Você está na página 1de 102

1

OS SUBTERRÂNEOS DA FAMÍLIA
A DINÂMICA FAMILIAR
E SUAS SUBJETIVIDADES

Joaquim Cesário de Mello


2

SUMÁRIO

FAMÍLIA: UM BEM OU UM MAL NECESSÁRIO..................................... 03

POR UMA DEFINIÇÃO DE FAMÍLIA...................................................... 08

O NÚCLEO DA FAMÍLIA ...................................................................... 11

PAPÉIS E FUNÇÕES FAMILIARES.......................................................... 14

O CICLO DE VIDA FAMILIAR................................................................. 20

FAMÍLIA: O ESPAÇO DAS TROCAS AFETIVAS......................................... 25

RAÍZES E ORIGENS DO SENTIMENTO AMOROSO................................. 25


PAIXÃO: UMA ILUSÃO AMOROSA........................................................ 28
O AMOR E A ESCOLHA DO OBJETO AMOROSO................................... 32
AMORES DROGADICTOS...................................................................... 38

CONJUGALIDADE: A CONSTRUÇÃO DO CASAL..................................... 41

SEPARAÇÃO CONJUGAL....................................................................... 47

DISSOLUÇÃO DA CONJUGALIDADE...................................................... 47
FILHOS DO DIVÓRCIO........................................................................... 50
ALIENAÇÃO PARENTAL......................................................................... 54

O NASCIMENTO DOS FILHOS................................................................ 58

FRALDAS, NINHO E CHUPETAS.............................................................. 58


PROCESSO DE PARENTALIZAÇÃO.......................................................... 60
A CHEGADA DOS IRMÃOS..................................................................... 66
ESTILOS PARENTAIS.............................................................................. 69

OS SUBTERRÂNEOS DA FAMÍLIA E SUAS DINÂMICAS.............................. 73

LEGADOS OCULTOS............................................................................... 73
O PSIQUISMO FAMILIAR........................................................................ 76
MITOS E SEGREDOS FAMILIARES........................................................... 78
A ESTRUTURA DA FAMÍLIA..................................................................... 81

A FAMÍLIA RECOMPOSTA........................................................................... 85

NOVAS GESTALTS FAMILIARES.................................................................. 89

TERAPIA DE FAMÍLIA.................................................................................. 93

MODELO SISTÊMICO............................................................................... 93
TERAPIA ESTRUTURAL............................................................................. 96
TERAPIA FAMILIAR ESTRATÉGICA............................................................ 98
FUTURO.................................................................................................... 99
3

FAMÍLIA:
UM BEM OU UM MAL NECESSÁRIO

A família é um conjunto de pessoas que se defendem em bloco


e se atacam em particular.
Condessa Diane1

A família é um acontecimento inescapável ao ser humano. De alguma maneira e de


várias formas em qualquer cultura ou sociedade humana e em todo momento histórico sempre
existiu o fenômeno do grupo social denominado família. E isso ocorreu e ainda ocorre pela
própria condição e natureza humana.
O ser humano nasce despreparado à vida e à sobrevivência. Um bebê sozinho não tem
a mínima condição de subsistir se não houver alguém que lhe alimente, proteja e lhe cuide. Em
relação a outros animais e primatas, nascemos de certa forma, prematuros, isto é, surgimos à
vida extrauterina biologicamente inacabados, e não só isso: enquanto os demais animais têm
um ritmo de acabamento acelerado, o animal homem leva bem mais tempo para desenvolver a
independência e a autonomia. Levamos não apenas vários dias, semanas ou meses para alcançar
as condições pessoais de auto sustentação, porém anos para sermos capazes de atuar livres na
vida sem depender de outro adulto. E mesmo quando alcançamos a maturidade adulta ainda
conservamos características infantis, principalmente em termos psicoemocionais. A isso
chamamos de neotenia.
Neotenia é um termo utilizado pela Biologia que significa uma forma de
pedamorfose2. Não foi à toa que os gregos antigos representavam Psiquê3
alegoricamente como uma jovem donzela com asas de borboleta, isto é, que
iniciaríamos como larva, depois como lagarta rastejaríamos na terra para nos
tornarmos borboleta a flutuar na primavera de nossas vidas (maturidade).
Envelhecemos sem nunca atingimos o máximo de nossa maturidade. A
maturidade humana nunca está totalmente completa.
Devido, portanto, a nossa prolongada imaturidade inicial (necessitamos na infância de
alguém que nos cuide e proteja), é inescapável ao ser humano a presença de outros ao seu redor
para que possamos sobreviver - principalmente nas fases iniciais de nossa meninice.
No período mais antigo da Pré-História, Paleolítico, vulgarmente chamado de período
da pedra lascada4, cujo início é estimado em 2,5 milhões de anos e que durou até cerca de 10000
anos atrás, os hominídeos (antepassados do homem moderno) eram essencialmente nômades
caçador-coletores. Eram tempos inóspitos e perigosos, cuja lei da sobrevivência requeria fugir
constantemente dos predadores ou enfrentá-los. Como nascemos pré-maturos e
despreparados à sobrevivência individual, a prole requeria cuidados e alimentações (leite
materno), principalmente das fêmeas devido às suas condições biológicas e naturais. Todavia,
por sua vez, a relação frágil fêmea-cria também necessitava de proteção à sobrevivência, afinal

1
Nascida Marie Josephine de Suin, titulada Condessa Diane de Beausacq, foi uma escritora francesa do
século XIX que assinava sob o pseudônimo de Condessa de Diane.
2
Presença de características primitivamente larvais ou embrionias (juvenis) em um organismo adulto.
3
Divindade que personifica a alma humana.
4
Por se tratar de uma época em que os seres humanos se destacaram dos demais animais por produzirem
artefatos em pedra lascada.
4

era praticamente impossível alimentar e criar filhotes, se proteger e buscar sua própria
sustentação. Se o núcleo básico natural era mãe e filho, a sobrevivência de tal núcleo requeria
outros que auxiliassem a conservação da vida da própria relação. Temos, então, aí o princípio
rústico e fundamental do que hoje chamamos de família: grupo social primário de sobrevivência.
Neste sentido podemos considerar que a família é um fenômeno universal proveniente da
fragilidade da própria condição humana, embora as organizações familiares possam e mudem
de cultura para cultura, de momento histórico para momento histórico. A família, portanto, é
tanto um acontecimento universal (base biológica) quanto sociocultural.

Primitivamente o ser humano vivia em pequenos grupos denominados de clãs. Um clã


é um grupo de pessoas unidas por parentesco e linhagem, definido pela descendência de um
ancestral comum. Isso mesmo: nos primórdios da humanidade sobrevivemos formando
pequenos grupos cujo ancestral comum era a mãe, ou seja, um ajuntamento de irmãos. Tal
rudimentar estrutura social era essencialmente matrilinear, visto nossos longínquos ancestrais,
que viviam em natural promiscuidade, não saberem a participação do macho na procriação. Em
outras palavras não sabíamos da existência de um pai, e, mesmo quando soubemos,
primitivamente não sabíamos quem era o pai.
Antropologicamente se entende a descendência primitiva por meio dos vínculos
biológicos de parentesco, característicos, por exemplo, das famílias nucleares (pai-mãe-filhos).
Todavia, como bem frisa a ciência da Antropologia, a família natural é aquela constituída de
mãe-filhos, e não de pai, mãe e filhos. Por este ângulo o pai seria uma construção social, ou seja,
uma figura construída pela cultura, mais precisamente pelas regras socioculturais de
acasalamento.
Para o antropólogo polaco (um dos principais fundadores da Antropologia Social)
Bronisław Malinowski a família tem como função primordial tratar dos fatos básicos da vida, tais
como nascimento, acasalamento e morte. Tais fatos básicos são comuns aos animais, porém o
ser humano é o único animal que escolhe a forma como ele vai fazer isso. Para Malinowski o
parentesco é o concomitante cultural da necessidade natural de reprodução. Como disse ele em
seu livro Uma Teoria Científica da Cultura5, escrito na primeira década do século XX, o
casamento e a família são resultados do sistema de condições que se manifestam no organismo
humano e na relação deste com os ambientes físicos e culturais, que são necessários tanto para
a sobrevivência do organismo como do grupo social.
Pelo acima exposto, o casamento (criação cultural) é dissociado originariamente da
satisfação das necessidades sexuais, pois foi criado para legitimar prole (saber quem é o pai).
Em outras palavras, o casamento (regras de acasalamento) surgiu como uma necessidade social
de legitimar a relação com os filhos, e não para legitimar a relação entre o macho e a fêmea
(homem e mulher). Vide o clássico A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado6,
do teórico alemão do século XIX Friedrich Engels.

5
Ed. 70 (Portugal), 2009.
6
Ed. Presença, 1974.
5

Excetuando a família natural (mãe-filho) a família sociocultural tem um caráter não


natural. Isso ficou evidenciado no trabalho do antropólogo e pensador belga Claude Lévi-
Strauss, considerado o pai da Antropologia Moderna (Antropologia Estruturalista), As Estruturas
Elementares do Parentesco7. Lévi-Strauss, um dos mais importantes e influentes intelectuais do
século passado, percebeu que a estrutura mais elementar do parentesco (átomo do parentesco)
até então reconhecida era outra. O chamado “átomo do parentesco” era representado da
seguinte forma:

O sinal de igualdade ( = ) representa a relação de casamento, enquanto que o traço


vertical ( | )representa a relação de descendência. O triângulo e o círculo, por sua vez,
representam o homem e a mulher respectivamente. Por este desenho observa-se que a unidade
básica do parentesco se igualiza a unidade biológica reprodutiva macho-fêmea-prole.
A revolução proposta do Lévi-Strauss foi a de introduzir a dimensão cultural à questão.
Assim, do ponto de vista estruturalista, a unidade básica do parentesco é entendida como:

Observa-se, com o desenho acima, que a definição do átomo do parentesco teve seu
eixo modificado com a introdução de outro homem (triângulo à direita), representando a aliança
como elemento fundante do parentesco. Neste tocante Lévi-Strauss desnaturaliza a base
familiar (afasta-se do puramente biológico) incluindo o representante masculino de outro grupo
(clã), tendo a fêmea um significado de troca em busca do fortalecimento de um clã ao se aliar
com outro clã. Na luta evolutiva pela sobrevivência esse arranjo entre clãs fortaleceu quem
assim o fez, criando-se dessa forma a relação de afinidade, além da consanguinidade. Para o
referido antropólogo é mediante a troca de mulheres que se dá a ligação dos elementos sociais
do parentesco. Neste sentido a constituição da família deixa de ser meramente um fenômeno
biológico e passa a ser também cultural ao pressupor a existência prévia de dois grupos (clãs)
que se aliam através do casamento fora de seu próprio grupo, isto é, transcende-se da
endogamia à exogamia8. Com isso Strauss reconhece que o parentesco envolve relações além
da consanguinidade que são as relações de afinidade (aliança).
Segundo, portanto, a Antropologia Estruturalista, o casamento interrompe a
naturalização da relação mãe-filho ao estabelecer a figura do pai, assim como as regras de
acasalamento instituem o tabu do incesto (relação sexual entre pais e filhos e entre irmãos).
Ambos, o tabu ao incesto e o casamento entre clãs (exogamia) estabelece, pois, o império do

7
Ed. Vozes, 1980.
8
Endogamia (endo = dentro, gamia = casamento) significa acasalamento entre indivíduos do mesmo
grupo familiar biológico (consanguinidade), enquanto exogamia (exo = fora, gamia = casamento) significa
acasalamento entre indivíduos fora do grupo familiar, isto é, entre indivíduos não aparentados pela
consanguinidade.
6

sociocultural sobre o biológico. Vide o artigo O Tabu do Incesto e os Olhares de Freud e Levi-
Strauss, de Andrea Mello Pontes9.

A formação da família e sua evolução histórica ao longo dos tempos se confundem com
a história do próprio ser humano. Não há ser humano sem alguém que lhe cuide na infância.
Não há relação humana entre quem cuida e quem é cuidado que não haja em seu entorno
alguém, ou grupo de alguéns, que lhe cuide, proteja, auxilie e tome conta. Família, como grupo
de pessoas que se incumbe da criação da prole ou ninhada, é intrinsicamente tão natural,
biológico e ao mesmo tempo tão humano quanto inescapável. Para o bem ou para o mal a
família é sempre necessária, básica, fundamental, vital e necessária.

O termo família se origina do latim família que quer dizer um


conjunto de famulus, Famulus, por sua vez, significa servo ou
escravo. Na Roma Antiga famulus era todo aquele que estava
sobre o poder e domínio de um senhor denominado de pater
familias que tinha e detinha o poder de vida e morte (jus vitae
et necis) sobre seus filhos, esposa, netos, concubinas, servos e
escravos, que se encontravam sub manu (sob suas mãos).
Segundo a legislação romana antiga o pater, inclusive, detinha o poder de vender seus filhos
como escravos. Era o que se designava de patria potestas10.
Etimologicamente se pode observar a relação de poder existente no seio da instituição
familiar, entre eles o poder dos pais sobre os filhos pequenos. Como bem destacava o filósofo
grego Aristóteles já no século VI a.C., o homem é um animal político, pois somos forçados por
nossa natureza a viver em sociedade. O sentido da expressão aristotélica de o homem ser
naturalmente um animal político quer dizer que estamos fadados à pólis (ao pé da letra: cidade),
ou, melhor, o ser humano só se torna ser humano entre outros seres humanos.
Complementaríamos que o ser humano só sobrevive entre outros seres humanos.
A palavra política deriva do grego arcaico ta politika que, por sua vez, deriva de pólis.
Neste sentido toda família é igualmente um grupo ou instituição política, visto ser a família uma
entidade social organizada de maneira hierarquizada onde os pais têm poder e posição
hierárquica sobre os filhos, mormente enquanto crianças.
Evidente que as organizações familiares se distinguem de cultura para cultura, de
civilização para civilização, de período histórico para período histórico. Todavia, historicamente
ela é universal, formando-se como instituição plurifacetada, multivariada e culturalmente
determinada, resistente e adaptável, portanto, a inúmeras modificações e mutações. Como
grupo primário e como instituição a família é basilar e medular, não havendo nenhuma
sociedade que possa existir sem alguma forma de família.

9
Disponível in:
http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/dezembro2013/sociologia_artigos/pontes_artig
o.pdf
10
Vem daí a expressão jurídica moderna de pátrio poder. O Código Civil Brasileiro de 2002 modificou a
expressão para poder familiar.
7

Para uma visão mais ampliada da evolução da família ao longo da história humana
sugerimos o texto Transformações da Família na História do Ocidente, da socióloga e professora
universitária portuguesa Maria Engrácia Leandro11.

“Considero a família e não o indivíduo


como o verdadeiro elemento social”.
(Honoré de Balzac12)

11
Disponível in: https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/12875/1/leandro.pdf.
12
Escritor francês do século XIX, cujas obras figuram como as mais importantes da literatura, entre elas A
Divina Comédia, A Mulher de Trinta Anos e As Ilusões Perdidas.
8

POR UMA DEFINIÇÃO DE FAMÍLIA

A família é como a varíola: a gente tem quando criança


e fica marcado para o resto da vida.
Jean Paul Sartre13

Ao longo da história humana a família vem sofrendo diversas transformações e


configurações, a tal ponto que a palavra família tem sentido polissêmico. Por isso não é tarefa
fácil definir família, afinal o conceito de família não é unívoco nem unidimensional.
Há quem defina família como um grupo de indivíduos que dividem o mesmo teto. Outros
podem defini-la como um agrupamento humano formado por indivíduos que dividem um
ancestral comum. Há também quem interprete família como um grupo de pessoas ligadas por
laços afetivos. Tem também quem entenda a família como um sistema homeostático, enquanto
outros dizem ser uma unidade básica de interação social. O psiquiatra e terapeuta familiar Luiz
Carlos Osório, em seu livro Família Hoje14, afirma que família chega a ser uma expressão não
passível de conceituação, porém de descrição.
São várias as formas de definir família. Aliás, são várias as formas e configurações
familiares, tanto atuais quanto passadas. Muitas foram e serão as mudanças de formatos,
ajustes, estruturas e organizações da família e suas denominações, entre elas: patriarcal,
matrimonial, hierarquizada, igualitária, heteroparental, mosaico, eudomonista, homoparental,
entre outras. O Código Civil Brasileiro atual em seu artigo 226, parágrafos 3º e 4º delineia família
como formada pela união conjugal, bem como por qualquer dos pais e seus filhos. Já a ONU
optou pelo latu sensu ao descrever família como gente com quem se conta.

A socióloga e pesquisadora social argentina Elizabeth Jelin, em seu livro Pan y Afectos15,
explica que “la unidad familiar no es um conjunto indiferenciado de indivíduos. Es una
organización social, un microcosmos de relaciones de producción, de reproducción y de
distribución, con una estructura de poder y con fuertes componentes ideológicos y afectivos que
cementam essa organización y ayudan a su persistência y reproducción” (pág. 26). Assim, o
ambiente doméstico da família é um foro privilegiado e legítimo para expressar tanto as

13
Filósofo e escritor francês, um dos mais marcantes pensadores do século XX.
14
Ed. Artes Médicas, 1996.
15
Ed. Fondo de Cultura Económica de Argentina, 1998.
9

necessidades humanas básicas (apoio emocional) quanto para organizar a cooperação


econômica de subsistência, bem como cuidar e ser responsável pela socialização primária dos
filhos. Ao mesmo tempo em seu interior a família possui desigualdades, tais como as diferentes
hierarquias, as alianças subgrupais e as relações distintas de poder entre seus membros.
Para nós, no contexto do presente texto, vamos nos fiar no entendimento da família,
stricto sensu, como um conjunto de pessoas que possuem algum grau de parentesco entre si.
Assim, para efeito operacional, fiquemos, pois, com a seguinte definição: família é um grupo de
pessoas ligadas por laços de parentesco que se incumbe da criação da prole e do atendimento
de certas outras necessidades humanas. Trata-se de uma definição pedifocal, isto é, centrada
na criança, onde se evidencia o objetivo primordial e histórico da família que é ser responsável
por criar, cuidar, nutrir, proteger, educar e garantir o bom desenvolvimento de suas crianças
(criança vem de “cria”, seja enquanto filhote seja enquanto criação). Segundo o francês Émile
Durkheim (considerado um dos pais da Sociologia Moderna), a função da família é social: iniciar
o processo de socialização (primária) do indivíduo. Mas há também outras finalidades na família,
tal como a de gerar o sentimento de pertença, ou seja, sentir-se pertencendo a alguém e/ou a
um grupo social. Neste sentido a família tem uma tripla funcionalidade: biológica, psicológica e
social16.
Não iremos aqui versar, estudar e refletir sobre a família no sentido das pessoas que
gostamos, mas sim da família real, aquela que herdamos pelo destino do nascimento e pelos
laços do parentesco (de certa forma somos obrigados a conviver inicialmente com tais pessoas
que sequer escolhemos como parentes). Além do mais idealizar a família como um espaço
afetivo é esquecer que raiva, ciúme, inveja, culpa, tristeza, mágoa, rancor, ansiedade, medo,
zanga, vergonha e outras emoções e sentimentos chamados de negativos também compõem a
dimensão afetiva do ser humano. Afetos são estados psicoemocionais que experimentamos em
dados momentos, e seu caráter subjetivo de positividade e negatividade tem a ver com a
intensidade a frequência com que os vivenciamos, sendo que os afetos positivos nos dão
sensações de alegria, bem-estar e prazer, enquanto os negativos dão sensações opostas. Tanto
os afetos positivos quanto os negativos constituem a superfície e a profundidade do homem em
toda sua emocionalidade e paixões. Assim, rivalizar com um irmão, ter medo do pai, ter
vergonha de um tio, ficar triste com um primo, ter ciúme do cônjuge, detestar o avô, ter inveja
de um cunhado, odiar a mãe, também faz parte dos afetos familiares, principalmente
relacionados à família real, formal e de fato17.

16
Em termos de funcionalidade é esperado que a família seja um espaço gerador de afetos (alimentos
afetivos); que proporcione proteção, segurança e aceitação pessoal; dê apoio emocional e material e que
atenda às necessidades básicas humanas; que propicie estabilidade e socialização.
17
O que nos interessa, psicologicamente, são os afetos e como eles circulam e se interagem no seio do
ambiente interpessoal familiar. Psicologia é, acima de tudo, o estudo dos afetos e dos desejos, entre
outras coisas. Por isto não devemos desconsiderar o chamado “parentesco sócio afetivo”, como é o caso,
por exemplo, dos “irmãos de criação” e de pessoas que nas quais temos tanta vinculação afetiva que as
consideramos como uma “mãe” ou como um “irmão”.
10

Família é um grupo de pessoas ligadas por laços de parentesco. E o que é parentesco


afinal? Parentesco é a relação que une as pessoas por vínculos genéticos ou sociais. A jurista e
professora de Direito da PUC (SP) em seu livro Curso de Direito Civil Brasileiro18 descreve o
parentesco como uma relação vinculatória existente não apenas em pessoas que descendem
uma das outras de um mesmo tronco ancestral comum, mas igualmente entre cônjuges e seus
parentes e adotante e adotado.
Pelo acima exposto, o parentesco pode ser:

Parentesco estabelecido através de um


ancestral comum, também conhecido
CONSANGUÍNEO como parentesco por laços de sangue.
Exemplo: pais e filhos, entre irmãos e tios
irmãos de um dos pais.
Parentesco surgido pela união conjugal
AFINIDADE (casamento). Por exemplo: esposo e
esposa, sogra e genro, cunhado.
CIVIL Parentesco proveniente da adoção.

Família não é apenas um conjunto de pessoas, mas sim uma estrutura. Tal estrutura
é representada pela forma como se organiza o grupo e como interagem entre si seus membros.
E é neste conjunto invisível de exigências e funções que tanto se organiza as relações
socioafetivas de seus membros quanto se forma a personalidade individual e se influencia a
personalidade de cada um. A família, psicologicamente falando, é o pilaste de sustentação do
sujeito humano.
A família tem, pois, como função primordial contribuir para a saúde física e mental dos
indivíduos nela habitantes, principalmente às crianças que junto ao seio familiar estão se
desenvolvendo. De um modo geral a família é o primeiro grupo social da criança, razão pela qual
ela (família) assume a socialização primária do infante, bem como seu fundamental papel que é
o da afetividade. Um bebê, por exemplo, não necessita apenas de proteção e nutrientes, mas
também de afetos e cultura. E, como veremos mais adiante, a família desempenha esta essencial
função psicossocial que é a de intermediar a criança e a sociedade.

“Amigos são a família que nos permitiram escolher”.


