabalho (INSPETOR DE POLÍCIA
CIVIL, 35 anos de carreira) disse a respeito da delegacia, naquela mesma ocasião. Disfarçando
o desanimo e com um sorriso cansado, ele colocou: “[…] No próximo mês eu me livro disso,
entro de férias; definitivamente, a energia na DECAP não é boa […]”. Devolvendo o sorriso
sem graça e confrontando sua intenção, eu respondi de volta: “[…] Infelizmente, nos vemos
amanhã amigo. Aqui, somos todos cativos […]”.

2.3.3 “Um civil no quartel”: recepção, impressões do campo e contato com os policiais
militares na 3ªCIA/5ºBPM

(Resolução Nº 13, de 24 de maio de 1835)

Eu, José Mariano de Alencar, Presidente da Província do Ceará. Faço


saber a todos os seus habitantes, que a Assembleia Legislativa Provin-
cial Decretou, e eu Sanciono a Ley Seguinte:
Art. 1° A Força Policial, no futuro ano financeiro, constará de
primeiro, segundo e terceiro Comandantes; um primeiro Sargento, dois
Segundos; um ferriel, dez cabos, oitenta e um Guardas, e dois Cornetas,
vencendo todas as Praças os soldos, que se acham marcados, e hora
vencem.
(HOLANDA, 1987)

No ápice dos seus 186 anos e com quase dezoito mil agentes, a Polícia Militar do Ceará
(PMCE) é uma força de segurança auxiliar do Exército que, subordinada ao gabinete do
54

governador, assume o papel de maior protagonista, no território cearense, da política de


segurança pública.
Como bem preceitua Sá (2002, p. 29):
[…] a PMCE, cujas atribuições são definidas legalmente pelos
conceitos de policiamento ostensivo e preservação da ordem pública, é
uma organização policial, cujos mecanismos de promoção do seu meio
social interno são, à semelhança da estrutura de poder do Exército, de
natureza hierárquica e disciplinar […]

Diferente das demais organizações de segurança analisadas nessa pesquisa, a polícia


militar possui uma gestão multifacetada e compreende um conjunto de operações que divide,
sua complexa estrutura, numa rede intricada de práticas e fazeres que se expande, em grande
escala, pelo estado. Sem qualquer receio literal, posso afirmar que é a polícia propriamente dita.
Nesse sentido e não sendo capaz de analisar em profundidade essa totalidade de
perspectivas, me atenho a descrever os desdobramentos que sucederam minha primeira visita à
“Terceira Companhia do Quinto Batalhão de Polícia Militar (3ªCIA/5ºBPM)”, que serviu de
campo para aplicação da pesquisa e subsidiou, em parte, as análises desse desafio acadêmico.
Também como uma questão importante no momento, dado a minha escolha
metodológica (observação participante), confesso que na condição de policial civil o contato
com os policiais militares nem sempre acontece de modo amistoso na totalidade da interação.
Tal situação dificultou, já em um primeiro momento, uma leitura mais substancial do cotidiano
daquele espaço e qualquer percepção mais profunda dos sujeitos que analisei.
Como bem nos explica Gil (2008, p. 104):
Numa comunidade rigidamente estratificada, o pesquisador, identifi-
cado com determinado estrato social, poderá experimentar grandes di-
ficuldades ao tentar penetrarem outros estratos. Mesmo quando o pes-
quisador consegue transpor as barreiras sociais de uma camada a outra,
sua participação poderá ser diminuída pela desconfiança, o que implica
limitações na qualidade das informações obtidas.

De maneira geral e desde o primeiro momento, percebi que tal situação de conflito
institucional reflete certo embate tradicional que permeia o universo da polícia cearense há
décadas e repercute, ainda hoje, num conflito ideológico que marca a relação que se estabelece
entre nós (policiais civis) e eles (policiais militares).
Historicamente, sobre a questão, Barreira, Abreu e Brasil (2004, p.77) colocam que:
[…] a PM e a PC no Ceará não tinham, em sua história recente, grande
tradição de colaboração e trabalho harmônico […] Não foi raro
encontrar rusgas entre PMs e PCs, ambos disputando espaços de poder
e autoridade, tanto na capital quanto noutros municípios do estado. Na
capital, PMs faziam prisões e queriam que os delegados fizessem o
flagrante e estes, às vezes, se recusavam (por motivos legais), fato que
engendrava conflitos entre as partes. No restante do estado, o mais
comum era encontrar em pequenas cidades um oficial da PM (e por
55

vezes um sargento ou mesmo um cabo) ocupando o lugar do delegado


de polícia. Os PCs, claro, não ficavam satisfeitos com essa usurpação
de poderes […].

Nesse sentido, me identificar como policial civil e ser selecionado, por uma instância
maior, para ministrar uma orientação sobre segurança pública dentro de um estabelecimento
militar, me colocaria numa condição de concorrência que, mais cedo ou mais tarde, produziria
um efeito divergente e acarretaria em certa hostilidade.
Nesse sentido, qualquer embate de valores não seria mera coincidência, mas apenas
revelaria um pouco mais dos imponderáveis que marcam o universo da segurança pública e que
não são acessados pelo público em geral.
Em parte, imaginando um respectivo sistema de poder para o mundo da segurança
pública e ampliando esse entendimento para o plano do discurso (rede de enunciados), o que
me parece acontecer é uma disputa de panoramas profissionais que coopta dois modelos
distintos e que, até certo ponto, atuam de modo antagônico em virtude dos resultados e das
funções estabelecidas pelo Art. 144 da C/F-1998.
De um lado, se encontra a polícia militar, que reivindica a superioridade do seu padrão
de policiamento, argumentando resultados imediatos quando no combate aberto e direto à
criminalidade a partir de estratégias reativas (abordagem) e preventivas (vigilância);
caracterizando um tipo ostensivo de panorama policial.
Do outro, encontra-se a polícia civil que, imbuída da função investigativa, argumenta
que suas ações, de médio e longo prazo, alcançam desfechos mais robustos, pois com um
inquérito16 bem elaborado, a justiça pode seguir seu curso natural e os criminosos são punidos
na “forma da lei” (conforme preconiza a legislação penal e a polícia judiciária).
Dito de forma simples, me parece tão somente uma rivalidade de saberes policiais que
apenas elabora, de forma dual, etnocentrismo e estereótipos para ambas as corporações
(FOUCAULT, 1997). Ilustrando a reflexão, recordo-me de um antigo companheiro de trabalho
(policial civil) que, de forma hostil e costumeiramente, referia-se aos agentes militares como
policiais de “pé preto”, fazendo referência jocosa aos calçados tipo “coturno” (botas militares)
que completavam o fardamento obrigatório. Por outro lado, também evoco as muitas situações
em que, na companhia de amigos militares e em contextos informais (fora do serviço oficial),
escutei expressões de referência aos policias civis que, no mínimo, seriam consideradas

16
O inquérito é um procedimento policial previsto no Código de Processo Penal Brasileiro.
56

inadequadas quando no exercício profissional propriamente dito. “Preguiçoso,” “Desleixado”


e “Indisciplinado” eram os adjetivos mais brandos naquelas ocasiões.
Não obstante e para qualquer esclarecimento mais substancial, ressalto que ambos os
modelos são compartilhados na prática e que, no estado do Ceará, tanto a “civil” quanto a
“militar”, executam um policiamento marcadamente improvisado a qualquer situação que
desponta no momento. Nesse sentido, é comum uma “invadir” a seara da outra. A PM tende a
investigar (sobretudo através da COIN) e, a PC, a organizar equipes de patrulhamento urbano
(Grupos de Apoio) e atuar em ações de combate tático e intervenções tipicamente militares, por
exemplo.
[…] Ainda na capital, muitos PMs faziam trabalho de polícia
investigativa (reservada aos PCs), sobretudo os da P2 da PM (“Segunda
Seção”) e cobravam dos delegados que levassem em conta o resultado
das investigações feitas por eles […] (BARREIRA; ABREU; BRASIL,
2004, p. 77)

Avançando no tópico e destacando um outro ponto relevante na pesquisa que, em parte,


é também condição da falta de proximidade institucional e das dificuldades em pesquisar a
polícia militar no estado do Ceará, ressalta-se que boa parte da amostragem pesquisada naquele
quartel (os homens e mulheres que formalmente responderam meus questionamentos em sala
de aula) não pode ser classificada legalmente como operadora de segurança pública na sua
totalidade.
De forma geral, os sujeitos a que tive acesso ainda eram meros candidatos ao cargo de
soldado e estavam em formação. Evidentemente, não possuíam naquele momento um Ethus
profissional já consolidado por experiências da prática e não poderiam ser reconhecidos
publicamente como policiais. Portanto, tal condição deve ser pontuada com honestidade nesse
tópico e destacada como um aspecto importante do seu desenho metodológico.
Todavia e como uma realidade percebida no campo, os colaboradores da pesquisa
partilhavam intensamente da cultura policial quando no contato mais íntimo com os agentes em
exercício que, abrigando-se naquele espaço profissional (nos horários de intervalo ou nas trocas
de equipe), narravam suas vivências diárias e aquelas de maior destaque que, comumente,
transformavam-se em narrativas fantásticas; tecendo, já em um primeiro momento, os discursos
policiais e condicionando a formação dos operadores mais jovens através de saberes tracionais.
Nesse sentido e mesmo de forma incipiente, em meio as “rodinhas de conversa” e as
informalidades e formalidades do processo de formação, posso afirmar que os sujeitos
pesquisados puderam contribuir com riqueza de detalhes para esse empreendimento acadêmico,
57

pois cambiaram comigo singularidades que levaram até o final do curso e que, provavelmente,
invocaram quando no desempenho profissional mais atual.
Deixando o leitor ciente dessas distinções e prosseguindo com a descrição das
experiências do campo, inicio meu relato com o pressuposto de atuar como docente pela
Academia Estadual de Segurança Pública (AESP) e me deslocando até o bairro Pirambú
(Fortaleza-CE), nas imediações da “Praia da Barra”, onde localiza-se a 3ªCIA/5ºBPM.
Naquele contexto, aquela unidade de polícia era uma das sedes do curso de formação
para o provimento do cargo de soldado; concurso que aconteceu no final de 2017 e que se
estendeu até 2018. Não obstante, aquela viagem seria a primeira de outras nove que totalizaram
dezoito horas de instrução na disciplina de “Sociedade, Ética e Cidadania”; exigência formativa
da Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) para os estados.
Era uma manhã de segunda feira (15 de Janeiro de 2018) e, como de costume, pilotava
apressado minha motocicleta pelas ruas da cidade. Em direção à Barra do Ceará, “de boca em
boca”, parando e perguntando aos moradores locais, acabei chegando até meu destino que, de
imediato e no alto de uma ladeira, não me pareceria uma edificação tipicamente militar se não
fossem as viaturas estacionadas no pátio e o “entra e saí” contínuo dos agentes fardados.
Meio deslocado, por não saber exatamente como me comportar naquele local, conduzi
cauteloso meu veículo até o pátio de entrada, mas sem estacar (porque estranhei não haver
nenhum veículo civil no local), me identifiquei e pedi informação a um policial que parecia sair
do serviço. Sem titubear, ele me orientou a deixar a motocicleta ali mesmo, pois não havia
nenhuma restrição oficial e ninguém ousaria “levar” (furtar) meu veículo.
Aceitando o conselho, estacionei e desliguei o motor. Sem saber de que modo seria
acolhido e como uma estratégia providencial naquele momento, recolhi na mochila meu
distintivo policial e caminhei até o rol de entrada com ele “pendurado” no pescoço. Achei que
me expressar através daquele “ornamento identificador” (símbolo de poder e autoridade
policial), seria melhor do que chegar sem nenhum reconhecimento policialesco no primeiro
contato formal dentro do recinto.
Imaginei também que, pior do que ser um policial civil na caserna é ser um civil, “não
policial”, que também objetiva transmitir saberes que não celebram a deontologia militar, ou
que, mesmo possível, lance qualquer crítica a um estatuto “sagrado” da polícia militar.
Classicamente, a PM tende a resistir qualquer perspectiva formativa de terceiros, não detentores
da condição policial e que portam, segundo eles, qualquer conhecimento subversivo (MUNIZ,
1999; SÁ, 2002). Pensando dessa forma, manter o artifício me parecia fundamental para o
acesso.
58

Para minha satisfação, minha artimanha pareceu ter produzido resultado quando na
entrada e observando a insígnia uma policial perguntou respeitosamente como poderia me
ajudar. De pronto, devolvi o tratamento e contextualizei a minha ida até aquele local;
identificando-me e explicando que ministraria uma disciplina aos candidatos do concurso.
Contudo e para minha surpresa, ela revelou que não tinha nenhuma informação a
respeito, mas que, para mais esclarecimentos, interfonaria para a sala do oficial responsável e
perguntaria sobre a tal instrução. Confuso, pois minhas instruções eram claras e viam da própria
coordenação pedagógica da AESP, aguardei ansioso o desfecho do telefonema e, nesse meio
tempo, pude observar, ainda da recepção, as dependências daquele quartel de polícia.
Não muito diferente de qualquer outra repartição pública, o lugar era pequeno e
aparentemente retangular, existia como um conjunto de corredores e ostentava cerca de dez
salas estrategicamente localizadas e muito bem identificadas. Observei de longe a sala do
comandante, a sala do subcomandante, os alojamentos, a copa, setores administrativos, o
auditório e outras dependências.
Também a semelhança de qualquer edificação eminentemente policial, a “correria”
apressada dos agentes era algo que marcava o lugar com uma energia vibrante. Como se algo
estivesse impulsionando a todo instante aquela atmosfera caótica, nem consigo lembrar de
quantos policiais me deram bom dia enquanto saiam ou chegavam para o trabalho.
Sem muito esforço, imediatamente recordei de minha delegacia e furtivamente sorrindo
refleti que lá, ou ali, a segurança pública tinha algo de “aparentemente urgente”, mas ainda era
marcada por certa desorganização explícita de sua prática e pelo “corre-corre” frenético e
perturbador de seus operadores.
Ainda exercitando minha “imaginação sociológica”, fui despertado pela “P-fem” 17do
balcão que, colocando o telefone no gancho, me orientou a entrar e aguardar na frente do
auditório. Segundo ela, o oficial comandante confirmou a instrução, mas antes, iria me atender
lá, pois gostaria de fazer alguns esclarecimentos.
Apreensivo, mas sem fazer qualquer objeção, pedi licença e me desloquei até o local.
Enquanto avançava em direção ao auditório, acabei encontrando um recente colega de estudo
(do curso de Especialização em Direitos Humanos, Cidadania e Segurança Pública) 18 e que, a
julgar pelas insígnias que ostentava no ombro da farda, ocupava qualquer cargo de destaque
naquela repartição, pois aparentava ser um oficial de alto escalão.

17
Expressão policial (jargão) utilizada para designar policiais militares do sexo feminino.
18
Curso lato senso ofertado pela Universidade Federal do Ceará (UFC) em parceria com a Secretaria Nacional
de Segurança (SENASP).
59

Não obstante, meu amigo não demorou muito a me cumprimentar e a expressar


contentamento com a minha presença ali. Em retribuição espontânea, também apresentei
minhas felicitações e, entusiasmado, lhe contei rapidamente os motivos de minha visita. Mas
também alertei que precisaria estar na presença do oficial comandante dentro de alguns
segundos e tinha que me apressar.
Retrucando, ele apenas pediu calma e que tomaria para si a responsabilidade de falar
com o tal gestor. De imediato, sacou o celular e discou, de repente, parecia falar com o oficial
superior. Sorrindo, relatou ao telefone que conhecia o instrutor (eu) e que seu interlocutor não
precisaria se preocupar; pois estava tudo sob controle: o tal “inspetor da civil (eu)” era “TAJ”19.
Naquele instante, percebi que minhas “ressalvas institucionais” tinham uma razão de ser
e que não eram mera imaginação de minha parte. Mesmo velado sob o véu da formalidade
pedagógica, minha presença ali provocava certa reprovação da gestão e a situação que se
estabeleceu, após o telefonema, foi de embaraço para ambos.
Todavia, depois de alguns minutos de conversa, meu amigo me conduziu até o auditório
onde os alunos já aguardavam sentados para a instrução. Ao entrarmos na sala e de um salto, os
jovens candidatos ao cargo de soldado levantaram-se e se puseram na “posição de sentido”
(condição semelhante àquela relatada na Guarda Municipal).
Sem muita cerimônia, meu anfitrião ordenou que ficassem à vontade e retornassem aos
assentos. Sem mais, ele me apresentou, pediu comprometimento e exaltou meu currículo,
alertando aos estudantes que exigissem o máximo de mim e da disciplina, pois, nas palavras
dele “eu sabia do que estava falando” e contribuiria bastante para a formação de todos na sala.
Embora tenso, dado a responsabilidade que me foi imposta com a fala, a indicação do
meu amigo foi providencial para romper a “cultura de opostos” e o clima adverso que tinha se
desenvolvido no episódio anterior. Graças àquele empoderamento explícito e a partir de então,
tinha um “civil no quartel” com consentimento para construir saberes junto aos jovens
candidatos em formação. Assim, dei bom dia a todos, instalei meu equipamento e iniciei a
formação.
Eram aproximadamente 08:30 da manhã, metade da instrução tinha transcorrido
rapidamente e os debates pareciam despertar entusiasmo nos alunos. Outro não e com as
categorias-chave (sociedade, ética e cidadania) que davam sentido a disciplina, a instrução
parecia alcançar níveis significativos de compreensão e suscitar questões importantes sobre a
melhor conduta policial.

