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RESENHA CRÍTICA DO TEXTO: “Direitos Humanos na Polícia” de Jaqueline de Oliveira

Muniz

Ivayr Brito da Silva1

MUNIZ, Jaqueline de Oliveira. “Direitos Humanos na Polícia”. In: LIMA, Renato Sérgio de;
PAULA, Liana de. (org.) Segurança Pública e Violência – O Estado está cumprindo o seu
papel? São Paulo: Editora Contexto, 2006. p. 65-75.

Conseguir adentrar os quartéis militares e apreender a concepção da realidade vivida


pelo ser humano detrás da farda não é tarefa fácil. A antropóloga e professora Jaqueline de
Oliveira Muniz, Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, Mestre
em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Doutora em Ciência
Política pela Universidade Cândido Mendes, assumiu a tarefa e pesquisou sobre a realidade de
policiais militares no estado do Rio de Janeiro.

A tese de doutorado da pesquisadora teve como foco principal o universo cultural e


institucional da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro e foi apresentada do ano de 1999,
quando exercia o cargo de Diretora da Secretaria de Segurança Pública daquele estado, onde
assumiu outros cargos na área de segurança pública. Percebe-se que sua vida acadêmica e
profissional a aproximaram da vivência dos policiais militares fluminenses.

Como fruto dessa bagagem, no ano de 2006, Jaqueline Muniz publicou seu texto
“Direitos Humanos na Polícia” no livro “Segurança Pública e Violência – O Estado está
cumprindo o seu papel?”. A autora traz suas impressões acerca das numerosas queixas
apresentadas pelos policiais militares relativas à fragilidade e, até mesmo, à falta dos
instrumentos para proteção de seus direitos.

Ela destaca principalmente a visão das praças da PMERJ que formam o público que
mais se queixa da regulação da conduta policial por meio de institutos disciplinares impróprios,
inadequados ou inconsistentes, que priorizam os deveres no exercício da profissão e criam um
“mundo de obrigações” refratário às conquistas cidadãs.

1
Pós-graduando do Curso de Especialização em Segurança Pública do Centro de Educação da Polícia Militar do
Estado da Paraíba.
O mundo disciplinar constitui uma atmosfera punitiva que trespassa o universo
profissional e alcança a vida social dos policiais militares, incluindo aqueles que já passaram
para a inatividade. Dívidas pendentes, frequência em bares e casas noturnas julgadas impróprias
por um superior hierárquico, conflitos interpessoais conjugais ou com vizinhos são exemplos
de situações que, segundo o regulamento, afetam o “decoro da classe”, o “pundonor policial
militar” ou a “honra pessoal”.

A extensa previsão de condutas classificadas como transgressão disciplinar é


acompanhada por um julgamento subjetivo que classifica a gravidade das faltas disciplinares
de acordo com a conveniência do superior hierárquico. Esses dois fatores geram, segundo
expresso no texto, possibilidades questionáveis de juízo que vão desde a aplicação de sanções
arbitrárias, desproporcionais e injustificadas até a concessão de regalias e imunidades como
contrapartida ao atendimento de interesses corporativos ou pessoais.

Consoante Jaqueline Muniz, esse contexto de insegurança criado pelas normas


disciplinares da PMERJ reflete-se em baixa estima profissional e em comportamentos ora
abusivos, ora negligentes, sobretudo entre policiais que se sentem menos sujeitos de direitos
que os cidadãos comuns, convergindo para a crença de que “Direitos Humanos servem somente
para proteger bandido”. Esta é uma conclusão da autora que advém de suas percepções pessoais
e que, portanto, permite uma réplica: embora a realidade da PM fluminense tenha suas
peculiaridades, a vivência policial indica que o citado adágio é oriundo do tratamento
protecionista dado por órgãos de proteção dos Direitos Humanos a criminosos em detrimento
dos profissionais de segurança.

Entretanto, expressões como “o PM é culpado até provar o contrário” e “os Direitos


Humanos ainda não chegaram à PM”, que são usadas pelos policiais e são citadas pela autora,
parecem simbolizar bem as dolorosas lições dessa “pedagogia opressiva” da disciplina militar.

A autora pôde observar que as praças da PMERJ, ao final do século passado,


reivindicavam um novo regulamento disciplinar que respeitasse a dignidade humana e que
extinguisse a temida “prisão administrativa”, considerada ineficaz e inconstitucional pelas
Associações de classe e Comissões de Direitos Humanos. Por outro lado, setores mais
tradicionais do Oficialato julgavam indispensável a detenção como alternativa para o controle
de uma corporação formada por homens armados.

No ano de 2002, Jaqueline Muniz coordenou os trabalhos de uma comissão mista criada
pela então Governadora daquele Estado com o objetivo de revisar e atualizar os regulamentos
disciplinares da polícia militar e do corpo de bombeiros. A comissão foi formada por oficiais e
praças, associações de classe, técnicos da Corregedoria Unificada das Polícias, da Ouvidoria de
Polícia e das Secretarias de Segurança Pública e de Defesa Civil, bem como representantes da
Ordem dos Advogados do Brasil e das comissões de direitos humanos e segurança pública da
Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.

Em 28 de agosto de 2002, foi publicado o Decreto nº 31.739 que aprovava o novo


regulamento disciplinar. A autora destaca as principais mudanças: aplicação apenas para
policiais da ativa; classificação das transgressões de acordo com a gravidade; extinção da
sanção de prisão e acréscimo das sanções de prestação de serviço extraordinário, suspensão e
medida cautelar; possibilidade de praças em função de comando aplicarem sanções
disciplinares; imunidade aos policiais em mandatos eletivos ou em função em entidades e
associações de classe, principalmente no tocante às manifestações de pensamento político e
filosófico.