(William Shakespeare19)

18
Ed. Saraiva, 2002.
19
Dramaturgo inglês, que viveu entre os anos 1564-1616, considerado o maior escritor da língua inglesa
e o mais destacado dramaturgo da história do teatro.
11

O NUCLEO DA FAMÍLIA

A família não nasce pronta; constrói-se aos poucos


e é o melhor laboratório do amor.
Luís Fernando Veríssimo20

Em termos antropológicos vimos que a família natural é aquela constituída pela fêmea
e sua prole (mãe e filhos). Porém em termos biopsicossocial a família é mais ampla, contendo
outros membros (parentes). Nesta lógica o núcleo21 de uma família em sua totalidade de
parentesco (família nuclear) é o conjunto de mãe-pai-filho(s).
A família nuclear nestes termos é a também chamada família tradicional, família
burguesa ou família simples. Em sua forma mais elementar a família nuclear é especificada como
um casal com filho(s). Mais precisamente um casal com filho(s) morando sob o mesmo teto.
Embora o conceito de família nuclear (pais e filhos na mesma casa) não seja mais
suficiente para os dias atuais22, devido inclusive a diversos novos arranjos domésticos, ainda há
algo de idealizado e expectado em sua formatação. Como escreve a psicóloga e doutora em
Psicologia Social, Adriana Wagner, no âmbito das diversas mudanças sociais surgidas nas
décadas recentes, pode-se dizer que “a pluralidade de arranjos familiares pode ser considerada
como uma das características mais marcantes destes novos tempos: divórcio, recasamentos,
uniões homoafetivas, adoção, pais e mães solteiros, poliamor, entre tantas outras, são
configurações relacionais que têm aparecido e passam a conviver com o modelo tradicional da
família nuclear. Esse cenário acaba por demandar uma postura mais flexível, que permita
integrar novas formas de ser família23”.
A família frequentemente idealizada corresponde a uma família harmônica e coesa, vista
como um lugar de refúgio e paz. Tal família platônica e pura encontra eco nas famílias dos
comerciais televisivos, a chamada família margarina. A “verdadeira” família feliz de que tanto
falou o russo Leon Tolstói. Todavia, a família nuclear idealizada (pais e filhos sempre felizes) não

20
Escritor e humorista, autor de livros como O Analista de Bagé e A Velhinha de Taubaté.
21
Em termos celulares o núcleo é a região da célula onde se encontra o material genético (DNA) dos
organismos. Por extensão, o núcleo é o elemento que ocupa a posição central de uma estrutura.
22
Segundo o Censo 2010 do IBGE, 16% das famílias brasileiras têm formação não tradicional. Verifica-se,
cada vez mais, a elevação no número de famílias monoparentais, unitárias (pessoa sozinha), diádicas
(casal sem filhos, também denominadas de família nuclear incompleta), recompostas ou recasadas, etc.
23
Desafios Psicossociais da Família Contemporânea: pesquisas e reflexões, págs. 99/100, ed. Artmed,
2009.
12

corresponde às famílias reais, afinal, independente da configuração grupal, o espaço familiar


não é um lugar tão idílico assim. Segundo a filósofa e pesquisadora Fernanda Borges24, a família
idealizada está amarrada às aspirações de um passado maravilhoso que nunca existiu e nunca
existirá. Escreve ela: “são muitas as pessoas que sofrem de saudades de modelos ideais
desajeitados com relação às urgências do tempo e da mudança, numa expectativa que trava as
suas vidas para um futuro possível. Modelo ideal que promete a felicidade, mas não cumpre”
(pág. 27).
As famílias atualmente estão sendo cada vez menos nucleares e cada vez mais
monoparentais, reconstituídas, recasadas ou multinucleares. Cada vez mais as famílias mais se
parecem com uma salada familiar do que com uma família margarina.

Em meio a tantas separações conjugais temos o aparecimento dos meio-parentes, tipo


ex-tios, novas avós, por exemplo. Já criamos nomenclaturas como família mosaico, quando os
pais separados se casam novamente com outras pessoas e os filhos convivem com estes em
novos arranjos de parentesco. Mas seja como for a família nuclear tradicionalmente concebida
ainda é hegemônica em vários lugares, bem como ainda permeia a idealização das pessoas e da
sociedade.
A idealização da família perfeita e feliz foi cunhada popularmente de família margarina,
onde papai, mamãe e filhos se apresentam felizes e saudáveis, reunidos à mesa tomando café
da manhã. Como escreveu o escritor russo Leon Tolstói25, todas famílias felizes se parecem, cada
família infeliz é infeliz à sua maneira. E por que todas as famílias felizes se parecem? Porque o
ideal de família feliz é único. E como nenhuma família é tão perfeita e ideal assim, a família feliz,
como diz Tolstói, não existe; o que existe são famílias infelizes (no sentido de não serem felizes
em termos maravilhosamente sublimes), e as famílias infelizes não são iguais ou idênticas. Cada
família tem a sua maneira idiossincrática de ser e de existir.

Também em termos de nomenclatura temos a


designada família extensa. A família nuclear e a família extensa
são vistas pela acepção de coabitação. Como visto acima, a
família nuclear é a família onde sob o mesmo teto habitam pais
e filhos. Já a família extensa representa aquela em cuja
habitação reside um número maior de parentes, como, por
exemplo, avô, sogra, tio, sobrinho, enteado, etc. Em outras palavras, a família extensa é uma
estrutura familiar mais ampla do que a nuclear. Podemos dizer que a família extensa é a
coabitação em um mesmo sítio doméstico da família nuclear + um ou mais parentes. O Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 25, parágrafo único, denomina a família
extensa ou ampliada como aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da

24
A Mulher do Pai: essa estranha posição dentro das novas famílias, ed. Summus, 2007.
25
Um dos maiores escritores da literatura universal, autor do clássico romance Guerra e Paz. A frase citada
é a abertura do seu livro Anna Karenina, provavelmente a mais famosa abertura literária de todos os
tempos.
13

unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive
e mantém vínculos de afinidade e afetividade. A família extensa é ainda comum em regiões
rurais e menos nos grandes centros urbanos onde predomina a família nuclear e a família
monoparental.
Outro termo bastante empregado na literatura específica sobre o estudo das famílias é
o de família ampliada. A família ampliada representa a família alargada além dos limites de
coabitação. Exemplo: um tio que não mora com um sobrinho faz parte da sua família ampliada.
A expressão família ampliada, portanto, agrega o conjunto dos parentes (parentela)26.

“Dizem que não basta


fazer os filhos;
existe o aborrecimento
de educá-los”.
(Giuseppe Giusti27)

26
Denomina-se ainda família de origem. Família de origem é a antiga família nuclear do filho(a) quando
este(a) não mora mais lá. Também existe a chamada família binuclear, sendo esta oriunda do divórcio
onde os filhos possuem, assim, dois lares, quando os pais permanecem corresponsáveis pelos cuidados
parentais. Existe ainda, porém sem amparo legal, o que se convencionou denominar de família
poliafetiva, que ocorre entre pessoas que mantém simultaneamente relações de afeto paralelas com dois
ou mais indivíduos que se conhecem e se aceitam uns aos outros,
27
Poeta satírico italiano do século XIX.
14

PAPÉIS E FUNÇÕES FAMILIARES

Quem não tem mãe, não tem família.


Platão28

Centremos nossa atenção na família nuclear tradicional: casal com filho(s). Como grupo
social a família nuclear tem seus papéis sociais. O papel social é definido como um conjunto de
normas e expectativas que condicionam o comportamento dos indivíduos pertencentes ao
grupo, não tanto em conformidade com as características pessoais de cada indivíduo, mas pelo
que se espera de quem ocupa determinada posição social. Sociologicamente falando o papel
social é aquilo que se espera de alguém que tem um estatuto social. Neste sentido se pode dizer
que o papel social tem o status do papel e o exercício ou desempenho do mesmo (função).
O papel social é um conceito da Sociologia que, de maneira geral, determina a posição
e função dos indivíduos na sociedade. Cada papel social agrupa um conjunto de normas, regras,
comportamentos e deveres de cada indivíduo na estrutura social a que pertencem.
Podemos distinguir no papel social status e função. Quem, por exemplo, exerce o papel
social de professor detém um status: o status de ser professor. Quem exerce o papel social de
professor empreende a função de ser professor que é o de ensinar e educar. Todavia nem
sempre status e função atuam juntos. Expliquemos melhor. Há professor que embora possua o
status e a representação social de ser professor não funciona bem como professor, às vezes tem
aquele que nem funciona. Também existem pessoas, um amigo, por exemplo, que mesmo não
sendo professor pode funcionar em alguns momentos pode funcionar como um professor ao
seu companheiro. O mesmo acontece com outros papéis sociais. Tem gente que não é
psicoterapeuta, mas que em determinadas circunstâncias funciona terapeuticamente para
alguém. Assim como tem pessoas que são habilitadas ao exercício de psicoterapeuta, mas que
não está funcionando como tal. Quem já não disse em algum momento para seu cônjuge ou
parceiro(a) amoroso(a) expressões do tipo eu não sou sua mãe. Evidente que o(a) parceiro(a)
amoroso(a) não está vendo o outro como mãe, mas está se comportando como se fosse um
filho e demando do outro uma função materna. Mais do que status, para o desempenho do
papel a função se faz fundamental. Quando em um dado papel social o status e a função estão
incongruentes, dependendo das razões, podemos chamar de disfuncionalidade.
Em uma família nuclear são até quatro os papéis sociais existentes, a saber:

Conjugal
Parental
Filial
Fraternal.

28
Filósofo que viveu o período clássico da Grécia Antiga em torno dos anos 427-347 aproximadamente.
Conjuntamente Sócrates e Aristóteles fundou a filosofia ocidental.
15

O papel conjugal, que está relacionado ao casal, transcende ao ato de casar ou de uma
pessoa se unir à outra. Duas pessoas casadas, ou que moram juntas, formam um casal enquanto
status. Porém, há de se ver se funcionam como um casal. De antemão destaquemos que uma
relação conjugal traz a expectativa que a parceria se estabeleça através de laços sexuais e
afetivos, provenientes do desejo de compartilharem juntos a vida, independente de terem ou
não filhos, bem como de ser esta união institucionalmente formalizada ou não.
O papel conjugal pressupõe a interdependência entre seus membros e o exercício de tal
interdependência envolve, por sua vez, compreensão, cooperação, compartilhamento,
competição, cumplicidade e mutualidade. O papel conjugal não deve se confundir com o papel
parental (cuidar de filhos), embora na esfera da conjugalidade possa residir a reprodução.
Conjugalidade é uma coisa. Parentalidade é outra.
A psicóloga e professora portuguesa Ana Paula Relvas afirma que um casal surge quando
dois indivíduos se comprometem numa relação que pretendem que se prolongue no tempo.
Incontestável que a conjugalidade tem a ver com a díade conjugal.
Socialmente a família nuclear tem seu início na formação da díade conjugal. O que se
espera para um bom funcionamento conjugal é que os indivíduos envolvidos se comprometam
a estabelecer e manter uma relação estável e duradoura. Para tal é necessário que consigam se
adaptar e se complementar mutuamente. É uma verdadeira negociação a dois. Uma
contratualidade entre dois indivíduos distintos e suas subjetividades.

“Essa mulher que há muito dorme ao meu lado


vai, como eu, morrer um dia.
Estamos deitados para sempre
conversando
Como nas manhãs preguiçosas de domingo,
como nas noites em que voltamos das festas
e nos despimos comentando as pessoas, roupas e comidas,
e depois adormecidos nos pomos
a entrelaçar os sonhos
num diálogo imóvel
que nenhuma morte pode interromper”.
(Affonso Romano de Sant’Anna29)

O papel parental significa o exercício da parentalidade que são duas: maternidade e


paternidade. Neste sentido o papel parental se divide em dois, ou mais precisamente em duas
funções: função materna e função paterna.
Bebê sozinho não existe, afirmava o pediatra e psicanalista britânico Donald Winnicott.
Se a principal razão de ser e de existir da família é a criar filhos, então a função materna é a mais
básica e essencial das funções parentais. Não existe vida humana sem mãe, afinal, devido a
condição de completo desamparo do ser humano no início de sua existência, é natural e
indispensável alguém que o alimente, cuide e lhe proteja. Esse alguém - seja ele quem for
(homem, mulher, mãe biológica ou mãe substituta, irmão ou irmã mais velha, outro adulto ou
jovem qualquer) - será aquele que estará no exercício da função materna. Mãe, assim e dessa
forma colocada, não é um status, mas uma função.

29
Poeta e escritor mineiro.
16

O que se espera do bom exercício e funcionamento da mãe, isto é, da função


materna? Cabe à função materna nutrir e proteger a prole. No início da vida o bebê está exposto
a medos, angústia e ansiedades frente aos quais não sabe lidar. A função materna, neste sentido,
é a de também ser continente das emoções existenciais do pequeno infante. A mãe (ou quem
exerce o papel/função) auxilia a criança a "digerir" seus próprios afetos inominados através de
uma postura responsivamente empática onde, como receptáculo, além de mitigar a ansiedade
dá sentido a mesma. A função materna é, portanto, vital. Sem ela não existiríamos.
Se for atribuído a alguém um papel filial, é porque também está se atribuindo a outro
alguém um papel materno. Mãe e filho é muito mais do que apenas dois papéis, é uma relação
intrínseca, pois um não existe sem o outro. Em termos funcionais não existe filho sem mãe, e
igualmente não existe mãe sem filho.
Se existem crianças vivas é porque elas foram e ainda estão sendo criadas. Algumas são
bem criadas, enquanto outras nem tanto. Em termos funcionais ao neonato e ao bebê não existe
ainda função paterna. Todos os que juntos estão com ele contribuindo para sua sobrevivência e
criação estão no exercício da função materna. Podemos até afirmar que pelo ponto de vista de
um bebê, todos ao seu redor são mãe.
A função materna é tão vital a todo e qualquer ser humano, principalmente no tocante
a sua nossa constituição psíquica, que mais adiante dedicaremos um espaço totalmente à parte
para melhor estudarmos tal função. Afinal, como disse Platão, quem não tem mãe, não tem
família.

“À medida que os filhos crescem, a mãe deve diminuir de tamanho.


Mas a tendência da gente é continuar a ser enorme”.
(Clarice Lispector30)

Já paternidade tem outra e distinta função. A função paterna representa "soltar" o filho
para o mundo. Soltar aqui está entre aspas exatamente por não significar largar, mas sim ajudá-
lo a andar com suas próprias pernas até não mais necessitar de pais para viver e/ou lidar com
seus conflitos existenciais. Assim sendo, considerando que a função materna é simbolizada pelo
colo, a função paterna é "tirar" do colo e ajudá-lo a prosseguir por seus próprios meios a estrada
e o mundo a fora. Por isto que se diz que o papel paterno é dessimbiotizante, ou seja, se entrepor
psicologicamente entre o filho e a mãe, dando curso ao processo de individuação da criança em
crescimento.
É normal que a primeira relação humana de um indivíduo humano seja este com sua
mãe (biológica ou substituta). Para o bebê esta é uma relação puramente simbiótica. Simbiose
é uma metáfora biológica que utilizamos em Psicologia para descrever a situação de
dependência emocional. Essa dependência emocional, que Winnicott chamava de dependência
absoluta, é absolutamente normal nas etapas iniciais da vida humana, porém quanto mais o

30
Escritora e jornalista ucraniana naturalizada brasileira. É considerada uma das mais importantes
escritoras do século XX. Autora de obras-primas como A Paixão Segundo G.H., Uma Aprendizagem ou o
Livro dos Prazeres, A Hora da Estrela, entre outras.
17

bebê deixa de ser bebê ela começa a passar a não ser mais saudável. A simbiose normal31 caso
perdure para além da fase lactente é psicopatológica.
O corte do cordão umbilical representa de fato a separação física e biológica entre o
neonato e o corpo materno. Já a separação psicológica (processo de separação e individuação32)
é um processo gradual e a posteriori.
A função paterna não é um papel atado ao exercício por uma criatura biologicamente
macho (homem). Trata-se de uma função, e como tal ela se realiza na triangulação dos papéis
funcionais mãe-pai-filho. Talvez seja melhor dizer mãe-filho-pai. É uma dinâmica processual e
interpessoal que se trama naquilo que se convencionou denominar de Complexo de Édipo33.
Para o narcisismo infantil primário a percepção da existência do objeto materno (mãe)
é o primeiro ”não-eu” da vida de uma criança. Já o entendimento da função do objeto paterno
(pai) é o primeiro “não-mãe” da vida de uma criança. Assim o pai representa o surgimento da
cena psíquica simbiótica como um terceiro elemento distinto que resulta em separação a idílica
fantasia infantil de que se tem a mãe só para si. A mãe pode amar seu filho, mas também ama
outra coisa ou objeto que não somente ele. Esta outra coisa ou objeto, é retratado na linguagem
psicanalítica como figura paterna (pai).
Vemos isso ser retratado nos espaços publicitários, como, por exemplo, nos dias da mãe
e do pai. No dia das mães é comum encontramos representações de uma mãe (mulher)
segurando seu bebê (colo). Já no dia dos pais é frequente encontramos representação de um
pai (homem) segurando seu filho por uma das mãos com uma estrada pela frente.
Simbólica e representativamente falando a figura paterna (função) é o corte do cordão
umbilical psicológico (narcísico) entre o psiquismo do bebê e sua mãe. Em termos figurados é
um interdito ao incesto simbiótico dos primeiros tempos de vida.

“- Meu pai, o que é a liberdade?


- É o seu rosto, meu filho,
o seu jeito de indagar
o mundo a pedir guarida
no brilho do seu olhar.
A liberdade, meu filho,
é o próprio rosto da vida
que a vida quis desvendar.
É sua irmã numa escada
iniciada há milênios
em direção ao amor,
seu corpo feito de nuvens
carne, sal, desejo, cálcio
e fundamentos de dor.
A liberdade, meu filho,
é o próprio rosto do amor”.
(Moacyr Félix34)

31
Expressão usada pela médica e psicanalista húngara radicada nos EUA, Margaret Mahler, para designar
à fase desenvolvimental onde o bebê vive com sua mãe uma espécie de prolongamento do seu corpo. É
como se fosse uma cápsula (mãe-bebê) onde nada mais existe à sua volta.
32
Individuação é o processo que encaminha o sujeito rumo a sua identidade, singularidade e autonomia.
33
Expressão criada por Freud para designar uma etapa do desenvolvimento psicossexual da criança que
é quando ela começa a perceber que não é o centro do universo e nem tudo para sua mãe. É quando a
criança realmente começa a perceber a importância do pai, neste caso como objeto de amor do objeto
materno.
34
Poeta e escritor carioca falecido em 2005.
18

O papel filial é centrado na dependência relacionada à prematuridade inicial do recém-


nascido, pois este depende absolutamente de um outro para sobreviver. Quanto mais o filho
cresce menos ele vai dependendo dos pais. O processo de individuação se faz assim da
dependência absoluta, passando pela dependência relativa, rumo à independência.

“O coração da mãe é a sala de aula do filho”.


(Henry Ward Beecher35)

Havendo irmãos surge na família o papel fraterno. No tocante ao papel fraternal


encontramos uma funcionalidade que envolve uma natural ambivalência na convivência entre
irmãos. A mesma é vivida na polaridade e no antagonismo entre solidariedade e rivalidade. Com
o tempo o termo fraterno foi sendo higienizado dos seus aspectos rivalizantes, e sendo
destacada tão somente a solidariedade36.
Não é anormal ou atípica a existência de alguma rivalidade fraterna, afinal ser irmão no
contexto de uma família nuclear é também disputar territórios (quarto, brinquedos, roupas,
comida, etc.) e a preferência e o amor dos pais. Quando a família nuclear continua crescendo
com a chegada de mais filhos uma nova dinâmica se faz presente. A partilha afetiva e territorial
é inevitável. O filho mais novo se sente destronado, e a competição surge nem que seja de
maneira velada ou inconsciente.
Brigas, disputas e desavenças entre irmãos e irmãs são naturais, frequentes e comuns.
Tais conflitos e desentendimentos, inclusive, podem ser bastante saudáveis às crianças. A
competitividade dentro do contexto fraterno e doméstico não deixa de ser uma espécie de
treinamento para vida adolescente e adulta extramuros do lar.
Idealizações à parte a rivalidade fraterna deve ser entendida como normal, muitas vezes
diária em dependendo da intensidade, motivo e frequência, saudável à formação psicossocial
dos filhos.
O relacionamento fraterno é assim um relacionamento ambivalente, sendo o mesmo,
como descrevem as psicólogas Caroline Rossato Pereira e Rita de Cássia Lopes37, o primeiro
microcosmo social onde a criança irá desenvolver habilidades e competências cooperativas, bem
como se preparar para o futuro. A relação fraterna na infância é a primeira relação de iguais
porque passa uma criança, exceto os filhos únicos.
Sugerimos a leitura do artigo A Função Fraterna e as Vicissitudes de Ter e Ser um Irmão 38,
das psicólogas Rebeca Goldsmid e Terezinha Féres-Carneiro.

“Cada irmão é diferente.


Sozinho acoplado a outros sozinhos.
A linguagem sobe escadas, do mais moço,

35
Pastor e escritor estadunidense do século XIX.
36
Lembremos, à guisa de exemplificação, que os primeiros irmãos bíblicos foram Caim e Abel.
37
Artigo Rivalidade Fraterna: uma proposta de definição conceitual, disponível em:
https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/115536.
38
Psicologia em Revista , v. 13, n. 2, p. 293-308, dez. 2007.Disponível in:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-11682007000200006.
19

ao mais velho e seu castelo de importância.


A linguagem desce escadas, do mais velho
ao mísero caçula”.
(Carlos Drummond de Andrade39)

“O interior das famílias é muitas vezes perturbado por desconfianças,


ciúmes e antipatias, e enganam-nos as aparências de satisfação,
calma e cordialidade, fazendo-nos supor uma paz que não existe;
poucas há que ganham em ser aprofundadas.“
(Jean de La Bruyère40)

39
Considerado um dos maiores nomes da poesia brasileira no século XX. Seu mais conhecido e celebrado
poema é No Meio do Caminho (No meio do caminho tinha uma pedra/tinha uma pedra no meio do
caminho...”).
40
Escritor francês do século XVII.
20

CICLO DE VIDA FAMILIAR

A finitude é o destino de tudo.


José Saramago41

Tudo que é vivo um dia nasceu e um dia perecerá. Nada é para sempre. A eternidade
não pertence ao ser humano, ao menos enquanto ser biopsicossocial. Como expressou certa vez
o escritor português José Saramago, a eternidade não existe. Um dia o planeta desaparecerá e
o Universo não saberá que nós existimos.
Não existe mais a civilização Asteca ou a Maia, nem os sumérios ou os acácios, nem
também existe mais o Império Romano. As coisas humanas podem durar anos, décadas, séculos
ou até milênios, mas um dia acaba. Tudo que hoje é vivo um dia nasceu, cresceu ou crescerá,
floresceu ou florescerá, decaiu ou decairá, e morrerá. Tudo finda. Tudo acaba. Como nos versos
finais do poema Evocação ao Recife, de Manuel Bandeira42, “Recife.../Rua da União/A casa do
meu avô.../Nunca pensei que ela acabasse!/Tudo lá parecia impregnado de
eternidade./Recife.../Meu avô morto./Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro/como a casa
do meu avô.”
O que tem começo tem fim, lembrava-nos o pensador italiano Nicolau Maquiavel43.
Tanto o ser humano enquanto indivíduo, quanto os agrupamentos de humanos como a família.
Em termos ampliados é difícil muitas vezes identificar o início de uma determinada
família. Porém é bem mais fácil no tocante à família nuclear. Considerando que a família nuclear
(pais-filhos) é aquele conjunto ou estrutura familiar baseada no casal com filhos, podemos dizer,
então, que o início de uma família nuclear (tradicional) se faz com a formação do casal
(casamento), cresce com o nascimento dos filhos, floresce com o crescimento destes, decresce
com a saída dos filhos de casa e termina com a morte do último cônjuge. O nascimento, o
crescimento, o florescimento, o decrescimento e a morte da família nuclear é o que chamamos
de ciclo de vida familiar, ou, mais precisamente, o ciclo de vida da família nuclear.
Sim, em termos de uma família fundada na conjugalidade para a criação da prole, a
família nuclear começa na formação do casal conjugal. Todavia tal constatação se faz no sentido
concreto e social. Em termos psicoafetivos a família nuclear tem seu início antes do casamento
ou formação do casal. No tocante à afetividade, psicologicamente falando, o casal que fundará
socialmente a família nuclear se início a partir da forma como cada cônjuge individualmente
iniciou sua saída afetiva de casa, ou seja, da sua família de origem.

41
Escritor português, prêmio Nobel de Literatura de 1998.
42
Poeta, crítico literário e professor de Literatura. Autor de um dos poemas mais conhecido da literatura
brasileira, Vou-me Embora para Pasárgada.
43
Viveu entre os anos de 1469-1527. Denominado de “pai da ciência política moderna”.
21

As norte-americanas terapeutas de família, Monica McGoldrick e Betty Carter, em seu


clássico livro As Mudanças no Ciclo de Vida Familiar: uma estrutura para a terapia familiar 44
englobam o ciclo de vida da família nuclear como um processo de fases de mudanças
adaptativas. Os estágios são os seguintes:

O novo casal (união de famílias através do casamento);


Família com filhos pequenos (nascimento dos filhos);
Família com adolescentes (crescimento dos filhos);
Família com jovens solteiros (maioridade dos filhos);
Lançando os filhos (saída dos filhos de casa/ninho vazio);
Família no estágio tardio da vida (envelhecimento dos cônjuges).