19
Código e/ou Expressão policial (jargão) para designar uma situação “ideal” ou pessoa de “boa índole”.
60

Convencer os candidatos que o sujeito policial é um potencial promotor de cidadania e


que tal empreendimento é possível de ser alcançado a partir da boa prática, mas antes, através
de um entendimento substancial sobre o sentido mais essencial da função profissional, era um
objetivo que sempre perseguiu minha aventura nesse tipo de magistério.
Todavia e como uma postura já enviesada sobre segurança pública, naquele momento o
que encontrei nos meus interlocutores foi um antagonismo recorrente da suposta desvalorização
social da polícia pela sociedade.
Dito de outra forma, me pareceu que os candidatos iniciavam suas vidas profissionais
já com certo “complexo de reprovação” que os distanciavam de qualquer apreciação mais
significativa da sociedade que pretendiam defender. De fato, não consegui compreender como
tal sentimento foi transmitido tão precocemente aos jovens candidatos em formação, uma vez
que ainda estávamos no início do curso e aquela disciplina era uma das primeiras do currículo.
Sem desenvolver qualquer hipótese mais sofisticada sobre a questão, desconfiei apenas
da interação geracional, ou seja, do contato com alguns agentes mais antigos que trazem, no
bojo da carreira, tais experiências de repulsa e que são comunicadas informalmente naquele
ambiente de trabalho. Outra possibilidade se desenvolve na apreciação dos rótulos que se
propagam nas representações sociais e que produzem os estigmas institucionais.
Enfim e independente das causas do fenômeno, era curioso observar que mesmo na
condição de alunos e de nunca terem vivenciado qualquer rivalidade no cotidiano do trabalho
ordinário, eles elegiam certos grupos sociais (Controladoria Geral de Disciplina; Defensores
dos Direitos Humanos; Imprensa; Sociólogos; etc.), como adversários e estabeleciam, também
com eles, divergências e confrontações teóricas que abarcavam a totalidade daquilo que
chamavam de “Sociedade”.
Tal processo, a meu ver, parecia ter um forte caráter habitual, uma vez que a associação
desse discurso acontecia, sobretudo, por difusão tradicional (da cultura policial), sem qualquer
razão mais sensata, objetiva ou aparentemente clara. Era, aos meus olhos, pura reprodução de
um discurso policial pré-determinado.
Iluminando a questão, Kant de Lima (1995, p. 9) nos explica que “[…] as atividades
policiais organizam-se conforme os princípios da ética policial, (como) um conjunto
extraoficial de regras produzidas e reproduzidas pelo processo tradicional de transmissão do
conhecimento […]”.
Destarte, as observações acima são ilustradas, por exemplo, através de falas como a do
Colaborador 33 (CANDIDATO AO CARGO DE POLICIAL MILITAR, 24 anos de idade) que
espera da sociedade apenas “[…] intolerância, raiva ou algo parecido com isso […]”, do
61

Colaborador 30 (CANDIDATO AO CARGO DE CANDIDATO AO CARGO DE POLICIAL


MILITAR, 24 anos de idade), que argumenta saber que “[…] a sociedade não ajuda a polícia
[…]” ou do Colaborador 43 (CANDIDATO AO CARGO DE POLICIAL MILITAR, 21 anos
de idade) que, em contrapartida ao trabalho policial, “[…] aguarda da sociedade apenas o
desprezo […]”.
Em suma, a dualidade entre a polícia e a sociedade me pareceu se desenhar já na
formação inicial dos agentes e se estender, por consequência, até a prática profissional. Sem
dúvida, aquela situação era contraditória; pensei por um minuto como era estranho e perigoso
um profissional da segurança pública desenvolver, precocemente, uma ojeriza à algo que tem o
dever de proteger.
Também de forma geral, é fácil perceber que algumas pré-noções construídas fortemente
no senso comum parecem resistir, até com certa facilidade, a qualquer panorama mais técnico
ou científico que é transmitido nos cursos de formação e objetiva auxiliar na formação mais
ética dos agentes de segurança. Era uma questão pertinente imaginar o que poderia vir a ser
uma “assimilação fingida” do conteúdo dado e das reflexões desenvolvidas em sala de aula.
Deixando a questão de lado e perseverando na exposição do campo, eram
aproximadamente 09:00 e, como uma lucidez privilegiada naquele momento, me chamou
atenção a disposição corporal dos alunos que, cansados de um final de semana exaustivo
(repleto de atividades físicas), pareciam manter o ânimo e não aparentavam qualquer fragilidade
física ou psicológica em plena manhã de segunda-feira.
Destarte, aquela percepção me fez recordar o quanto o “corpo do CANDIDATO AO
CARGO DE POLICIAL MILITAR” é condicionado pela disciplina incorporada que Sá (2002)
definiu como processo de pertencimento e “adestramento”. Em suma, o que via diante dos meus
olhos era aquela propensão típica da formação militarizada que sustenta sua significação numa
cadeia de hierarquia, obediência e na idealização do CANDIDATO AO CARGO DE
POLICIAL MILITAR como um “[…] forte guerreiro, que não desiste em meio às dificuldades
e sempre tenta ser o melhor […] a todo custo […]” (COLABORADOR 34, CANDIDATO AO
CARGO DE POLICIAL MILITAR, 23 anos de idade).
Como uma reflexão final para essa observação (antes do término daquela instrução às
09:30), me veio à mente que o modelo formativo imposto aos jovens alunos naquela sala era de
um “super-humano” (um padrão de perfeição), ou seja, de um soldado infalível do qual se exige
aptidão física e mental e que se espera absoluta representatividade institucional. É um protótipo
que incorpora o “espírito de corpo” e que personifica a deontologia militar em detrimento da
sua frágil condição humana.
62

Pensar essa classificação me entristeceu bastante, já que tal estatuto não é possível de
ser concretizado na sua totalidade e que apenas produz desentendimento e conflito quando o
policial não reconhece tal realidade de trabalho e sofre com a redescoberta de sua débil
humanidade. De forma geral, tentar desagregar o caráter humano dos sujeitos policiais tira deles
a possibilidade de exercerem cidadania, de executarem ações policiais humanizadoras e de se
adaptarem naturalmente à sociedade que policiam em nome do Estado.
Por fim e retomando o controle da instrução, dei por encerrado o encontro e firmei o
compromisso de, na próxima aula (dois dias depois), trazer meus apontamentos de pesquisa e
elaborar, com todos os presentes na sala, uma nova rodada de conversas sobre os saberes mais
típicos da segurança pública e sobre as expectativas de exercer a profissão policial.
Envaidecido com a oportunidade de contribuir para a formação daqueles garotos, me
despedi de todos e recebi, de forma espontânea, uma salva de palmas pela didática e pela
condução da orientação. Em suma, aquele foi apenas o primeiro de muitos outros encontros
com aquela turma que acompanhei durante muito tempo, em outras duas diferentes disciplinas
e por mais de dois meses.
Na medida em que conquistava a confiança dos agentes policias naquele quartel, acabei
ganhando passe livre para entrar e sair sem ser anunciado e oportunidade de voz, quando
auxiliava na formação dos jovens candidatos ao cargo de soldado e expressava visões distintas
da polícia e de seus estatutos. Em verdade, tal experiência foi um exemplo factual de que
qualquer barreira ideológica ou política pode ser rompida com boa vontade, diálogo e
aprendizado.
63

3 “TRAÇOS E CONTRASTES DA POLÍCIA CEARENSE”: UM OLHAR SOBRE A


CONSTRUÇÃO DAS DISTINTAS PERSONALIDADES PROFISSIONAIS DOS
AGENTES DA LEI.

“[…] Hoje, no Brasil, e especialmente no Ceará, há uma confusão em


tratar políticas de segurança pública como se elas se limitassem a uma
política de intervenção policial […]”20.
(Prof. Dr. Luiz Fábio Paiva)

3.1 “Nos bastidores da polícia local”: conservadorismo, informalidade e transformação


do trabalho policial.

De pesquisas no Google à postagens nos grupos de whatsApp, de narrativas políticas


(“bancadas da bala”) à reportagens televisivas ou impressas sobre as políticas de segurança no
estado, o cenário policial local vai ganhando destaque e reivindicando reconhecimento social
na mesma medida em que acumula reprovação e desconhecimento.
Por todos os lados (internamente e externamente) esse campo profissional é marcado
por discursos ideológicos e desenha um modelo de atuação que, nos últimos anos, combina um
conjunto de possibilidades, mas que insiste em praticar, amparado numa concepção imediatista
de policiamento, ações marcadamente reativas e em muitos momentos abusivas, no contato
mais íntimo com a sociedade.
Como um movimento ainda em processo de configuração, é fácil perceber um conjunto
de peculiaridades que reflete sutilmente o atual momento político brasileiro e elabora um efeito
notável na formulação e na reedição da personalidade profissional dos agentes da lei. Por
consequência, tal processo acaba concebendo uma polícia notadamente instrumental,
socialmente distante, por vezes autoritária e beligerante.
Ao longo dessa pesquisa e de certa forma dentro do meu próprio mundo de trabalho, é
fácil ilustrar essa afirmação ao evidenciar a repulsa com que alguns debates são negados em
nome da disciplina, do conservadorismo e da necessidade de uma política de segurança
combativa e policialesca.
Em grande demanda, esse aspecto profissional da polícia reverbera a percepção que os
colaboradores da pesquisa construíram de si e das posições que ocupam no seu campo de
atuação que, quase sempre, figura como superior aos demais sujeitos “não policiais”.

20
FREITAS, Cadu. Número de mortes por policiais no Ceará cresce 439% em seis anos. 2019. Disponível em:
https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2019/05/30/numero-de-mortes-por-policiais-no-ceara-cresce-39percent-
em-seis-anos.ghtml. Acessado em 16 de Julho de 2019.
64

Dito de forma simples e indagados, por exemplo, sobre uma expressão familiar e
emblemática que, de forma geral, representaria sua própria condição policial na sociedade, a
maior parte dos colaboradores, como destaca o colega Policial Civil (COLABORADOR 68,
Policial Civil, 47 anos), enxergou a si mesmo como profissional notável, singular e especial.
Segundo ele,
“[…] A profissão de policial é muito nobre e heroica […]”; “[…] o
policial é alguém bastante corajoso e diferente das outras pessoas […]”.
Por isso precisa assumir um lugar de destaque entre as outras profissões
[…] Qualquer um pode atender em um comércio, mas para ser policial,
é preciso ter preparo, ter esperteza, ter vocação meu irmão […]”.

Prosseguindo, e ainda questionados livremente sobre quais características


diferenciavam os sujeitos policiais dos demais (“não policiais”), a maioria esmagadora das falas
traz à tona uma alegoria que desumaniza os agentes e os coloca na condição de grandeza mítica,
negando suas fragilidades e reivindicando um poder que parece ser extraordinário.
“[…] (os policiais têm) Treinamento e Vontade de servir […]”
(COLABORADOR 01, Guarda Municipal, 29 anos).
“[…] Um policial jamais será uma pessoa comum, pois o mesmo
sempre será visto como uma pessoa diferenciada em sua profissão […]”
(COLABORADOR 14, Guarda Municipal, 39 anos).
“[…] Coragem de enfrentar uma profissão que não é para todos […]”
(COLABORADOR 38, CANDIDATO AO CARGO DE POLICIAL
MILITAR, 23 anos).
“[…] Os policiais têm mais informações […]” (COLABORADOR 09,
Guarda Municipal, 37 anos).
“[…] Os policiais respeitam a hierarquia, a disciplina e o treinamento
[…]” (COLABORADOR 35, CANDIDATO AO CARGO DE
POLICIAL MILITAR, 29 anos).
“[…] o dever de fazer e a preocupação com o perigo […]”
(COLABORADOR 11, Guarda Municipal, 32 anos).
“[…] os policiais possuem técnicas, perícia e executam ações […]”
(COLABORADOR 31, CANDIDATO AO CARGO DE POLICIAL
MILITAR, 24 anos).
“[…] Conhecimento, preparo, habilidades e o espírito de se fazer
cumprir a lei […]” (COLABORADOR 13, Guarda Municipal, 32 anos).
“[…] O policial tem postura e visão ampla da sociedade […]”
(COLABORADOR 46, CANDIDATO AO CARGO DE POLICIAL
MILITAR, 28 anos).
“[…] Um policial tem treinamento específico que pessoais civis não
têm. É preparado para as mais diversas situações de perigo e
calamidades. Tem técnicas que as pessoas normais não têm […]”
(COLABORADOR 16, Guarda Municipal, 36 anos).
“[…] A missão de querer defender a sociedade […]”
(COLABORADOR 65, Policial Civil, 33 anos).
“[…] O policial é representante da lei e tem o poder de se impor quando
em serviço […]” (COLABORADOR 18, Guarda Municipal, 38 anos).
“[…] (os policias têm) postura, treinamento, organização e
envolvimento com um objetivo comum […]” (COLABORADOR 62,
Policial Civil, 40 anos).
“[…] o policial tem discernimento na sua profissão. É diferente. Segue
a lei severamente e se orgulha da sua profissão sempre […]”
(COLABORADOR 39, CANDIDATO AO CARGO DE POLICIAL
MILITAR, 22 anos).
65

“[…] (os policiais têm), além da competência, à vontade […]”


(COLABORADOR 22, Guarda Municipal, 38 anos).
“[…] (os policiais têm) a noção de que se deve estar sempre preparado
para o pior […]” (COLABORADOR 67, Policial Civil, 33 anos).
“[…] (os policiais têm) postura, ética e profissionalismo […]”
(COLABORADOR 46, CANDIDATO AO CARGO DE POLICIAL
MILITAR, 28 anos).

Concomitante a essa “vaidade” quase estrutural, que me parece se desenhar como um


traço de autoridade visceral, manifestada já nos anos iniciais da carreira profissional, Cathala
(1975) percebe sinteticamente a polícia como força pública que tem como função essencial
garantir a manutenção do ordenamento e promover a regulação constante da segurança através
do policiamento.
Ainda que os policiais não sejam iguais, pois a diversidade profissional da polícia
autoriza uma diferenciação obvia daqueles que detêm seu estatuto, a definição mais usual nesse
cenário é simplista, instrumental e concebe a polícia como “[...] um conjunto de pessoas,
autorizadas por um grupo social, a regular as relações interpessoais dentro de uma comunidade,
através do uso da força física […]” (RIBEIRO, 2002, p.453).
Não obstante e desde o primeiro momento desse tópico, verifica-se no respectivo
conceito um sentido marcadamente conservador que atesta a reedição de um modelo vulgar de
policiamento e provoca certa inatividade profissional quando nega o aspecto informal do
trabalho, seu dinamismo e seu potencial transformador.
Como consequência de tal condição, a organização policial acaba por prejudicar seu
desenvolvimento e fica à mercê de qualquer legislação disjuntiva de sua realidade. Essa leitura
generalizadora apoia-se, a meu ver e em um primeiro momento, em paradigmas mal construídos
que não estabelecem uma diferenciação necessária entre a individualidade do agente (eu policial)
e o seu dever na instituição, por exemplo. Em suma, apenas negam o fator humano que é
responsável, em grande parte, pela execução das ações no cotidiano profissional.
Ainda que o policiamento seja quase universal, como nos ensina Bayley (2001), é
necessário compreender a dimensão policial considerando a tríade de fatores (referência
institucional, referência organizacional e referência profissional) que cooptam a estrutura do
aparelho policial e que, por consequência, condicionam um “modo de ser” marcadamente
peculiar para seu agente, nos distintos lugares onde ele executa seu trabalho (MONJARDET,
2012).
Conforme se observa na figura abaixo, podemos perceber a polícia como um “mosaico”
de muitos lados. Nesse sentido e para iluminar qualquer entendimento a seu respeito, deve-se
66

refletir, em um primeiro momento, acerca dos aspectos institucionais que fazem de sua
existência um órgão de controle estatal.
De forma geral, é sua instrumentalidade, seus legalismos, seus valores e controle
profissional, por exemplo, que fornecem um aspecto formal e concede a polícia um caráter
aparentemente restrito e indiferente. O que não me parece muito prático, considerando a
intimidade necessária ao atendimento de demandas mais sutis da segurança pública.
Prosseguindo e em um segundo momento, devem-se levar em consideração os aspectos
organizacionais que caracterizam qualquer instituição policial na observância irrestrita das
regras (hierarquia e disciplina), procedimentos e técnicas de trabalho (MONJARDET, 2012).

Figura 01 - As dimensões policiais e suas interações.

Fonte: Elaboração pessoal com base em Monjardet (2012).

Nesse sentido, seu ordenamento (divisão do trabalho), ofício (preparação e execução) e


“burocracias” (orientação legal e institucional das ações) também são nuanças concretas de
efetivação profissional e, portanto, também existem perpassando a informalidade e os arranjos
situacionais que marcam esse campo de trabalho.
Por fim e até mais relevante do que compreender as etapas anteriores, é fundamental
observar os aspectos profissionais, formais e informais (vivências, formação e experiências),
que condicionam a construção de identidades sociais, da cultura e dos interesses próprios e
distintos dos grupos policiais; pois tais características manifestam-se quando na efetivação das
práticas policiais no âmbito do serviço ordinário (MONJARDET, 2012). Não obstante e por
não ser levado em conta esse conjunto de aspectos é que, ainda segundo o autor, surgem os
equívocos e as lacunas acerca da instituição policial.
67

Em verdade, essa concepção holística da polícia é fundante da própria condição policial


e repercute, velado no discurso oficial, o sentido próprio das ideologias que são tecidas dentro
das organizações policiais.
Tal reflexão é legitimada na ação profissional propriamente dita, quando o policial age
comumente a partir de uma lógica própria que implica até na inversão dos formalismos legais
ou morais impostos à atividade policial mais clássica. Sobre a premissa, Silva (2015, p. 147,
156) nos ensina que mesmo para esses policiais:
[…] a margem constatada entre a lei e o crime vai depender de como
funciona esses ilegalismos nas dobras da vida cotidiana, em suas
capilaridades e circularidades. Vai depender do indivíduo, de sua força
e de sua transitividade nesses espaços fronteiriços […] Se os
ilegalismos são incongruências toleráveis no mundo social, sua íntima
relação com o mundo do crime os faz deslizarem para fora das dobras
e do horizonte de aceitabilidade social. As negociatas, as extorsões e os
acertos de contas operam uma forma de ilegalismo.

Como profissional da área, testemunhei inúmeras vezes esse panorama que


costumeiramente se concretiza na conduta, mais ou menos legítima, do agente no campo. Tal
cenário acontece, por exemplo, quando o policial aborda um sujeito na rua e o declara marginal
ou protagonista de uma atitude suspeita segundo apreciação particular; ou ainda, quando a
viatura de polícia privilegia uma determinada área da cidade em detrimento de outra; ou, por
fim, quando um policial simplesmente desiste de efetuar uma prisão, descumprindo uma ordem
legal, por achar que não lhe é conveniente executar tal mandado.
[…] essa privatização de um recurso público para fins individuais [que]
pode assumir diferentes formas, desde o tráfico de influência até a
expropriação de recursos de violência, cujo emprego legítimo dependia
da monopolização de seu uso legal pelo Estado (MISSE, 2002, p. 153).