Apesar dos avanços, é possível destacar que a substituição da prisão por medida
cautelar, ao contrário do que pretende demonstrar o texto, não constitui exatamente um avanço
na direção das garantias de direitos dos policiais. A restrição de liberdade é considerada medida
extrema e ultima ratio dentro do próprio direito penal, que é destinado a tutelar os bens e
interesses jurídicos fundamentais à paz social, conforme leciona Cezar Roberto Bitencourt
(2012. p. 19), e, desse modo, não condiz com as relações de cunho administrativo. A hierarquia
e a disciplina entre homens armados não merecem tutela especial? Sim. Mas, para isso, existe
o Código Penal Militar.

A medida cautelar que substituiu a prisão no novo regulamento disciplinar da PMERJ,


explica a autora, não poderia ultrapassar 48 horas e só seria aplicável nos casos em que a
conduta do militar gerasse risco iminente para a vida, para a integridade física ou para o
patrimônio de outrem (grifo nosso). Contudo, é razoável compreender que, em casos com tal
gravidade, o direito penal deva ser acionado, principalmente no que diz respeito à restrição de
liberdade em medida cautelar: prisão em flagrante delito e/ou prisão preventiva/temporária.

Consoante explica Aury Lopes Jr. (2020. p. 927), as medidas cautelares acarretam
relevantes restrições na esfera dos direitos fundamentais da pessoa acusada e apenas devem ser
aplicadas de forma excepcional, reservadas aos casos mais graves. Assim como as condutas
tipificadas como crime constituem exceções no direito penal, as medidas restritivas de liberdade
são de ordem extraordinária no direito processual penal.
Portanto, uma medida cautelar restritiva de liberdade determinada pelo comandante sem
o devido processo apresenta-se, em tese, mais desproporcional que a própria sanção de prisão
combatida pelos militares.

O texto não aborda mudanças implementadas nas condutas tipificadas como


transgressão disciplinar, que constituem de fato o chamado “mundo das obrigações” para o
militar, pois é a partir das relações das infrações disciplinares que os comandantes podem atuar.
Contudo, percebe-se que Jaqueline Muniz não tinha a pretensão de esgotar o tema nas poucas
páginas desse texto, ela intencionou demonstrar também sua frustração com a rápida revogação
do novo regulamento e com a falta de reação dos atores envolvidos na recente aprovação
daquela norma.

O Decreto Regulamentar, que entrara em vigor em outubro de 2002, foi revogado nos
primeiros dias do novo governo que se iniciou em janeiro do ano seguinte. Uma nova comissão
teria avaliado aquele regulamento como “utópico” para a realidade da tropa fluminense. A
autora considera natural a quebra de projetos e programas de governo a partir de uma nova
gestão, mas demonstra perplexidade com a frágil reação dos policiais militares e de suas
entidades de classe:

[...] não foi observado nenhum movimento de pressão, articulado ou não, das
comissões de direitos humanos ou das organizações não governamentais que militam
em favor da democratização das polícias do Rio de Janeiro. Do mesmo modo, não se
notou uma tomada pública de posição – qualquer posição – de políticos, intelectuais,
e formadores de opinião que se ocupam da temática da segurança pública e, em
particular, da reforma das polícias no cenário carioca. [...] Apenas alguns poucos
militantes, PMs e pesquisadores davam conta do “boato do RDPM” e questionavam
nas pequenas rodas os possíveis reveses e retrocessos oriundos do cancelamento.
(MUNIZ, 2006. p. 72)

Num primeiro momento, Jaqueline Muniz, sem esconder sua decepção, não encontra
resposta para suas próprias indagações: como legitimar um processo de mudanças democrático
e participativo nas polícias para avançar na institucionalização de instrumentos de defesa dos
“direitos humanos dos policiais” quando os próprios policiais agem de maneira passiva?

Apesar de supor a ação de múltiplos fatores que possam ter influenciado a reação apática
dos policiais diante da revogação do “novo RDPM”, a autora aponta o chamado “bico” como
um deles. Para ela, um pacto de tolerância entre oficiais, suboficiais e praças, relativo ao
“segundo emprego” dos policiais teria sido ameaçado com o novo regulamento, uma vez que
essa prática está tão permeada na organização policial que formou uma rede informal de poder
que redireciona a estrutura hierárquica formal. Uma mudança de local de trabalho ou de escala
de serviço tende a ser mais eficiente que os mecanismos formais de controle da tropa. Essa
informalidade teria a preferência dos policiais, posto que suas atividades irregulares de trabalho
extraordinário são preservadas.

Apesar de amparar-se claramente na experiência pessoal, profissional e acadêmica da


autora, sem um viés propriamente científico, o texto expõe realidades que são conhecidas pelo
público interno de organizações policiais militares do Brasil e garante uma leitura agradável e
estimulante, graças ao olhar socioantropológico de uma mulher civil que defende a garantia dos
direitos humanos aos policiais militares e que pretende levantar discussões sobre o tema e
aguçar o olhar crítico desses profissionais.

REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral, 1. 17. ed. rev., ampl. e
atual. de acordo com a Lei 12.550 de 2011. São Paulo: Saraiva, 2012.

LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

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