Socialmente falando uma família nuclear45 nova começa quando da formação do novo
casal. O casamento, ou a união conjugal, não somente forma um novo casal, mas também
representa a união entre duas famílias. Engana-se aqueles que acham que um casamento é uma
coisa fácil. Casar pode até ser fácil, todavia continuar casado requer inúmeras tarefas
adaptativas que o casal terá pela frente na formação e consolidação do sistema marital.
Um casamento requer que duas pessoas renegociem uma gama de questões, boa parte
delas advindas das famílias de origem de cada um (cultura familiar). Namoram-se anos a fio,
cinco, sete, nove, dez... porém, quando se casa (morar juntos, dividir cotidiano, despesas e
tarefas domésticas,) alguns casais não se sustentam. Entra aquela tal de “incompatibilidade de
gênios”.
E não é somente o ajustamento entre os parceiros do casal. Existe igualmente a
renegociação referente os relacionamentos com os demais da família ampliada (pais, irmãos) e
até com amigos pessoais. Como salientam Carter e McGoldrick46 que a inabilidade durante o
casamento de formar um relacionamento de casal, a partir do instante quando as duas pessoas
estão compartilhando o mesmo teto, indica que elas ainda estão muito emaranhadas com suas
próprias famílias para definirem uma nova família (novo sistema familiar). Sabe aquela
expressão popular que diz que a sogra deve ficar a uma média distância do casal, a ponto que
não fique “nem tão perto que venha de chinelos, nem tão longe para que traga uma mala”? Pois
é, a difícil arte de manter essa tal de média distância. Escrevem as referidas autoras: “os
problemas que refletem a incapacidade de mudar o status familiar são normalmente indicados
por fronteiras deficientes em torno do novo sistema. Os parentes por afinidade podem ser
intrusivos demais e o novo casal ter medo de colocar limites, ou o casal pode ter dificuldade em
estabelecer conexões adequadas com os sistemas ampliados, separando-se em um grupo
fechado de duas pessoas”.

44
Ed. Artmed, 1995.
45
Aquela que é fundada na conjugalidade.
46
Op. cit.
22

A próxima etapa adaptativa frequentemente é o surgimento de filhos. Agrega-se à


conjugalidade agora a progenitura. O sistema conjugal deve se ajustar para criar um espaço
físico e afetivo para a chegada dos filhos. Há um novo realinhamento em questão: incluir os pais
da família de origem de cada cônjuge no novo papel que é o de avós. É necessário que estes
saibam passar para um papel secundário e com isto permita aos filhos assumirem a autoridade
inerentes a seus papéis paternais. Outra vez não nos iludamos: o nascimento de um filho,
embora até desejado e programado, desequilibra de alguma forma a homeostase do casal que
agora não é mais uma díade e sim uma tríade.
Virar pai e/ou mãe é, sem sombra de dúvida, um momento marcante no ciclo de vida
pessoal e familiar. Inúmeras alterações ocorrerão - inclusive na própria personalidade dos
sujeitos envolvidos. Uma nova realidade descortina-se e eles devem fazer frente a tais
mudanças. Sacrifícios e renúncias deverão ser feitas, principalmente quanto ao campo de vida
social, bem como haverá de ser efetivar adequações psicológicas fundamentais. Não é raro, por
exemplo, pais que se sentem como que excluídos daquela relação tão primária que é a relação
mãe-filho. Faz-se, portanto, igualmente preciso encontrar um novo espaço para ele no âmbito
desta nova família inicialmente a três. Vide, por exemplo, o artigo Paternidade: vivência do
primeiro filho e mudanças familiares47, das psicólogas e professoras universitárias Mária Elisa
Jager e Cristine Bortoli.
Os filhos crescem e com eles diminuem a importância e a autoridade dos pais. Quando
bem pequenos eles são dependentes absolutos do ambiente familiar. Crescidos vão ficando
cada vez menos dependentes. E eis que chega a adolescência, momento crítico por excelência 48.
Talvez a principal tarefa adaptativa seja a de modificar a relação pais e filhos com vistas a
possibilitar ao adolescente movimentar-se paulatinamente para fora do sistema familiar (leia-
se fora como maior autonomia frente à família de origem dos mesmos)49.

Como dizíamos os filhos crescem. Crescendo chegam à adolescência e depois eles se


tornam. Como adultos é esperado que eles também queiram fazer suas carreiras profissionais,
buscarem sua independência financeira e formar sua própria família nuclear. Chamamos esta
importante etapa do ciclo de vida familiar de saída dos filhos de casa50.
A saída dos filhos de casa representa a célebre crise chamada de ninho vazio. O casal
encontra-se, assim, de novo a sós, tal como no início da formação familiar. Podemos, inclusive,
afirmar que é uma etapa de vida caracterizada por novas descobertas, conflitos e definições ou
redefinições. É como se fosse um novo casamento, só que agora fincado na elaboração do luto

47
Psicologia: teoria e prática, v. 13, n. 1, p. 141-153, 2011, disponível in:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1516-36872011000100011&script=sci_arttext.
48
Paralelamente o processo de independência dos filhos, os próprios pais geralmente enfrentam a crise
da meia-idade, bem como os avós estão se fragilizando com o passar dos anos. Os pais, por sua vez,
começam uma nova etapa de vida que é a de começar a cuidar da geração mais velha.
49
A respeito do assunto vide: Família e Adolescência: a influência do contexto familiar no desenvolvimento
psicológico de seus membros, dos professores Elisângela Prata e Manoel Antonio dos Santos, disponível
in: http://www.scielo.br/pdf/pe/v12n2/v12n2a05.pdf.
50
Carter e McGoldrick (op. cit.) denominam de “lançando os filhos e seguindo em frente”.
23

da “perda” dos filhos. Dentro da crise do ninho vazio temos os confrontos com a finitude da
vida. Novos valores e prioridades podem surgir.
O casal agora sem filhos coabitando é um casal que se reencontra, livre das obrigações
e tarefas parentais. Sentimentos e afetos ambivalentes podem predominar, tais como liberdade
e vazio da perda. Uma nova realidade se faz presente ao casal.

Destaque há de se dar a esta etapa na maneira como os filhos afetivamente saem de


casa. Sair de casa aqui não é mudar de endereço, é se desligar psicologicamente dos pais
infantis. Como descreve Carter e McGoldrick51, ao adulto jovem inicia-se um novo ciclo pessoal
e familiar de vida “cujo encerramento da tarefa primária de chegar a um acordo com sua família
de origem influencia profundamente quem, quando, como e se eles vão casar, e como
executarão todos os outros estágios seguintes do ciclo de vida familiar”.
Chegamos, então, a última etapa de vida do ciclo familiar que está relacionada ao
estágio tardio da vida. O casal original envelheceu e os pais destes já não mais existem, aliás,
não há mais uma geração anterior a morrer. É momento, pois, de aceitar as mudanças nos
papéis geracionais, entre eles manter os interesses próprios e/ou do casal em face ao declínio
físico e as limitações da idade avançada. Os filhos precisam abrir espaços em suas vidas para
apoiar à geração mais idosa. É um período de perdas (amigos, parentes, cônjuge), mais também
de revisão de vida e integração de ego.
Cabe aqui um esclarecimento. O ciclo de vida familiar compreendendo desde a
formação do casal, passando pelo nascimento do(s) filho(s), crescimento dos mesmos,
adolescência, saída dos filhos de casa, velhice dos cônjuges e morte do último cônjuge,
representa a evolução da família nuclear do ponto de vista social. Do ponto de vista psicológico,
ou mais precisamente do ponto de vista psicoafetivo, temos uma complexidade peculiar.
Psicológica e afetivamente falando a família nuclear não se inicia com a união conjugal,
mas sim com a saída dos filhos de casa. Como assim? Vejamos. A forma e maneira como os filhos
vão se desapegando dos pais (lembremos que inicialmente a ligação do bebê com a mãe tem
forte caráter fusional e simbiótico), isto é, vão diminuindo sua idealização dos mesmos, bem
como sua dependência psicológica, muito influenciará ou até mesmo determinará os futuros
apegos afetivos. A formação de um novo casal pode ter significativas marcas dessa passagem da
endogamia para a exogamia. Muito do como amamos e queremos ser amados tem resquícios
de nossos primeiros vínculos amorosos (pais). E é neste sentido que o lançamento dos filhos
para o mundo extrafamiliar inaugura, psicologicamente, o começar da futura família nuclear que
este irá criar conjuntamente a seu parceiro(a) e este(a) com ele também. Afinal, não é tão difícil
assim observarmos algumas pessoas que mesmo crescidas, trabalhando, com independência
financeira, casadas e até com filhos, mantendo um laço muito estreito com sua família de origem
a ponto de continuarem emocionalmente dependente dos pais. Ou até pessoas que transferem
sua dependência filial para os atuais cônjuges, a ponto de estes poderem chegar a dizer algo do
tipo “eu não sou sua mãe”.
A fase do jovem adulto é um marco, pois requer que o jovem adulto se separe da família
de origem sem romper relações ou fugir reativamente dela para uma espécie de refúgio
emocional substituto. Quanto mais satisfatoriamente se diferenciar emocionalmente da família

51
Op. Cit.
24

de origem, melhores serão as chances de enfrentar os ciclos de vida em sua nova família de
maneira autônoma. Um filho que sai de casa emocionalmente mais maduro pode melhor
escolher o que levará emocionalmente de sua família de origem, o que não levará e aquilo que
ele construirá sozinho com seus novos parceiros afetivos.

“O tempo que tudo transforma,


transforma também o nosso temperamento.
Cada idade tem os seus prazeres, o seu espírito e os seus hábitos”.
(Nicolas Boileau52)

FAMÍLIA: O ESPAÇO DAS TROCAS AFETIVAS


52
Escritor francês que viveu entre os anos de 1636 e 1711.
25

RAÍZES E ORIGENS DO SENTIMENTO AMOROSO

Amamos as nossas mães quase sem o saber,


e só nos damos conta da profundidade das raízes desse amor
no momento da derradeira separação.
Guy Maupassant53

Ninguém nasce amando. Basta observar com atenção um bebê: desde cedo ele
demonstra estar sentido medo, ansiedade, tristeza, alegria e raiva, mas e o amor? O recém-
nascido te ama? O recém-nascido tem sentimentos de culpa, pudor ou vergonha? A resposta é
não. O ser humano vem ao mundo, isto é, nasce com emoções ou afetos básicos (afetos
primários), tais como os acima falados: medo, ansiedade, tristeza, alegria e raiva. Outros
sentimentos ou afetos serão construídos e desenvolvidos mais adiante na existência humana
(afetos secundários), tais como a culpa, o pudor, a vergonha e o amor. Os afetos secundários
não são assim denominados por serem menos importantes, mas sim por serem posteriores. E
são sentimentos que se desenvolvem na psique humana através de nossas interações com os
outros (os americanos chamam de afetos sociais).
O amor é tema da literatura, do cinema, da poesia, da filosofia, da psicologia e de tantos
outros ramos do saber e das artes humanas. O amor é assunto de todos nós. Quem já não falou
de amor? A questão é: sabemos verdadeiramente o significado desse sentimento que
chamamos de amor e com o qual relacionamos à ideia de felicidade? Como nasce ele e quais
seus motivos? O texto a seguir é apenas um breve ensaio sobre a psicologia do amor e a razão
de nossas escolhas amorosas. O tema é vasto, complexo e talvez infindável e inesgotável. Aqui
teremos somente algumas reflexões e estudos iniciais a respeito do mesmo: uma ligeira revisão
sobre este afeto que está para a alma humana assim como o oxigênio está para o organismo.
Desde os tempos míticos o homem se debruça sobre o tema. Os gregos da Antiguidade,
por exemplo, representavam o amor através dos deuses Afrodite e Eros. Eros, filho de Afrodite
com Ares, aquele que flechava os corações das pessoas tornando-as apaixonadas, ele mesmo
certa vez também se apaixonou por Psique (alma). Após inúmeras peripécias divinas e
sofrimentos, Eros se une em definitivo com Psique. Eros e o amor são assuntos do clássico livro
O Banquete de Platão54. Nele encontramos - na fala de Aristófanes - o relato do mito da

53
Escritor e poeta francês do século XIX.
54
Ed. Martin Claret, 2015.
26

androgenia, segundo o qual inicialmente, os seres humanos eram seres esféricos, completos e
perfeitos. De tão perfeitos que eram os humanos tentaram desafiar os deuses do Olimpo,
aspirando chegar à sua morada. Por tal ousadia Zeus os divide, cortando-os em duas metades:
um lado masculino e outro feminino (é bem possível residir daí a expressão cara-metade), e os
condenou a vagar pelo mundo à procura de sua parte perdida. Tal mito significa, comentam as
filósofas e professoras Maria Lúcia Aranha e Maria Helena Martins55, o anseio do ser humano
pela totalidade, representada pelo encontro do “par perfeito”. Vem do livro O Banquete a
seguinte frase de Sócrates a respeito de Eros: um anelo de qualquer coisa que não se tem e se
deseja ter.
Etimologicamente a palavra amor tem origem latina cuja grafia é idêntica: amor. Amor
em latim vem da raiz étima amma (sonoridade infantil chamando mãe) + or (efeito ou
consequência). O sentido expresso no termo é claro: amor é uma resposta afetiva. Será? O que
é amor, esta palavra tão gasta e vulgarizada em nossos dia-a-dia?
Seja o que for amor ele é um afeto, ou faz parte da nossa vida afetiva. Inicialmente
parece ter a ver com carinho e cuidado. Como todo afeto o amor é fundamental na criação de
nossos laços afetivo com os outros. Uma única palavra, porém com diversos significados, tais
como amor físico, amor materno, amor fraterno, amor erótico, amor platônico, amor cristão,
amor ao seu time de futebol, amor à vida...
Sábio eram os gregos, pois tinham várias palavras para significar vários tipos de amor,
tais como Philia (amor da amizade), Pragma (amor prático), Storge (amor entre pais e filhos),
Eros (amor da atração), Ágape (amor dadivoso), Ludus (amor brincante), Mania (amor louco),
entre outras. Cada palavra cada termo, descreve o amor em suas diversas facetas. Assim, por
exemplo, quando encontramos na Bíblia, no Evangelho de João, a expressão Deus é amor, em
grego se escreve Ágape.
Nossos ancestrais portugueses foram mais econômicos com as palavras e enxugaram
tudo em uma única: AMOR. Genericamente podemos definir amor como um conjunto de
sentimentos como carinho, ternura, afeição, que se desenvolvem entre os seres que possuem
condições de demonstrá-los. Nossa ênfase aqui, neste momento, é nos centrar naquele amor
que os gregos chamavam de Eros. Eros envolve a atração física, mas também a atração afetiva.
É o amor dos casais.

Herdamos de Platão a fórmula do amor: amor é desejo, e desejo é falta. Porém há uma
aparente contradição nesta fórmula, ao menos em termos de permanência e continuidade do
amor. Se amor é desejo e se desejo é falta, então amamos o que nos falta, ou a falta nos
direciona a amar e a buscar. Acontece que se conseguimos possuir nosso objeto de desejo
(objeto do amor), então ele não mais nos falta, visto que o “possuímos”. E se desejo é falta e se
não nos falta mais o objeto, então não mais desejamos. E se amor é desejo, e se já “possuímos”
nosso objeto de desejo, então por não haver mais falta não há mais desejo, assim como sem
haver desejo não há mais amor. Complicado, não? Imagina o imbróglio filosófico da questão.
Pois bem. A contradição acima está na estreita relação entre amor e desejo. A saída de
tal contradita nos foi dada inicialmente por Santo Agostinho. Ele, sem abandonar a ideia
platônica de que amor é desejo e desejo é falta, propõe-nos a compreender a questão nos

55
Filosofando, ed. Moderna, 2009.
27

seguintes termos e significados: quando se tem o objeto do desejo assim o tem no presente. O
desejo permanece frente ao incerto, ou seja, o futuro. O desejo que subjaz e persiste no desejo
que se realiza na “posse” do objeto amado é o desejo de continuar com o objeto, visto que o
amanhã é sempre algo ainda não atingível (e por isto nos falta) e quando o amanhã chega não
é mais amanhã é presente, presente este que é sempre e constantemente contingente e
passageiro. Desse modo sustenta Agostinho, quando se “possui” o objeto do amor o amor se
transforma em medo – medo de perder no amanhã o objeto amado. Por isso amor é zelo,
dedicação, desvelo e cuidado.

“Que é amar senão inventar-se a gente noutros gostos e vontades?


Perder o sentimento de existir e ser com delícia a condição de outro,
com seus erros que nos convencem mais do que a perfeição?”
(Augustina Bessa-Luís56)

Ninguém nasce amando, porém todos nascemos em um contexto social que nos
possibilite ser cuidado. Sem tal contexto é a família (primeiro grupo social de um indivíduo
humano) ou seu substituto.
Este primeiro grupo social (família) será o primeiro espaço social em que o ser humano
terá para sentir suas primeiras emoções e seus sentimentos. Praticamente quase todos os afetos
humanos - senão todos - terão suas origens nessas primeiras experiências de relacionamento
social (raiva, medo, alegria, tristeza, ciúme, inveja, angústia, etc.). O sentimento amoroso
também tem seus alicerces nessas primárias vivências interpessoais. Aliás, podemos afirmar que
o primeiro objeto de amor da vida humana é o objeto materno (mãe). Tal objeto (mãe) será o
protótipo e modelo para as futuras relações amorosas extrafamiliares. Freud nos fez ver que o
ato de um bebê sugar o seio da mãe se torna matriz para toda relação de amor mais adiante.
Considerando que a mente primitivamente é narcísica, e que a primeira relação objetal
humana (mãe-bebê) é uma relação marcadamente simbiótica, então a primeira experiência
amorosa do ser humano é uma experiência amorosa narcísica. O psiquismo do lactente se crê
único para sua mãe. Trata-se, pois, de uma ilusão psíquica onde a mente infantil se acha
perfeitamente amada por uma mãe que o ama total e incondicional. O par perfeito. Esta unidade
mãe-bebê é o que o psicanalista húngaro Michael Balint denominava de primary love (amor
primário).
A ilusão narcísica de uma relação unitária simbiótica e perfeita será base das ilusões
juvenis e adultas relacionadas à paixão, como veremos a seguir.
A psicanalista inglesa Melanie Klein, desbravadora teórica do estágio oral narcísico do
psiquismo humano, detalhou a relação objetal primária (bebê-mãe) em duas posições
diferencias: posição esquizoparanoide e posição depressiva.
Na posição esquizoparanoide a mente do lactente não conhece a mãe como uma pessoa
integral (objeto total), mas sim como objetos parciais cujas experiências relacionais provocam
sensações de prazer e frustração (desprazer). A mãe ainda não é vista como mãe, mas sim como

56
Escritora portuguesa, ganhadora do Prêmio Camões em 2004.
28

seio, nos dizeres de Melanie Klein. Quando a experiência é prazerosa e gratificante (quando o
seio sacia a fome ou a necessidade) então o seio é bom. Quando não, o seio é mau. Nesta
dicotomia entre seio bom e seio mau, o seio bom é representado psicologicamente como um
objeto higienizado que coisas ruins, frustrantes e negativas (daí o termo objeto parcial). Trata-
se do seio ideal. Somente mais adiante, com o amadurecimento do bebê ainda na fase oral, o
psiquismo lactente poderá perceber gradualmente que o seio que gratifica (seio bom) é o
mesmo seio que frustra (seio mau). Tanto o seio bom quanto o seio mau fazem parte do mesmo
objeto, ou seja, da mãe (daí o termo objeto total). Na posição depressiva, portanto, a relação
objetal (bebê-objeto total) é ambivalente, afinal de ama e se odeia o mesmo objeto.
Em relação à posição esquizoparanoide a posição depressiva é mais madura, enquanto
que a esquiparanoide é imatura. Quem ama sem ambivalência idealiza. Quem ama ambivalente
realmente ama. Não há objeto amoroso perfeito e idealizado, somente nas fantasias, ilusões e
anseios narcísicos da alma humana.
Para uma melhor compreensão dessa dinâmica psíquica infantil em sua fase lactente e
oral, vide Melanie Klein e as Fantasias Inconscientes57, da psicóloga e professora universitária
Marcella Pereira de Oliveira.

“O amor pede identidade com diferença”


(Fernando Pessoa58)

PAIXÃO: UMA ILUSÃO AMOROSA

Quando a criança cresce vai chegando o momento dos primeiros arrebatamentos


amorosos da puberdade e da adolescência. Vai-se chegado o tempo juvenil das paixões.
Na verdade, a primeira paixão humana foi a relação simbiótica e narcísica da primeira
fase oral da primeira infância. A primeira paixão humana foi com o seio ideal da posição
esquizoparanoide, como vimos acima.

57
Disponível in: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/wep/v2n2/v2n2a05.pdf.
58
Junto com Camões, Fernando Pessoa é o mais importante nome da literatura portuguesa, e com certeza
o mais universal poeta português.
29

Embora o psiquismo vá ao longo da infância amadurecendo aos poucos, uma espécie de


nostálgica e inconsciente lembrança desses momentos iniciais da vida fica como que registrada
na memória emocional. Não se trata de uma memória evocativa, isto é, resgatável à luz da
consciência do presente. Neurocientistas distinguem a memória declarativa e a memória não-
declarativa. A memória declarativa, em síntese, guarda o saber de algo que aconteceu, enquanto
que a memória não-declarativa guarda o como isso aconteceu. Não podemos resgatar
experiências da primeira infância (fase oral), entre outras razões, principalmente por serem
vivências em um período não linguístico do psiquismo humano. Com o avançar da idade a mente
vai deixando de ser apenas sensório-motora e funcionando pelo processo primário de
pensamento59, para adquirir roupagem simbólica e verbal. Hoje, amadurecida, nossa mente
pensa com e por meio de palavras (processo secundário de pensamento). Embora registradas
na memória emocional do nosso psiquismo, as vivências do período em que a mente era
puramente regida pelo processo primário de pensamento (fase oral) não é passível de resgate
direto pelo processo secundário de pensamento.
Todos já fomos apaixonados pelas nossas mães (objeto cuidador), apenas sequer nos
lembramos. Todos somos, portanto, passíveis, de ressuscitar as fantasias e sensações da paixão
com outros objetos a posteriori.

“Uma paixão tão completamente centrada em si recusa


o resto do mundo tal como a água límpida e calma
filtra todas as matérias estranhas”.
(Virgínia Woolf60)

Paixão vem do latim passione que está relacionado ao ato de suportar sofrimento e traz
em seu bojo o significado de passividade. Em grego se utiliza o termo pathos (padecimento).
Pathos, por sua vez, também significa emoção (vide a palavra “apatia”) e doença (vide a palavra
“patologia”). Como diz a filósofa Marilena Chauí, o apaixonado é afetado por uma experiência,
emoção ou sofrimento. Pathos é o oposto de práxis (atividade, ação) no sentido em que se
recebe o sofrimento. Por isto na semana santa celebra-se a paixão de Cristo, isto é, o sofrimento
de Cristo.
A paixão é uma emoção ampliada de maneira quase doentia, ou até mesmo doentia. É
um sentir tipicamente doloroso e limítrofe com a patologia onde aquele que é acometido pela
paixão perde sua individualidade psíquica devido à atração e o fascínio que o objeto da paixão
proporciona. Em sua natureza passiva o apaixonado é representado pela pessoa que se vê
“flechado” (acometido) pela paixão. Quem não reconhece nesta imagem a figura do Cupido, por
exemplo?

59
O processo primário de pensamento é regente na fase oral do psiquismo humano. Trata-se de um
pensamento não verbal, atemporal (sem noção de tempo), sem limite (sem noção de não),
predominantemente fantasmático, narcisicamente onipotente e fortemente marcado pelas sensações.
60
Escritora inglesa e uma das mais importantes figuras do modernismo literário.
30

Literalmente paixão é, pois, uma patologia amorosa, caracterizada pela superlatividade


fantasiosa que se tem da realidade do outro (objeto da paixão). Subjetivamente há na paixão
um sentimento de fusionamento com o objeto da paixão, pois este é idealizado e quem está
apaixonado crê que com ele todas suas carências não mais existirão. Nesta busca narcisista de
fusão objetiva-se ilusoriamente a simbiose que um dia tivemos (bebê-mãe) e perdemos. O que
restou em nossas mentes daquela época primeva e originária do psiquismo onipotente,
autossuficiente, grandioso, completo e perfeito, convencionou-se chamar de Ego Ideal61. Parece
que o objeto amado representa algo deste Ego Ideal projetado nele, e assim tem-se a ilusão de
que a união do sujeito apaixonado com o objeto da paixão será uma relação perfeita, um par
completo e completamente feliz. O outro como a sua cara-metade. Juntos formam uma unidade
plena.
Como argumenta a psiquiatra e psicanalista Miriam Gorender “a primeira fantasia que
surge nas relações apaixonadas da vida adulta é a da restauração de nosso narcisismo primário;
a primeira esperança do (a) apaixonado (a) é encontrar no ser amado sua total completude. As
fantasias do início de uma relação apaixonada não concedem existência própria ao outro, que
se torna um depósito das fantasias mais arcaicas, um representante da possibilidade de
restauração do narcisismo ferido62”.