Enfim e mesmo que existam leis gerais que regulem o policiamento, a polícia assume
diferentes funções na sociedade, o que fomenta através dos sujeitos policiais diferentes
interpretações acerca das atribuições, do trabalho e das funções que executam.
Conforme Bayley (2001), a atividade policial dividir-se em três partes distintas, mas
complementares no contexto de sua atuação. Dito de outra forma e a partir do desígnio, o
trabalho policial pode ser compreendido através da organização de suas práticas, do confronto
situacional propriamente dito (entendido aqui como o envolvimento dinâmico com o público
em geral) e do conjunto de procedimentos próprios da polícia.
Nesse sentido e acerca daquilo que os colaboradores do estudo entendem por polícia,
por ser policial e pela missão profissional que justifica suas práticas no âmbito da sociedade, a
pesquisa aponta, em maior demanda, para a reedição de um modelo pautado na lógica normativa
e em ações de segurança baseadas na eliminação do inimigo criminoso.
68

De forma geral, a análise das falas aponta para a superioridade de uma perspectiva
conservadora. Tal singularidade é compartilhada por parte relevante dos jovens agentes e
envolve dois grupos de policiais que, através das falas, revelam certa percepção reativa e certa
percepção normativa do fazer policial.
Todavia e ainda que em parcela menor, parte dos colaboradores também revelaram uma
perspectiva progressista da prática profissional que, sem o risco de uma análise mais exagerada,
pode atestar um panorama heterodoxo da atividade policial no estado.
Considerando esse dado, arrisco dizer que a pesquisa indica uma visão mais crítica que
emerge, na atualidade, dos cursos de formação e do novo modelo pedagógico imposto pela
Secretaria Nacional de segurança Pública (SENASP) a partir de 2014.
Avançando e refletindo os dados provenientes do grupo mais conservador (policiais
reativos e policiais legalistas), percebe-se nas falas desses sujeitos certa concordância que,
reincidente nas frases mais usuais acerca do papel da polícia, revelam três características que,
na concepção de Monjardet (2012), reinterpretado pelas vivências desse policial-pesquisador,
equiparam-se a concepções comuns do modelo de policiamento ostensivo.
Nesse sentido e a partir de uma leitura perspicaz desses colaboradores, fica evidente que
esses policiais desenvolveram um sentido marcadamente reacionário da atividade policial,
invocando, a todo momento, um significado ortodoxo do seu ofício, contrariando qualquer outra
possibilidade de interpretação.
Outro não, a “proteção do cidadão”, a “pacificação social”, a “vigilância urbana” ou,
principalmente, o “combate ao crime, ao criminoso e a marginalidade”, são as bandeiras
ideológicas que projetam o sentido mais puro da conduta desse grupo, conforme se pode
observar nas falas baixo.
“[…] Ser policial é ser alguém com uma conduta reta e exemplar. Deve
manter sociedade segura […] (a “verdadeira” missão policial é)
proteger as pessoas mais vulneráveis […]” (COLABORADOR 24, 33
anos, Guarda Municipal).
“[…] (ser policial é) proteger a sociedade e promover a justiça […] (a
“verdadeira” missão policial é) proteção ao cidadão […] A Polícia é
formada por agentes da lei que se designam a serem homens que
promovem a justiça e protegem a sociedade […]” (COLABORADOR
26, 33 anos, Guarda Municipal).
“[…] (ser policial é) ser um homem ou mulher da lei, protegendo e
defendendo a sociedade, a ele próprio e a sua família […] (a “verdadeira”
missão policial é) proteger e defender a sociedade e a ordem pública
[…]” (COLABORADOR 37, 27 anos, CANDIDATO AO CARGO DE
POLICIAL MILITAR).
69

Destarte e para justificar tal contexto, a pesquisa percebe no discurso desses


colaboradores uma invocação constante dos estatutos da autoridade policial, da ação (e reação)
e da teatralização do crime (romantização do fenômeno).
De forma geral e independente da força policial a que pertencem, os membros desse
grupo inter-relacionam essas noções e se fazem valer do que reconhecem como “poder de
polícia” (legitimizado na norma), para justificar sua força e seu papel de protagonista na luta
“homérica” contra a atividade criminosa; esgotando essa atividade como fonte principal e, por
vezes, única, de segurança pública.
Seguindo e como já evidenciado no texto, emerge de um paradigma policial mais recente
uma lógica crítica que, ampliando o leque de funções profissionais, submete a organização
policial a uma novíssima conjuntura, rompendo, ainda que incipientemente, com a
tradicionalidade.
De forma geral, o grupo de policiais que constrói essa visão mais transformadora da sua
identidade profissional ampara suas falas numa perspectiva mais humanizada da prática e
direcionam os resultados das ações policiais ao desenvolvimento macro da cidadania.
Nesse sentido e a partir de falas como a do Colaborador 24 (33 anos, Guarda Municipal),
que revela entender a verdadeira missão policial como a responsabilidade de “[…] proteger as
pessoas mais vulneráveis […]” ou a do Colaborador 31 (27 anos, CANDIDATO AO CARGO
DE POLICIAL MILITAR) que entende como aspecto de seu serviço “[…] influenciar de forma
positiva a atitude das pessoas e mudar a sociedade […]”, a lógica progressista ganha espaço
dentro da polícia e avança desafiando a ordem vigente. Em suma e na opinião desse pesquisador,
é um novo olhar que desponta de um momento ímpar na seleção e na formação dos profissionais
de segurança.
Persistindo na apresentação dos resultados e ampliando a debate acima nos tópicos
abaixo, a sessão apresenta, a partir de teoria específica e dos dados construídos no campo, uma
reflexão mais ampla dos pontos apresentados, bem como a exposição das três perspectivas mais
gerais que auxiliam na construção da identidade profissional dos policiais analisados.
De forma genérica e a partir de uma visão reativa, uma visão normativa e outra
marcadamente crítica da atividade policial, a pesquisa apresenta distintas concepções que
atestam os muitos sentidos e significados que os jovens policiais constroem de seu ofício,
missão e campo de atuação; formulando, assim, certa condição policial que engendra a
concepção da própria identidade profissional.
70

3.1.1 Visão Reativa: a internalização da autoridade policial, da ação e da dramatização do


fenômeno criminal

Art. 78. “Considera-se poder de polícia atividade da administração


pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade,
regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse
público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à
disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades
econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público,
à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos
individuais ou coletivos”.

(BRASIL. Código de Tributário Nacional. Lei nº 5. 172, de 25 de


Outubro de 1966).

Era Março de 2018, não recordo bem a data, mas estava lotado na cidade de Aracati-CE,
fazendo parte do efetivo policial designado para a operação dos festejos de carnaval daquele
ano. Apesar da atmosfera caótica que caracteriza aquele feriado, até então, a noite parecia
transcorrer dentro da normalidade e a delegacia funcionava vagarosamente, com três ou quatro
pessoas aguardando atendimento na recepção para fazer boletim de ocorrência.
Todavia e conformando a ideia de que qualquer plantão policial pode mudar
repentinamente, aquela atmosfera tranquila foi interrompida pelo barulho (sirene policial) de
uma viatura que chegava às pressas no local. Era a Polícia Militar que, aparentemente, trazia
um sujeito em fragrante delito.
Até onde percebi, tratava-se de uma apreensão de som veicular (“paredão”) e a
consequente condução do proprietário. O suspeito estava bastante alterado e alarmava,
suplicante, que os policiais agiram de má fé, em situação de abuso, pois jurava ter reduzido o
volume do aparelho quando foi solicitado e que, mesmo assim e por pura “maldade”, os oficiais
lhe tomaram o equipamento.
Sem poder fazer qualquer juízo de valor mais preciso, porque não sabia ao certo o que
teria de fato acontecido no incidente, pude apenas observar o comportamento dos colegas
policiais que, a todo custo, cerceavam a voz do rapaz, já algemado e aos prantos. O jovem era
empurrado violentamente e constantemente ameaçado. A expressão de ordem mais comum era:
“_respeita a polícia, vagabundo!”. Como de praxe, o episódio findou com uma apresentação
formal de crime de desacato que, prontamente, foi apreciado pelo delegado plantonista e seguiu
seu desfecho habitual.
De forma geral e para todos os presentes naquele momento, a polícia mais uma vez
apresentou seu caráter mais repressivo, contrapondo o que Carvalho e Silva (2011, p. 60)
71

colocaram como excelência de política de segurança, entendida pelos autores como “[…] ações
pontuais combinadas a programas consistentes e duradouros, fincados, sobretudo, na
valorização do ser humano sob todos os aspectos, considerando o contexto social de cada
cidadão […]”.
Justificando a análise a partir da fala do Colaborador 38 (28 anos, CANDIDATO AO
CARGO DE POLICIAL MILITAR) que entende a missão policial como a responsabilidade de
“[…] reprimir o crime e proteger a sociedade de pessoas de má índole que atrapalham a
convivência […]”, o sentido de polícia compartilhado por esse grupo é cooptado por resquícios
de um modelo profissional marcadamente limitado pelo ofício de infligir força contra
indivíduos que destoam do padrão (BECKER, 2008).
Destarte e segundo esses colaboradores, a missão policial é reagir ostensivamente ao
crime ou preveni-lo, sob o aparato da beligerância e da vigilância constante e reguladora de
qualquer demanda de força privada. Podendo até, “[…] combater o crime com as armas do
crime […]”, segundo Monjardet (2012, p. 29).
Dito de outra forma e ainda segundo o autor (MONJARDET, 2012, p. 26-29) “[…] a
polícia é encarregada de fazer, ou de manter, a corrente substancial dos ‘interesses coletivos’
[…]”; todavia, esse ofício é entendido pelos policiais como a própria razão do Estado, dando
as políticas de segurança um caráter essencialmente regalista e carente de substância, já que o
“[…] instrumento policial não tem conteúdo próprio […]”, pois existe a mercê da autoridade
política, de suas conveniências e vontades.
Tal perspectiva, evidenciada nas falas, revela a meu ver os estatutos da “autoridade”, do
“ato policial” e da “dramatização constante do fenômeno criminal” como paradigmas que
reivindicam o pragmatismo da repressão em detrimento de um entendimento mais crítico e
abrangente do fazer policial.
Infelizmente, não é raro encontrar colegas policiais que conduzem seu ofício na
referência acima e que, quando muito, evocam a norma e justificam uma ação (ou omissão)
socialmente nefasta pelo arbítrio policial ou pela dualidade daquilo que acreditam ser
legalmente correto, sem, de fato, construírem um juízo de valor mais apurado.
Em suma e numa perspectiva geral, para os sujeitos desse grupo a função da polícia é
usar a força para regular as relações interpessoais na sociedade. Nesse sentido, “[…] a
manutenção do controle social é fundamentalmente uma questão política […]” (BAYLEY, 2001,
p. 203).
De forma geral é mais fácil restringir a compreensão do papel policial na premissa de
que “[…] a polícia está, salvo exceções em que são impostos limites, habilitada a intervir em
72

todos os lugares, em todos os tempos e em relação a qualquer um […]” do que pensá-la de


forma diferente, ampliada e como instrumento de políticas verdadeiramente sociais
(MONJARDET, 2012, p. 26).
Prosseguindo na análise e como já colocado, é habitual nas falas desse grupo a demanda
por autoridade que, dito de forma simples, pode ser explicada pelo entendimento objetivo que
se constrói da natureza do trabalho policial.
Como exemplificado na fala do Colaborador 06 (42 anos, Guarda Municipal), a
percepção recorrente entre os agentes desse grupo é que o ofício policial é marcado pelo
combate ao crime e pela responsabilidade de intimidar toda e qualquer atitude que exista a
contrassenso da ordem social estabelecida.
[…] Ser policial é fazer um trabalho ostensivo para intimidar aos que
estão fora da lei. Ser policial é cuidar da segurança da população. É
trazer a paz para a população de tal forma que cada pessoa sinta
segurança em transitar sem medo de ter sua liberdade cessada por
meliantes […] Polícia é aquela que faz o trabalho ostensivo, que
intimida para que o crime não venha ocorrer ou, pelo menos, diminua
[…] a missão policial é trazer a paz social […].

Todavia e para alcançar tal empreendimento, é fácil entender que os agentes desse grupo
não hesitariam em intervir com demasiada energia caso necessário e que, desde o primeiro
momento, avocariam a superioridade e a ação policial como instrumentos de garantia e
manutenção do poder, destes, sobre os outros “não policiais” envolvidos no conflito.
Esclarecendo parte da questão, Monjardet (2012, p. 157) nos ensina que “[…] para um
policial em intervenção é essencial garantir, primeiramente, sua autoridade […], pois sem isso
sua intervenção pode degenerar em conflito aberto […] sem está assegurado de ter a última
palavra […]”.
Todavia, essa máxima é um aprendizado comum nos cursos de formação e para esses
jovens policiais pesquisados independente do que possa surgir no ambiente de trabalho, é
fundamental garantir sobre os sujeitos envolvidos em qualquer situação profissional um arbítrio
próprio e hegemônico, justificado pelo poder de polícia que garanta o sucesso da ação.
Nessa visão, o policial é simplesmente “[…] um agente mantenedor da ordem social
[…]” e a polícia “[…] um corpo responsável pela preservação, contenção e resolução de crimes
contra a sociedade […]”, conforme preceitua o Colaborador 11(32 anos, Guarda Municipal) e
o Colaborador 42 (26 anos, CANDIDATO AO CARGO DE POLICIAL MILITAR). Avançando
na questão e arriscando uma análise mais crítica do respectivo princípio, Cathala (1975, p. 54)
nos orienta a pensar tal comportamento como condição de certa petulância, inerente à cultura
73

policial e proveniente de uma incompreensão daquilo que se entende por “poder de polícia”,
uma vez que:
Alguns policiais, felizmente assaz raros em razão de aperfeiçoamento
introduzidos no recrutamento e na formação profissional apresentam
constantemente um aspecto arrogante e presunçoso, um tom
autoritário e desabrido e uma linguagem chã, para não dizer vulgar,
que não podem deixar de descontentar o público a que atendem em
muitas circunstâncias.

Nesse sentido e para justificar sua autoridade, é recorrente os policiais desse grupo
imaginarem-se desempenhando uma função excepcional, gloriosa e superior a todas as outras
no âmbito da sociedade. Tal condição, na opinião desse policial-pesquisador, evidencia uma
inevitável presunção profissional e desencadeia efeitos danosos na prática e no sentido de
polícia.
Não obstante e como interpretação produzida a partir da interlocução da pesquisa,
arrisco dizer que o elevado sentido que esses colaboradores dão à missão policial e o caráter
imponente constantemente atribuído ao policial, revelam certa arrogância institucional
estendida aos sujeitos que, tomada como característica geral do seu comportamento profissional,
mesmo velado em muitos momentos sob regras de “boa” conduta, atestam esse traço vaidoso
compartilhado entre os membros desse grupo.
Em suma e na visão de Cathala (1975), essa insolência policial é uma “embriaguez”
proveniente do poder e da condição de autoridade que encontra justificativa no sentimento de
orgulho, no mérito individual, no fundamento da honra institucional e na dramatização do
fenômeno criminal.
Além de outras situações, é igualmente comum vale-se da autoridade policial sempre
que o agente, e por extensão a polícia, estiver na eminência da desmoralização. Confesso que,
como uma verdade inconveniente do serviço policial, presenciei a evidencia inúmeras vezes e,
como uma mácula de rispidez, necessidade de impor poder, ou, apenas por falta de empatia
social, tais situações geralmente terminavam com a equipe de agentes conduzindo os
envolvidos à delegacia de polícia mais próxima e efetuando o procedimento por desrespeito ou
qualquer outra tipificação penal semelhante.
Como circunstância corriqueira da premissa, e a semelhança do relato apresentado na
introdução do tópico, destacam-se os casos de desacato 21que no ano corrente (2019), conforme

21
Art. 331 do Código Penal brasileiro (Decreto-Lei 2848/40) - Desacatar funcionário público no exercício da
função.
74

informação oficial no sítio eletrônico de Processo Judicial Eletrônico do Ceará – PJE-CE, já


contabilizam mais de dois mil processos em aberto no estado.
Ainda sobre a questão, Cathala (1975, p. 57) coloca que:
[…] (em) muitos casos de desacato a agentes da força pública, que
levam seus autores ao tribunal correcional, resultam de reações
desagradáveis a que estes são levados em virtude do mau tratamento
recebido quando da intervenção policial […].

Em parte, e apoiando a reflexão na opinião do autor, as falas dos colaboradores desse


grupo ensejam um desejo associado ao controle e a regulação e, como consequência mais lógica
da questão, introjetam a responsabilidade de promover a paz social pela imposição da
autoridade que o Estado lhes confere pelo cargo. Dito isso, “[…] acham-se investidos no que
se denomina de poder de polícia, que representa parcela significativa da atribuição
regulamentar reservada a essas mesmas autoridades […]”, conforme observa Cathala (1975, p.
59).
Todavia e analisando com cuidado a premissa, o “poder de polícia” invocado por esse
grupo, em verdade, toma um sentido mais tradicional e repercute a ideia de impor, sobre os
demais sujeitos “não policiais”, as vontades da polícia que, como extensão de um Estado mais
opressor, encontra referência no reacionarismo típico que caracteriza esse tipo de policiamento.
Em suma, o que se apresenta é uma relação desigual entre a polícia e a sociedade, onde
o poder assume uma multiplicidade de faces, mas se ampara, sobretudo, na oportunidade
conferida pelo status social de um determinado grupo em detrimento de outro ou, mais
precisamente, na posição de autoridade em que se encontra o agente de segurança em relação a
qualquer outro sujeito de situação “menor” (WEBER, 1991).
Entendido de forma simples e para além da concepção legalista que ilustra o começo
dessa sessão, o famigerado “poder de polícia” torna-se na prática o poder da polícia (e de seus
membros) sobre os demais cidadãos, pois existe como condição de força que, no caso da
segurança pública, é expressada pela capacidade de cercear a liberdade individual em nome da
coletividade ou daquilo que os sujeitos desse grupo defendem como ordem social.
Ilustrando a reflexão, o Colaborador 15 (31 anos, GUARDA MUNICIPAL) nos revela
que para ele “[…] (ser policial é) fazer cumprir a ordem […] (a “verdadeira” missão policial é)
“apontar a flecha” e atirar […] “enxugar o gelo”, pois a justiça não ajuda (o trabalho da polícia)”.
É frustrante e a gente tem que se impor […]”
Assim e tomando a liberdade de estabelecer uma análise sucinta da fala acima, fica claro
que os sujeitos policiais do respectivo grupo acreditam fielmente personificar o aspecto mais
75

“justo” de sua função ao atribuí-la à manutenção da paz social pela imposição, supostamente
moral, de uma determinada força policial.
Todavia e como um estigma que parece perseguir a polícia na sua totalidade, essa
energia é, quase sempre, destinada aos grupos sociais que não se dobram com facilidade ao
imperativo estatal, pois como nos alerta Monjardet (2012, p. 158) “[…] alguém encarregado de
aplicar uma regra tem todas as possibilidades de crer ser necessário que as pessoas com quem
ele se relaciona o respeitem […]”, pela força ou pelo medo.
Refletindo um pouco mais a afirmativa, Cathala (1975, p. 23) nos ensina que “[…] a
concentração de tal extensão de poderes nas mãos de alguns acarretaria, sem dúvida, no perigo
de abusos lamentáveis em prejuízo daqueles que lhes estão sujeitos […]”. Infelizmente e até
onde foi possível observar tal questão na prática, o receio do autor se concretiza cotidianamente
em nossas periferias, guetos e favelas.
Felizmente, e por experiência profissional, ressalto que tal concepção reflete uma parte
menor da realidade policial propriamente dita, pois as denúncias de abuso policial na
Controladoria Geral de Disciplina (CGD), por exemplo, revelam o aspecto vergonhoso da
conduta de alguns agentes que, pela negação ou pela desinformação, acaba repercutindo falsos
estereótipos.
No entanto, e pelo viés ideológico que marca esse modelo de policiamento, o resultado
do serviço policial existe quase sempre na dimensão da repressão e na imposição da sua
competência pela força, em detrimento de qualquer outra tentativa de se fazer aplicar as regras
ou promover a segurança social.
Dito de outra forma é fácil especular que, aos sujeitos desse grupo, interessa muito mais
obrigar os outros “não policiais” a respeitar as atividades da polícia do que exercer ou promover
tais atividades como atribuição profissional da segurança (“sem medo”); ainda que o façam,
por conseguinte ou por obediência irrestrita ao ordenamento jurídico.
Talvez como consequência do fundamento da autoridade e de sua aplicação prática no
cotidiano de trabalho, é notório entre esses colaboradores uma compreensão do fazer policial
associada ao pragmatismo da ação. Em outros termos, a valorização policial expressada nas
falas desses policiais contempla sempre o imediato, ou seja, é sempre atribuída ao ato policial
propriamente dito e quase nunca a uma situação alcançada por planejamento ou prevenção. É a
emergência do princípio da ação; agir antes de planejar.
Sobre a premissa, Monjardet (2012, p. 159) explica que:
O pragmatismo, frequentemente descrito como um traço cultural
policial, enraizado nas “exigências situacionais” da tarefa, se concebe
76

muito mais como adaptação razoável a um sistema de sanções que


concentra as retribuições sobre os resultados da prática policial.