“A paixão é a posse do mundo”.


(Joaquim Pessoa63)

Atente o(a) leitor(a) que não estamos no conceito “vulgar” de paixão, no sentido popular
e romanceado que usualmente damos ao mesmo. Em filmes como Love Story64 a paixão é
resumida em frases do tipo amar é ter jamais que pedir perdão. Ora se amor fosse isto (jamais
pedir perdão) significaria que jamais magoaríamos a pessoa amada ou seríamos magoados por
ela. E só há uma maneira de nunca magoarmos alguém: sendo tudo o que é ela quer que eu
seja, isto é, ser o seu objeto pleno de desejo. E vice versa.
Quando uma pessoa se vê acometida pela paixão ela tem fortes sensações de
arrebatamento. O coração dispara, não consegue deixar de pensar na pessoa “amada”, sente-
se ansiosa e angustiada na ausência desta, quer sempre estar perto da mesma, eleva-se a
estratosfera o apetite e a atração sexual dirigido ao objeto da paixão, altera-se o sono, a
alimentação e o humor, por aí vai. Tal arrebatamento é consequência de alterações
neurofisiológicas no organismo do apaixonado, pois o cérebro se encontra banhado de
neurotransmissores e hormônios, entres eles a adrenalina, a noradrenalina e a dopamina. Esta
última é responsável pela sensação de dependência em que se acha a pessoa apaixonada em
relação a seu objeto de desejo. Também há uma diminuição da liberação de serotonina, fazendo
com que a pessoa fique obsessivamente pensando no amado(a) de maneira fixante. Não nos
esqueçamos do papel dos feromônios65 no fenômeno da paixão, afinal estes hormônios
propiciam a “comunicação química” entre os apaixonados.

61
O Ego Ideal, como dizia Freud, é o herdeiro psíquico do narcisismo infantil.
62
O Que Será: indagações da paixão, Estudos de Psicanálise, n. 33, p. 117-124, jul. 2010, disponível in:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372010000100012#2,
63
Poeta português.
64
Filme romântico de Arthur Hiller que fez enorme sucesso em 1970.
65
Hormônios sexuais que impulsiona a atração sexual entre indivíduos da mesma espécie.
31

Pois é. Embora a imagem da paixão comumente esteja associada ao coração (pois ele
dispara), a flecha do cupido não atinge este órgão muscular vital à vida, mas sim o cérebro. Este
sim é responsável pelas loucuras da paixão.

Resistir à paixão não é fácil não. O queimar da euforia proporcionada pela paixão pode
acometer qualquer um a qualquer momento, porém é mais comum na adolescência, a tal ponto
que chamamos este período desenvolvimental de o tempo das paixões. A explosão química da
paixão é capaz de viciar, e há pessoas assim viciadas que tão logo termina uma paixão já está
rumando para outra em busca de endorfinas e sensações. Tem gente que não se apaixona por
pessoas propriamente ditas, mas sim pelo próprio sentimento da paixão. Pessoas que amam
estar apaixonadas.
A adolescência é por natureza o período de vida das grandes paixões, haja vista ser uma
fase evolutiva caracterizada pela exuberância hormonal, impulsos e emotividade. O jovem ali se
vê em meio a um redemoinho de desejos, sentimentos, dúvidas, que se confundem pela
incipiente capacidade cognitiva e emocional de discernir prazer, êxtase, gozo e harmonia
interior. Na imaturidade afetiva inerente à adolescência, o amor-paixão toma roupagens
idealizantes e, às vezes, possessivas. São sentimentos fortes e avassaladores onde predomina a
avidez e a urgência dos afetos. Quando dizemos que o amor é cego estamos de fato falando da
paixão em seu espírito puramente juvenil.
Se na adolescência as paixões são uma espécie de teste drive para as futuras relações
amorosas da maturidade, no adulto a paixão tem seu caráter regressivo. Não importa a idade
que o adulto tenha, apaixonado ele se torna emocionalmente um verdadeiro adolescente.
Porém, com a diferença que geralmente o adulto tem muito mais a perder.

Decididamente paixão não é amor, mesmo que em nome da paixão digamos ao outro
"eu te amo". A paixão na adolescência é necessária e normal para o desenvolvimento emocional
do indivíduo. Todavia a paixão quando acomete um adulto ela é nada mais nada menos que uma
patologia do amor, uma regressão psíquica.

“A paixão é um incêndio
na fábrica de fogos de artifício.
A paixão é um balé
à beira do precipício.
Quando a paixão termina
o mito se quebra.
32

E resta a sensação de uma viagem


contra uma chuva de pedra”.
(Luiz Coronel66)

O AMOR E A ESCOLHA DO OBJETO AMOROSO

Ama-se quem se ama e não quem se quer amar.


Florbela Espanca67

Várias são as formas de se definir o que é amor, e nenhuma delas define em completo
o que é o amor. Talvez o amor seja de difícil definição, ou talvez não seja possível reduzi-lo a um
conceito. Seja como for o termo vem do latim amore/amor que é uma emoção ou sentimento
que leva uma pessoa não somente a desejar outra pessoa, mas principalmente a desejar o bem
dessa pessoa. Mas será que o amor existe como afeto puro e específico, ou será ele uma
combinação de afetos que quando uma pessoa os sente faz com que diga “estou amando”? Será
também que estava certo o poeta português Fernando Pessoa quando afirmou que nunca
amamos ninguém. Amamos, tão somente, a ideia que fazemos de alguém? Ou será ainda que
quem estava certo era a escritora Clarice Lispector que dizia que amor é a desilusão do que se
pensava que era amor? Mas o amor é tão importante no cimentar das relações afetivas e íntimas
do ser humano, entre elas o amor entre os cônjuges, entre pais e filhos, entre irmãos e irmãs,
entre o indivíduo e determinados parentes significativos, entre um amigo e seu amigo. O amor
merece reflexão.
Freud já no início do século XX dizia que a escolha do objeto amoroso na vida adulta em
princípio parte dos primeiros objetos amorosos da infância. Segundo a visão freudiana um ser
humano tem originalmente dois objetos sexuais: ele mesmo e a mãe.
Creio não ser necessário qualquer conhecimento de Psicologia para se reconhecer que
primeira experiência amorosa do ser humano é com os pais, mais precisamente com a mãe ou
quem ocupe o lugar da função materna.
Ninguém nasce amando. Os afetos inatos ou primários são a ansiedade, o medo e a
raiva. Afetos secundários – chamados pelos americanos de “afetos sociais” – são afetos
desenvolvidos através de experiências interpessoais , como, por exemplo, ciúme, pudor,
vergonha, culpa, gratidão e amor, entre outros. São sentimentos complexos construídos sob o
contato com os outros e a cultura, e que têm como base as emoções primárias. Nossa primeira

66
Escritor e compositor gaúcho.
67
Poetisa portuguesa conhecida por compor importantes sonetos da literatura de Portugal..
33

escola afetiva é a infância e é de lá que trazemos muito de nossa bagagem emocional à vida
adulta.
O ser humano nasce sem ainda conhecer o mundo que o circunda e muito menos as
pessoas que nele habitam. A mente humana primariamente é solitária, isto é, vazia de pessoas.
A mente rudimentar é, portanto, anobjetal 68 e amúndica69, sem qualquer noção da existência
de qualquer coisa que não seja ela mesma. Sabemos que isto é uma pura ilusão da mente que
originariamente continua funcionando fora do útero materno como se fetal ainda fosse. Como
bem descreveu a psiquiatra e psicanalista infantil norte-americana Margaret Mahler, o
nascimento psicológico vem depois do nascimento biológico. No início da existência humana
além do útero a noção de Eu é tão somente um potencial a se realizar. E o Eu nasce,
posteriormente ao nascimento biológico, através da relação com o ambiente cuidador.
O bebê vai gradualmente descobrindo-se dependente de alguém. É como se o psiquismo
fosse aos poucos se dando conta de que não é uma solidão existencial. A mente descobre a mãe,
ou mais precisamente seu primeiro objeto, seu primeiro não-eu.
É através dos cuidados maternos, no interjogo das gratificações e frustrações, que surge
o objeto externo frente aos olhos infantis. É a mãe quem o sustenta, é a mãe quem o alimenta
é a mãe quem o protege, é a mãe quem o agasalha, é a mãe quem o atende em suas mínimas
necessidades, é a mãe...
É com este objeto materno que o ser humano toma contato e desenvolve seus primeiros
afetos secundários. Decididamente, a mãe é o primeiro objeto para onde a energia psíquica e
atenção do bebê se dirige. A mãe é o objeto que satisfaz (ou frustra) nossos mais íntimos desejos
de então.
Na infância não escolhemos nossos primeiros objetos amorosos, no sentido de que não
escolhemos os pais que tivemos, nem a família em que nascemos. É a partir da puberdade e da
adolescência que iniciamos dirigir nossos interesses afetivos-sexuais (libido) para fora do âmbito
familiar. Todavia é a infância que muito determina a maneira como iremos amar
exogamicamente.
A nossa primeira escolha objetal amorosa foi denominada por Freud de
escolha objetal anaclítica, isto é, uma relação de apoio derivada das condições
naturais de desamparo, fragilidade e impotência do bebê em ele mesmo atender
suas necessidades mais primárias. São tempos mentais idealizantes que levamos
pela vida afora, inclusive na vida adulta70.
A paixão – como visto – é um sentimento forte carregado de
identificações e idealizações. Não é de todo incompreensível entender a paixão
como uma espécie de reedição da experiência ilusória primária de completude da
relação bebê-mãe. Busca-se com o outro atingir a perfeição.

“Minh’alma de sonhar-te anda perdida.


Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!
Não vejo nada assim enlouquecida…
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser

68
Ausência de objetos internos (representações psíquicas de objetos externos).
69
Ausência de noção de mundo.
70
Vê-se aqui a defesa do presente texto em compreender os relacionamentos amorosos a partir de uma
ótica baseada nas raízes inconscientes originadas a começar de nossas famílias de origem. Por este ângulo,
ou viés compreensivo, nossas escolhas amorosas adultas têm sempre um quê de infantil, ou seja,
repetições de alguns padrões adquiridos na meninice. Sentimentos e desejos infantis, portanto, se
misturam aos sentimentos e desejos adultos no momento da escolha do objeto amoroso.
34

A mesma história tantas vezes lida!


‘Tudo no mundo é frágil, tudo passa…’
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim,
E, olhos postos em ti, digo de rastros:
‘Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim!…”
(Florbela Espanca)

Porém, nem toda escolha é paixão. Existe a escolha pelo amor, com mais maturidade,
menos idealização, porém jamais isenta de qualquer resquício infantil. Escreveu Freud em Cinco
Lições de Psicanálise71: "é absolutamente normal e inevitável que a criança faça dos pais o objeto
da primeira escolha amorosa. Porém a libido não permanece fixa nesse primeiro objeto:
posteriormente o tomará apenas como modelo, passando dele para pessoas estranhas, na
ocasião da escolha definitiva. Desprender dos pais a criança torna-se, portanto, uma obrigação
inelutável, sob pena de graves ameaças para a função social do jovem”.
Os filhos crescem. Chega-se à época da adolescência e com ela o desapegar infantil dos
pais. A sexualização secundária e a transformação do corpo infantil em um corpo adulto pronto
à reprodução são conjugadas pelas primeiras grandes paixões juvenis. No progresso da
maturação sexual a transferência do amor aos pais para os pares extrafamiliares é uma das
maiores mudanças emocionais que sofre o ser humano. O desejo eclode agora fora do lar. Surge
o enamoramento. Começamos a conquistar e sermos conquistados. Damos agora nossos
primeiros passos na dança do acasalamento.
A necessidade que tínhamos de se apegar da primeira infância permanece, pois, adultos
ou não, continuamos incompletos, frágeis e vulneráveis. Nosso psiquismo é regido pela raiz
primária da busca pelo retorno do momento “mágico” e seguro da mais significativa das relações
humanas: mãe-bebê.
A ilusão faz parte do psiquismo humano e também se faz presente na escolha amorosa.
Busca-se no outro complementariedade, sendo esta uma das principais motivações na hora de
escolhermos um cônjuge. A complementariedade vem da crença ilusória de que o cônjuge deve
ser alguém com quem nos completamos. Pari passu com a complementariedade temos a
similitude, isto é, busca-se no parceiro características e qualidades semelhantes àquelas que
possuímos. Diz um dito popular que os opostos se atraem, pode ser até verdade, porém apenas
no início, pois o que conserva uma relação são as semelhanças.

A influência da intergeracionalidade e da transgeracionalidade72 não deve ser


descartada, afinal muitos têm os pais e o casamento destes como padrão de referência, tanto
para ser seguido, como para ser evitado. A partir da conjugalidade dos progenitores pessoas
podem criar um esquema mental de como se relacionar com o outro, seja nos afetos, nos
manejos adaptativos e no enfrentamento de conflitos.

71
Ed. Imago, 1997.
72
Transmissões psíquicas entre gerações.
35

A escolha amorosa e conjugal é tema relevante no tocante ao estudo da família, sua


formação, dinâmica e ciclo vital. A base da família nuclear, lembremos, é a conjugalidade – daí
a importância de melhor compreender as razões e raízes da escolha conjugal.
Do ponto de vista psicanalítico clássico existem basicamente dois caminhos que nos
levam a escolha do parceiro amoroso, a saber: a anaclítica e a narcísica. A anaclítica, conforme
já mencionada, parte da relação amorosa primitiva de suporte, isto é, com nossos pais. Neste
sentido a analítica está relacionada com as figuras parentais. Todos têm, em algum grau maior
ou menor, tendência a amar nossos parceiros como fomos amados pelas pessoas que nos
cuidaram na infância. Em certas situações até de forma análoga como fomos cuidados e que nos
gerou algum sofrimento e, mesmo assim, pode-se buscar revivê-la por meio de novos objetos
amorosos. Já a chamada maneira narcísica tem a ver com a própria pessoa que ama, ou seja,
tendemos a escolher parceiros pessoas que de alguma forma se parecem conosco ou como
gostaríamos de ser. Se é como diz o ditado popular os oposto se atraem, complementaríamos
dizendo que as semelhanças conservam. A similaridade é fundamental tanto no tocante à
escolha amorosa quanto à durabilidade relacional. Idade, raça, nível de escolaridade, religião,
formação cultural, são aspectos que têm influência na seleção amorosa.
De alguma maneira, consciente e inconscientemente, parece estarmos em busca de
uma cara-metade. Possivelmente devem ser diversas as motivações que nos levam a escolher
determinada pessoa em detrimento à outra. Semelhanças físicas e idealizadas, gostos,
preferência, posturas existenciais, maneiras de pensar e agir, micros e macros sinais, se
conjugam as carências afetivas na hora de se escolher o cônjuge, pois é com ele (ou com ela)
que se busca partilhar o caminhar na vida, ser feliz e constituir família (ter filhos).
Do ponto sistêmico acredita-se que grande parte nossas escolhas estão relacionadas ao
modelo parental, que como expressam as psicólogas Isabela Machado da Silva, Clarissa Menezes
e Rita de Cássia Lopes, citando os psicoterapeutas italianos Cláudio Ângelo e Maurício Andolfi,
“todo indivíduo ao tomar como modelo seus pais, construiria um esquema de maneira de se
relacionar com um parceiro. Dessa forma, os valores e as expectativas de cada indivíduo, assim
como as ideias de quais características seriam desejáveis no parceiro escolhido são transmitidos,
em grande parte, pelas famílias de origem73”.
Há diferenças entre amor e paixão. Uma pessoa que ama não age e se comporta da
mesma maneira que quando apaixonada. O amor é um afeto, ou conjunto de afetos, mais
sereno e estável, enquanto que na paixão o que temos é uma revolução afetiva, uma erupção
de emoções e fortes sentimentos. A paixão nos invade e nos governa de maneira tirânica,
domina nossa razão, sendo arrebatadora, intensa, frenética e turbulenta.
Na paixão o objeto da paixão é idealizado, transforma-se em um personagem (uma
espécie de príncipe ou princesa encantada). Por isso a paixão dura pouco, pois a convivência,
intimidade e o tempo nos oferece a realidade que é o posto da idealização, da ilusão e do
encantamento. Tem uma expressão popular sábia que diz: quer conhecer alguém divida com ele
uma saca de sal. Uma saca pesa em torno de 50/60 quilos. Para se gastar 50/60 quilos de sal no
dia-a-dia de uma cozinha são precisos muitos dias, meses, anos...

73
Em Busca da “Cara-Metade”: motivações para a escolha do cônjuge, pág. 384, disponível in:
http://www.scielo.br/pdf/estpsi/v27n3/10.pdf.
36

Será o amor uma paixão comedida, ou será a paixão um amor exagerado? Ambos e
nenhum dos dois. Paixão e amor são entidades afetivas distintas. Paixão é uma coisa, amor é
outra, embora no amor haja algo de paixão – como teoriza o psicólogo e professor universitário
norte-americano Robert Sternberg (vide quadro abaixo) -, e na paixão exista algo parecido com
amor (mesmo que ilusório, idealizado e transitório).
Outra clara distinção é a que paixão, paixão mesmo, tende a acabar rápido (em média
seis meses a um ano, mais ou menos74) e de maneira frequentemente ruidosa e dramática, e o
amor tende a ser mais prolongado, quiçá durável.
Paixão é à primeira vista ou quase. Amor é uma construção que vai se fazendo aos
poucos. Como ensinavam os antigos gregos, para existir amor requer intimidade, reciprocidade
e tempo. Não se ama alguém de um dia para o outro.
Paixão é feita de idealizações e simbioses. Já o amor é feito de trocas, renúncias e
consensos. A questão da paixão é que a pessoa apaixonada confunde o que é terno com eterno.
O amor não é um sentimento cego, isto é, se vê as diferenças e defeitos e mesmo com
as diferenças e defeitos se ama. Diríamos que amar é tolerar as diferenças. Já na paixão o
sentimento é cego, ou seja, não se percebe as diferenças ou defeitos. O objeto da paixão é
perfeito. Por isso o apaixonado não parece viver a ambivalência que é normal das relações
afetivas. Já quem ama convive com a ambivalência.

Robert Sternberg desenvolveu a chamada teoria triangular do amor. Esta teoria visa
melhor explicar o fenômeno amoroso e os relacionamentos amorosos. Para ele o amor é um
afeto composto de três qualidades básicas que se manifestam ou não nas relações amorosas em
geral. Tais componentes são paixão, intimidade e compromisso.
Para Sternberg o componente da paixão75 é a energia da relação. A paixão envolve a
atração sexual e a limerência76. A intimidade se refere à sensação de proximidade, sendo
baseada na confiança, no carinho, na ternura e na amizade. Já o compromisso á decisão de se
continuar no relacionamento, compartilhar sonhos e conquistas.
As combinações dos três componentes resultam em sete formas denominadas de:

74
Há quem aponte até quatro anos, como é o caso da médica Cibele Fabichak, em seu livro Sexo, Amor,
Endorfinas e Bobagens, ed. Matrix, 2016.
75
Paixão aqui não é paixão enquanto pathos.
76
Estado cognitivo-emocional involuntário e inconsciente, que resulta em desejo romântico por outra
pessoa. Embora parecida com a paixão (pathos) a limerência é o amor romântico e a paixão o amor
intenso e louco. A paixão (pathos) normalmente tem curta duração. A limerência tanto dura muito mais,
podendo durar até a vida inteira.
37

Amor paixão: presença do componente da paixão, porém sem intimidade e


compromisso. É um romance, mas que logo acaba pela ausência dos outros
componentes;
Amor Amizade: é quando há carinho (intimidade), mas sem paixão e compromisso;
Amor vazio: caracterizado pela presença do compromisso, contudo com ausência de
paixão e intimidade;
Amor romântico: derivado da combinação de paixão e intimidade, mas sem a presença
do compromisso;
Amor fugaz: quando prevalecem a paixão e o compromisso, todavia sem intimidade.
Acontece quando duas pessoas atraídas uma pela outra (paixão) querem ficar juntas
(compromisso) sem terem muita coisa em comum (intimidade);
Amor companheiro: é um amor íntimo com compromisso, sem o componente
passional;
Amor consumado: é o amor completo, isto é, possui os três componentes: paixão,
intimidade e compromisso.

Uma família unida e funcional é uma família baseada no amor. Amor entre o casal, amor
entre pais e filhos, amor entre os irmãos. É um amor ambivalente e não idealizado no sentido
de perfeito (família margarina). É o amor que convive com outros afetos, inclusive negativos
como raiva, ciúme e inveja. Uma família assim coesa e funcional é quando o amor predomina,
apesar de.

“Condenado estou a te amar


nos meus limites
até que exausta e mais querendo
um amor total, livre das cercas,
te despeça de mim, sofrida,
na direção de outro amor
que pensas ser total e total será
nos seus limites da vida.

O amor não se mede


pela liberdade de se expor nas praças
e bares, sem empecilho.
É claro que isto é bom e, às vezes,
sublime.
Mas se ama também de outra forma, incerta,
e este o mistério:
38

- ilimitado o amor às vezes se limita,


proibido é que o amor às vezes se liberta”.
(Afonso Romano de Sant´Anna77)

AMORES DROGADICTOS

Sim, existem pessoas que vivem tórridos relacionamentos amorosos. Amores intensos,
energéticos, agudos, veementes e excessivos, porém não extensos, mas sim fugazes, efêmeros
e passageiros. Pessoas que possuem uma longa folha corrida de paixões, amores ardentes e
arrebatadores, um verdadeiro currículo de páginas e páginas de vida afetiva extasiante e
impetuosa. Todavia quantidade não é necessariamente sinônimo de qualidade. São tantas as
relações que se iniciam com profunda ânsia de eternidade, mas que se esvaem como fumaça
entre os dedos. O escritor britânico de origem irlandesa Oscar Wilde já dizia que a única
diferença entre um capricho e uma paixão eterna é que a primeira dura um pouco mais.
Há uma clara, contudo sutil, diferença entre uma pessoa internamente intensa e uma
pessoa que busca intensidades. Vejamos melhor. Um sujeito (self) pode buscar outro (objeto)
no qual possa descarregar toda sua inquieta intensidade. Já outro sujeito (self) pode buscar
outro (objeto) com vistas a este outro - devida a sua própria elevada carga de eletricidade - lhe
provocar intensidade. Aqui cabe, pois, outra diferença: intensidade não é sinônimo de
intensamente.

77
Escritor e poeta brasileiro. O poema acima se intitula Limites do Amor.
39

Geralmente uma personalidade tipicamente extrovertida, irrequieta e ansiosa quando


parte para usar uma droga (substância psicoativa) tende a buscar uma droga narcótica ou
opiácea, isto é, drogas que visam entorpecer e/ou sedar. Já personalidades introvertidas,
inibidas e reprimidas tendem a buscar drogas euforizantes e desinibidoras. Isto não significa um
determinismo absoluto, afinal pode haver casos de uso de drogas estimulantes, por exemplo,
em pessoas já normalmente estimuladas. Porém, existe uma tendência e, às vezes, uma forte
correlação entre a droga escolhida e a personalidade do sujeito que se droga.
Dada às devidas proporções, pensamos que algo análogo também pode ocorrer em
algumas situações ou escolhas amorosas. Um indivíduo não precisa ser necessariamente
borderline78 para se envolver em uma condição de amor borderline, onde parece se viver uma
situação quase de vida ou morte e onde os afetos e a própria relação oscilam feito se estar em
uma montanha russa. Algumas pessoas podem se sentir atraídas para a vivência de um amor
louco e intenso. Pessoas assim são tiradas de suas vidinhas pacatas e monótonas pelo estontear
brilhoso e pungente de uma paixão explosiva. Pode-se ser atraído pelo vulcão de emoções que
nos oferece e nos deposita uma personalidade de natureza borderline. No inicio é um amor
empolgante que nos arrebata de uma vidinha retilínea e morgada. Alguém assim arrebatado é
jogado na variabilidade aventureira de um relacionamento afetivo-sexual energético e
intensamente pulsante. O vermelho vivo pode atrair, assim como a luminosidade de uma
lâmpada atrai mariposas.
Um amor assim tão incendiante tanto altera a química de nosso corpo quanto é alterado
por ela. O cérebro dispara um arsenal de hormônios e neurotransmissores. Vive-se o perigoso
prazer da adrenalina. O coração dispara e a paixão impera. A adolescência que parecia passado
perdido ressurge agora sem limites e com toda a força juvenil que nos transborda.
A antropóloga americana da Universidade de Nova Jérsei, Helen Fisher, pesquisou
através de ressonância magnética o cérebro de 32 pessoas intensamente apaixonadas e
descobriu que a região cerebral envolvida é a mesma que é ativada pela cocaína. Não é difícil
compreender que se pode viciar em paixão, afinal o organismo produz adrenalinas, dopaminas,
norepinefrinas, feniletilaminas... A euforia que tudo isso nos dá corre o risco de se transformar
em vício. De um fortuito e ocasional "amor louco" pode-se transformar em dependência,
dependência esta que, por sua vez, pode levar o sujeito dependente de paixão a ser incapaz de
relacionamentos amorosos duradouros. Vive-se, assim, à cata constante de novas aventuras,
novas endorfinas.
Porém, nem sempre é a paixão que vicia. Há um possível outro lado (oculto) da história.
Não é porque nos aproximamos da direita que seja o lado direito sempre que nos atrai. Às vezes
podemos nos dirigir para a direita porque estamos a evitar a esquerda. Neste sentido, pode
haver pessoas que se sentem atraídas pelo lado border dos afetos por se estar evitando
(inconscientemente) o lado tranquilo, sereno e normal do amor. Uma relação amorosa tende a
ser mais durável do que uma paixão. A durabilidade da intimidade, dos sentimentos e da relação,
tende, por sua vez, aprofundá-la. Um aprofundamento de uma relação amorosa, então, pode
gerar casamentos e famílias. Às vezes pode haver pessoas que lá no fundo da alma de si temem
de maneira latente o que dizem conscientemente desejar. Sabe-se lá pra onde nos levam os
labirintos do psiquismo humano e suas contradições...

“O amor é cura, mas também é loucura”.


(Sigmund Freud)

78
Borderline é um transtorno de personalidade, no qual predominam comportamentos impulsivos,
autodestrutivos e sentimentos crônicos de vazio. Pessoas com tal transtorno apresentam um padrão de
comportamento caracterizado por instabilidade nos relacionamentos interpessoais, o que faz que vivam
experiências amorosas de maneira intensa e descontrolada.
40

CONJUGALIDADE: A CONSTRUÇÃO DO CASAL

O casamento feliz é e continuará a ser a


viagem de descoberta mais importante que o homem
jamais poderá empreender.
Soren Kierkegaard79

79
Filósofo dinamarquês do século XIX, considerado o primeiro filósofo existencialista.
41

De que é feito um casal? De duas pessoas, responderíamos de imediato. Em termos


quantitativos sim, um casal é um conjunto de dois indivíduos, duas pessoas. Porém, em termos
qualitativos um bom casamento, um casal satisfatório e funcional, é mais do que a soma de duas
pessoas, pois envolve outros critérios que resumidamente chamamos de conjugalidade.
O conceito de conjugalidade diz respeito à construção de uma vinculação entre dois
indivíduos independentes e que resulta na construção de um terceiro elemento: o casal.
A conjugalidade é uma dimensão psicológica compartilhada da vida do casal que possui
dinâmica própria e funcionamento específico. A conjugalidade é a vida compartilhada e engloba
a continuidade e estabilidade do vínculo.
Somos seres vinculares. Nascemos e sobrevivemos graças ao vínculo materno (nosso
primeiro objeto vincular). O germinar da vida humana extrauterina se faz em uma posição de
dependência absoluta com nossos cuidadores (função materna). É longa a jornada do nosso
processo de separação-individuação. Demoramos a alcançar a posição independente e
autônoma, e por isso somos fadados a procurar vida afora novos vínculos, principalmente o
vínculo de zelo, afeto e cuidado que tanto se busca em uma relação conjugal, entre outras
buscas. Quem ama cuida, quem é amado é cuidado. Duas das principais características da função
conjugal é a mutualidade (reciprocidade) e a interdependência.
O casamento, no tocante uma vida afetiva íntima, tem enorme importância no mundo
adulto e o seu viver. A questão relevante não é o casamento como ato social e/ou jurídico, mas
sim a manutenção da união matrimonial em bons níveis de qualidade e satisfação conjugais.
Conviver em aliança conjugal compreende, entre outras coisas, sentimentos, expectativas,
sensações, carinho, apego, dedicação, respeito, sonhos, amor, solidariedade e correspondência.
Segundo o psiquiatra e psicanalista suíço naturalizado argentino Pichon-Rivière o vínculo é uma
estrutura complexa que envolve um sujeito, um objeto e sua mútua inter-relação com os
processos de comunicação e aprendizagem80.

A construção da conjugalidade demanda um grande investimento por parte de ambos


os parceiros. São duas individualidades distintas, duas histórias de vida diferentes, duas famílias

80
Processo Grupal, ed. Martins Fontes, 1988.
42

diversas, duas personalidades e visões de mundo não idênticas, duas subjetividades singulares.
E tudo isso se mescla no constituir de um casal.
Na formação de um laço conjugal ocorrem várias articulações psíquicas conscientes e
inconscientes, desde a escolha do parceiro amoroso até o legado familiar de origem. Em seu
hoje clássico livro Um Divã Para a Família81 os psicanalistas Pincus e Dare, ressaltam que desejos
inconsumados e sentimentos infantis dolorosos ou não tendem a reaparecer na vivência da
conjugalidade. Devido à intensidade do laço afetivo os parceiros podem fazer acordos tácitos e
inconscientes baseados nas demandas de cada um. A história do casal se inicia na história
pessoal dos parceiros envolvidos. Ao longo do tempo, ao longo da história de um casal, haverá
de haver momentos gratificantes e de satisfação, bem como momentos de insatisfações e
conflitos. A cada conflito superado tanto o casal como os cônjuges vão amadurecendo. Embora
idealisticamente falando para muitos o casamento seja uma representação de felicidade, ele é
permeado por conflitos, atritos e incertezas. A estabilidade em um casamento está muito
relacionada com a capacidade de flexibilização de cada parceiro envolvido.
Vários estudiosos do casamento, do ponto de vista psicológico, entendem que nele
existe uma espécie de contrato secreto82 onde demandas inconscientes de cada cônjuge se
interligam de maneira não escrita e não verbalizada, afinal a conjugalidade é um terreno fértil
para reedições de dramas familiares anteriores, assim como para a elaboração de conflitos não
bem resolvidos em vivências infantis.
Nem todos os motivos que nos levam escolher casar são conscientes. Grande parte de
nossas escolhas são lastreadas em nossas primeiras relações objetais, isto é, com nossos
primeiros objetos cuidadores (pais). A qualidade dos vínculos do convívio familiar na infância
humana tende a estabelece um padrão básico de relacionamento, no qual o sujeito é
inconscientemente levado a repetir tal padrão em momentos posteriores da vida.
Em seu livro O Nó e o Laço83 o psiquiatra e psicanalista Alfredo Simonetti, professor de
Psicologia Médica da Faculdade São Camilo (SP), afirma que mais do que beleza, inteligência,
corpo, sucesso ou amor, escolhemos o(a) parceiro(a) conjugal para completar a própria neurose.
Podemos casar por amor sim, mas também casamos para juntar nossas neuroses. Para ele, o
tempo do namoro é o período necessário para cada um descobrir se sua neurose se encaixa com
a do outro.
O casamento não somente muda o estado civil dos cônjuges e o endereço deles, mas
também provoca uma reconfiguração psíquica subjetiva. Tal transformação na verdade tem seu
início já na adolescência quando o púbere passa pelo luto psicológico da perda dos pais
idealizados da infância. É o momento em que o jovem começa a se desligar das figuras parentais
de sua fase infantil. A maneira elaborativa de tal desligamento e movimento psíquico de saída
da endogamia em muito influenciará suas futuras relações afetivas, principalmente a conjugal.
A conjugalidade representa uma identidade compartilhada, em parte efeito da trama
identificatória inconsciente formada a partir da história individual e familiar de cada um dos
membros do casal. A conjugalidade se traduz em um ideal, sonhos e projetos conjugais
compartilhados.

“Há mulheres que dizem:


Meu marido, se quiser pescar, pesque
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.

81
Ed. Artes Médicas, 1989.
82
Segundo o psiquiatra e psicanalista francês Alberto Eiguer, na organização inconsciente do casal ambos
os indivíduos intercambiam objetos inconscientes. Trata-se de uma espécie de entrecruzamento entre os
inconscientes dos parceiros envolvidos.
83
Ed. Integrare, 2015.
43

É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,


de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como 'este foi difícil'
'prateou no ar dando rabanadas'
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva”.
(Adélia Prado84)

Um casal conjugal é ao mesmo tempo duas pessoas (individualidades) e uma


conjugalidade. Assim uma boa conjugalidade formada no seio da união de duas individualidades
engloba tanto dois sujeitos e duas identidades, dois desejos, duas biografias, duas culturas
familiares, dois planos de vida; quanto um casal com seus projetos de casal, desejos de casal,
história de vida marital e uma identidade conjugal. Desse modo, como destaca a doutora em
Psicologia Clínica Terezinha Féres-Carneiro85, a fórmula matemática da conjugalidade
contemporânea é 1 + 1 = 3. Duas pessoas físicas + uma pessoa subjetiva resultado da interligação
vivencial e psicológica dos parceiros conjugais (casal). Uma boa, satisfatória e funcional
conjugalidade requer que sejam preservadas as individualidades de cada membro, ao mesmo
tempo em que se forme uma terceira identidade: a identidade conjugal.
Em outras palavras, conjugalidade é a construção de uma vinculação entre dois
indivíduos independentes. Vínculo conjugal não é sinônimo de apenas coabitação, mas sim uma
espécie de liame ou laço afetivo que liga duas pessoas. A conjugalidade, como já dito acima,
resulta da construção de um terceiro elemento: o casal. A formação de um casal se faz na
combinação de duas individualidades (dois sujeitos) que no espaço da intimidade interrelacional
geram uma conjugalidade. Sabe aquela história de "um por todos e todos por um"? Pois é, em
seu livro Psicanálise do Casal86 os psicanalistas argentinos Janine Puget e Isidoro Berenstein
assim conceitualizam o vínculo conjugal como uma estrutura de três termos, constituída por
dois polos, a saber: dois egos, e um conector (ou intermediário) que liga ambos (conjugalidade).
Assim sendo a identidade conjugal emerge da relação conjugal - o que o neuropsiquiatra e
terapeuta familiar francês Phillippe Caillé87 chama de absoluto do casal, pois cada casal cria seu
modelo único de ser, modelo este que define a existência conjugal e determina seus limites
(identidade conjugal)88.

84
Poetisa mineira.
85
Casamento Contemporâneo: o difícil convívio da individualidade com a conjugalidade. Disponível in:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79721998000200014.
86
Ed. Artes Médicas, 1993.
87
Um e Um São Três, ed.Summus, 1991.
88
Do ponto de vista da dialética, o absoluto do casal representa a síntese dos dois parceiros. Escreve
Caillé: “os parceiros de um casal se distinguem pelo sexo, por sua história pessoal, pela cultura familiar de
origem. Toda dinâmica de casal se fundamenta no confronto de percepções diferentes do mundo, na
oposição de visões antagônicas. A vida do casal pode ser definida como um perpétuo processo dialético
que atinge sínteses transitórias e reformuláveis” (pág. 103, op. cit.).
44

O físico português de origem moçambicana e antigo professor do Instituto de Ciências


Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto, Alexandre Quitanilha, afirma que “a
identidade não se descobre, constrói-se. Essa é a parte difícil”. Sim, transmutar a subjetividade
individual na conjugalidade não é algo mágico, rápido ou que seja fácil e não implique em
algumas renúncias e sacrifícios. Não é fácil principalmente porque a subjetividade das pessoas
envolvidas tende a querer repetir a remota experiência narcísica de uma relação perfeita e
simbiótica, idealisticamente vivida na relação do psiquismo lactente com seu objeto cuidador
(mãe). Aquele antigo e primitivo "nós" ilusoriamente simbiótico (vide capítulo FAMÍLIA: O
ESPAÇO DAS TROCAS AFETIVAS) tende a se transferir inconscientemente para o par conjugal.
Como diz o sociólogo alemão Georg Simmel, em sua obra Filosofia do Amor89, no amor há uma
condição trágica que promove, entre os sujeitos, a necessidade de fundir-se com a pessoa
amada, de modo a constituírem uma só pessoa. Tal expectativa idealizada e superexigência
provoca tensão - tensão entre o objeto amado idealizado e objeto amado real.
O amor não é um afeto puro que sentimos de maneira passiva (como se flechado por
um cupido), mas sim uma prática e atividade social. Neste sentido e contexto a comunicação
entre os membros do casal é fundamental tanto para a intimidade quanto para a interação
conjugal. Terezinha Féres Carneiro reconhece que a intimidade para ser atingida depende,
essencialmente, da igualdade entre os parceiros e da comunicação emocional de cada um
consigo mesmo e com o outro. Isto implica, entre outras coisas, no desenvolvimento e
ajustamento de hábitos e funções, assim como o estabelecimento e a manutenção de novas
relações sociais (amigos) e familiares (família de origem do cônjuge/companheiro).
Cada casal é um casal, único e singular, isto é, o modo como cada um dos personagens
do casal lida com seus conflitos, traumas, superações e tarefas outras do processo de
amadurecimento, tem impacto significativo no nível da qualidade conjugal e sua satisfação.
Cada vez mais, nos tempos atuais, não parece ser tarefa fácil manter um casamento em
níveis satisfatórios por longos anos e décadas. O paradigma convencional e predominante de
constituição familiar e de casamentos tradicionais, desde final dos anos 70, vem sofrendo
inúmeras transformações, principalmente devido a Lei do Divórcio aprovada em 1977 90, ao
avanço acelerado da urbanização, à maior emancipação das mulheres, às mudanças dos valores
culturais e morais, à mentalidade da sociedade de consumo e de massa, entre outras mudanças
e vicissitudes. Tais transformações sociais e históricas influenciaram consideravelmente à
dinâmica conjugal. Hoje o que vemos é uma pluralidade de modelos de casamentos e
conjugalidades. Como descreveu o sociólogo polonês Zygmunt Bauman91 a exacerbação da
individualidade na contemporaneidade tanto afetou a visão dos relacionamentos amorosos
quanto afrouxou os laços afetivos.

89
Ed. Martins Fontes, 2006.
90
Em 2016, por exemplo, o Brasil registrou queda no número de casamentos e aumento no número de
divórcios. Naquele ano tivemos (fonte IBGE) 1.095.535 casamentos civis, dos quais 1.090.181 entre
pessoas de sexos diferentes, representando uma queda de 3,7% do total registrado em 2015. Em
contrapartida foram concedidos 344. 526 divórcios, um aumento de 4,7% em relação ao ano anterior.
91
Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos, ed. Zahar, 2004.
45

Sustentou Bauman que vivemos hoje um mundo de incertezas e inseguranças. São


tempos de relacionamentos frágeis e rápidos, típico de uma cultura excessivamente
mercantilizada e individualista. Os encontros amorosos se tornam mais conexões que
relacionamentos, razão pela qual os pares são facilmente desconectados, isto é, troca-se
prontamente de parceiros à primeira decepção, frustração ou exigência de maior esforço. A
qualidade das relações, afirmava o sociólogo, diminui frenética e aceleradamente, pois a
tendência vigente é mais a busca quantitativa de parceiros.
Em meio a tantas mudanças e transformações indaga-se: como manter
prolongadamente a conjugalidade e quais as motivações que levam duas pessoas a ficarem
juntas por tanto tempo? O amor de longa duração requer cultivo constante. A durabilidade em
questão não se resume ao número dos anos, mas principalmente a solidez do laço conjugal, sua
qualidade afetiva e nível de satisfação. Aqueles que consideram o casamento uma parceria para
o resto da vida, que têm a sensação de amparo mútuo, companheirismo, responsabilidade de
um com o outro, e que conseguem cimentar afetos ternos e amorosos, tendem a conservar seus
relacionamentos longevamente. Os professores Júnia Alves-Silva, Fábio Scorsolini-Comin e
Manoel Antônio dos Santos92 revisando em 2016 a literatura a respeito do assunto constataram
que a forma como os parceiros conjugais lidam e solucionam seus conflitos interfere na
satisfação e estabilidade do casamento. A maioria dos conflitos passa pela divergência entre o
que se deseja e o que a realidade oferece. O bom e maduro manejo de tais conflitos possibilita
ampliar as chances de estabilidade e solidez do casal ao longo dos anos.
A contemporaneidade tem dado relevância à valorização da individualidade, bem como
importância à função subjetiva dos relacionamentos amorosos. Assim, hoje cada vez mais se
busca a qualidade da relação conjugal e não necessariamente a duração da mesma. Pesquisas
apontam que os principais motivos considerados para uma conjugalidade satisfatória são: amor,
interesses semelhantes e amizade. Pesquisas também revelam que o tédio e o cotidiano
repetitivo ameaçam a durabilidade da satisfação conjugal.
Enfim, em resumo, a satisfação conjugal está intimamente correlacionada a questões
como ajustamento conjugal, manifestações e expressões de afetos positivos, proximidade e
intimidade, amizade, companheirismo, cumplicidade, empatia, confiança mútua, capacidade de
resolução de conflitos, habilidade de comunicação (comunicação franca, inclusive das
insatisfações), afinidades e objetivos em comum, conjuntamente a criação de um espaço dentro
da relação para a manutenção da individualidade e desenvolvimento da autonomia de cada um.
E isso tudo não se consegue de um dia pro outro.
Decididamente o casamento é um convívio entre individualidades e conjugalidade. Um
ponto de equilíbrio entre as duas polarizações é fundamental para uma boa, funcional e
satisfatória conjugalidade.

“Eu estava morto e vivo agora


Tu pegaste-me na mão

92
Conjugalidade e Casamentos de Longa Duração na Literatura Científica, disponível in:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/cclin/v9n1/v9n1a04.pdf.
46

Eu morri cegamente
Tu pegaste-me na mão

Tu viste-me morrer
E encontraste-me a vida

Tu foste a minha vida


Quando eu morri

Tu és a minha vida
E assim eu vivo”.
(Harold Pinter93)

SEPARAÇÃO CONJUGAL

Todo o divórcio começa mais ou menos


ao mesmo tempo que o casamento.
O casamento talvez comece
algumas semanas mais cedo.
Voltaire94

93
Poeta inglês e autor de peças teatrais, considerado um dos maiores dramaturgos do século XX, Prêmio
Nobel de Literatura de 2005.
94
Escritor e filósofo humanista francês do século XVIII.
47

DISSOLUÇÃO DA CONJUGALIDADE

O estudo da família implica o estudo da conjugalidade. A família nuclear (pais-filhos) é


fundada no casamento (conjugalidade) e por isso é um marco fundador da própria família
nuclear. A separação conjugal, por sua vez, caracteriza-se pelo rompimento do processo
normativo do ciclo de vida familiar, com consequentes repercussões e desdobramentos para
todos os envolvidos, inclusive na família ampliada.
A separação da conjugalidade não é um processo simples, porém complexo e
impactante em algum nível. O divórcio (do latim divortium, que significa separação) obriga toda
a família a reestruturar os padrões de relacionamento até então vigentes. Evidente que tal
reestruturação não se faz de um dia pra noite, pois o divórcio não é um instante, porém um
processo. O processo de separação conjugal, inclusive, inicia-se antes mesmo do divórcio
propriamente dito. Podemos dizer que o processo psicossocial da separação conjugal possui
etapas, que vai do pré-divórcio, passado pelo divórcio propriamente dito, até o pós-divórcio.
McGoldrick e Betty Carter em Mudanças do Ciclo de Vida Familiar95 descreve o processo
de dissolução da conjugalidade em cinco fases, a saber:

Cognição Individual;
Metacognição Familiar;
Separação do Sistema;
Reorganização do Sistema;
Redefinição do Sistema.

A primeira fase, o da cognição individual, aos menos um dos cônjuges está pensando em
se divorciar, iniciando o processo psicológico de separação emocional. Porém, nem sempre o
indivíduo que pensa em se separar realmente vem a se separar.
No segundo estágio a pessoa passa de estar pensando e comunica ao outro, à família
em geral e aos amigos, sua pretensão em se separar. É o momento da revelação, momento este
que provoca desequilíbrio sistêmico e sofrimento para a família. Há famílias que manejam
melhor do que outras essa fase. Porém, mais uma vez, não significa que revelado o desejo dos
cônjuges de se separarem que de fato isso possa a ocorrer, ou seja, que se ingresse na fase
seguinte.
Caso o casal passe do estágio de metacognição familiar, ocorre a separação do sistema
conjugal de fato. Este é um momento bastante difícil para o sistema familiar e o resultado em
muito dependerá da maneira como o sistema familiar vinha lidando com as etapas anteriores.
Quanto mais resistente ou reativa for a família, maior será a crise.
O quarto estágio envolve o processo de impor novas fronteiras intrasistêmicas. Novos
papéis, regras, rotinas e padrões, assim como novas estruturas hierárquicas, devem ser
desenvolvidos, pois é a etapa em que o sistema familiar deve se reorganizar frente à nova
realidade pós-divórcio.
O último estágio é o referente à redefinição do sistema. É a fase final em que a família,
superado os abalos e arranjos provocados pela separação sistêmica, segue a vida em frente. Isso
ocorre quando a família consegue resolver as demandas dos estágios anteriores, alcançando,
assim, uma nova autodefinição.