Assim, parte significativa dos colaboradores argumentam diretamente que “[...] o


serviço policial é mais prático do que teórico […]” por entenderem a polícia como um modo de
produção avaliado por resultados mensuráveis na dimensão ostensiva.
Equivocamente e como consequência de tal leitura, atribui-se a polícia o poder de, em
certa medida, ditar normas, ou seja, o direito de interdição imediata ou regulamentação sobre
certas atividades da vida comum das pessoas (CATHALA, 1975).
Nessa leitura, o “bom serviço policial” é medido pela quantidade de atos de repressão o
que explica, em parte, o combate ao crime como tarefa prioritária, se não exclusiva, já assumida
pelos policiais desse grupo conforme demonstra os resultados alcançados na pesquisa e a
maioria esmagadora dos agentes (ilustrada pelas falas abaixo):
“[…] a missão da Polícia é ajudar a sociedade combatendo o crime […]”
(COLABORADOR 01, 29 anos, Guarda Municipal).
“[…] a verdadeira missão policial é garantir a segurança da sociedade
de forma preventiva e ostensiva […]” (COLABORADOR 53, 32 anos,
Policial Civil).
“[…] a verdadeira missão policial em minha opinião é a pacificação
social […]” (COLABORADOR 07, 23 anos, Guarda Municipal).
“[…] a verdadeira missão policial é reprimir o crime combatendo ou
evitando […]” (COLABORADOR 42, 28 anos, CANDIDATO AO
CARGO DE POLICIAL MILITAR).

Ainda que uma apreciação mais simples da polícia perceba a repressão ao crime como
uma tarefa socialmente mais visível, dominante e recorrente do fazer policial, é notório para
qualquer observador mais atento que esse papel não toma a totalidade do cotidiano de trabalho
e não alcança todos os setores da organização policial.
Todavia, essa demanda do trabalho é, sem dúvida, a mais valorizada, com amplo
reconhecimento no âmbito policial, enaltecimento e possibilidade de ascensão profissional, pois
o melodrama constante do fenômeno criminal é um costume marcante da cultura policial e eleva
o aspecto reativo do trabalho a condição de “nobre” mister. “[…] Quanto mais o crime se amplia,
tanto mais a função social de ‘último baluarte contra a barbárie’ é essencial […]”
(MONJARDET, 2012, p. 161).
Do grande golpe que traz notoriedade, medalha e promoção, até a caça
à “cabeça” cotidiana, toda a profissão policial, assim, se convence – e é
confirmada em sua convicção pela hierarquia, o ministro e a mídia -
que a repressão ao crime é a sua tarefa prioritária (MONJARDET, 2012,
p. 160).

Sem especificar o contexto e tomando como geral a ideia de dramatização do fenômeno


criminal como característica reincidente nas organizações policiais, a pesquisa evidenciou que
77

os jovens policiais constroem uma primeira noção do crime, e de suas nuanças, a partir de
narrativas ficcionais dos policiais mais experientes e dos relatos da “mídia policial” que, no
estado do Ceará, toma aproximadamente dezoito horas da programação televisiva
(considerando o tempo diário de todos os programas do gênero). É sem dúvida uma construção
imagética do fazer policial que implica numa formação balizada pela repressão.
Dito de outra forma, e a partir das vivências que pude compartilhar nesses doze anos de
profissão, posso especular que é o contato inicial do jovem policial com modelos simbólicos de
outros policiais declaradamente violentos e a intensa exposição midiática da violência que
condiciona qualquer entendimento que se possa construir da atividade policial, do infrator e do
fenômeno criminal.
O crime, como temática polêmica do cotidiano policial e da sociedade, enaltece o caráter
carismático das vítimas, mas também dos criminosos que, no âmbito da transgressão,
transformam-se em celebridades da violência banalizada e assumem o antagonismo teatral
narrado pelos atores que se envolvem na situação. Esses reclamam a condição de vilões e
encarnam o “mal”, enquanto do outro lado da “espada”, posicionam-se os policiais,
protagonistas e “nobres” defensores da paz pública que, através de violência reacionária,
formalmente legitimada e socialmente compartilhada por todos da sociedade, interagem de
forma dominante contra o indivíduo criminoso e são, de forma geral, recompensados por isso.
Corroborando com a reflexão acima e indagados a respeito dos fatores potenciais desse
fenômeno, parte dos jovens policiais pesquisados apresentaram uma compreensão
marcadamente reacionária acerca das condições geradoras do crime e da origem do agente
criminoso. Em suma, suas falas individualizaram as condutas e desconsideraram as questões
sociais e desigualdades que desencadeiam os muitos tipos de subversões.
Enquanto outros, a maioria, recusaram-se a comentar o tema, ou não conseguiram
desenvolver uma reflexão mais substancial sobre suas possibilidades, demonstrando
desconhecimento ou simplesmente negação.
Outro não e como exemplo recorrente nas falas, os policiais desse grupo compreendem
objetivamente o criminoso como “[…] infrator, que tem que pagar pelos seus crimes […]”
(COLABORADOR 29, NI, CANDIDATO AO CARGO DE POLICIAL MILITAR) e a
reincidência do delito como uma escolha pessoal ou como condição única de impunidade e
fragilidade do sistema judiciário, conforme expressa os colaboradores 25 (26 anos, Guarda
Municipal), 31 (23 anos, Guarda Municipal), 13 (32 anos, Guarda Municipal), 44 (24 anos,
CANDIDATO AO CARGO DE POLICIAL MILITAR), 45 (NI, CANDIDATO AO CARGO
DE POLICIAL MILITAR) e 24 (33 anos, Guarda Municipal), respectivamente.
78

“[…] O crime é causado, em muitas vezes, porque o criminoso não quer


sair de sua zona de conforto e preferir o mais fácil […]”.
“[…] Ele pode até ser vítima da sociedade, mas isso não define seu
caráter e suas escolhas […]”.
“[…] Acho o crime lamentável, porque nada justifica. Todos tem a
mesma oportunidade na lei […]”.
“[…] a certeza da impunidade impulsiona o criminoso […]”.
“[…] O crime existe porque tem muita impunidade, pois não existe lei
para os cidadãos infratores […]”.
“[…] O criminoso é alguém que quebrou as regras e deve ser punido de
acordo. O crime é causado pela impunidade […]”.

Em grande demanda, o sentimento profissional expressado nas falas dos colaboradores


reverbera o que Menandro (1979, p. 143) nos ensina sobre a relação do policial com o sujeito
criminoso. De forma geral, o autor coloca que tal correspondência é por vezes dual e mecânica,
uma vez que: “[…] o tipo de interação mais comum entre estes não é cooperativa, nem mesmo
pacífica […] o policial aprende que o uso da força é mais útil que o tato para o cumprimento
do dever imediato […]”. Outro não, posso revelar que tal noção também é disseminada nos
cursos de formação como uma “pseudoverdade” que, oculta na matriz curricular, versa
supostamente sobre a prática corriqueira do serviço.
Destarte e como uma tentativa de esclarecer certa ignorância dos limites da ação policial,
os autores também enfatizam que “[…] em subculturas nas quais a hierarquia social está
determinada por façanhas de combate, as ameaças ao status provocam rápidas respostas de
agressão defensiva […]” (MENANDRO, 1979, p. 143)
Assim, percebe-se nas falas dos agentes uma frágil relação entre a realidade e a ficção
que, sob a égide da mídia, do choque geracional e de toda cultura “pop” que desenha o caráter
heroico do profissional da segurança e, o nefasto, do sujeito criminoso, a prática policial é
condicionada à ação propriamente dita e enxuga o significado do fazer policial ao embate
violento e eficaz.
Penso que o paradigma de que o trabalho policial pode ser definido
como aquele correspondente ao monopólio do uso da força pelo Estado
– seja no plano fático, seja enquanto possibilidade coercitiva – poderia
ser substituído, com vantagem, pela ideia de que cabe à polícia
“proteger as pessoas” ou “assegurar a todos o exercício dos seus direitos
elementares”. Entre esses direitos estariam o direito à vida, à
integridade física, à liberdade de opinião e à propriedade. Missões para
as quais, como se sabe, é preciso, eventualmente, empregara força ou
deixar claro que se poderá empregá-la (ROLIM, 2006, p.28).

A meu ver, a ilusão ficcional da polícia produz, senão, obstáculos à compreensão do seu
real papel na sociedade. O que se costuma fazer é, tão somente, negar a realidade do cotidiano
de trabalho e projetar um “real” imaginado da atividade policial que, de forma fantasiosa, atenda
aos anseios dos agentes que esperam, na polícia, reconhecimento e status.
79

Nesse sentido e conforme nos ensina Bandura (1973, p. 264):


Esse sistema de reconhecimento é quase legitimado pela existência de
uma ética privada (doravante da condição policial) da polícia que não
vê como transgressão o uso de métodos violentos para prender os que
infligem à lei […] os policiais são frequentemente recompensados por
ocorrências alheias à estrutura policial.

Numa análise simples da citação e conforme percebido na pesquisa, os jovens policiais


incorporam, por coerção (docilização) ou por espontaneidade, uma noção equivocada da
realidade policial e internalizam, já nos cursos de formação e a partir de uma transmissão formal
e/ou informal da cultura policial, um sistema interno de aprovação proveniente da ação e do
combate imediato.
Sem mais, a visão reacionária de polícia configura como uma perspectiva que produz
policiais aptos para combate imediato. Corajosos e habilidosos, esses sujeitos representam
simbolicamente o poder da polícia, pois introjetam, já no momento inicial da carreira, o poder
coercitivo do Estado e personificam a responsabilidade de lutar contra qualquer um que ameace
a paz pública.
Em suma, são os “justiceiros”, ou seja, um tipo de policial que se assume e até
cumprimenta outro como “guerreiro”, trocando com ele cordialidade se este também acolhe
uma conduta reativa. Todavia e como crítica necessária a questão, esses sujeitos encerram a
missão profissional ao policiamento criminal, ou seja, ao combate e a vigilância o que, a meu
ver, reduz drasticamente o potencial da organização policial. Segurança pública deve ser
entendida para além dessa perspectiva, já que somos todos servidores da sociedade.

3.1.2 Visão Normativa: um conflito elementar entre legalidade, discricionariedade e


realidade do trabalho policial

Na condição de policial, percebo que a lógica normativa enseja uma falsa impressão de
que a polícia funciona como um sistema rígido, racional e eficaz. Que seu funcionamento opera
o sentido mais puro da lei e que a relação “intensão-resultado” é sua principal condição de
existência. Na prática, o referido argumento não passa de um ledo engano.
Todavia e insistindo na premissa, a polícia acaba por eleger a legalidade, a burocracia e
os procedimentos técnicos como fontes absolutas de orientação, gestão e efetivação, como bem
preceitua o Colaborador 37 (NI, CANDIDATO AO CARGO DE POLICIAL MILITAR) quando
coloca que: “[…] o papel da polícia é o de garantidora da ordem e de instrumento de propagação
da lei através das técnicas policiais […]”.
80

Destarte, a contradição do panorama normativo vem à tona quando, por exemplo, se


observa o conflito entre o conhecimento técnico, transmitido nos cursos de formação, e a lógica
informal, adquirida no cotidiano profissional. Refiro-me ao que os policiais chamam de
“choque de realidade”, entendido aos olhos de Muniz (1999, p. 169) como “[…] uma crítica
velada ao modelo de instrução praticado, que parece dialogar muito pouco com as situações
concretas que aparecem nas ruas […]”.
Crises de adaptação, crises de ligação de cumplicidade ou de conivência
ontológica entre o incorporado e a situação nova, essas situações são
numerosas, multiformes e caracterizam a condição humana nas
sociedades complexas, plurais e em transformação […] pode se fazer
uma lista dos casos de desvio, desatrelamento ou de desajustamento que
a observação do mundo social permite distinguir (LAHIRE, 2002, p.
49).

De forma geral e mesmo enaltecendo o aspecto legal da atividade policial que, em parte,
transcende a teoria e condiciona individualmente o comportamento dos sujeitos policiais, como
evidenciado no subtópico acima, também é consenso reconhecer uma perspectiva íntima que,
atribuída à polícia, revela uma informalidade já estrutural e compartilhada por seus membros.
Em parte, essa “[…] organização informal desempenha um papel determinante […]” na
execução do serviço, pois a todo instante a polícia reivindica, da esfera jurídica e do poder
legislativo, discricionariedade e autonomia sobre as políticas de segurança e sobre suas práticas
(MONJARDET, 2012, p. 42).
Dito de outra forma, Monjardet (2012, p. 42) nos ensina que “[…] A polícia é uma
grande organização complexa, regida por regras coercitivas, cujos membros estão longe de
partilhar uma visão idêntica das finalidades da polícia em geral e de suas próprias missões em
particular […]” o que, a grosso modo, justifica o choque de opiniões acerca da verdadeira
missão policial.
[…] a análise empírica do trabalho policial mostra imediatamente que
a ação policial é posta em movimento, cotidianamente, numa delegacia,
por três fontes. Certas tarefas são prescritas de maneira imperativa pela
hierarquia superior: o serviço deve fornecer no dia tal, à hora tal, tantos
agentes para uma transferência de detentos, aguarda do departamento
ou uma expulsão de vagabundos. Outras são respostas mais ou menos
obrigatórias às solicitações do público […] Outras, enfim, são de
iniciativa policial: tal observação (informação, acontecimento) suscitou
o interesse de um policial, ou da patrulha, e ele ou ela acompanha o
caso. (MONJARDET, 2012, p.15).

Assim e a partir de qualquer análise mais substancial, percebe-se que a formalidade da


organização policial é, em maior demanda, aparente, e existe apenas na instrumentalidade, pois
a contrassenso de toda fisionomia exposta, o fazer policial acontece na intimidade, na dimensão
do “bom senso” e dentro daquilo que caracteriza os imponderáveis do cotidiano profissional.
81

Toda organização de trabalho comporta, pois, duas faces: um lado


formal (estrutura, organogramas, recursos humanos e materiais, e seu
arranjo segundo regras explícitas que determinam a maneira como a
organização pode operar), e outro informal […] (MONJARDET, 2012,
P. 41).

O que prepondera na prática é um conjunto de comportamentos individuais regidos por


uma lógica coletiva que designa um processo de trabalho e opera o funcionamento da instituição
policial a partir de interpretação própria, de negociação individual, de compromisso pessoal e
adaptação das regras formais ao improviso do cotidiano de trabalho. Simplesmente, a segurança
pública acaba se tornando aquilo que o policial faz nas ruas.
Prosseguindo na exposição dos resultados e pontuando mais uma vez acerca das
informações obtidas no campo, a pesquisa verifica a reincidência de aspectos legais que, de
forma geral, assumem um caráter fundamental na prática e no significado que esses sujeitos
atribuem à polícia e a segurança pública, fomentando um tipo restrito e legalista de agente
policial.
Dito de outra forma e no início de suas carreiras, os jovens policiais recorrem à crença
absoluta nos regimentos, códigos e leis que regulamentam teoricamente o fazer policial para
justificar suas condutas e para alcançar certa linearidade aparente da ação e da ideia que
concebem de polícia.
Tal comportamento, a meu ver, se mostrou recorrente em boa parte dos policiais desse
grupo por apresentar uma resposta imediata e, até certo ponto, apaziguadora e reconfortante,
sobre as atribuições da polícia e de seu papel na sociedade. De forma objetiva, invocam os
ordenamentos jurídicos que estudaram antes dos certames e depois deles, nos cursos de
formação profissional.
Neste sentido, ainda que a condição policial seja inerente ao estatuto da polícia, uma
vez que a polícia também é "[…] aquela organização que tem a legitimidade de intervir quando
alguma coisa que não deveria acontecer, está acontecendo, e alguém tem de fazer alguma coisa
agora […]”, a relação entre o policial e a polícia deve ser entendida para além da estrutura, da
estética, de sua constituição legal e de sua distribuição funcional, uma vez que este agente social
é, ao mesmo tempo, regulador do sistema e sujeito regulado pela mesma dominação legal que
exerce sobre estrutura (BITTNER, 2017, p. 154).
Em suma, os policiais são normatizados em mesma demanda que os cidadãos que
policiam em nome do Estado, mas também incorporam, objetivamente e através das práticas
policiais, um sistema simbólico específico e informal, através dos estatutos, normas, códigos e
métodos da polícia.
82

Consubstanciando com a premissa, Bourdieu (2013, p. 434 e 435) entende que “[…] os
esquemas de hábitus, formas de classificação originárias, devem sua eficácia própria ao fato de
funcionar aquém da consciência e do discurso […] fora do controle voluntário […]”.
Nesse sentido, introjetam um conjunto de orientações, percepções e disposições
semiconscientes que se efetivam no agir policial e no plano do discurso a partir de reflexões
conscientes da lógica recebida. Em suma, tentam se adequar a um modelo de comportamento
institucionalmente definido (BOURDIEU, 2013).
Todavia e sobre a questão, Cathala (1975, p. 23) coloca que:
As disposições de alcance mais geral são fixadas por lei. Incube ao
legislador elaborar os textos e dogmas obrigatórios da polícia que
traçam as grandes linhas das relações profissionais. Mas a lei não pode
prever todas as situações particulares extremamente variadas que
surgem a cada instante nos grupos humanos.

Nesse sentido e longe de estabelecer consenso, a visão normativa invocada por esse
grupo, condiciona o significado do fazer policial a uma idealização opaca das práticas, da rotina
de trabalho e do contato real com a sociedade.
Tal critério, sem o ajuste das experiências, das vivências e da humanização necessária à
ocupação policial, aliena os agentes e promove empobrecimento da compreensão do papel da
polícia, uma vez que;
[…] a função da polícia não pode ser entendida de modo apropriado se
considerada apenas em termos puramente de princípios de legalidade.
Longe de só aplicar máximas legais de uma maneira ministerial, a
Polícia emprega o poder discricionário ao invocar a lei. (BITTNER,
2017, p. 96).

Contribuindo para o debate e nos alertando acerca desse paradigma, Bittner (2017, p.
95) também destaca que encerrar o papel da polícia à prática de um policiamento restrito aos
aspectos normativos têm como consequência:
[...] manter uma pretensa compreensão e concordância. Como tais
afirmações sobre a função são abstratas e não restringem as
interpretações que lhes podem ser dadas, facilmente elas podem ser
invocadas para servir propósitos polêmicos tanto daqueles que
encontram falhas nas práticas existentes como daqueles que soam a
fanfarra para louvar a polícia.

Assim e como atributo velado do trabalho policial, o processo de obtenção da


discricionariedade acontece, em maior demanda, a contrassenso da postura normativa. Portanto,
propaga-se burlando a disciplina, os códigos de conduta e toda a burocracia estatal. Enfim,
executa-se sob um processo de seleção das práticas (dentro do conjunto potencial de tarefas
existentes na dimensão da segurança pública), acúmulo de experiência e qualificação individual.
83

Não obstante, mas admitindo ser uma característica marcante do trabalho policial, como
apresentado na pesquisa, o “discernimento policial” (condição de discricionariedade), admite a
evidência da informalidade e de uma realidade policial para além da aplicação mecânica das
leis, procedimentos e ordens institucionais.
Consubstanciando com a perspectiva, Monjardet (2012, p. 45) nos ensina que:
Essa acepção da autonomia está igualmente afinada com a concepção
dominante da qualificação entre os policiais […] de longa
aprendizagem pela prática em campo e em contato com os veteranos
[…] o trabalho policial não procede de uma adição de tarefas prescritas,
mas da seleção, pelos próprios interessados, de suas atividades. Por esse
motivo, são os mecanismos desse processo de seleção que são os
principais determinantes da definição, da organização e da análise do
trabalho policial.

Avançando e tomando como análise as falas dos colaboradores 10 (29 anos, Guarda
Municipal), 33 (23 anos, CANDIDATO AO CARGO DE POLICIAL MILITAR) e 57 (38 anos,
Policial Civil), respectivamente, é notório que, na ausência de qualquer reflexão mais crítica do
significado de polícia, ou de uma elucidação de leis adicionais de procedimento, os jovens
policiais encontram na norma geral uma alternativa de julgamento para orientar suas práticas.
“[…] O policial é um agente da lei […] A Polícia é a força do Estado
para que as leis sejam cumpridas e caso isso não aconteça fazer com
que a justiça seja feita […] a missão (da Polícia) é proteger, combater
qualquer ação que se oponha a lei […]”
“[…] o policial age para manter e garantir a paz social dentro das leis
[…] A polícia constitui o poder coercitivo do Estado que visa manter a
pacificação social […]”
“[…] (a “verdadeira” missão policial é) buscar que a lei seja cumprida
de maneira mais normal possível ou tenha o mínimo de dano […] ser
policial é buscar uma excelência nas ações, onde será necessário
executar de maneira legal […]”.

Conforme se observa nas falas dos colaboradores desse grupo, a visão normativa acaba
produzindo uma matriz ficcional da realidade policial, quando atribui à polícia um leque de
responsabilidades incondicionais que não podem ser atingidas, senão e apenas, no campo
teórico do Direito.
De forma geral e ainda que a aplicação da lei seja indissociável de qualquer arranjo
social propriamente dito, Monjardet (2012) nos ensina que teoricamente a polícia é uma
instituição densa; existe como um meio, sem substância, para alcançar a segurança. Ela resiste
como uma força que, instrumentalizada na prática de uma organização de trabalho, é conduzida
por critérios políticos, ou seja, pela razão do Estado, mas se movimenta empiricamente a partir
de interesses específicos e, até certo ponto, individuais, pois não há polícia sem policiais
(MONJARDET, 2012).
84

Desse modo, atesta-se que “[…] o policiamento criminal é uma prática condicional,
mesmo que seja comumente considerado como incondicional […]”. Assim e como campo
profissional e organização de trabalho, a polícia acontece na periferia da lógica normativa, pois
desenvolve, a partir dos detentores do estatuto policial (policiais), interesses próprios de uma
cultura de ofício, bem como elementos de identidade e um sistema de distinção efetivado nas
condições de trabalho, currículo oculto de cada agente, práticas cotidianas, etc. (BITTNER,
2017, p. 257).
Pois conforme nos ensina Bourdieu (2001, p. 205), os sujeitos, na condição de agentes
sociais, são estruturantes e estruturados a partir da produção de sentido que eles próprios
produzem de si e do seu campo de atuação, ou seja, são “[…] sujeitos de atos de construção
desse mundo […]” e a polícia acaba figurando como um sistema de esquemas incorporado, ou
seja, como uma estrutura social internalizada pelos policiais.
Nesse sentido, a concepção de hábitus policial, pode ser entendida como uma maneira
de se comportar, mas ainda como uma distinção, ou seja, como uma percepção ou uma
disposição sobre o mundo da segurança pública, que se constrói na dimensão profissional, mas
que acontece intrínseca nas demais esferas da vida social (BOURDIEU, 2001).
Numa perspectiva analítica, percebe-se que o aparelho policial é, indissociavelmente,
um instrumento de poder (controle social), um serviço público (política social) e uma profissão,
desenvolvida a partir dos interesses materiais, corporativos e profissionais de sua categoria.
Não obstante, mas fundamentalmente importante para entender a condição policial, é
reconhecer que o simbólico exerce força e transforma o cotidiano dos profissionais, de tal forma,
que se efetiva na vida desses sujeitos sob um aspecto de dominação institucionalizada e
consenso social.
Também de forma resumida a dominação do corpo é exercida, velada e aceita nas
disposições do hábitus (sistema de disposições e percepções aberto), ou seja, é construída em
meio a estruturas predispostas e funcionam como reguladoras da interação dos agentes no
campo e com o campo (BOURDIEU, 2001; 2013).
De forma geral, o autor evidencia a existência de um disciplinamento efetivo que pode
ser associado, sem forçar qualquer entendimento, à formação dos sujeitos policiais e a
internalização dos costumes, valores e da totalidade da cultura policial.
Em parte, a reflexão acima foi percebida nos agentes analisados, mas também
testemunhada inúmeras vezes por esse policial-pesquisador na disposição dos sujeitos que
trabalharam comigo nesses doze anos de profissão e na forma como eles, mesmo amparados na
legislação, agiam em sua maioria com discricionariedade e informalidade profissional.
85

Tal perspectiva acontece como condição de constrangimento, conflito e tensão


estrutural, pois, longe de estabelecer consenso, a visão normativa decorre de um projeto
inacabado e impossível, uma vez que, sozinha e partir do aparato jurídico, a polícia não pode
levar justiça ou “paz social” à totalidade das pessoas. Infelizmente, isso é apenas o que se espera
ou o que se deseja que ela faça.
Nesse sentido e como consequência dessa premissa, o que se evidencia é uma relação
de incertezas, ou seja, um conjunto de ambiguidades que influência a obrigação do desfecho e
condiciona a produção de estratégias discricionárias. Como já colocado na pesquisa, à prática
do serviço policial, dentro da dimensão profissional, é marcadamente informal e, até, marginal.
Justificando a reflexão, Monjardet (2012, p. 211) coloca que “[…] a atividade policial é
sempre suscetível de ser falha, pois o estrito respeito aos meios prescritos têm um efeito
negativo nos resultados obtidos. Assim, a busca exclusiva de resultados superiores leva a se
liberar dos meios autorizados [...]”.
A tomada de autonomia policial, pela discricionariedade proveniente do discernimento
reverbera, para descontentamento dos policiais que invocam a visão normativa, um ajustamento
ao cotidiano de trabalho que acontece em meio à negociação, adaptação e ajuste. É a condição
de improviso do trabalho que, mesmo evidente entre os policiais que compartilham seu dia-a-
dia, é velado e até negado pelo discurso oficial do Estado.
De forma geral, qualquer decisão no âmbito profissional é sempre uma escolha repleta
de inconstância e, quase nunca, é estabelecida a partir de um consenso entre aquilo que é
esperado da polícia e o que é verdadeiramente alcançado e possível no cenário real das ruas.
Pois como coloca Bittner (2017, p. 256):
[…] ao decidir se vão ou não invocar a legislação, os policiais devem
considerar alguns interesses políticos gerais. Por exemplo, comumente
se entende que a legislação não deve ser invocada contra cidadãos com
fichas totalmente limpas que forem suspeitos de terem cometido delitos
técnicos e relativamente triviais.

Por fim, a partir de um entendimento possível do dilema e enquanto instituição, a polícia


existe como disposição do sistema normativo, mas como organização profissional, a corporação
funciona em maior demanda na informalidade, o que justifica localizar-se por vezes na periferia
da lei, executando suas tarefas como ajustamentos legítimos e ilegítimos do cotidiano policial.
Tal nuança, mais uma verdade inconveniente do cotidiano policial, caracteriza-se sob o
limiar das incertezas, a partir de um cenário informal e repleto improvisos; desqualificando
qualquer perspectiva mais regular de policiamento e atestando mais arranjos e personalização
do trabalho policial ordinário.
86

3.1.3 Visão Crítica: uma ilustração do paradigma clássico e o prefácio da mudança na


atividade policial

Como bem nos ensina Kundera (1990, p. 17) “[...] a armadilha do ódio é que ele nos
prende muito intimamente ao adversário [...]”. Sob essa reflexão, é preciso afirmar que a polícia
precisa ser compreendida como uma expressão de democracia; ela nasce na democracia e dela
emerge como sua guardiã. É a “espada” que iguala todos os homens e conduz a vida social sob
o prisma da justiça e da segurança.
Não obstante, qualquer prática abusiva ou desviada, qualquer forma mal concebida de
sua essência e de seu estandarte é uma escolha particular de seus operadores e, da polícia, nada
participa. Afinal, ela é uma força e, como tal, precisa ser guiada por algo ou alguém que a
distribua de forma igualitária.
Tomando como ponto de partida a reflexão inicial, ressalto que uma das mais
importantes realidades observadas no campo profissional da polícia é o caráter singular e
situacional que promove a oportunidade de encontrar todos os tipos de agentes, em suas mais
diferentes ambiguidades. Alguns policiais são verdadeiros paladinos, com sensibilidade
aflorada, são capazes de doar a própria vida para cuidar das pessoas. Enquanto outros,
promotores de proteção seletiva, são indivíduos corruptos e capazes de formular e executar as
mais abusivas ações e promover os mais variados tipos de violência.
Na mesma linha de reflexão, é fácil perceber que o espaço de subjetividade que tanto
marca o “fazer policial” e que permite um repensar do modelo de policiamento mais clássico,
também opera no sentido de reproduzir condutas marcadamente ilegais, veladas sob o
dissimulado discurso da honra, da disciplina e das hierarquias policiais. Nessas situações, o
policial passa a figurar em dois mundos: um aparente, onde ele continua acreditando carregar
uma missão superior e outro confidencial, onde os ilegalismos da prática cotidiana tornam-se
comuns e até justificáveis, considerando os mais difusos motivos e nunca admitindo o declínio
moral envolvido na questão (SILVA, 2015).
Infelizmente para esses agentes, esse distanciamento é definitivo e a reaproximação
profissional é um “[…] processo inevitável de revisão de seus valores institucionais, dos seus
fantasmas, enfim, de seu passado paradoxal […]” (MUNIZ, 2001, p. 185).
Ainda que seja uma perspectiva “clichê” entre os profissionais da segurança pública, é
comum reconhecer como uma verdade do trabalho, a ideia de que, na prática, qualquer função
policial é um caminhar inseguro numa linha tênue entre “uma escolha mais certa e, outra,
87

fatalmente errada”. O que, em parte, é usado para justificar a omissão profissional ou as ações
abusivas que desencadeiam resultados ruins.
Não obstante, discordo fortemente do enunciado e vou justificar minha posição narrando
um dos muitos episódios que ilustram a ilegalidade do serviço policial em sua faceta mais
nefasta. Como desabafo e repúdio, defendo a ideia de que os sujeitos policiais escolhem
livremente o que fazer no serviço ordinário e que, qualquer atitude arbitrária (escolha errada),
ou mesmo criminosa, é protagonizada por pessoas de má índole, cruéis e indignos que, nem de
longe, podem ser considerados agentes da lei.
Novamente não recordo o dia, mas lembro claramente que era Novembro de 2009. Era
praticamente um novato na instituição e sem poder de escolha, trabalhava no patrulhamento
noturno e itinerante (em viatura caracterizada) da Praia de Iracema (Fortaleza-CE), de 18:00 da
noite às 06:00 da manhã do dia seguinte.
De forma geral, o serviço era bastante tranquilo e, salvo pequenos furtos ou conflitos
menores que eram resolvidos com mediação, a atmosfera do lugar era sempre pacífica e boa
parte do expediente era bastante prazeroso. Afinal de contas, era um privilegio trabalhar de
frente para o mar quase todo dia.
Todavia e no dia do episódio, o lugar parecia mais denso e repleto de animosidades.
Atendemos inúmeras ocorrências e prestamos apoio para outras tantas denúncias informais,
aquela noite estava realmente mais sombria e parecia longe de chegar ao fim.
Assim e em uma das muitas solicitações informais que nos tiraram o sossego naquele
plantão, a equipe deparou-se com possíveis assaltos no “espigão” da Av. João Cordeiro,
construção de contenção marítima que também serve de entretenimento para os transeuntes no
local. De pronto, nos deslocamos ao local e lá chegando desembarcamos da viatura.
Com cautela, em virtude da queixa, da escuridão, do horário e do silêncio mórbido que
caracterizava o lugar naquele momento, caminhamos apreensivos no espigão em direção ao
oceano. Todavia e para felicidade geral da equipe, nada encontramos de concreto e o local
parecia na mais perfeita normalidade.
Imediatamente, optamos por retornar e continuar a ronda. Contudo e quando
caminhávamos de volta a praia, o comandante do grupo (policial mais antigo em serviço)
observou o que parecia ser claramente um casal namorando no local. Naturalmente e por
questão de privacidade, estavam em um local bastante furtivo do paredão rochoso e sua posição
não foi percebida em um primeiro momento, dado a tensão da situação anterior.
Tomado pela curiosidade, o comandante caminhou até o par de namorados e chegando
a uma certa distância percebeu se tratar de um casal homoafetivo. Sem qualquer razão aparente,
88

ordenou que levantassem, subissem até o calçadão e se prostrassem na frente da equipe.


Ironizando sarcasticamente a situação (em virtude do preconceito que trazia consigo), partiu
pra cima dos jovens com uma ferocidade irracional, motivada, a meu ver, pela mais injusta
manifestação de homofobia.
Em uma fração de segundos, o policial envolveu os jovens numa abordagem
injustificada e demasiadamente violenta. Começou com gritos e num piscar de olhos já desferia
golpes violentos e desproporcionais com a “Tonfa” (bastão policial).
Atônico com a perversidade do policial, observei perplexo a cena de agressão na medida
em que os jovens se negavam a aceitar a injustiça e reagiam aos comandos do malfeitor. “_Isso
é porque somos gays?”, questionava aos prantos um dos jovens envolvidos na situação. Foi sem
dúvida um espetáculo covarde e revoltante.
Profundamente entristecido com o episódio, mas ainda relutante, dado o estágio
probatório e o medo de sofrer assédio moral na instituição, intervi de forma tímida (em conjunto
com os demais membros da equipe), mas o suficiente para cessar as agressões. Furtivamente,
orientei os jovens para que fossem denunciar o ocorrido na corregedoria da instituição,
revelando ainda o prefixo da viatura e alertando para que atentassem para a identificação do
agressor.
No dia seguinte, procurei o supervisor imediato e relatei o ocorrido, mas nada consegui,
a não ser um “suspeito convite” à transferência de equipe. Nada mais soube a respeito, nunca
recebi nenhuma notificação oficial da corregedoria e o assunto entrou no esquecimento.
Contudo, o episódio me marcou e me fez perceber o quanto a minha atitude pode, de
fato, gerar transformação. Prometi pra mim, enquanto policial e ser humano, que jamais
deixaria aquilo acontecer novamente. A polícia tem que fazer o que é certo, tal como prescrito
na Constituição vigente e nada mais.
Tomando o desfecho do episódio acima como um relato espúrio de “ética corporativista”
que, em verdade, é a própria negação da ética e a prova factual da existência de um paradigma
profissional que precisa ser superado, a pesquisa aponta para um eco que vem de dentro das
organizações policiais e desponta como um desejo de mudança e de reconhecimento para uma
nova forma de ver a atividade policial.
Na sua essência, a segurança pública é construída à luz da democracia, pois figura como
um dever do Estado, como um direito e como responsabilidade de cada cidadão. Portanto, todos
podem colaborar para o seu bom andamento, bem como opinar e contribuir para o seu
desenvolvimento.
89

Nesse sentido e diante da complexidade de seu campo profissional, a sociedade anseia


da polícia uma concepção mais humana de suas práticas e um juízo inovador do seu sentido. O
que não tarda a acontecer.
Na emergência do séc. XXI e diante dos muitos aspectos políticos que nos fazem crer
no desenvolvimento da instituição policial, avança dos cursos de formação um julgamento
essencialmente crítico da atividade policial que almeja marcar o fim do paradigma conservador
e construir um novíssimo olhar sobre o significado que se atribui aos sujeitos policiais.
Nesse sentido e com a profissionalização constante dos policiais, essa perspectiva
tornou-se uma questão de ordem para a Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP)
que postulou novas ações formativas para os profissionais de segurança pública. O que, dito de
outra forma, movimentou o paradigma vigente sobre a polícia e produziu uma concepção mais
humanizada, potencializando o caráter pedagógico, cidadão e ético do agente.
Assim e sobre reflexão, Balestreri (1998, p. 8) afirma que:
Há, assim, uma dimensão pedagógica no agir policial que, como em
outras profissões de suporte público, antecede as próprias
especificidades de sua especialidade. Os paradigmas contemporâneos
na área da educação nos obrigam a repensar o agente educacional de
forma mais includente. No passado, esse papel estava reservado
unicamente aos pais, professores e especialistas em educação. Hoje é
preciso incluir com primazia no rol pedagógico também outras
profissões irrecusavelmente formadoras de opinião: médicos,
advogados, jornalistas e policiais, por exemplo.