95
Op. Cit.
48

“De repente do riso fez-se o pranto


Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas e fez-se espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento


Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente


Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante


Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente”.
(Vinicius de Moraes96)

Evidente que com o caminhar pela vida ambos os parceiros, ou um deles, sofram
transformações ou evoluam com o tempo, às vezes essas mudanças e crescimentos se façam
em ritmos diferentes e não complementares. Tal “gap” (hiato) que vai surgindo pode ir levando
até mesmo a necessidade de uma separação. Um bom casamento no inicio não é sinônimo de
o mesmo que será bom pela vida inteira. Conjugalidades que não mais proporcionam níveis de
satisfação geralmente levam a problemas de convívio e desajustes conjugais.
O divórcio quando acontece é um dos momentos mais críticos à família dentro do
contexto do ciclo de vida familiar. Todo o sistema familiar sofre um abalo, algumas vezes de
proporções sísmicas. Por mais consensual que um divórcio possa ser, a separação do sistema
conjugal traz uma complexidade nova à família como um todo, sendo este, portanto, uma época
de adaptação e ajustes.
A separação de um casal é o desfazimento de um laço afetivo. Trata-se de uma perda,
não somente de uma pessoa amada ou de quem um dia foi amado, mas também de sonhos,
planos, expectativas e ideais. O término de um casamento abrange a elaboração de várias
perdas concomitantes: da própria conjugalidade, do casamento ideal e do parceiro ideal, da
família sonhada, dos bens materiais, do status, da identidade, etc. A dissolução da conjugalidade
e a separação do casal engloba, portanto, uma cadeia de eventos e uma série de mudanças
(psicológicas, sociais, jurídicas, econômicas, financeiras, sexuais e afetivas).
No tocante ao parceiro deixado, lembremo-nos do capítulo anterior quando
enfatizamos que no casamento 1 + 1 = 3, ou seja, que o casamento implica a construção de uma
nova identidade, além da identidade dos cônjuges. O eu-conjugal (identidade do casal) que
levou tempo se construindo necessita agora, no processo da separação da conjugalidade, se
desfeito. Como diz Terezinha Féres-Carneiro, “no processo de separação, a identidade conjugal,
construída no casamento, vai aos poucos se desfazendo, levando os cônjuges a uma redefinição
de suas identidades individuais97”.
Pois é, quando acontece de haver separação conjugal, a identidade conjugal construída
vai se desfazendo. É um desfazimento, ou um luto, com o morto vivo, aliás, reciprocamente, são

96
Poeta, diplomata e compositor musical. Musicalmente compôs com grandes nomes da MPB do século
XX, entre eles Tom Jobim, Chico Buarque e Toquinho.
97
Separação: o doloroso processo da dissolução da conjugalidade, disponível in:
http://www.scielo.br/pdf/epsic/v8n3/19958.pdf.
49

dois mortos vivos. A elaboração do luto pela separação conjugal passa por este “morrer”
bilateral.
No clássico livro A Separação dos Amantes: uma fenomenologia da morte98, o
psicanalista austríaco Igor Caruso analisou o que ocorre no dinamismo psíquico dos cônjuges
em separação, principalmente naqueles cujo amor e o casamento sofram até então satisfatórios
e que se acabou ou se rompeu por razões várias. Quem vive a separação, ainda amando, diz
Caruso, experimenta uma elaboração de luto paradoxal, pois tem que lidar em sua consciência
com a “morte” de alguém vivo - ao tempo em que tem que lidar com sua “morte” na consciência
do outro (luto recíproca99).
Toda separação é sempre um momento de perda e de luto, afinal se dedicou tanto
tempo sonhando e projetando no outro e no casamento elementos relacionamos a apego,
segurança e felicidade. Para muitos, até, fica evidente o sentimento de desamparo que a perda
do casamento enseja. Frustrações e decepções estão no “pacote” denominado de divórcio.
Um longo e doloroso processo de luto necessita ser elaborado, principalmente pelo
cônjuge que não tomou a iniciativa da separação. Trata-se de um findar de um projeto de vida
até então compartilhado e que ambos investiram. Até o cônjuge que tomou a iniciativa da
separação tem também seu luto a elaborar. E estamos aqui a falar também do luto pelos desejos
secretos de nossas almas que buscam no outro a autoestima e a idealização, assim como anseios
infantis, bem como demandas mal resolvidas com as figuras parentais.
O luto pelo vínculo antes criado acomete ambos os cônjuges. O que tomou à dianteira
(decidiu se separar) começou primeiro e dentro da vigência do casamento. O que foi deixado,
por sua vez, se vê em meio a um olho do furacão. O sentimento de ser deixado, ser rejeitado,
pode ser avassalador, principalmente junto à ideia de que o outro está bem e feliz sem ele(a).
Todo e qualquer vínculo de apego quando “quebrado” gera muita tristeza, raiva, medo e
ansiedade. São estes sentimentos, muitas vezes até contraditórios, que necessitam serem
elaborados100. É como na letra da música Meu Mundo Caiu imortalizada na voz da própria
compositora e cantora Maysa:

Meu mundo caiu


E me fez ficar assim
Você conseguiu
E agora diz que tem pena de mim
Não sei se me explico bem
Eu nada pedi
Nem a você nem a ninguém
Não fui eu que caí
Sei que você me entendeu
Sei também que não vai se importar
Se meu mundo caiu
Eu que aprenda a levantar.

O luto é trabalho psíquico, cuja tarefa mental o enlutado deve desempenhar.


Psicodinamicamente falando o luto envolve a libido e a agressividade que o enlutado deve
recolher e redistribuir concreta e simbolicamente. A energia psíquica antes catexizada
(investida) no objeto interno (representação mental do cônjuge) precisa ser desinvestida para

98
Ed. Cortez, 1981.
99
A sensação de morte recíproca se refere ao fato de que na separação conjugal cada um tem de “morrer”
em vida dentro do outro.
100
Vide artigo Relações Amorosas: rupturas e elaborações, das psicólogas Lidia Levy e Isabel Gomes,
disponível in: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-48382011000100003.
50

que, por outro lado, possa ser reinvestida em outros objetos, no mundo e na vida. A perda é o
início de uma transição (luto) que requer reorganização de vida.
A primeira etapa é sempre a aceitação da separação. Nos momentos primeiros é bem
possível que haja fenômenos psíquicos de negação, mas é pela dor da aceitação que começamos
o processo de diminuição e extinção da dor. Superado o choque, inicia-se uma nova etapa que
passar por lidar com os sentimentos ambivalentes de amor, tristeza e ódio. Enquanto persistir a
raiva, por exemplo, alguma não aceitação reside. Conjugado a isto o enlutado passa a preencher
o lugar vazio deixado pelo outro no cotidiano, inclusive assumindo tarefas e funções antes
exercidas por este. Desenvolvem-se habilidades que antes não eram utilizadas. Na conciliação
dos desejos e lembranças opostas (“fui feliz com quem hoje me faz infeliz”) a fase de
reorganização se processa, pois uma nova vida precisa ser vivida. E quando menos se vê a dor
da separação e da perda, chega-se o instante em que o dor não dói mais.

“O matrimônio é a principal causa do divórcio”.


(Groucho Marx101)

FILHOS DO DIVÓRCIO

Não me cabe conceber nenhuma necessidade tão importante


durante a infância de uma pessoa
que a necessidade de sentir-se protegido por um pai.
Freud

101
Comediante estadunidense falecido em 1977, considerado um dos mestres do cinema de humor.
51

A separação conjugal (divórcio) tende a desorganizar o sistema familiar a sua volta como
um todo. Isto inclui os filhos, caso o casal os tenha. Tal desestabilização emocional é menos
resultado da separação em si e mais da maneira como ela é vivenciada e administrada pelo casal.
Se para muitas pessoas já é um tanto difícil conservar um casamento ao longo do tempo, mais
complexo ainda é proteger psicologicamente os filhos quando da ocorrência de um divórcio
entre os pais.
Regra geral a família funcional passa um sentimento de proteção e amor aos filhos,
principalmente quando crianças. A separação dos pais, na infância dos filhos, tende a ameaçar
a sensação anterior de estabilidade, amparo e abrigo. Dependendo da faixa etária que o filho se
encontre o divórcio dos seus pais e toda mudança daí decorrente podem resultar em
sentimentos de culpa, ansiedade e medo, bem como as crianças podem se mostrar irritadas,
desconfiadas, inseguras e mal humoradas.
Na infância as crianças necessitam tanto do contato com os pais quanto do conforto e
segurança que estes lhe propiciam. A separação dos pais é um momento potencialmente crítico,
tornando a realidade dos infantes confusa, podendo, inclusive, comprometer o
desenvolvimento saudável dos mesmos.
É comum que o impacto da separação dos pais traga repercussões, algumas delas tais
como:

Tristeza;
Desilusão com um ou ambos os pais;
Vergonha;
Sentimentos de culpa;
Receios de serem abandonadas e não amada;
Agressividade;
Perturbações psicossomáticas;
Queda do sistema imunológico;
Transtornos alimentares;
Alterações do sono;
Queda no rendimento escolar;
Dificuldades sociais.

O divórcio pode ser considerado uma espécie de remédio a um casamento que deixou
de ser minimamente satisfatório, todavia não será considerado um remédio pelos filhos
pequenos. Como escrevem as professoras americanas Júlia Lewis, Judith Wallerstein e Sandra
Blakeslee, “para a criança o divórcio é a causa inicial das dificuldades subsequentes, não a
52

solução para o casamento problemático. Não querem adaptar sua vida ao divórcio, tentam fazer
com que o divórcio vá embora, querem é restaurar o casamento... É difícil para as crianças
distinguir seus fortes desejos da realidade102”.

O efeito da separação dos pais na criança em relação à saúde mental destas tem sido
alvo de vários estudos e pesquisas. Quando o conflito interparental é elevado, marcado por
desavenças, altercações, bate-bocas e até agressões físicas, eleva-se igualmente a
potencialidade nociva de tais choques e brigas no funcionamento mental dos filhos pequenos
em processo de desenvolvimento psicoemocional, estando eles (filhos) propensos a evoluírem
para quadros depressivos e ansiosos. Discórdias parentais, separação ou divórcio, por exemplo,
aumentam a possibilidade do prosperar do Transtorno de Ansiedade de Separação (TAS)103.

Em princípio todo rompimento conjugal de alguma maneira gerará algum dano de curto
prazo nos filhos pequenos, afinal a criança desde sempre até então estava acostumada à família
intacta, isto é, a convivência mútua com ambos os genitores. O ciclo de vida familiar sofre assim
uma modificação não normativa (separação sistêmica), o que vai exigir dos filhos infantes uma
capacidade muitas vezes precoce de adaptação forçada às mudanças.
O impacto do divórcio terá suas significativas diferenças dependendo da faixa etária dos
filhos. Desse modo Monica McGoldrick e Betty Carter104 apresentam pesquisas em que crianças
entre seis e oito anos demonstram sofrerem mais o abalo da separação de seus pais. Em torno
dos seis e oito anos a criança é suficientemente crescida para entender o que está acontecendo,
contudo não tem maturidade emocional ainda para lidar com o impacto do rompimento
sistêmico. É comum, portanto, ela exibir tristeza e saudade em relação ao genitor que sai de
casa, e tem ela a fantasia de que pode reaproximar os pais. Em outros casos, citam as referidas
autoras, algumas crianças são levadas a assumirem papéis paternos, passando, com isso,
prematuramente a ter responsabilidades adultas que lhes são emocionalmente prejudiciais.
Abaixo um rápido resumo de alguns problemas que podem resultar do divórcio parental:

Faixa etária Consequências possíveis

102
Filhos do Divórcio, pág. 132, ed. Loyola. 2002.
103
O TAS é caracterizado, segundo o DSM-V, como uma reação anormal a uma separação de um ente
bem próximo, separação esta que pode ser real ou imaginária, e que interfere significativamente nas
atividades diárias e no desenvolvimento do indivíduo. O TAS pode gerar visível sofrimento psíquico,
podendo, também, levar a várias prejuízos e consequências psicossociais, e é preditivo de transtornos
psiquiátricos adultos, entre eles o transtorno do pânico.
104
Op. Cit.
53

Durante O estado de ânimo da gestante (mãe) pode ter influência direta no feto,
gestação podendo este nascer abaixo do peso normal, bem como apresentar
atraso no desenvolvido cognitivo e motor.
O bebê é como se fosse uma esponja, ou seja, tende a absorver tudo ao
seu redor. Dependendo do clima emocional ambiental, principalmente
da mãe, o infante é propenso a ter noites mal dormidas, comportamento
0 – 2 anos irritadiço, sintomas psicossomáticos (mal-estar, dor de barriga, febre sem
motivo aparente). Se estiver com um pouco de mais idade é usual
apresentar pesadelos noturnos, assim como desânimo e redução das
brincadeiras infantis.
A criança ainda não entende bem o que é a separação dos pais. Pensa
que a saída de uma dos genitores de casa é culpa sua e, por isso, tende a
2 – 6 anos reagir ou sendo muito obediente (na fantasia de que se um bom filho o
papai (ou mamãe) voltará para casa), ou ficando agressivo e rebelde. O
medo de serem abandonadas também é corriqueiro nesta faixa etária.
Surgem sentimentos de rejeição, fantasias de reconciliação e problemas
6 – 8 anos comportamentais, tais como agressividade e irritabilidade, desejo de
isolamento e queda na produção escolar.
9 – 12 anos É uma época em que os filhos podem manifestar sentimentos de
vergonha pelos pais, assim como raiva dos mesmos devido à separação.
Na adolescência o divórcio dos pais tende a causar problemas como
amadurecimento acelerado (quando o adolescente assume o lugar do
13 – 18 anos genitor ausente), conflitos de lealdade ou até distúrbios de conduta
caracterizados por conflitos com figuras de autoridade, furtos e
pequenas delinquências e consumo de álcool e outras drogas.

Embora a separação dos pais possa e deva gerar alguns problemas adaptativos nos
filhos, isso não significa que todos os filhos de pais separados irão desenvolver problemas
psicopatológicos ao longo da vida. Como acima dito, muito dependerá da maneira como os pais
se separam e como eles administram o processo de dissolução da conjugalidade, afinal terminar
a conjugalidade não é sinônimo de terminar a paternidade. A respeito disso, inclusive, a doutora
e professora em Psicologia Vera Regina Ramirez - citada por Cristina Dantas, Bernardo Jablonski
e Terezinha Féres-Carneiro, professores da PUC (RJ), em Paternidade: considerações sobre a
relação pais-filhos após a separação conjugal105 - menciona haver encontrado em suas pesquisas
e investigações com pais separados depoimentos de que o relacionamento com os filhos
melhoraram qualitativamente após divórcio, porque o tempo passado junto com os filhos
crianças é mais dedicado realmente aos filhos, proporcionando, com isso, um aumento na
cumplicidade e na intimidade entre eles. Também nos pode ser útil observar os resultados de
pesquisa qualitativa efetuada com jovens adultos (filhos de pais separados) pela doutora em
Psicologia e professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Leila Torraca, apresentado
no artigo Família Pós-Divórcio: a visão dos filhos106, que analisou como eles perceberam as
mudanças ocorridas em suas vidas a partir da separação conjugal dos seus pais, especialmente
em relação à convivência familiar.
É importante, portanto, que os filhos desde sua infância mantenha e fortaleçam seus
vínculos afetivos com seus genitores após a separação conjugal destes, afinal é no seio da família
mais próxima ao qual a criança pertence que se iniciam e se estabelecem suas primeiras relações
interpessoais. Evidente que a família contribui sobremaneira para um saudável
desenvolvimento do ser humano a partir de sua meninice, e, mesmo após a separação do núcleo
familiar, possa continuar presente para a criança na forma como ela vive e no contexto e
ambiente que ela está inserida.

105
Disponível in: http://www.scielo.br/pdf/paideia/v14n29/10.pdf.
106
Disponível in: http://www.scielo.br/pdf/pcp/v27n1/v27n1a04.pdf.
54

“Ninguém precisa de nós como um bebé.


O amor é uma coisa pequena comparada com a verdadeira necessidade.
É fácil amar quem precisa muito de nós.
É fácil amar quem sente absolutamente a nossa falta”.
(Miguel Esteves Cardoso107)

ALIENAÇÃO PARENTAL

Vossos filhos não são vossos filhos.


São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma.
Khalil Gibran108

Após algumas separações judiciais, mormente as litigiosas, é comum a disputa pela


guarda dos filhos menores. Tais disputas podem gerar o fenômeno conhecido como alienação
parental.
Como vimos anteriormente, a separação conjugal é um processo de luto, uma vivência
psíquica de morte (morte em vida), tendo os ex-parceiros que passar por uma experiência de
“morte” cada um na consciência do outro, assim como a “morte” do antigo objeto amado em
na própria consciência de cada um (morte recíproca). Todavia, a existência de filho ou filhos
torna esse processo algo mais difícil, afinal a presença de um filho torna a lembrança do ex-
cônjuge mais viva.

Nem todos os divórcios são amigáveis e consensuais. Há os litigiosos e aqueles que


deixam marcas como mágoas e ressentimentos. Uma mágoa conservada e guardada por muito
tempo se transforma em rancor e ódio. E uma pessoa rancorosa e com ódio deseja se vingar do
objeto de seus sentimentos negativos.

107
Escritor português, autor de obras como Último Volume e Como é Linda a Puta da Vida.
108
Ensaísta, filósofo e poeta de origem libansesa. Autor de várias obras de sucesso no século XX, sendo a
mais conhecida O Profeta.
55

Quando um pai ou uma mãe que é responsável pela guarda de seus filhos, devido a seus
sentimentos raivosos com o outro genitor, utiliza dos filhos como instrumento de agressão e
vingança frente a este, estamos no âmbito da alienação parental. Os casos mais comuns estão
relacionados a situações onde o progenitor detentor da guarda apega-se excessivamente à
criança impedindo este de conviver com o outro progenitor. Tal genitor passa a desqualificar o
outro, inclusive inventado inúmeras histórias inverídicas sobre o mesmo com vista a
desacreditá-lo e desmoralizá-lo junto à criança.
Consciente ou inconscientemente o genitor alienante treina a criança para que rompa o
laço afetivo com o outro genitor, criando assim danosos sentimentos de ansiedade e medo
frente o genitor alienado. Isso é resultado de um subjacente ardor de vingança, tendo em vista
o alienador não haver conseguido elaborar o luto da separação. Tal treinamento é na verdade
uma espécie de “lavagem cerebral” na criança, pois acaba por provocar o implante de falsas
memórias109. Nesta luta do genitor guardião pelo afeto do filho em detrimento do genitor não-
guardião se oculta agressões mentais ao psiquismo da criança. Progressivamente vai se
destruindo a imagem que o filho faz do pai alienado.
Em 2010 no sistema judicial brasileiro foi criada a Lei da Alienação Parental (lei 12.318).
Abaixo descrevemos na íntegra os artigos 2º e 3º da referida lei:

Lei nº 12318, de 26 de agosto de 2010


Art. 2o Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica
da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós
ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou
vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à
manutenção de vínculos com este.
Parágrafo único. São formas exemplificativas de alienação parental, além dos atos
assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados diretamente ou com
auxílio de terceiros:
I - realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da
paternidade ou maternidade;
II - dificultar o exercício da autoridade parental;
III - dificultar contato de criança ou adolescente com genitor;
IV - dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar;
V - omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre a criança
ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço;
VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós,
para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente;
VII - mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a
convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou
com avós.
Art. 3o A prática de ato de alienação parental fere direito fundamental da criança ou
do adolescente de convivência familiar saudável, prejudica a realização de afeto nas
relações com genitor e com o grupo familiar, constitui abuso moral contra a criança
ou o adolescente e descumprimento dos deveres inerentes à autoridade parental ou
decorrentes de tutela ou guarda.

Em 1980 o psiquiatra infantil americano Richard Gardner criou o termo SÍNDROME


DA ALIENAÇÃO PARENTAL (SAP). A SAP é, segundo Gardner, um transtorno que acomete a

109
O fenômeno das falsas memórias é visto como o fato de haver lembrança de eventos que nunca
ocorreram ou não ocorreram exatamente como a lembrança se dá. A implantação de falsas memórias é
quando são geradas a partir de sugestões de informações inverídicas e que são incorporadas pelo
indivíduo como se fossem realmente vividas. Segundo a Universidade de Berkeley na Califórnia,
informações transmitidas através de sugestionabilidade podem aumentar não somente a frequências das
falsas memórias, como também a confiança do sujeito nessas memórias.
56

criança que paulatinamente é doutrinada pelo genitor guardião e acaba por ter repulsa ao seu
outro pai. Ele assim descreve a SAP: “um distúrbio que surge principalmente no contexto de
disputas de custódia da criança. Sua manifestação primária é a campanha do filho para denegrir
progenitor, uma campanha sem justificativa. A desordem resultada da combinação da
doutrinação pelo progenitor alienante e da própria contribuição da criança para o aviltamento
do progenitor alienado".
De acordo com Gardner a síndrome se caracteriza pela apresentação dos seguintes
sintomas:

campanha de difamação e ódio contra o pai-alvo;


racionalizações fracas, absurdas ou frívolas para justificar esta depreciação e ódio;
falta da ambivalência usual sobre o pai-alvo;
afirmações fortes de que a decisão de rejeitar o pai é só dela (fenômeno "pensador
independente");
apoio ao pai favorecido no conflito;
falta de culpa quanto ao tratamento dado ao genitor alienado;
uso de situações e frases emprestadas do pai alienante;
difamação não apenas do pai, mas direcionada também para à família e aos amigos do
mesmo.

Temos, assim, no fenômeno da alienação parental três figuras: o genitor alienante, a


criança alienada e o genitor alvo.
O genitor alienante interfere nas visitações, ataca da relação afetiva do filho com o outro
pai, denigre sua imagem e exclui este da vida da criança/adolescente. Já a criança alienada tende
a manifestar sentimentos constantes de raiva e ódio contra o genitor alvo, inclusive se
recusando a vê-lo. Cria-se nele crenças negativas sobre o genitor excluído.
A criança alienada é uma vítima. Caso desenvolva SAP tende a apresentar depressão
e ansiedade, baixa autoestima, utilizar algum tipo de droga como forma de aliviar a dor de seu
conflito, bem como pode ter dificuldade em manter, como adulta, relacionamentos estáveis e
duradouros.
Por tudo acima exposto, considerando que a grande maioria dos casos de alienação
parental surge após separações conjugais não amigáveis seguido de disputa da guarda dos filhos,
o processo de mediação familiar, levado a cabo por psicólogos no âmbito do judiciário, ocorre
como uma profilaxia e uma tentativa de solução ou atenuação de conflitos através do diálogo.
Segundo a psicóloga Corina Schabbel estudos comprovam que conflitos gerados pelo
processo de separação conjugal acarretam em problemas psicológicos para os filhos. Desta
forma, a mediação deve objetivar a cooperação e o aprimoramento do diálogo, possibilitando a
solução dos problemas existentes. Afirma ela, em seu artigo Relações Familiares na Separação
Conjugal: contribuições da mediação,110 que a mediação ajuda e facilita os cônjuges a redefinir
seus papéis de pais após a dissolução da conjugalidade e a criar novos limites familiares por meio
de um processo de negociação, a fim de evitar possíveis contenda e hostilidade futuras.

110
Psicologia: teoria e prática, v.7 n.1 São Paulo jun. 2005, disponível in:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-3687200500010000.
57

“Qual será o meu limite? Até onde eu posso ir?


Passamos por aqui inúmeras vezes, minha filha e eu.
Ainda hoje encontro pegadas de sorrisos, encontro também um rastro de conversa boa com
pedaços de estórias espalhadas.
São palavras e letras caídas pelo chão.
Brincando riscamos quadrados na terra.
Pulamos desequilibrados num pé só até chegar no céu e chegamos.
Brincamos de correr de costas. O segredo é olhar pra frente para vencer.
Eu sempre perdi.
Nas corrida de folhas ela vencia e perdia.Algumas vezes nós dois empatávamos, perdendo.
Nossas folhas ficavam encalhadas numa pedra ou coisa parecida.
Brincamos de correr e congelar, de estátua. Quem mexesse perdia.
Nessa brincadeira incluímos um novo amigo. Os três a congelar: eu, ela e o tempo, que não
entendeu as regras do jogo e seguiu correndo. Depois foi ela que correu. E eu fiquei ali
congelado. Todo mundo perdeu”.
(Alan Minas111)

111
Trecho do poema de abertura do documentário A Morte Inventada, um filme do diretor e roteirista
brasileiro Alan Minas. Filme disponível in: https://www.youtube.com/watch?v=RBoQQqsYfDM.
58

O NASCIMENTO DOS FILHOS


Pais e filhos não foram feitos para ser amigos.
Foram feitos para ser pais e filhos.
Millôr Fernandes112

FRALDAS, NINHO E CHUPETAS

Quem casa quer casa, diz o dito popular. Pois é, casamento parece representar a criação
de um novo ninho, uma nova morada, uma nova família nuclear. A família nuclear completa é
aquela definida como um casal com filhos. Claro que há casais que decidem não ter filhos, ou
não podem e não querem adotar. Sim, é verdade. Mas a maioria das pessoas se casa não
somente para casarem, mas para construírem eles mesmos suas próprias famílias, incluindo
filhos. É como aquele quase mandamento bíblico: crescei e multiplicai-vos. Aliás, não só bíblico,
afinal se crescêssemos e não gerássemos filhos não haveria humanidade.
O presente capítulo, portanto, irá agora abordar a chegada de um filho ao contexto do
casal. Onde antes eram dois (díade) agora são três (tríade)113. Isto se não muda tudo, muda
muita coisa, afinal não é a toa que o nascimento dos filhos é uma das etapas fundamentais do
ciclo de vida familiar. E não custa nada lembrar que cada fase evolutiva do ciclo familiar de vida
é um período de crise (crise normativa), no sentido adaptativo do termo.
O nascimento de um filho, e mais ainda do primeiro filho, é um acontecimento
significativo no seio do casal e da família ampliada. Todo mundo acrescenta mais um grau de
parentesco, ou seja, os cônjuges viram pais, os pais dos cônjuges viram avós, os irmãos dos
cônjuges viram tios, e assim por diante.
Para muitos a chegada do rebento é um momento maravilhoso, mas é igualmente um
momento tumultuado, em grau maior ou menor, dependendo das circunstâncias e do casal. Por
mais que os futuros pais se preparem para a chegada do herdeiro, nunca nenhum adulto está
plenamente preparado para as tarefas e funções que a progenitura nos traz. É necessário um
tempo maturativo para que os membros do casal aprendam a lidar melhor com as novas
competências. Engravidar, depois parir, não acaba com a boa vida do casal, mas modifica
radicalmente a vida antes vivida sem filhos. Digamos que não engravidamos e parimos apenas
prole ou filhos, mas também uma nova forma de se viver.
Maternidade e paternidade são vividas de maneiras diferentes. Segundo a psicóloga
Vera Regina Ramires114 maternidade e paternidade não são vividas da mesma maneira. Em um
contexto heterossexual, por exemplo, o pai, o homem do casal, frequentemente se sente como
que excluído de uma relação de maior intimidade e proximidade que é, inclusive, a maior relação
de intimidade e proximidade que o ser humano pode ter: mãe-bebê. Filhos não só nascem, mas
provocam mudanças na vida e na personalidade dos pais. Como pais eles terão a oportunidade
de reverter suas próprias experiências de filhos, só que agora assumindo o outro lado da mesa,
isto é, sendo eles (que um dia foram crianças, filhos) os pais dessa nova história que começa.
Mas será que começa? Ou será que é uma continuação de uma história antecedente?