Destarte e a fim de estabelecer um parâmetro para o respectivo desafio, os primeiros


projetos que ensejam o desígnio de conceber um plano de segurança progressista remontam a
década de 1990 onde começaram os esforços sistemáticos de elaboração de políticas públicas
de segurança baseadas numa perspectiva contemporânea, identificada com a combinação entre
eficiência e direitos humanos (CARVALHO E SILVA, 2011).
Todavia, foi apenas em 2002 que surgiu o Programa Nacional de Segurança que, a meu
ver, figurou como uma incipiente noção de segurança pública integrada e reflexiva,
contemplando diversos setores sociais e dando voz a totalidade dos especialistas “não policiais”
(CARVALHO E SILVA, 2011).
Tal compreensão, despontando como um debate em processo de hegemonia, projetou a
Nova Matriz Curricular que passou a vigorar em 2014 com o slogan de “novos tempos, novas
medidas”. O projeto almejou caracteriza-se como um referencial teórico e metodológico para
orientar as ações formativas, iniciais e continuadas, dos profissionais da segurança pública
(BRASIL, 2014).
90

Outro não, “[…] as ações realizadas nos espaços educativos deveriam estar voltadas
para o desenvolvimento das competências profissionais necessárias à atuação do profissional
de segurança pública no contexto em que as necessidades e as exigências sociais se estabelecem
[…]”, ou seja, o novo olhar sobre a segurança pública rompe com o modelo reativo de polícia
e oportuniza formar policiais adaptados as singularidades sociais. Em suma, é o projeto de um
policial mais humanizado e sensível às condições de desigualdade que tanto marcam o nosso
país (BRASIL, 2014).
Conforme Balestreri (1998, p. 11), a ideia era formar bons policiais que, para além dos
atributos físicos e da destreza, entendessem seu papel, ou seja, internalizassem a ideia de ser
“[…] um policial, ciente de seu valor social […]”.
De forma geral e na opinião desse policial-pesquisador, o projeto em si não funcionou
na totalidade daquilo que desejava. Todavia e como condição de transformação política, pro-
vocou o germe da mudança e fez surgir, dos cursos de formação, jovens policiais e novíssimas
visões sobre o papel da polícia que justificam, atualmente, a visão crítica que desponta em parte
dos colaboradores da pesquisa.
Nesse sentido e conforme verifica-se na fala do Colaborador 01 (29 anos, Guarda Mu-
nicipal) “[…] ser policial é servir a comunidade […], a visão crítica da atividade policial pro-
move a construção de sujeitos, cuja a identidade policial perpassa pelo desenvolvimento de uma
concepção ampliada do papel da polícia.
Outro não, atesta-se como um argumento reincidente nesse grupo, a ideia de encarar a
missão policial como uma prática para além do policiamento criminal. Em suma, como um
conjunto de ações que englobam certo amparo social e um contato mais humanizado com qual-
quer pessoa ou situação de conflito.
“[…] A verdadeira missão policial é estar sempre à disposição de
qualquer cidadão para ajudar […]” (COLABORADOR 23, 29 anos,
Guarda Municipal).
“[…] A Polícia é formada por agentes da lei que se designam a serem
homens que promovem a justiça e protegem a sociedade […]”
(COLABORADOR 39, 25 anos, CANDIDATO AO CARGO DE
POLICIAL MILITAR).

Dito de outra forma, esses sujeitos entendem, na totalidade e a contrassenso do para-


digma anterior, a própria condição policial. Como evidenciado nas falas abaixo, os policiais
acabam despertando uma consciência mais ampla das categorias que permeiam sua prática, bem
como do sentido que constroem de si.
“[…] Não existe resposta certa. Muitos crimes são cometidos por
pessoas que estão à margem da sociedade e não conseguem ter as
mesmas oportunidades do que aqueles que têm toda uma base familiar
91

e uma boa renda econômica […]” (COLABORADOR 33, 23 anos,


CANDIDATO AO CARGO DE POLICIAL MILITAR).
“[…] Aquele que na sua vida sofre preconceitos, dificuldades, onde o
Estado não está presente e isso acarreta problemas sociais, gerando
violência e atingindo a sociedade […]” (COLABORADOR 31, 27 anos,
CANDIDATO AO CARGO DE POLICIAL MILITAR).
“[…] (o criminoso) é um sujeito vulnerável nessa sociedade desigual e
preconceituosa que fica à mercê de um sistema hipócrita e covarde que
envolve muita gente poderosa […]” (COLABORADOR 36, 26 anos,
CANDIDATO AO CARGO DE POLICIAL MILITAR).
“[…] (o crime e o criminoso surgem) devido à grande desigualdade
social que cria abismos entre as pessoas […]” (COLABORADOR 19,
35 anos, Guarda Municipal).
“[…] Creio que o meio tem uma forte influência o surgimento do
criminoso, embora não seja determinante para isso. Creio que sua
existência está ligada a status e poder que o crime parece oferecer.
Ostentar isso é a principal causa do fenômeno criminal se disseminar
tão facilmente em áreas carentes e marginais das políticas públicas […]”
(COLABORADOR 18, 38 anos, Guarda Municipal).

Ainda que a compreensão não seja absoluta na ação individual de cada sujeito pesqui-
sado, porque também não se pode idealizá-los por completo, tal perspectiva desperta uma re-
flexão sincera sobre o papel social da polícia e desbrava um novíssimo caminho na totalidade
do universo policial. E isso foi recorrente entre esse grupo de policiais. Enfim, percebe-se que
esses jovens policiais acabam desenvolvendo um paradigma renovado da prática policial.
92

4 “MANDA QUEM PODE, OBEDECE QUEM TEM JUÍZO”: A OUTRA FACE DA


HIERARQUIA E DA DISCIPLINA NAS ORGANIZAÇÕES POLICIAIS

“[...] Estamos usando nosso cérebro de maneira excessivamente


disciplinada, pensando só o que é preciso pensar, o que nos permitem
pensar [...]” 22
(José Saramago)

Era Dezembro de 2013 e compartilhava entusiasmado com meus colegas policiais os


resultados de uma investigação. Celebrava o êxito de ter descoberto, depois de quase um mês
de observações e análises, o paradeiro de um fugitivo condenado por latrocínio 23(condenado
há doze anos de prisão). Sem poder dar detalhes da empreitada, mas orgulhoso de ser um
“novato” na polícia judiciária, recordo que me preparava para diligenciar até o endereço do
sujeito quando fui subitamente detido pelo chefe imediato.
Ainda na recepção da delegacia, o superior argumentou que aquela missão tinha sido
temporariamente cancelada pois, supostamente, havia outra de caráter mais urgente e
importante. Naturalmente frustrado, mas acatando a ordem do gestor, dei “última forma” (voltei
atrás) e retomei o expediente ordinário.
Para meu desencanto, não demorei muito a descobrir que a tal missão importante não
passava de uma fraude, pois fui obrigado a prestar assistência, sem qualquer motivo aparente,
a um parente do supervisor que chegara de viagem e precisava de apoio logístico no aeroporto.
Furioso, protestei de imediato alegando que aquilo não era meu dever e que, nem de
longe, aquela ordem era mais significativa do que a do serviço anterior que foi injustamente
revogada. Retrucando, o superior hierárquico me olhou diretamente, se aproximou e disse (em
tom severo): “_Novato, na polícia, manda quem pode e obedece quem tem juízo”.
Sem necessidade de uma interpretação mais substancial da situação, a fala da autoridade
enxuga o que se pretende debater nesse capítulo e que, sumariamente, é velado ou negado no
universo da segurança pública, ou seja, as muitas faces da Hierarquia e da Disciplina, como
categorias nativas do fazer policial.
Diferente das forças armadas, as duas ressalvas acima funcionam na polícia por certos
critérios que, em muito, fomentam muitas interpretações e até desentendimentos na atividade

22
Palestra de abertura do curso "Literatura e poder. Luzes e sombras", na Universidade Carlos III, em Madri, em
19 de janeiro de 2004, Agência Carta Maior. Disponível em:
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=1626 "Saramago prega retorno à
filosofia para salvar democracia".
23
Latrocínio é um crime (tipo penal). É um homicídio (crime-meio) derivado do crime de roubo (Art. 157, §3º
do CPB).
93

policial. Correndo o risco de qualquer exagero literal, é fácil atestar que existe uma doutrinação
imposta às organizações policiais e que, tal empreendimento, é levado a cabo como um esforço
necessário ao aspecto situacional do serviço.
De modo grosseiro e independente da força policial, para lidar com as nuanças da
profissão argumenta-se que os agentes, a semelhança dos militares, precisam ser obedientes ao
ordenamento e desempenhar seu trabalho sob qualquer imposição ou dificuldade. Ainda que as
circunstâncias da disciplina e da hierarquia aconteçam de modo peculiar em cada instituição24,
considerando que existe maior ou menor intensidade de imposição a partir da estrutura
organizacional e do regimento de cada força policial, os operadores de segurança precisam
assimilar tais ordenamentos como regra e os executam como orientação importante de suas
condutas. Independente da instituição a qual pertença, é consenso profissional que qualquer
policial precisa obedecer as funções que desempenha e respeitar a ordenação progressiva da
autoridade que o delega.
Dito de forma simples, todo agente é condicionado, em menor ou maior intensidade, por
esses signos da cultura policial e opera suas ações a partir deles. Invariavelmente, a disciplina
e a hierarquia são preceitos de um “modo de ser” policialesco que, como parâmetros, são
espelhados na disposição dos sujeitos no campo. Em suma e conforme relatou o Colaborador
35 (CANDIDATO AO CARGO DE POLICIAL MILITAR, 29 anos): “[…] Os policiais
respeitam a hierarquia, a disciplina e o treinamento […]”, como regras.
Evidente em todas as organizações pesquisadas, tais dispositivos são difundidos já no
início da formação e se estendem à prática profissional como ideias veladas, mas provocadoras
de conformação ou conflito. A verdade inconveniente é que, para qualquer policial, ajustar esses
princípios e “[…] administrar a identidade profissional de polícia, no embate das relações
cotidianas, não tem sido uma tarefa existencialmente tranquila […]” (MUNIZ, 1999, p. 256).
Prosseguindo e para debater as categorias nativas elencadas no capítulo, dividiu-se a
sessão em duas partes distintas, mas correlatas no desafio de entender suas singularidades nas
organizações policiais.
A primeira objetiva discutir a relação entre o caráter cerrado da polícia e o processo de
internalização da disciplina (e da hierarquia), enquanto a segunda, tem o intuito de discutir a

24
Na Polícia Civil, por exemplo (diferente da Guarda Municipal de Fortaleza e da Polícia Militar), as relações
hierárquicas acontecem com menos embate, de modo livre e sem maiores cobranças administrativas. Todavia
e sempre que possível, os Delegados fazem valer sua autoridade quando se acham confrontados. Em verdade,
a hierarquia na PCCE é velada e existe como uma ferramenta de poder e influência.
94

informalidade das relações hierárquicas e suas disposições mais cotidianas no campo da


segurança pública.
Outro não, tais temáticas são dispostas como marcas analíticas que inserem-se no
universo cultural da polícia e desvendam um mosaico de disposições reveladoras de um
cotidiano proibido, mas real e condicionante das identidades profissionais dos agentes.

4.1 O “espírito de corpo” e a sujeição do indivíduo policial: a internalização da disciplina


(e da hierarquia) e o cenário de isolamento social da polícia

Como uma reflexão observada no campo e ainda que se verifique traços comuns de um
modelo profissional mais geral, percebe-se que cada instituição policial pesquisada existe a
partir de uma lógica singular, desenvolve um tipo próprio de policiamento nas ruas e celebra
uma relação específica entre seus membros.
Amiúde, a Guarda Municipal de Fortaleza, a Polícia Civil e a Polícia Militar do Ceará
compartilham um Ethus correspondente e articulam fazeres semelhantes, mas desempenham
funções distintas e vinculam interpretações diferentes de si no âmbito da segurança.
Sobre a premissa, Bourdieu (1996, p. 27) nos ensina que:
O espaço social me engloba como um ponto. Mas esse ponto é um ponto
de vista […] uma perspectiva definida em sua forma e em seu conteúdo
pela posição objetiva a partir da qual é assumida. O espaço social é a
realidade primeira e última já que comanda até as representações que
os agentes sociais podem ter dele.

Tais práticas obedecem a esquemas classificatórios que reverberam, a meu ver, a forma
como cada força policial interpreta os códigos da segurança pública e entende seus fundamentos.
Assim, cada instituição é uma classe e um espaço social em si, com seus respectivos “modos
de ser” e mecanismos de reprodução.
Desenvolvendo a premissa, Sá (2002, p.49) entende as características do treinamento
policial, por exemplo, como aspectos que “[…] objetivam fixar o indivíduo (policial) no seu
campo de ação (polícia) […], afastando-o dos códigos e valores do mundo exterior […] (e)
conferindo-lhes sentido próprio […]”.
Em suma, esse modelo de formação almeja introjetar, nos agentes, noções fechadas de
autoridade que, de forma ortodoxa, caracterizam as instâncias policiais como organizações
marcadamente disciplinadas. Também de forma geral, “[…] os conceitos de disciplina e
hierarquia foram emergidos e tensionados por uma política de controle social que primeiro se
exercia nos agentes do Estado […]” (SILVA, 2015, p.77).
95

Embora esteticamente percebida com facilidade (evidente na fala, na postura ou no


discurso, por exemplo) e cedendo margem para uma redefinição constante na prática cotidiana,
a doutrinação policial age nos agentes de forma sutil, fabricando ou docilizado os corpos como
disposições semiconscientes de uma representação institucionalizada de poder.
Nesse processo, os sujeitos são domados progressivamente e, mesmo depois da
capacitação formal, as ideias fixam-se como doutrinas que os levam a acreditar fazer parte de
algo maior do que eles, ou seja, os policiais internalizam o “espírito de corpo” e o discurso
institucional, tornando-se, também, instrumentos de disciplinamento e partes menores da
polícia que praticam.
Tal exercício é, nas palavras de Bourdieu (1997, p.27), “[…] o princípio de uma visão
assumida, a partir de um ponto situado […]”. É quando os policiais internalizam uma lógica
própria e promovem solidariedade institucional a partir de então.
Dito de forma simples, é a construção daquilo que Durkheim (2015, p.6) chamou de
moral profissional, ou seja, é a emergência de uma autoridade sobre as vontades individuais
“[…] que os obrigam a agir desta ou daquela maneira […] que impõem limites a seus pendores
e os proíbem de ir mais longe […]”.
Em suma e conforme essa assimilação avança, o sujeito deixa de ser “um” para tornar-
se uma categoria profissional de “muitos”. Já disciplinado, assume-se enquanto instituição e
espelha um conceito opaco e normativo de disciplina; conforme observado nas falas abaixo.
“[…] Hierarquia é como uma pirâmide, onde um cargo está acima de
outro por uma questão de organização, onde o cargo de cima comanda
e repassa ordens para o cargo a baixo […] já a disciplina é o ato de pôr
em prática ordens recebidas de forma diligente e organizada […]”
(POLICIAL CIVIL, 37 anos, 13 anos de carreira).
“[…] Hierarquia e disciplina são regras em uma instituição onde os
membros seguem princípios de uma cultura profissional de
‘antiguidade’ e respeito aos seus componentes […] é um seguimento
em classes profissionais que precisam de regras […]” (CANDIDATO
AO CARGO DE POLICIAL MILITAR, 38 anos, 12 anos de carreira).
“[…] Hierarquia são os graus (patente) que indicam quem são os
superiores. Disciplina é um modo de agir dentro da instituição,
preestabelecido em regimentos […]” (GUARDA MUNICIPAL, 35
anos, 4 anos de carreira)

Tal exercício aponta a própria distribuição de autoridade (hierarquia) e edita as relações


que acontecem dentro da instituição a partir daí. Nesse sentido e ao iniciar qualquer interação
profissional, os sujeitos policiais expressam o reconhecimento da desigualdade hierárquica
como condição primeira de suas ações (OLIVEIRA, 2005).
96

Encarando a conduta como um comportamento desejado, essa disposição torna-se um


traço conservador da cultura policial e avança como uma característica solidária dentro das
organizações policiais.
Refletindo esse processo de condicionamento, Foucault (1997, p.118) nos ensina que:
O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma
arte do corpo humano, que visa não unicamente ao aumento de suas
habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de
uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente
quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política das
coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação
calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos.

Avançando e para que o treinamento se efetive, se faz necessário sobre os jovens


policiais o olhar hierárquico da instituição, como um exercício de reconhecimento constante e
ininterrupto que, enaltecendo ou repreendendo a conduta dos agentes, supervisiona
sorrateiramente um “modo de ser” marcadamente policialesco e regular.
O sucesso do poder disciplinar se deve, sem dúvida, ao uso de
instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua
combinação num procedimento que lhe é específico, o exame
(FOUCAULT, 1997, p. 143).

É fácil ilustrar a reflexão quando se indaga qualquer profissional da segurança a respeito


de seu “supervisor imediato”, ou seja, acerca do sujeito, também policial, mas de graduação
superior, que fiscaliza seu serviço diário, auferindo competência a sua postura e ao seu
comportamento.
De forma simples, se estabelece entre esses uma relação de poder que é condição da
disciplina imposta de um sobre o outro. No caso específico da polícia, é a disciplina que
acontece de modo decrescente, do maior para o menor e, da instituição, para com ambos; ou
ainda da sociedade para com a polícia.
Em todos os casos, sempre há uma apreciação imposta, pois o receio de ser julgado
profissionalmente é um sentimento comum entre os agentes da lei, já que carregam consigo o
estigma de ter, a todo momento, que seguir um modelo pré-determinado de policiamento e não
desviarem dele, mesmo que essas regras neguem suas individualidades.
É, outro não, a contradição contida na idealização do “bom policial”. Dito de forma
simples, é o dilema diário entre “ser eficaz” e satisfazer individualmente suas pretensões
profissionais ou, resignar-se a respeitar, tão somente, o regulamento imposto por sua instituição
e pelas leis (MONJARDET, 2012).
Todavia e já que não existe uma noção consensual de eficácia no trabalho policial, a
natureza circunstancial do serviço acaba operando um sentimento de frustração constante, uma
97

vez que se espera do policial um acervo imenso de práticas e saberes de que ele não dispõe
normalmente. A procura de uma eficácia é inegável, seja ela mantida pela pressão hierárquica,
sustentada pelo coletivo de trabalho ou autodeterminada pelo simples desejo de “fazer direito
o seu trabalho” e de ser “útil” (MONJARDET, 2012, p.165).
Refletindo os pontos acima, Foucault (1997, p. 149) nos ensina que de modo rigoroso,
“[…] a penalidade disciplinar é a inobservância […] (é) tudo que está inadequado à regra, (ou
de) tudo o que se afasta dela, (enfim) os desvios […]”, ou seja, é a dura censura que recai sobre
o corpo dócil, ainda em processo de submissão, que funciona como corretivo e sujeição, uma
vez que “[…] a transmissão cultural é, na maioria das vezes, questão de tempo, de repetição, de
exercício, pois trata-se de instalação progressiva de hábitos do corpo […]” (LAHIRE, 2002, p.
176).
Não obstante, essa relação hierárquica revela uma tensão oculta no cotidiano que parece
acompanhar todo o expediente ordinário e acaba produzindo efeitos colaterais no contato direto
com a sociedade e na percepção que os policiais concebem de si.
Agir ou omitir-se, nesse sentido, torna-se um dilema corriqueiro, pois o medo de censura
institucional (e social) é uma realidade marcante no serviço policial e produz subversão e
vergonha, como bem preceitua o colega Guarda Municipal (52 anos, 27 anos de carreira)
quando revela um receio comum:
‘[…] aqui tem muita cobrança […] tá (está) todo mundo de olho […]
quem não é visto não é lembrado, mas quem é lembrado é sempre
perseguido […] pelo sim ou pelo não, o ‘bizú’25 é se ‘amoitar’26 […]”.

Analisando a fala acima, Muniz (1999, p. 256) nos ensina que “[…] as organizações
policiais e seus integrantes sempre estiveram sob a mira (de) dos olhares atentos e vigilantes
[…]” o que, como uma divergência da própria subordinação que impõe, revela uma verdade
inconveniente sobre suas interações sociais.
Polícia e sociedade se isolam a partir do “choque de realidade” que produzem de si e,
tal ruptura, acontece no exato momento onde a “[…] coerência entre a regra jurídica e as
práticas da vida diária […]” torna-se vazia. Sucintamente, ambos são absorvidos pela dimensão
do privado e os segredos dessa proximidade são ocultados para o “bem-estar” da primeira e por
conveniência da segunda (DAMATTA, 1986, p. 65).

25
Expressão doravante do Jargão Policial ordinário. Significa “informação privilegiada”.
26
Expressão doravante do Jargão Policial ordinário. Significa “omitir-se sorrateiramente às obrigações do serviço”.
98

Como bem coloca Simmel (2004, p. 145-146), “[…] o segredo é também a expressão
sociológica da maldade moral […] dar-nos uma posição de exceção […] é tanto mais eficaz
quanto a sua posse exclusiva […]” (pois) aquilo que é negado a muitos deve ter um valor
especial […]”.
Sobre a questão, Monjardet (2012, p. 198-200) coloca que:
A distância policial não é “proativa”, ela não tem raízes numa dúvida
policial universal sobre a honestidade de todo cidadão, ela é “reativa”:
proteção dirigida contra a suspeita voltada para o outro […] (Ou) se é
policial ou não se é […] o outro é a favor ou contra a polícia e os
policiais.

Na mesma linha, o autor (MONJARDET, 2012, p. 197) também nos ensina que o
processo de aliciamento profissional enseja “[…] uma cultura policial do sigilo que impregna
toda a profissão e o funcionamento policial até as atividades mais anódinas e mais triviais […]”;
o que, historicamente, limitou a liberdade e promoveu mais resignação interna, como um quadro
incoerente do processo de sujeição disciplinar.
A negação dos erros e dos vícios policiais, pela “síndrome da honra”, imposta pela
doutrinação ou por simples conveniência administrativa, fez da polícia uma organização
fundamentalmente reativa a qualquer outra que não experimenta empiricamente a sua condição
profissional.
Em suma e ainda de acordo com Monjardet (2012, p. 200), “[…] as mais vivas críticas
são negadas com convicção […]” porque é preferível enxuga-las internamente e ser solidário
aos colegas que cometem os erros, do que reconhecer publicamente as falhas da polícia.
Qualquer outro, “não policial”, só pode ser aceito se aderir à respectiva conjuntura,
legitimar e assumir uma postura de aliado; entoar um discurso a favor da polícia e ascender
suas bandeiras com convicção.
Nesse viés, as organizações policiais afastam-se de qualquer discussão mais abrangente
a seu respeito. Isolando-se e denegando progressivamente a dimensão participativa, acabam
provocando corrupção administrativa e produzindo opressão social em vez de liberdade
democrática. De forma geral, apenas reproduzem os muitos estereótipos que são construídos
equivocadamente a seu respeito.

4.2 “Peixe, peixinho e peixada”: a (des) valorização profissional dos agentes menores e os
arranjos hierárquicos na polícia cearense

Sempre fui curioso a respeito dos colegas policiais egressos das forças armadas. Me
perguntava constantemente, como esses jovens agentes se adaptavam tão facilmente àquela
99

rotina disciplinada e como, de forma peculiar, absorviam as noções de hierarquia doravante das
instâncias policiais. É obvio que, em um primeiro momento, o leitor vai achar típico esse ajuste,
posto que esses sujeitos viveram sob o limiar do militarismo e que essa condição produz homens
dispostos ao serviço da segurança.
Todavia, ressalto que na polícia essas noções assumem um caráter singular e que, para
esses sujeitos, a adaptação sempre foi mais traumática do que para os demais. Em muito, esses
agentes revelam um choque de interpretações ao fazer qualquer comparação entre suas antigas
ocupações (nas forças armadas) e o seu trabalho na polícia. Em cada ofício, existem aspectos
profissionais bem diferentes e a hierarquia e a disciplina tomam sentidos mais confusos.
Conversando com um dos respectivos colegas sobre a questão (GUARDA MUNICIPAL,
41 anos, 12 anos de carreira e ex-soldado da aeronáutica), perguntei incisivo que diferenças ele
encontrava entre sua instituição atual e a Aeronáutica, onde “serviu” por mais de seis anos.
De pronto, ele revelou com certa indignação a natureza patrimonial da polícia que, sob
certa conveniência, funciona a partir de privilégio e regalismo. Conforme seu depoimento e a
semelhança de outras instâncias do serviço público, a “cadeia de comando” policial opera por
meio de negociações e “conchavos”, rompendo com o ordenamento e promovendo nepotismo.
O que, segundo ele, não era comum na sua antiga instituição.
“[…] Uma grande diferença que vi entre as duas instituições com
relação a hierarquia e disciplina é o fato que na guarda municipal a
política interfere nesses dois pilares, pois tem guarda que através de
alguma influência política quebra as ordens do superior hierárquico
ferindo assim gravemente a hierarquia e disciplina […] na aeronáutica,
é levado ao pé da letra esses dois institutos que independente do posto
do militar, caso descubra será penalizado para servir de exemplo […]
um Guarda recém-chegado na instituição é lotado no terminal de
ônibus, porém ele procura sua influência dentro da prefeitura para
trabalhar em outro local que o servidor bem quiser ao seu livre arbítrio
[…]”.

Tal percepção, em um primeiro momento e a partir das vivências desse policial-


pesquisador, reflete as relações de trabalho que, dentro das instituições de segurança, acontecem
na emergência da conveniência pessoal e sob o crivo de uma hierarquia ajustada aos interesses
privados “[…] abrindo caminho para a corrupção burocrática e ampliando mais desconfiança
no poder público […]” (DAMATTA, 1986, p. 65).
Em um segundo momento, essa noção concebe certa desvalorização dos agentes de
menor patente e a crença equivocada de que a ação policial prática é um trabalho menor
(trabalho laboral). O que supervaloriza os cargos de maior graduação; já que a esses é delegado
a tarefa de planejar o ofício (trabalho intelectual).
100

Dito de outra forma e como reivindicação constante de seus membros, a depreciação


marcante no seio da organização policial surge como uma condição de insatisfação porque a
valorização hierárquica depende “[…] menos do que você sabe […]” e mais de “[…] quem
você conhece […]”. Em suma, “[…] a percepção das aspirações envolve recorrer a uma rede
ramificada de grupos de poder, arranjos conspiratórios e politicagens informais […]”
(BITTNER, 2017, p. 166).
Tal premissa apenas revela o caráter clientelista da polícia que, em consonância com
“[…] a capacidade de trabalhar o ambíguo e o intermediário como algo positivo […]”, também
celebra a segurança pública como uma cultura do “jeitinho” (DAMATTA, 1987; 1986, p.27).
É simplesmente a percepção daquilo que o jargão policial mais localizado reconhece
como “peixada”, ou seja, um sistema de valorização profissional marcadamente personalizado,
proveniente de apadrinhamento, acordos e acertos políticos, que caracterizam as relações
profissionais da polícia e permitem a sua superação.
[…] a estrutura de autoridade existente, a divisão do trabalho e os
padrões de distribuição de recompensas não podem, senão, matar todo
vestígio de aspiração, todo lampejo de iniciativa e todo mínimo
sentimento de determinação, mesmo nos homens mais dedicados
(BITTNER, 2017, p. 298).

Ainda que a ascensão hierárquica seja possível dentro de um contexto profissional “mais
ou menos” meritocrático, no geral, os agentes resignam-se na conformação de exercer,
diariamente, uma função obrigatória. Os elementos de coesão aqui são, tão somente, a moral e
a ética que fazem da polícia um lugar desejado e valorizado por todos (comandantes e
comandados) (DURKHEIM, 2016).
Sobre a premissa, Durkheim (2016) nos ensina que a moral profissional existe numa
lógica dualista, mas torna-se mais “robusta” na medida em que um determinado grupo
profissional organiza-se e impõe seu “modo de viver” aos demais. Mesmo que seja a partir de
um discurso específico.
Orienta ainda o autor, que os grupos profissionais que manifestam a premissa econômica
não compartilham uma vida moral comum, pois promovem suas atividades de forma isolada, à
próprio gosto, a partir da concorrência. Nesse viés, as organizações policiais, demandas de
serviço público, exercem sua moral profissional na contramão da polarização, ou seja,
apropriam-se da coesão e apresentam forte regulamentação e participação afetiva.
Por tais características, a polícia acaba repercutindo o caráter patrimonialista de certas
instâncias públicas, assumindo ainda a capacidade de potencializá-lo já que sua manutenção
101

encontra os mais distintos mecanismos de reprodução e promove, internamente, a contradição


da “honra idealizada” versus o corporativismo tácito.
O Estado Patrimonial tal como encontramos no Brasil, requer, para sua
subsistência, todo um mecanismo de segregação em que as atitudes
individuais devem ser ordenadas e supervisionadas, os interesses
públicos são sequestrados por pessoas privadas […] A organização
policial, tal como a conhecemos no Brasil, é fruto maduro desse Estado
que vê na sociedade apenas um instrumento de legitimação de suas
práticas tradicionais e restritivas (SOUZA, L.A.F de, 2007, p. 16).

Assim, reflete-se com certa facilidade que a construção da personalidade profissional da


polícia é também eminentemente moral (disciplinada) e comunitária (a moral é sempre obra de
um grupo), mas avança convenientemente política a partir dos grupos de interesse.
Como obra coletiva, a hierarquia é um consenso “mais ou menos” imposto dessa
dinâmica e impõe à atividade policial o exame minucioso da gestão. Típico dessa circunstância
e como experiência vivenciada por todos nós policiais, os arranjos organizacionais acabam
figurando como um aparato aos desmandos, pois velada na administração, a hierarquia esconde
uma luta implícita (e seletiva) por capital político, poder e influência.
Ilustrando a premissa e conforme relatou um colega policial civil (56 anos, 30 anos de
carreira), “[…] como policial, você não pode falar (mal) do sistema (do ordenamento
hierárquico) […] (pois) o sistema pune quando lhe convém […]”.
Em meus doze anos de profissão, soube de muitos casos em que, se valendo de poder
político, alguns policiais conseguiram vantagem pessoal dentro das instituições de segurança.
Em algumas ocasiões, agentes de menor graduação auferiram cargos de chefia, despertando a
cólera de oficiais e autoridades maiores. Em outras, supervisores despacharam lotações ou
distribuíram as missões a partir da simpatia, ou antipatia, que cultivavam com certos operadores.
Nas duas situações, a execução do serviço foi consumada a partir de interferência
pessoal, como critério de desonestidade ou simplesmente valendo-se de um poder ilícito,
proveniente de patrimonialismo ou de um domínio usurpado, já que a corrupção não é pública.
Em ambos os casos, o agente impôs sua vontade à instituição e, tanto o protagonismo
hierárquico do gestor (seja qual for o ator político) como a passividade “disciplinada” do
encarregado, produziram o cenário de desvio.
Refletindo a questão, Dussel (2007) nos ensina que o poder, enquanto competência, é
uma capacidade e não pode ser usurpado na essência. De forma simples, o que se assalta são as
instituições que, como tal, permitem o exercício instrumental desse poder. Portanto e
independente do ensejo, quando o policial invoca a disposição de autoridade em caráter
102

particular ele ofende a totalidade da polícia e, por extensão, toda a sociedade, a quem realmente
se deve respeito e obediência.
Como uma intransigência recorrente na maioria das falas, atesta-se certos privilégios de
autoridade que, independente da corporação ou do cargo que ocupa, emerge dos sujeitos
policiais como uma necessidade de auferir superioridade geral e total sobre os demais sujeitos,
não sujeitados à disciplina e a hierarquia.
Me parece que tal característica apresenta-se na condição policial, como um
entendimento mal elaborado do poder de polícia (ofertado pela sociedade) que apenas colabora
para mais desentendimento do Ethus profissional. Em suma, o agente da lei que não cumpre os
princípios democráticos é, além de corrupto, autodestrutivo.
Se numa perspectiva geral a responsabilidade policial implica controle, em sentido
ampliado, o controle enseja responsabilização e “[…] ambos referem-se a processos em que os
comportamentos da polícia são manifestos em conformidade com as necessidades da sociedade
da qual essa polícia faz parte […]” (RIBEIRO, 2002, p. 450).
Assim e antes de qualquer discurso institucional de poder, fica claro compreender que
o dinamismo policial deve ser proveniente das distintas necessidades sociais, pois qualquer
entendimento mais ampliado de autoridade conforma a ideia de um consenso legítimo.
103

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

“A identidade, então, costura o sujeito à estrutura.”


(HALL, 2003, p. 12)

Existe uma contradição dentro de cada sujeito que o inspira a sentir e compartilhar o
mundo como um mosaico de muitas possibilidades e sentidos. A dualidade entre o único e o
plural faz do homem um ser diverso que, dentro e fora de si mesmo, constrói e reedita a
realidade social a partir de interpretação própria, efêmera e as vezes recíproca com seus
semelhantes.
Assim e assumindo o risco de apresentar um argumento apressado, ressalto que o
operador de segurança é sem dúvida um ente em constante construção. Outro não, germina do
diálogo sensível entre o condicionamento estrutural (esquemas de incorporação profissional) e
a emancipação que, individualmente, projeta a própria multiplicidade de sua condição policial
e deflagra um cabedal de possibilidades formativas e identitárias. Os policiais são, ao mesmo
tempo, um todo coerente, mas fragmentado no contato diário com o dinamismo social.
Avançando e para subsidiar uma reflexão final, destacando ainda a dualidade exposta
entre a aquisição de um hábitus propriamente policial (e homogeneizador) e a ruptura desse, a
partir de um processo de fragmentação da identidade profissional dos agentes (heterogeneidade
da condição policial), a sessão procura pontuar uma análise sobre a inconstância situacional da
atividade de segurança (como pressuposto para a ruptura de qualquer perspectiva mais estática
e ortodoxa de segurança), o pluralismo do “ser agente da lei” (que humaniza o sujeito policial,
reduzindo-o a um compêndio de muitas formas de ver a si mesmo e a sua profissão) e as
situações de ajuste e desajuste que tecem distintos “modos e ser” definidores do universo da
segurança e do policial.
Como produto da polícia, o operador de segurança é um profissional dotado de “espírito
de classe”, carrega consigo um sentimento de pertencimento coletivo que o eleva a condição de
membro de um grupo seleto. Dito de forma simples e mesmo no contexto de diferenciação
social, este sujeito é capaz de produzir uma interação marcadamente coerente com seus pares
(dentro do universo corporativo do trabalho) e de prolongá-la para as outras esferas de sua vida
social total produzindo um “modo de vida” específico, dentro e fora do universo da segurança
pública.
Nesse cenário, a polícia é interpretada como um corpo profissional específico, cuja
cultura é internalizada nos seus operadores como uma memória coletiva ainda pulsante e eficaz;
uma obra universal do grupo, por assim dizer. Tal circunstância é condição de um incessante
104

processo de transmissão funcional que produz sentido ao campo da segurança e impõe aos seus
membros a lógica de um trabalho comum (missão policial), tecendo diferenciação apenas para
com os demais sujeitos (“não policiais”) que não podem herdar esse capital imaterial.
Destarte, falo aqui do universo profissional da polícia que pensado nos limites sociais
do trabalho (formulador do ser profissional) reproduz, mesmo dentro de sociedades
diferenciadas, condições para uma socialização comum, coerente e animadora de disposições
semelhantes. Em suma e ao longo da carreira, com mais ou menos intensidade, somos todos
seduzidos por um sentimento grupal que nos faz reconhecer o outro (policial) como um igual,
como um “irmão” que comunga das dificuldades do trabalho e assume uma postura de embate
ou de auxilio, caso seja necessário.
Não obstante, essa nuança é geradora de uma certa concorrência, projetando resistência
a qualquer outra lógica que não seja internamente equivalente àquela proferida pelos sujeitos
policiais, pois como nos ensina Lahire (2002, p. 28), “[…] para resistir àqueles que muitas vezes
lhes opõem (outras) crenças e tradições coletivas, é preciso que se apoiem em crenças e
tradições próprias ao seu grupo […]”.
Em contrapartida e no contexto da pluralidade, os hábitos policiais mais tradicionais,
aqueles promovidos na formação e no cotidiano do trabalho ordinário, perdem hegemonia e
cedem lugar as novas sociabilidades. Tal flexibilidade é advento das mudanças históricas e
sociais que acompanharam a polícia e permitiram certa abertura de seu estatuto. Dito de forma
simples, é a circunstância que pontua as muitas transformações sociais que obrigou as
organizações policiais a reformularem seus campos de atuação e a ampliar o poder de agência
de seus operadores.
Como instituição reguladora de liberdades individuais a polícia é um aparelho
governamental que, opaca, apenas se perpetua como força a partir do monopólio do uso da
violência e dos muitos usos que o Estado faz de suas funções. Todavia e como organização de
trabalho, a polícia produz uma cultura de ofício que, fragmentada, acontece de forma dinâmica
e condicionada por influências sociais externas e alheias a sua dimensão institucional.
Dentro desse cenário e forjado sob o limiar de muitos processos socioculturais, o
indivíduo policial persiste como um produto da polícia, mas também de tudo que existe fora
dela ou que nela deposita sentido. Os distintos espaços de convivência (oficiais e extraoficiais)
onde os operadores de segurança compartilham saberes policiais (ortodoxos ou subversivos)
projetam sentido ao seu Ethus e condicionam suas disposições e comportamentos.
Dito de forma simples, o “modo de ser” policialesco se delineia nas instituições policiais,
mas também transita fora nela, em espaços de lazer mais gerais (entretenimento específico), de
105

consumo (equipamentos policiais) ou naqueles projetados para o desenvolvimento de


habilidades excepcionais (que são valorizadas no mundo do trabalho e se configuram como
capital policial).27.
Como evidência dessa última situação é corriqueiro o testemunho de agentes se
queixando dos baixos salários (é uníssono essa perspectiva) e de terem que, mesmo nessa
condição, financiar informalmente seu desenvolvimento profissional ou a aquisição de
melhores equipamentos (não fornecidos pela polícia) para a prática profissional do “dia a dia”.
Em suma, a condição policial faz com que os sujeitos detentores de seu estatuto
articulem-se para além do ambiente de trabalho, buscando informalmente a aquisição de capital
profissional em outros espaços de convivência social. Todavia e como uma reflexão lógica para
o contexto, é fácil imaginar que fora de seus recintos legais a cultura da polícia também prospera,
mas flexível às singularidades desses lugares de convívio e aberta aos princípios de uma
interação mais fragmentada. Em outra instancia, até sujeita à intervenção de terceiros, não
policiais, que reproduzem velhas perspectivas ou articulam novos significados acerca do que é
ou do que não é trabalho policial.
Sem devaneios literais, o policial é mais uma aventura social (no sentido de inconstância)
e muito além de membro da polícia, é um mosaico de perspectivas humanas que vai tecendo
discursos e disposições profissionais na medida em que confronta a realidade vivida e questiona
(ou não) os modelos de produção de segurança em que está inserido. Amiúde, “[…] (é) produto
da (de uma) experiência de socialização em contextos sociais múltiplos […]” (LAHIRE, 2002,
p. 36).
Também fruto de uma multiplicidade institucional (e ideológica), o agente de segurança
parece compartilhar um “modo de ser” semelhante, mas que ganha distintas “cores” na medida
em que é percebido mais intimamente, a partir de grupos internos de referência, pertença ou
daqueles selecionados na informalidade das ações cotidianas. Tal lógica expõe os muitos tipos
de policiamentos e as “muitas polícias dentro da polícia”, bem como as diferentes interpretações
de seu estatuto.
Ao longo da carreira, o operador de segurança vai agregando saberes na medida em que
estabelece contato com seus pares, adere a uma formação mais especializada ou enfrenta
situações do cotidiano que o faz adquirir novos ensinamentos acerca de sua prática. Tal
atividade é também formuladora da identidade profissional dos sujeitos e lhes oferta um