112
Jornalista, escritor, dramaturgo, desenhista e humorista brasileiro.
113
No tocante ao primeiro filho.
114
O Exercício da Paternidade Hoje, ed. Rosa dos Tempos, 1997.
59

A chegada de um filho no seio da conjugalidade tem, de início, três destinos:

- há espaço afetivo para ele no seio do casal;


- não há espaço afetivo para ele no seio do casal;
- ele vem ocupar um espaço afetivo vazio no casal ou em um dos cônjuges.

Enquanto na primeira hipótese há clara aceitação do filho e da paternidade e na


segunda rejeição, a terceira é mais sutil e camufla a rejeição. Uma proximidade excessiva do
casal ou de um dos cônjuges com o filho (superproteção, por exemplo), pode revelar que este
filho vem para preencher um vácuo na vida dos adultos.
O nascimento de um filho é sempre de alguma maneira impregnado de expectativas e
mistérios, afinal existem fantasias e medos envolvidos. Conforme destaca a psicóloga e
professora universitária Márcia Jagger115 a chegada do bebê modifica a dinâmica e o equilíbrio
do casal, bem como das relações familiares como um todo.

A chegada de uma criança representa tanto uma mudança social quanto psicológica no
casal. Após o parto o primeiro cenário que se tem é frequentemente uma forte proximidade
recém-nascido e mãe (preocupação materna primária116) e, de certo modo, uma exclusão desta
simbiose materna-filial da figura do pai. Alguns pais têm que lutar por essa sensação de perda e
exclusão, até que a família se acomode às mudanças e vá encontrando um lugar para ele. A
díade do casal muda seu eixo para uma díade mãe-filho, e finalmente transforma-se em uma
tríade psicologicamente falando.
A vivência, por exemplo, do primeiro filho tende geralmente a ser mais mobilizadora do
que a chegada de outros rebentos, principalmente por inaugurar uma nova família nuclear e
também provocar mudanças de status e de vida no casal, que avança para uma nova etapa
desenvolvimental (quem antes foi cuidado na condição de filho, hoje passa a cuidar na condição
de mãe/pai). Novas díades são abertas no seio da nova família nuclear, além da anterior
relacionada aos cônjuges, a saber: mãe-filho e pai-filho. Por mais que se queira inexiste um
manual que ensine os novos pais a serem pais daquele(a) filho(a) específico. Cada mãe/pai tem
que aprender com seu filho a ser mãe/pai desse filho específico. E isso acontece com todos os
filhos, não importa se primeiro, segundo, terceiro ou último. Cada filho é um filho específico,
peculiar e singular.

115
Paternidade: vivência do primeiro filho e mudanças familiares, disponível in:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1516-36872011000100011&script=sci_arttext.
116
Conceito desenvolvido pelo psicanalista inglês Donald Winnicott para referir o estado psicológico no
puerpério da mãe no qual existe um considerável aumento de sua sensibilidade em relação ao filho
lactente. Tem início na gestação e se prolonga às primeiras semanas pós-natal.
60

No tocante à mulher a transição para a parentalidade tem suas características


relacionadas à gravidez, ao parto e ao puerpério117. Como descrevem as portuguesas Catarina
Souza e Silva (Mestre em Enfermagem de Saúde Materna Obstétrica) e Marinha Carneiro
(Doutora em Ciência da Educação) “A forma como a mulher se sente em relação a si própria e
ao seu corpo durante o puerpério pode afetar o seu comportamento e adaptação ao processo
de maternidade. É ainda neste período que todo o processo de identificação com o bebé real e
de separação psicológica do bebé imaginário deve ocorrer paralelamente, para além do
ajustamento psicológico da autoimagem e da construção das novas relações familiares”118.
Trata-se de um momento bastante ambivalente à mulher, haja vista a vivência de sentimentos
como alegria, felicidade e esperança, conjugados a sentimentos antagônicos relacionados a
choros, sensibilidade emocional aumentada e sentimentos de estranheza e até melancolia 119.
Idealizações e romantismos à parte, a chegada de um filho ao seio conjugal e/ou familiar
é uma etapa de crise adaptativa que muito determinará os rumos tanto da criança em formação
quanto da própria conjugalidade agora acrescida do exercício da parentalidade.

“Os braços de uma mãe são feitos de ternura


e os filhos dormem profundamente neles”.
(Victor Hugo)

PROCESSO DE PARENTALIZAÇÃO

Ninguém pode escapar à relação pai-filho.


Todos somos filhos de alguém,
ainda que alguns se neguem por sua vez a ser pais.
Vázquez Montalbán120

117
Período pós-parto que vai do nascimento do filho até ao retorno da menstruação na mulher.
118
Adaptação à Parentalidade: o nascimento do primeiro filho, pág. 6, disponível in:
http://www.scielo.mec.pt/pdf/ref/vserIVn3/serIVn3a03.pdf.
119
A tristeza materna tem certa raiz fisiológica (alterações hormonais, privação do sono, antecedentes
familiares, etc.). Estima-se que cerca de mais de 50% das mulheres, podendo chegar até 80%, apresentam
sinais de tristeza e irritabilidade normalmente três dias após o parto em média podendo durar até 15 dias.
Também se estima que cerca de 15/20% das mulheres são afetadas pela depressão pós-parto (DPP), que
é uma alteração do estado de humor associada ao parto. Os principais sintomas da DPP são: astenia,
ansiedade, alteração no sono e na alimentação e tristeza profunda.
120
Escritor e poeta espanhol.
61

A filósofa francesa Simone de Beauvoir afirmava que não se nasce mulher, torna-se
mulher. A mesma coisa acontece com os pais: não se nasce mãe ou pai, torna-se mãe ou pai.
Tornar-se mãe e pai é para quem até então nunca foi uma nova função.
Não basta apenas querer ter um filho, mas querer ser mãe ou pai. A parentalidade 121
não representa tão somente os aspectos biológicos, porém vai além, mais além. É necessário
que haja no psiquismo a própria aceitação da parentalidade que, inclusive, passa pela herança
dos próprios pais dos pais, isto é, é um trabalho psíquico (consciente e inconsciente) que
consiste na elaboração do que se herda dos seus pais (da época de quando se era filho aquele
que hoje vai ser pai). Nesta perspectiva tornar-se mãe ou pai é algo que envolve
intergeracionalidade122. Assim, a parentalização (tornar-se mãe ou pai) é um processo complexo
da constituição psíquica do ser que vai assumir o papel parental.

O processo de parentalização se inicia com a criança (filho) que fomos e com os pais que
tivemos. Neste sentido a parentalização se inicia bem antes de se ter um filho, pois tem seu
prelúdio no filho que fomos. Trata-se, acima de tudo, de um processo de transição.
A doutora em Psicologia Clínica e professora da PUC (RJ), Silvia Maria Abu-Jamra Zornig,
em seu artigo Tornar-se Pai, Tornar-se Mãe: o processo de construção da parentalidade123
escreve que a pré-história da criança se inicia na história individual de cada um dos pais; o desejo
de ter um filho reatualiza as fantasias de sua própria infância e do tipo de cuidado parental que
puderam ter. Outro importante teórico sobre o desenvolvimento infantil o psiquiatra norte-
americano Daniell Stern124 a0 se posicionar a respeito também diz que as representações
parentais se iniciam antes do nascimento de um filho, e que tais representações parentais,
principalmente a materna, antecedem longamente a concepção. Sustenta Stern, portanto, que
não se pode pensar a parentalidade como restrita à concepção, gestação e parto, pois as
identificações com os pais feitas desde a infância influenciam e até determinam a forma como
o indivíduo poderá exercer e manifestar sua própria condição de pai ou mãe.
Segundo o psiquiatra e psicanalista francês Serge Lebovici a história transgeracional
125
inclui além da história dos pais também a história dos avôs e sua conflitos. Todos esses
elementos vão se concentrar no chamado mandato transgeracional.

121
Parentalidade foi um termo imaginado, em 1961, pelo psiquiatra e psicanalista francês Pierre Claude
Recamier para designar patologias psiquiátricas da maternalidade. Na ocasião Recamier definiu
maternalidade como um conjunto de processos psicoafetivos que se desenvolvem e se agregam na
mulher por ocasião da maternidade. Ao lado da maternidade acrescentou-se também a paternalidade.
122
Que se realização entre duas gerações, ou seja, a geração dos nossos pais e a nossa geração enquanto
pais.
123
Tempo Psicanalítico, vol.42, nº 2, jun. 2010, disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-48382010000200010
124
O Mundo Interpessoal do Bebê, Ed, Artmed, 1992.
125
Transmissão psíquica entre gerações. Enquanto a intergeracionalidade envolve duas gerações (pais-
filhos) a transgeracionalidade envolve, no mínimo, três gerações (filhos-pais-avôs).
62

A transmissão intersubjetiva encontra terreno fértil no âmbito da família (grupo social


primário). De certa forma toda pessoa ao nascer já faz parte de uma teia de intersubjetiva que
lhe é anterior. A psicóloga e doutora em Psicologia Social e da Personalidade, Maria Aparecida
Penso, escreve “o patrimônio ou legado é o mandato transgeracional que veicula entre as
gerações, na dimensão psíquica, e que, na maioria das vezes, se passa em nível inconsciente126”.
Tal mandato pode se perpetuar por várias gerações.
O termo transgeracional, portanto, representa processos que são transmitidos
familiarmente de uma geração a outra, e que se mantêm presentes ao longo da história familiar.
Ninguém se cura da própria infância (Comte-Sponville). Ninguém se livra totalmente do
passado. Todos trazem consigo e leva pela vida inteira seu passado, principalmente o mais
influente de todos: a infância. As experiências vivenciadas com importantes e significativas
figuras do mundo familiar de nossas infâncias, muitas delas estão por debaixo, ocultas, na
maioria de nossas decisões e escolhas mais importantes - mesmo que não nos apercebamos de
tal fato e influência.
Todas as famílias felizes se parecem, as famílias infelizes são infelizes cada uma a sua
maneira (Tolstói). Pois é, todas as famílias, de uma forma ou de outra, com mais intensidade ou
menos, têm um dialeto ou um idioma cada um a sua maneira. Tal linguagem possibilita uma
comunicação (frequentemente inconsciente) entre as gerações. Às vezes muitos dos conflitos,
dificuldades e desejos dos pais são transmitidos aos filhos.
Não é incomum que de alguma maneira um recém-nascido (bebê) seja depositário de
algum mandato transgeracional. Falas ancestrais podem se ocultar no interior do psiquismo
humano de maneira sub-reptícia e inconsciente. É o que muito provavelmente o que quis dizer
o filósofo alemão Friedrich Nietzsche ao enunciar o que “o pai calou aparece na boca do filho, e
muitas vezes descobri que o filho era o segredo revelado do pai”.
Os aspectos psíquicos dos pais se encontram envolvidos no exercício do papel e da
função parental. A psicóloga e PhD em Psicoterapia Pais-Bebê, Elizabeth Batista Pinto, explica
que “a capacidade de mãe/pai está relacionada capacidade da mulher/homem de retornar
simbolicamente a um estado no qual ela/ele era um bebê de sua própria mãe e de seu próprio
pai, com tudo que isso pode significar em sua história de vida127”.

“Como seria estranho se as crianças conhecessem


como eram os seus pais antes de terem nascido,
quando ainda não eram pais,
mas simplesmente eles próprios”.
(Patrick Mondian128)

Tornar-se mãe e pai não é uma tarefa tão simples como inicialmente possa aparentar
aos olhares mais ingênuos, principalmente em termos funcionais. A chegada de um filho muda

126
A Transmissão Geracional em Diferentes Contextos, pág. 80. ed. Summus, 2008.
127
A Análise das Interações Pais/Bebê em sua Abordagem Psicodinâmica: clínica e pesquisa, pág. 43, in:
Observando a Interação Pais-Bebê-Criança, Piccinini, C.A. e Moura, Maria L.S. (orgs.), ed. Casa do
Psicólogo, 2007.
128
Escritor francês, Nobel de Literatura de 2014.
63

muito o ambiente familiar. Nada será tão exatamente igual quanto antes, não importa se será o
primeiro, o segundo, o terceiro ou décimo filho(a).
O processo de parentalização é um processo de elaboração do luto desenvolvimental. O
luto desenvolvimental aqui em questão é o luto relacionado à perda do filhos idealizado e
imaginado pelos pais em relação ao filho real que nasce e se desenvolve.
Além do filho sonhado muito antes até da concepção, o próprio tempo de gestação
possibilita aos futuros pais envolvidos projetarem suas fantasias e ideais na criança que ainda
não nasceu, bem como eles mesmos nos seus novos papéis (mãe/pai). O tempo gestacional,
portanto, é um tempo propiciador de um espaço psíquico onde a subjetividade do bebê
psicologicamente esboçado se processa. No caso do primeiro filho, por exemplo, a chegada de
um terceiro elemento ao casal e a mudança posicional do status que antes detinham de serem
filhos dos seus pais que agora passa a também posição de serem pais de seu filho(a),
psiquicamente reedita a situação edípica e instiga projeções de suas característica mentais
infantis (“ninguém se cura da própria infância”, Comte-Sponville) sobre a criança em gestação.
A chegada a partir do parto do filho real irá contrapor o mesmo em relação ao filho
imaginado e idealizado por cada um dos seus genitores. O filho real igualmente irá contradizer
a relação materno-filial, bem como a paterno-filial, nos seus aspectos ficticiamente sonhados e
eivados de perfeição e narcisismo. Um filho real não é a cópia exata e fidedigna de um filho
fantasiado imaginativamente.
Algumas pessoas, umas mais outra menos, terão dificuldade em abandonar a posição
imaginada de mãe/pai ideal, assim como a de sua contrapartida que é a do(a) filho(a)
idealizado(a). No tocante à mãe, afirma Daniel Stern129, com o nascimento do seu filho se instala
uma organização psíquica que ele cunhou em constelação materna130. Toda uma mudança
psíquica ocorre quando se torna mãe para vir a atender às necessidades do papel maternal. A
nova mãe carece de uma figura materna para amparar suas habilidades parentais. Geralmente
tal figura representa sua própria mãe idealizada.
Pelo acima exposto, em relação às alterações psíquicas referentes às transformações do
sujeito psicologicamente em mãe ou pai, três deverão ser os lutos desenvolvimentais
envolvidos, a saber: o luto dela própria enquanto mãe imaginariamente idealizada, do filho(a)
idealizado e da relação mãe-filho sonhada. Como diz Stern131, o nascer de um filho na vida dos
pais provoca uma neoformação em seus psiquismos, e que a inclusão do bebê na mente destes
produz mudanças profundas.
O lugar de um filho(a) no âmbito da família e do desejo dos pais são temas centrais no
estudo da parentalidade. Toda uma metamorfose se sucede. Ninguém está de todo preparado
para ser pai/mãe especificamente de um determinado bebê. E é neste sentido que o psiquiatra
e psicanalista francês Serge Lebovici entendia a parentalização como um processo em que tanto
o homem quanto a mulher aprendem a ler as necessidades do bebê por meio dos gestos.
Pode-se dizer que ser pai/mãe é uma aprendizagem psicológica. O trabalho psíquico
começa, pois, pela criança imaginária (idealizada). Quando o filho nasce os pais necessitam
passar por uma mudança psicológica que é a de lidar com o filho real versus o filho idealizado.
Quanto mais conflitivo for essa relação (real x ideal) maior será a frustração dos pais. O filho
real, por sua vez, provoca uma desidealização no imaginário dos pais. Ao longo de toda a infância
o embate entre o filho idealizado e o filho real, além das frustrações normais do processo, pode
gerar níveis de sofrimentos acima de um mínimo tolerável a ponto de provocar - dizem os
estudiosos do campo - distúrbios na relação bebê-pais que, por sua vez, podem gerar
impedimentos ou dificuldades no processo de desenvolvimento da criança.

129
A Constelação da Maternidade, ed. Artmed, 1997.
130
Segundo Stern a constelação materna é uma organização psíquica que se instala na mãe com o
nascimento do bebê, que determina uma nova configuração de comportamentos, susceptibilidades,
fantasias, medos e desejos.
131
Op. Cit.
64

A parentalidade introduz uma dialética entre o bebê interno (imaginado) e o bebê


externo (real). O bebê real não é um depósito passivo das projeções parentais e suas respostas
irão modelar uma parentalidade que não é a exatamente idealizada inicialmente pelos pais. É
neste sentido, portanto, que se pode afirmar ser o bebê que irá ensinar os pais a serem pais dele
(bebê real).
Lebovici percebe que a gravidez abarca quatro bebês. São eles:

Trata-se do bebê decorrente da


elaboração dos anseios em relação às
Bebê Imaginário expectativas quanto ao bebê que vai
nascer. Envolve as projeções
idealizadas inerentes tanto aos
projetos individuais de cada genitor
quanto ao do casal.
Termo utilizado para referir o bebê
decorrente do inconsciente. Remete à
Bebê Fantasmático criança que próprio mãe/pai um dia já
foi, de sua conflitiva edípica, e dos
desejos e fantasias infantis de ser no
futuro um genitor.
Também denominado de bebê cultural,
Bebê Mítico remete à representação social e o
significado da criança em uma dada
cultura.
É o bebê físico, isto é, o bebê como
Bebê Real realmente é, um ser orgânico,
individual, complexo, concreto e real.

É a partir do parto que os genitores irão ter encarar o filho real representado no bebê
real. Ele não será igual ou idêntico ao bebê imaginário, fantasmático e mítico. Neste sentido o
bebê real será uma frustração aos bebês idealizados consciente e inconscientemente. Caberá a
cada pai ter que lidar com as perdas dos outros bebês (imaginário, fantasmático e mítico) e
aprender a conviver e a amar seu filho real.
De alguma forma algo será “depositado” no bebê ideal, que durante seu processo de
desenvolvimento e crescimento sofrerá diretas ou veladas cobranças para corresponder às
idealizações parentais e culturais. De certa maneira é muito provável que alguma idealização
haverá de marcar a relação da criança com seus pais. O risco e perigo estão na intensidade dessa
idealização e sua respectiva cobrança e correspondência, o que na literatura comumente
chamamos de mãe intrusiva. A mãe intrusiva é aquela que não vê no corpo do filho seu
verdadeiro potencial de Self, mas sim a imagem do filho que ela idealiza e quer. Assim, a mãe
intrusiva é uma mãe não-empática. Ao invés de ser uma mãe suficientemente boa132, a mãe
intrusiva é pouco ou nada acolhedora às necessidades psíquicas e afetivas do bebê, denotando
amar seu filho naquilo que ele corresponde às necessidades carenciais dela. A mãe intrusiva,
por conseguinte, impede a abertura do espaço potencial do filho.

132
Expressão criada por Winnicott para descrever uma mãe boa o suficiente para que o bebê possa
conviver com ela sem prejuízos psíquicos na construção do seu ser. Não se trata de uma mãe perfeita,
porém humanamente falha e ao mesmo tempo acolhedora às necessidades afetivas e psicológicas de seu
filho. É como se a criança para ser amada tivesse que desenvolver uma personalidade que não
corresponde com seus verdadeiros potenciais como pessoa.
65

A mãe intrusiva é uma mãe invasiva133. Invade o psiquismo do infante em formação com
vistas a moldá-lo à sua imagem e perfeição. Tal relação (mãe intrusiva-bebê) tende a levar a
criança a reagir às falhas de adaptação da mãe. É como se o psiquismo do bebê tivesse de
renunciar a esperança de ver às suas necessidades satisfeitas e adapta-se às expectativas de sua
mãe invasiva, passando a adotar um modo de ser falso, artificial e inautêntico. O ser do filho
cresce assim como um reflexo de outro filho (o idealizado pela mãe intrusiva) que não é
verdadeiramente ele134. Assim ocorrendo o psiquismo em sua fase imatura e oral sofre o que se
denomina de trauma cumulativo, cuja falha persistente produz uma espécie de fendas repetidas
que se acumulam de maneira silenciosa e invisível nas bases e nos alicerces da construção da
edificação da personalidade humana.
As representações parentais, portanto, podem dificultar o desenvolvimento de
independência e autonomia do Verdadeiro Self dos filhos, gerando, assim, condições nefastas
que não somente prejudicam a continuidade do ser, como também plantando sementes para
futuras psicopatologias no adulto que o bebê um dia será. Para um crescimento saudável da
prole é necessário que o processo de parentalização dos genitores permita que o bebê real que
ali está nos braços parentais tome lugar tanto do bebê fantasmático, quanto do bebê imaginário
e do bebê mítico.

“Só é possível ensinar uma criança a amar, amando-a”.


(Johann Goethe135)

A CHEGADA DOS IRMÃOS

Cada irmão é diferente.


Sozinho acoplado a outros sozinhos.
A linguagem sobe escadas, do mais moço,
ao mais velho e seu castelo de importância.
A linguagem desce escadas, do mais velho
ao mísero caçula.

133
A mãe intrusiva não se confunde com uma mãe perversa ou má propriamente dita. Trata-se de uma
mãe de “bom coração”, que realmente acredita que seu filho só poderá ser feliz se corresponder às suas
expectativas idealizadas e narcisistas. Ela ama sua criança, porém naquilo que ela condizer com seus
anseios e ideias do que deve ser um filho.
134
Winnicott denominou de Falso Self. Segundo ele o Falso Self é uma personalidade inautêntica, isto é,
o psiquismo infantil em desenvolvimento para se proteger se organiza de maneira a não ser quem ele
realmente é ou poderia ser. O Falso Self, assim, encobre o Verdadeiro Self.
135
Um dos maiores escritores de língua alemã, que viveu entre os anos de 1749 e 1832. Sua principal obre
prima é o drama trágico Fausto.
66

Carlos Drummond de Andrade136

O nascimento de mais filho ou filhos transforma o filho já existente, até então único, em
primogênito. O ambiente social do agora filho primogênito, por sua vez, sofre diversas
mudanças significativas e profundas. A pediatra e psicanalista francesa Françoise Dolto assim
descreveu a chegada de um irmão mais novo:

“O nascimento do irmão mais novo (qualquer que tenha sido a maneira como foi preparado)
sobrevém como uma tempestade súbita no céu sereno em que o pai e a mãe, aliás o sol e a
terra, serviam de referência inter-relacional para a verticalidade do mundo animado e
inanimado, onde a criança conhecia e garantia sua imagem no corpo137”.