27
Clubes de tiro esportivo, academias de musculação e artes marciais, lojas de artigos militares ou de
sobrevivência, etc.
106

mosaico de possibilidades e interpretações. Em suma, a atomização da competência policial


torna-se condição dessa mesma multiplicidade institucional e deflagra a pluralidade com que o
trabalho é executado e de como seus agentes podem abraçar uma diversidade de práticas.
Em outros termos, a polícia é heterogênea porque convive com situações paradoxais e
lida com a transformação social em sua versão sempre inacabada. Em suma, os policiais
confrontam-se cotidianamente com situações diversas, concorrentes e até contraditórias
exigindo-se, desses, disposições cada vez mais plurais.
Como policial-pesquisador, é comum perceber as raízes da heterogeneidade na celeuma
de possibilidades que desponta no âmbito das organizações policiais porque o cotidiano de
trabalho é revelador das rupturas que as distintas situações exigem. Outro não, os operadores
de segurança resistem aos ordenamentos mais tradicionais e recriam novos hábitos, colocando
em evidência interesses particulares em detrimento de transposições corporativas na medida em
que precisam lidar com o sempre inesperado.
Nas ruas, os policiais estão sujeitos a tudo. Portanto, também precisam vivenciar uma
identidade profissional aberta e disposta as mais sucintas transformações. Nesse sentido, “[…]
pode-se resumir tudo isto dizendo que todo corpo (individual) mergulhado numa pluralidade de
mundos sociais está sujeito a princípios de socialização heterogêneos e, as vezes, contraditórios
que incorpora [...]” (LAHIRE, 2002, p.31).
A essência situacional do policiamento e as incessantes transformações sociais
correlatas condicionam a identidade profissional dos operadores de segurança e reeditam a
personalidade do “ser agente da lei”, cedendo lugar à pluralidade de mundos sociais que
posicionam os policiais a partir das funções e ações que executam. Desse modo e na medida
em que as instituições policiais abrem espaço para novas perspectivas, seus membros ficam
sujeitos aos princípios de uma socialização heterogênea e a um repertório mais diverso de
comportamentos que resgatam de seus outros universos mais íntimos.
Não obstante, mas sob o crivo da bibliografia e dos dados produzidos no campo, o
respectivo trabalho oportuniza ao leitor o panorama da heterogeneidade, ou seja, revela a
emergência de um paradigma multiforme da condição policial que burla o senso comum e
deflagra o dinamismo com que os “agentes da lei” são formados, percebem a si, a polícia e a
interação com a sociedade.
Ainda que a pesquisa de campo tenha ganhado dimensões exageradas para esse texto
dissertativo, considerando as três forças de segurança analisadas, o leitor pode perceber
diferentes pontos de vista que desvendam sucintamente o que entendo por condição policial e
como esse “modo de ser”, que acontece de forma plural, engendra um Ethus profissional nos
107

agentes policiais, mas também concede-lhes um leque de sociabilidades próprias, deliberando


escolhas livres.
Para além do campo profissional, o operador de segurança convive simultaneamente em
muitos coletivos sociais que, observados apenas pela lógica corporativa, apresentam-se
concorrentes, contraditórios e até subversivos ao universo cultural da polícia (cultura de
autoridade). Pensar um repertorio multifacetado de disposições policiais é atestar, a partir de
então, um traço de heterogeneidade processual na própria formação dos sujeitos que compõem
as organizações de segurança.
Os agentes da lei saltam de um domínio de existência a outro, sem obedecer qualquer
continuidade. Quando muito, procuram conviver cumulativamente em mundos distintos a partir
de uma mediação permeada por contradição, ou seja, pelo constrangedor embate entre o mundo
profissional da polícia (e seus subgrupos) e a vida social total dos policiais, que é repleta de
realidades não equivalentes ao universo da segurança pública.
Como uma evidência factual da reflexão, a diversidade policial desponta no texto, por
exemplo, quando o capítulo I (“Entre armas e livros: notas de análise sobre a pesquisa de campo
e o lugar de fala do policial-pesquisador”), convida o leitor a passear pelos diferentes cenários
da pesquisa e conhecer um pouco do “dia a dia”, velado e protegido, desses profissionais da
segurança pública.
Entre outros, o recorte textual evidencia a emergência de subcampos menores dentro do
campo profissional da polícia que, diferenciados a partir da atividade que desempenham (e do
modelo de policiamento que executam), também questionam sucintamente o estatuto policial.
A segurança acaba assumindo-se como objeto de muitos grupos sociais (e instituições) e, por
consequência, acaba por ceder espaço às múltiplas interpretações de sua prática.
Não obstante, os operadores de segurança experimentam um mesmo hábitus policial,
mas que assume circunstancias específicas quando atendem as suas diferentes organizações e
individualidades. Tomando essa mesma linha de raciocínio, atesta-se a existência de discursos
(internos e externos) que decompõem o ordenamento policial mais clássico e oferecem
diversificados pontos de vista para seus agentes.
O embate institucional vivenciado por esse policial-pesquisador, no âmbito da pesquisa
de campo, pode ser interpretado como um esboço menor dessa reflexão. Em suma, o clássico
dualismo entre a PCCE e a PMCE revela um conflito profissional que, amparado sob o prisma
de concepções ideológicas, deflagra a fragmentação dos muitos sentidos que a atividade policial
pode produzir. De forma geral é fácil perceber que Guardas Municipais, Policiais Militares e
Policiais Civis experimentam sua condição policial de forma diferente.
108

Condicionados por singularidades institucionais ou pelas conveniências funcionais


aplicadas pelos dispositivos legais, os policiais organizam-se em grupos menores e produzem
diferenciação interna e velada, formulando mais fragmentação a partir de interesses concretos.
Em verdade, a experiência me fez perceber que existem, dentro da organizações
policiais, tipos distintos de agentes que buscam uns nos outros referências sociais cada vez mais
distintas. Esses sujeitos ajustam-se em coletivos informais, desintegram o sentido de polícia e
formulam novos modelos de significação profissional. Em suma, é possível perceber “tipos
profissionais” distintos que, reunidos em assembleia, atuam politicamente dentro de grupos
maiores e aparentemente homogêneos.
Também de forma geral, é consenso perceber que a construção dessas recentes
identidades e de toda essa reformulação de novas formas de reconhecimento policial (nas três
agências estudadas), questionam o cenário ortodoxo e permitem aos agentes um rearranjo do
seu campo de atuação; o que delineia uma condição policial mais híbrida e heterogênea a partir
de então.
Desse modo e apontando para três distintas visões de policiamento (visão reacionária,
visão normativa e visão crítica), o capítulo II (“Traços e Contrastes da polícia cearense: um
olhar sobre a construção das distintas personalidades profissionais dos agentes da lei”) percebe
a emergência de uma imagem dinâmica da polícia, sinalizando novos quadros de representação
que despontam na atualidade e provocam inquietações (perspectiva progressista).
Em um primeiro momento, o recorte textual debate as categorias de autoridade, ação
policial e dramatização do fenômeno criminal como traços característicos que evidenciam uma
visão reacionária da atividade de segurança e expõem um modelo mais tradicional de
policiamento.
Tal arquétipo foi comum à maioria dos agentes entrevistados e concebeu dois grupos de
policiais que, através das falas, revelaram uma percepção reativa e outra normativa do fazer
policial. Não obstante, ambos os grupos operam uma prática profissional marcadamente
conservadora que, mesmo amparada sob um dilema legalista, acaba favorecendo interesses
privados e reproduzindo costumes patrimonialistas.
Ainda que o segundo seguimento isente-se de ilegalidades, a “polícia torna-se aquilo
que os policiais fazem nas ruas” (como já colocado no texto) e algumas dessas ações apenas
reeditam traços nefastos e antagônicos que não contribuem para o desenvolvimento da polícia
e nem salvaguardam o direito à segurança destinado aos cidadãos.
Independente da instituição analisada, mas conforme a conveniência, a expectativa ou a
frustração de cada sujeito policial no campo, os modelos de produção de segurança vão
109

acontecendo, se reconfigurando e se ajustando informalmente. O que se adquire objetivamente


na polícia são apenas formas de atividade, técnicas, hábitos gestuais ou de linguagem dentro de
uma estrutura cognitiva própria.
De forma simples, a segurança é um saber prático e a cultura policial é construída
livremente, a partir de injunções implícitas e práticas cotidianas. Os operadores de segurança
convivem com uma divisão estrutural, por vezes dual, mas também balanceada, das muitas
disposições do “ser agente da lei” e essa multiplicidade identitária coexiste com o cenário
heterogêneo que qualifica a condição policial e dá margem às inúmeras existências do “eu
policial”.
Nas ruas, as políticas de segurança decorrem de ofertas específicas de proteção,
realizadas a partir de distintas visões profissionais, de antagonismos ideológicos, dos discursos
de ordem ou daquilo que os coletivos policiais entendem por “poder de polícia”, disciplina ou
hierarquia, por exemplo. A condição policial, nesse contexto, é um misto de experiências
vividas e incorporadas, mais um conjunto de disposições que vai adquirindo corpo ao longo da
carreira profissional através do contato diário com o socialmente diferente.
Outro não, essas muitas formas de pensar a segurança anulam-se na medida em que a
gestão, e por extensão o operador, adere ou supera um ponto de vista concorrente. Esse
dinamismo dual (que também advém da vigência política) auxilia a emergência dos processos
identitários e a constante troca de posição dos agentes, mas também anima as configurações do
campo (da polícia) e reedita a condição policial à disposição de experiência momentânea, vivida
e compartilhada internamente.
Ainda que convivam com um conjunto ambíguo de mundos sociais, os agentes precisam
ajustar essas identidades (“clivage du moi”)28 e reconhecer essa constante travessia como um
movimento já sistêmico no campo da segurança pública e no desenvolvimento de seu Ethus
profissional, uma vez que ele também “[…] incorporou muitos repertórios de esquemas de ação
que não são, obrigatoriamente, produtores de sofrimento na medida em que podem coexistir
pacificamente quando se exprimem em contextos sociais diferentes e separados uns dos outros
[…]” (LAHIRE, 2002, p. 41).
A polícia é entendida nesse cenário como um discurso classicamente fechado, mas
eventualmente aberto na oportunidade dos interesses individuais, já que produz e reproduz

28
Clivage du moi – “hábitus dilacerados” (BOURDIEU, 2001, p.79).
110

significados com os quais os policiais se identificam, reconhecem e aceitam seus pares de modo
geral perpetuando, mas também desconstruindo, a experiência das gerações anteriores.
De forma geral, alguns seguimentos da polícia ainda resistem às mudanças porque “[…]
as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz das informações
recebidas sobre aquelas próprias práticas, alterando, assim e constitutivamente, seu caráter […]”
(GIDDENS, 1991, p. 37-38). Nesse sentido e como um dogma quase estrutural, a
tradicionalidade policial persiste porque não permite críticas a si mesma e ao estatuto da polícia.
Contudo e considerando o caráter diligente com que os operadores de segurança
encaram o “sentir-se” e o “fazer-se” policial na intimidade do serviço diário (o que é ser policial
e qual a sua função?), deflagra-se a fragmentação dos processos de reconhecimento e a ruptura
de referências policiais outrora sedimentadas por um hábitus de classe mais elementar. O Ethus
policial ganha novo conteúdo e repercute esporadicamente na atividade profissional da polícia.
[…] as transferências e transposições dos esquemas de ação são
raramente transversais ao conjunto dos contextos sociais, mas efetuam-
se no interior dos limites – imprecisos – de cada contexto social e,
portanto, de cada repertório […] O que é incorporado ou interiorizado
não existe como tal no mundo social “exterior”, mas reconstrói-se
pouco a pouco para cada ser singular, nas interações repetidas que tem
com outros atores, através de objetos e em situações particulares
(LAHIRE, 2002, p. 37, p.174).

Em suma e conforme observado nas falas dos colaboradores, a personalidade


profissional dos agentes parece desloca-se das certezas de “antigamente” (modelo ortodoxo)
para dar lugar a uma necessidade constante de mudança (descentralização), baseada na
experiência da dúvida e nas incertezas das situações do trabalho.
Dito de forma simples, aquilo que Bourdieu (2001) reconheceu como a existência de
um “hábitus dividido” é quase uma conjuntura recorrente dentro do universo da segurança. Na
polícia, prevalece a ideia de unicidade corrompida pelos interesses de cada um e, esses,
desenvolvem-se a partir dos muitos constrangimentos que marcam o cotidiano de todos os
agentes. A verdade é que todos nós (operadores de segurança) experimentamos vivências
profissionais contraditórias.
Tal singularidade ajuda a fragmentar a personalidade profissional dos agentes como bem
nos orienta Hall (2006, p.13) ao colocar que:
[…] o sujeito assume identidades contraditórias, empurrando em
diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo
continuamente deslocadas. […] à medida que os sistemas de
significação e representação cultural se multiplicam, somos
confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de
identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos
identificar – ao menos temporariamente.
111

De forma objetiva, a heterogeneidade da condição policial é também advento das


mudanças impostas aos modelos de policiamento pelas rápidas transformações sociais e pelo
descrédito das políticas de segurança, bem como pela negação dos ordenamentos institucionais
que não dialogam muito bem com a totalidade social e parecem estagnar o próprio
desenvolvimento das organizações policiais.
Por consequência, o campo da segurança parece carregar consigo uma efemeridade que
condiciona a própria construção da personalidade profissional de seus operadores, deixando-os
a mercê de novos paradigmas. O percurso individual de cada agente (na assimilação do Ethus)
e a subversão imposta à estrutura policial formulam um “modo de ser” profissional que permite
a formulação interna e externa de distintas ramificações.
Os operadores de segurança articulam-se entre os muitos mundos que definem o cenário
heterogêneo da condição policial e os atravessam de forma harmoniosa, mas também em
contextos de fragmentação e conflito (dependendo da distância equivalente entre uma
disposição ou outra).
Nesse sentido, é fácil imaginar que existem muitos “tipos” de policiais porque a
condição policial (assim como as organizações policiais), enquanto processo histórico, obedece
ao dinamismo das situações da segurança e aos aspectos sociais onde esse cenário acontece, o
que sugere incontáveis possibilidades de ações, percepções e formas de reconhecimento social
para seus agentes.
Tal postulado desenha, na opinião desse policial-pesquisador, certa ruptura do
monopólio policial e uma pluralidade de oportunidades que surgem da interação social total e
fomentam-se nas práticas da segurança.
[…] o sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada
e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única,
mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-
resolvidas (HALL, 2006, p.12).
[…] Esses desvios e situações de crise raramente estão isolados e
podem combinar-se a vontade, agravando as preocupações,
multiplicando os pequenos ou grandes sofrimentos, as interpretações e
as reflexões sobre sua ação e tornando a existência pesada e opressiva
[…] (LAHIRE, 2002, p. 51).

A verdade é que, intimamente, “[…] não existem mentalidades gerais […]” e a polícia
não é uma instituição social total. Em suma, ela existe aberta e para além de um mundo único;
ainda que resista às mudanças e persista a partir da homogeneidade histórica de alguns de seus
seguimentos, como evidenciado nessa pesquisa (LLOYD, 1993, p. 17).
Fora isso, a polícia é apenas um mosaico de oportunidades furtivas e divergentes. Por
sua vez, a identidade social de seus membros acaba por dividir-se, tornando-se uma perspectiva
112

sempre aberta entre o mundo profissional (público) e o mundo pessoal (particular) de cada
sujeito detentor da condição policial.
Como já colocado, existem tipos distintos de policiais porque existem tipos distintos de
experiências profissionais dentro da polícia. De forma simples, esses sujeitos experimentam a
sua condição profissional de forma diferenciada, lhes conferindo significado próprio a partir do
cenário que projetam de si, da sua instituição e de seu papel na sociedade.
Contudo e dentro de um conjunto maior de agentes observados, encontram-se sempre
aqueles que conseguem ajustar o equilíbrio entre o seu repertorio de vida (os outros universos
de sua vida pessoal) e o hábitus policial recentemente apresentado e ainda raso (desenvolvendo-
se). Todavia e a contrassenso desse grupo, existem aqueles que, desde o primeiro momento,
travam certo embate ideológico com o universo da segurança e promovem tensões entre suas
lógicas concorrentes.
A experiência me fez verificar que, no segundo caso, os agentes assumem uma postura
subversiva aos ordenamentos mais tradicionais e, por consequência, optam por viver uma
carreira profissional de constante desvio, atuando distantes das convicções institucionais
esperadas. Em outros termos, burlam o senso corporativo e reconfiguram o seu papel
profissional a partir de um ajuste, por vezes forçado, entre suas concepções ideológicas e
àquelas que são possíveis de se adquirir no domínio policial mais clássico. Em suma, as rupturas
e os novos paradigmas profissionais surgem através desse grupo.
Entretanto e longe de reduzir a dimensão policial a essa bipolaridade dos hábitus ou a
tríade de “tipos ideais” apresentada no capítulo dois dessa dissertação, o mundo da segurança
deve ser entendido para além do aparentemente exposto ou das informações produzidas na
dimensão do lato senso.
Merece ser analisado de forma intrínseca, a partir de configurações próprias e a luz de
suas singularidades. Entender o mundo da polícia exige um mergulho profundo nos seus
bastidores e uma leitura mais íntima de seus atores, os operadores de segurança, que, não
obstante, produzem e redistribuem os muitos significados que dão sentido ao campo social da
segurança pública.
Por fim, é fácil reconhecer que não existe uma fórmula mais geral que defina por
completo a síntese de quem nós (os policiais) somos. Somos o princípio de muitos movimentos
do passado, do presente e do futuro. Talvez adventos de uma pluralidade de lógicas que se
constitui como história, mas que também se concretiza nela, como definidora de nosso lugar de
fala na sociedade. Como todo ator social e mesmo “filhos do Estado” (SÁ, 2002),
113

individualmente somos apenas resultado do socialmente inesperado e do rigorosamente


esperançoso.
114

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