Assim, conforme Dolto, o surgimento de um irmão no cenário familiar onde antes


apenas o filho único reinava o coloca em uma situação de terceiro excluído. A triangulação
edípica, pai-mãe-filho, portanto, é revivida sob um novo paradigma narcisista.
Estudos sistemáticos realizados a partir da década de 1980 revelam o efeito dramático
que o nascimento de um irmão recente provoca na conduta dos primogênitos. Não é incomum,
como apontam os psicólogos e professores universitários Caroline Rossato Pereira e Cesar
Augusto Piccinini138, o aparecimento de sinais de descontentamento, bem como sintomas
regressivos tais como retrocesso na aprendizagem de hábitos de toalete, fala infantilizada,
aumento da dependência e maior demanda por colo. Todavia, paradoxalmente, observa-se
demonstração de afeição e curiosidade com o irmão recém-chegado.
O exercício deste novo papel familiar, que é o papel fraterno, além de uma experiência
inusitada até então por quem só exercia o papel filial, coloca o filho primogênito diretamente
na ambivalência existente na função de ser irmão, ou seja, a vivência de rivalidade e ciúme, com
carinho e solidariedade. Quem antes era filho único passa agora a ocupar o papel de irmão mais
velho.
O aumento da prole, principalmente com a chegada de um segundo filho, causa
impactos modificantes no âmbito da família nuclear. Toda uma dinâmica relacional é agora
rearranjada com o surgimento do papel fraterno. Inevitavelmente a chegada de mais um filho
acarreta mudanças estruturais, econômicas, sociais e afetivas. O interjogo das trocas afetivas
fica agora mais complexo e com outra psicodinâmica.

O irmão que chega não deixa de ser para o filho já existente um intruso, um rival. Ambos
irão, de várias maneiras, disputar a atenção e o amor dos pais. O filho mais velho, que

136
Versos iniciais do poema Irmão, Irmãos.
137
Apud Memória e Temporalidade: sobre o infantil em Psicanálise, Bernardo Tanis, pág. 82, Casa do
Psicólogo, 1995.
138
Gestação do Secundo Filho: percepções maternas sobre a reação do primogênito, in:
http://www.scielo.br/pdf/estpsi/v28n1/a07v28n1.pdf.
67

anteriormente se achava exclusivo, terá que se adaptar às mudanças da nova configuração


familiar. A cada aumento da fratria (conjunto de irmãos) são reavivadas as rivalidades e
redistribuídos os papéis. Quando chega um terceiro o segundo (até então caçula) passa a ser
filho do meio, e assim sucessivamente. Para o primogênito quanto mais irmãos tiver menor será
a disponibilidade dos pais para ele, assim como para o segundo e os demais, se houver. Nenhum
irmão, portanto, é poupado de sentir ciúmes, até mesmo o caçula em relação aos mais antigos.
O ciúme é inerente ao papel fraterno.
A qualidade do vínculo fraterno tem forte relação com os pais, isto é, da maneira como
eles se relacionam com os filhos e como estimulam a convivência mútua, o respeito e o apoio
entre eles. Muito da proximidade (ou do distanciamento) relacional depende, por conseguinte,
dos genitores e de como eles gerenciam os conflitos inerentes da situação de competição, ciúme
e inveja pertinentes ao liame fratrio.
Reconhecidamente a família é o primeiro laboratório social do ser humano, regra geral.
Um novo irmão para quem é mais velho é inicialmente um intruso, um estranho, um
desconhecido, que se intromete na triangularização edípica pais-filho. A homeostase139 familiar
é modificada.
As implicações da chegada de uma nova criança no contexto da família nuclear podem
ser várias e muitas ainda sequer foram bem pesquisadas. Um grande espaço se encontra aberto
à discussão e entendimento, como demonstram as psicólogas Débora de Oliveira e Rita Lopes
em seu trabalho Implicações Emocionais da Chegada de um Irmão para o Primogênito: uma
revisão da literatura140.
Pelo acima exposto, disputas fraternas são normais no âmbito familiar, sendo elas, caso
não intensas e excessivamente agressivas, até positivas e, de certa maneira, educativas para o
preparo competitivo da vida extrafamiliar. Assim, as disputas fraternais, em princípio, são
saudáveis e contribuem para ensinar os filhos desde cedo a administrar sentimentos
relacionados a ganhos e perdas, bem como ao senso de compartilhamento e solidariedade.
Como escrevem as psicólogas e professoras universitárias Caroline Rossato Pereira e Rita
Sobreira Lopes, em seu artigo Rivalidade Fraterna: uma proposta de definição conceitual141, “no
mundo dos irmãos, as crianças aprendem como negociar, cooperar, mas também como rivalizar
e competir”.
Se a chegada de um irmão provoca o sentimento de estranheza e intrusão no filho (ou
filhos) já existente, ao irmão chegante, por sua vez, haverá o mesmo de descobrir e conquistar
territórios. A fantasia do primogênito de ser o “centro do mundo familiar” é narcisicamente
ferida pela nova realidade e configuração grupal. Estabelece-se, assim, o conflito
intrageracional. Instaura-se o complexo fraterno142.
O complexo fraterno (desculpem-nos o trocadilho) é realmente complexo, afinal não se
resume ou se reduz ao complexo edípico, nem também se limita ao complexo do intruso e nem
se caracteriza apenas pela presença de emoções e afetos negativos tais como ódio, inveja e
ciúme; mas também engloba amor e ambivalências, semelhanças e diferenças, solidariedade,
compartilhamento e disputa – como bem descreve o psicanalista francês René Kaës143.

139
Tendência existente em certos organismos, através de mecanismos metabólicos de regulação, para o
equilíbrio e a conservação. Trazido da biologia para o campo da psicologia pelo psiquiatra norte-
americano Don Jackson, a homeostase familiar representa o estado psicodinâmico de equilíbrio que o
sistema familiar busca manter ou restaurar. A família, neste sentido, é vista como um sistema ativo que
se autogoverna e se autorregula.
140
Disponível in: http://www.scielo.br/pdf/pe/v15n1/a11v15n1.
141
Publicado em Estudos de Psicologia 18(2) abril-junho/2013, pág. 277, disponível in:
https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/115536/000939038.pdf?sequence=1.
142
O complexo fraterno, segundo o psicanalista francês Jean Laplanche, é configurado pelo menino ou
pela menina, pelos pais e pelo irmão ou irmã. Trata-se de uma triangularização a quatro, o complexo
fraterno, portanto, exerce importante função estruturante no psiquismo do infante.
143
O Complexo Fraterno, ed. Ideias e Letras, 2016.
68

Assim escreveu psicanalista argentino Luis Kancyper sobre esse encontro do irmão mais
velho com o irmão recém-chegado:

“O irmão é um semelhante demasiado similar e a primeira aparição do estranho na infância.


O confronto com o outro – o intruso, o duplo – comporta compromissos narcisistas
consideráveis e pode ou não reativar, ao mesmo tempo, os conflitos edípicos.
Na estrutura fraterna intervém a dinâmica do duplo. Mas este apresenta uma singularidade:
é um duplo consanguíneo. Assim, a filiação consanguínea e o duplo, como objetos de
projeção narcisista que fascinam pelo maravilhoso e pela inquietante estranheza do
ominoso, operam de forma conjunta e exercem seus efeitos clínicos na amizade, na área do
trabalho e profissional e nos papéis parentais e conjugais”144.

A convivência entre irmão tende a ser um período relativamente longo, principalmente


quando esta relação se estabelece na infância de ambos ou de um. Há entre eles um objetivo e
desejo comum que é o amor dos pais. Tal necessidade singular e ao mesmo tempo plural resulta
na inevitável disputa fraterna que frequentemente é saudável, pois a finalidade de conquistar e
conservar um espaço afetivo dentro do grupo familiar contribui sobremaneira para a formação
da individualidade. Tais disputas, de acordo com a psiquiatra brasileira Silvia Bassani Schuch
Goi145, além de saudáveis, são importantes, “pois ensinam a administrar os sentimentos relativos
a perdas e ganhos, apontam limitações e modos de tentar superá-las, mostram as questões em
que têm maior facilidade e como valorizá-las, promovem alianças, ensinam a dividir,
compartilhar, solidarizar-se e a posterga”.
A relação fraterna, portanto, participa da construção da personalidade humana, ao
mesmo tempo em que possibilita a socialização com o estranho (irmão) bem antes, até, de se
vivenciar socialmente com os outros da vida extrafamiliar.

“Um irmão pode não ser um amigo,


mas um amigo será sempre um irmão”.
(Benjamim Franklin146)

144
Confronto de Gerações: estudo, pág. 65, ed. Casa do Psicólogo, 1999.
145
O Complexo Fraterno: reflexões acerca do ciúme e da inveja entre irmãos, disponível in:
http://rbp.celg.org.br/detalhe_artigo.asp?id=153.
146
Jornalista, político e cientista, um dos principais líderes na Revolução Americana de 1776.
69

ESTILOS PARENTAIS

Considero a família e não o indivíduo


como o verdadeiro elemento social.
Honoré de Balzac147

Não basta ser pai, tem que participar, dizia um antigo slogan de uma campanha
publicitária televisiva.
O ser humano não nasce evidentemente socializado. Um recém-nascido é o nosso
componente animal em estado bruto. Em seu processo civilizatório a criança vai sendo
socializada, isto é, vai assimilando gradualmente características do grupo social a que pertence.
Trata-se de um aprendizado social, processo este em que o indivíduo vai interiorizando regras,
valores e hábitos socioculturais. É a transformação de um indivíduo puramente biológico em um
ser humano biopsicossocial.

Classifica-se a socialização (efeito de tornar social) em socialização primária e


socialização secundária. A socialização primária se dá no grupo social (geralmente a família)
onde o indivíduo nasce e passa suas primeiras experiências sociais de vida. É aqui que começa a
interiorização do mundo exterior, quando a criança pequena assimila comportamentos de
outras pessoas, principalmente dos pais. Em outras palavras, a socialização primária 148 é a
primeira socialização que uma pessoa experimente na infância. Já a socialização secundária,

147
Escritor francês do século XIX, autor de A Comédia Humana.
148
A socialização primária tem um valor primordial para o indivíduo e deixa marcas profundas em toda a
sua vida, visto ser aí que se constrói o primeiro mundo não biológico do ser humano. É essencial na
construção da personalidade humana.
70

portanto, é todo processo socializador subsequente à socialização primária e que introduz um


indivíduo já socializado em novos setores (escola, trabalho, por exemplo) do mundo de uma
dada sociedade.
Em uma mesma sociedade e em uma mesma cultura a forma como os pais educam seus
filhos variam. A maneira de educar, regra geral, varia de pessoa para pessoa e, em grande parte,
tem influência da personalidade do sujeito e do seu estilo e filosofia de vida.
Qual a melhor forma de educar os filhos? Esta pergunta permeia muitos estudos a
respeito do tema. Práticas educativas parentais têm sido há mais de meio século alvo de
pesquisas e importantes reflexões, tais como a proposta pela norte-americana Diane Baumrind,
psicóloga do desenvolvimento humano. Nos anos 60 Baumrind dedicou-se a estudar os padrões
e estratégias utilizadas pelos pais para educarem seus filhos. O modelo teórico por ela
apresentado é hoje um fundamental marco na compreensão da educação pais-filhos.
Em pesquisas com crianças em fase pré-escolar Baumrind observou que crianças
educadas por diferentes estilos atitudinais dos pais (estilos parentais149)apresentavam
diferentes graus de competência social. Assim, em relação às crianças que demonstravam maior
maturidade, boa autoestima, assertividade, independência, autorregulação, conduta
empreendedora, habilidade e traquejo social, ela associou o estilo parental educacional ao que
chamou de autoritativo150.

“É na educação dos filhos que se revelam as virtudes dos pais”.


(Coelho Neto151)

Os seres humanos, embora humanos, não são iguais. Se as pessoas não são iguais,
naturalmente que os pais também não são iguais. Como cada mãe e pai encara a educação e
maneja o processo de socialização primária dos seus filhos divergem em estilos dessemelhantes.
Neste sentido os estilos parentais se caracterizam por um conjunto de atitudes e
comportamentos que os pais exercem em suas práticas educativas. Inicialmente Diana
Baumrind classificou os estilos parentais em três, a saber: autoritativo, autoritário e permissivo.
Posteriormente novos pesquisadores subdividiram o estilo permissivo em dois: indulgente e
negligente. Vejamos, então, cada um deles:
O estilo autoritativo é aquele em que os pais educam de maneira empática com seus
filhos, portanto, são pais abertos ao diálogo. Já o estilo autoritário é aquele em que os pais
exercem sua autoridade de pais de maneira autoritária, isto é, são severos, arbitrários,
dominadores e rígidos. São pais que valorizam a imposição e a punição como métodos
socializantes, não sendo, portanto, abertos ao diálogo com os filhos. O estilo permissivo, por
sua vez, é como o próprio nome diz: são pais excessivamente tolerantes e condescendentes.
Tal classificação baseia-se na perspectiva de duas dimensões, a exigência e a
responsividade. Desse modo podemos compreender que pais autoritários são exigentes, mas
não responsivos; enquanto que os pais permissivos indulgentes são bastante responsivos,
porém não exigentes; bem como os permissivos negligentes nem são responsivos nem
exigentes. Os pais autoritativos (também chamados de democráticos), contudo, são exigentes e
responsivos, há uma reciprocidade, os filhos devem responder às exigências dos pais, mas estes
também aceitam a responsabilidade de responderem, o quanto possível, aos pontos de vista e
razoáveis exigências dos filhos.

ESTILO PARENTAL EXIGÊNCIA RESPONSIVIDADE

149
Segundo os professores norte-americanos de Psicologia Laurence Steinberg e Nancy Darling, define-
se estilos parentais como um conjunto de atitudes que são comunicadas à criança/jovem e que, todas
juntas, criam um clima emocional, no qual os pais atuam de determinada forma.
150
Uma combinação dos termos autoridade + participativo.
151
Escritor, fundador da cadeira nº 2 da Academia Brasileira de Letras.
71

AUTORITATIVO
+ +
AUTORITÁRIO
+ -
INDULGENTE
PERMISSIVO - +
NEGLIGENTE
- -
(+) presença (-) ausência

Estudos mais contemporâneos152 apontam que filhos de pais autoritativos mostram


mais aspectos positivos de desenvolvimento (alto índice de competência psicológica e baixo
índice de disfunção comportamental e psicológica), enquanto os que perceberam seus pais
como negligentes mostraram aspectos negativos. Já os filhos que descrevem seus pais como
autoritários ou como indulgentes apresentaram características tanto positivas quanto
negativas, sendo os negativos, entre outros, retração social, depressão e ansiedade, com pouca
habilidade de prática e manejo social.
Pesquisas, portanto, têm constatado uma relação próxima e positiva entre o modelo de
parentalidade baseado no estilo autoritativo e o desenvolvimento psicossocial das crianças e
adolescentes. Estes se apresentam mais sociáveis, autônomos, independentes, maduros, com
melhores êxitos e realizações na vida. Por outro lado, estilos autoritativos e perimissivos
(indulgentes e negligentes) influenciam negativamente o desenvolvimento dos filhos. Filhos de
pais autoritários tendem a apresentar desempenho escolar moderado, geralmente com
comportamento dócil, quieto, passivo e submisso (quando o autoritarismo parental é mais
severo e hostil, podem desenvolver nos filhos agressividade em relação às figuras de
autoridade). No estilo permissivo/indulgente há uma forte correlação com distúrbios de
conduta, futuro uso abusivo de substâncias psicoativas, porém com boa autoestima e boas
habilidades sociais e com baixa tendência à depressão. Já no estilo permissivo/negligente as
consequências podem se revelar negativas em diversas áreas, tais como a afetiva, acadêmica e
social. São filhos propensos a terem baixo rendimento escolar, pouca habilidade social e fortes
tendências a depressão.
Vários estudos e trabalhos153 apontam que adolescentes que descrevem seus pais como
autoritativos apresentam baixos índices de depressão, ansiedade, distúrbios de conduta,
distúrbios psicossomáticos e drogadição: bem como a criação autoritativa produz efeitos
bastante positivos em termos acadêmicos e sociais. Acredita-se que a educação dos filhos em
um ambiente familiar dialogal contribui sobremaneira para o encorajamento de habilidades
sociais e a utilização de recursos adaptativos funcionais. Uma socialização infanto-juvenil em um
clima autoritativo/democrático contém elementos alimentadores de uma formação com mais
autonomia, autoestima e autoconfiança.

152
Vide Estilos Parentais em Famílias com Filhos em Idade Escolar, in:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-82202012000200008, e A
Identificação de Estilos Parentais: o ponto de vista dos pais, in:
http://www.scielo.br/pdf/prc/v17n3/a05v17n3.pdf.
153
Vide Situações de Risco e Vulnerabilidade na Infância e na Adolescência, Cláudio Hutz, ed. Casa do
Psicólogo, 2002.
72

“Ninguém caminha sem aprender a caminhar,


sem aprender a fazer o caminho caminhando,
refazendo e retocando o sonho pelo qual se pôs a caminhar”.
(Paulo Freire154)

OS SUBTERRÂNEOS DA FAMÍLIA E SUAS DINÃMICAS

154
Educador e pedagogo, falecido em 1997, autor do livro Pedagogia do Oprimido. Doutor Honoris Causa
em várias universidades brasileiras e estrangeiras.
73

LEGADOS OCULTOS

A memória é a consciência inserida no tempo.


Fernando Pessoa

Não é apenas o indivíduo humano que possui em seu interior psíquico aquilo que
convencionamos chamar de inconsciente 155. Um grupo de indivíduos humanos também forma
um inconsciente coletivo e grupal. A família igualmente.
Quando um indivíduo humano nasce ele nasce no âmbito de uma família que, por sua
vez, tem uma história grupal que antecede ao nascimento do novo membro. Neste sentido
somos herdeiros de conflitos, emoções e segredos dos nossos ancestrais. Tal herança é algo
impositiva que internalizamos sem a consciência da mesma. Quando nascemos começamos a
construir nossa história como sujeito, mas nossa história como sujeito se inicia num
entrecruzamento com a história dos nossos pais, avós e demais ancestrais156. O que se transmite
de geração a geração forma o que chamamos de inconsciente familiar. A mente humana, assim,
se forja e se desenvolve em uma trama dinâmica entre o intrapsíquico e intersubjetivo.
O psicanalista argentino Alberto Eiguer, em seu hoje clássico livro Um Divã para a
Família157, denomina o espaço psíquico surgido nas fronteiras entre o intrapsíquico e o
intersubjetivo de interfantasmatização158, espaço este onde se compartilham os inconscientes
dos membros familiares. Segundo Eiguer, conjuntamente a escolha do parceiro conjugal, a
interfantasmatização é um dos organizadores simbólicos da família, onde se estruturam a
modalidade vincular e o modo de subjetivação tanto do indivíduo quanto do grupo como um
todo.

Como uma casa antiga a família tem seu porão. Aliás, melhor dizendo, tem seus porões.
Alianças veladas, pactos e conluios inaudíveis, segredos, lembranças esquecidas de nossos
ancestrais e seus fantasmas compõem e fazem parte do chamado inconsciente familiar. Trata-
se de uma espécie de contrato secreto entre os membros familiares, resultado da memória da
história das famílias ao longo do tempo. Cada geração e cada indivíduo integram os elos de uma
cadeia humana que nos habita sem que percebamos. Como uma árvore genealógica latente ela

155
O inconsciente psíquico vai além daquilo que não se tem consciência em um dado momento
(inconsciente fenomenológico). Em termos gerais e amplos o inconsciente psíquico são processo mentais
que ocorrem sem que a parte consciente do sujeito perceba. Psicanaliticamente falando o psiquismo
humano é como se fosse um iceberg cuja parte superior à linha d’água seria a consciência e a parte
submersa o inconsciente.
156
Antes de surgir um Eu dentro do psiquismo infantil já existe um Nós ao seu redor e que lhe antecedeu.
157
Ed. Artes Médicas, 1989.
158
Circulação de material psíquico grupal.
74

atua sub-repticiamente em cada e através de cada indivíduo. É um fenômeno psicologicamente


humano resultado da transgeracionalidade.

“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura


o legado de nossa miséria”.
(Machado de Assis159)

No seio do grupo familiar circulam pensamentos, desejos, fantasias e afetos. Trocas são
feitas ou deixadas de serem feitas. Nas entrelinhas dos discursos e gestos familiares habitam
textos não falados e não ditos, porém agidos. Cada ser humano em particular pertence
incialmente a uma rede circular de um nós que o antecede e ao qual irá a partir de então
pertencer. Nossos antepassados, os mortos e os vivos, sombreiam a família a partir de sua
árvore genealógica explícita e implícita. Como disse Freud, nenhuma geração pode ocultar das
seguintes seus aspectos psíquicos mais relevantes e importantes.
No tocante à transmissão geracional a psicanalista Ângela Piva assim dispõe:

“Mesmo inibindo-se ou desbloqueando-se uma tendência, uma história, uma vivência, ela
jamais será totalmente abolida, e pode aparecer como impensado e portanto deixar atrás
de si um substituto como signo do que não pode ser transmitido. Independente da estratégia
usada para impedir que a transmissão aconteça, o escondido, o negado aparecerá em
gerações futuras como enigma, como impensado, como o negativo, o que acarretará para
seus herdeiros pesadas marcas a serem carregadas160”.

A pré-história de cada indivíduo humano começa muito antes dele nascer, antes até dele
ser fecundado. Todos somos, de alguma maneira, nos dizeres do psicanalista francês René Käes,
sonhos de desejos insatisfeitos. Desse modo qualquer sujeito humano é acima de tudo (ou
abaixo de tudo) um intersujeito.
A família tende a ser um grupo conservador, isto é, tende a perpetuação através da
transmissão de seus legados geração a geração. Se assim não fosse uma família não teria sua
identidade, que é muito mais do que um sobrenome ou um brasão. Compreender a
transgeracionalidade é substancial para o entendimento da psicodinâmica familiar.
O prefixo trans indica “através”, ou seja, revela os componentes que são perpassados
entre as gerações e que compõem a história familiar (consciente e inconsciente). Neste sentido
como escrevem as psicólogas Adriana Weber e Denise Falcke “o processo de transmissão
geracional baseia-se no pressuposto de que todo o indivíduo se insere em uma história pré-
existente, da qual ele é herdeiro e prisioneiro. Isso ocorre porque a identidade do indivíduo se
constitui a partir desse legado familiar que, por sua vez, define o lugar que ele passa a assumir
na família161”.
Não é difícil entender como ocorre o fenômeno transgeracional. Antes de um filho nascer,
por exemplo, o futuro pai (mãe) já foi um(a) filho (a). Muito do que este futuro pai será tem a
ver com sua personalidade e sua história pessoal. Em termos psicanalíticos a mente infantil em
formação internalizará muito das figuras parentais, gerando uma terceira instância psíquica
chamada Superego (as outras são o Id e o Ego). O Superego não significa a internalização dos
pais reais, mas sim dos superegos deles, ou seja, seus padrões morais, seus valores, seus ideais
e seus interditos. Da mesma maneira, que os superegos parentais foram consequência, por sua
vez, da internalização das figuras parentais dos seus pais. Seguindo a linha do tempo, portanto,

159
Considerado por muitos o maior nome da literatura brasileira. Viveu entre os anos 1839-1908. Entre
tantas obras-primas se destacam Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro e Quincas Borba.
160
Transmissão Geracional e a Clínica, Vincular, pág. 36, ed. Casa do Psicólogo, 2006.
161
A Dinâmica Familiar e o Fenômeno da Transgeracionalidade: definição de conceitos, in: Como se
Perpetua a Família?: a transmissão dos modelos familiares, ed. EDIPUCRS, 2005
75

podemos inferir a influência psíquica dos avós na formação do Superego dos pais que chegam
ao filho criança através dos seus genitores (geração mais próxima). À vista disso a
transgeracionalidade representa uma espécie de dialogar psicológico em três gerações: filho-
pais-avós. São, como já mencionados, processos psíquicos transmitidos à descendência, isto é,
de geração a geração, mantendo presentes do longo da historia familiar. Em outras palavras,
trata-se de padrões relacionais que se repetem, mesmo que as pessoas não se apercebam de
tais repetições.
Pelo acima exposto a transgeracionalidade se processa principalmente através de
conteúdos não-ditos, velados, não-nomináveis e não conscientemente simbolizados. Desse
modo segredos, traumas, conflitos mal resolvidos, humilhações e vergonhas pregressas podem
ser transmitidas de maneira impensável e inominável para quem recebe o legado. Assim, um
trauma ou um luto não elaborado de uma avó, por exemplo, pode ser passado indiretamente
ao neto através da mãe que, sendo filha da avó de seu filho, sofreu as consequência diretas do
trauma ou do luto não-elaborado quando da sua relação infantil com esta mãe que a criou.

O mecanismo da transmissão psíquica geracional é a repetição, que se opera não-


verbalmente de maneira inconsciente. Parte significativa da história do sujeito humano se
realiza na infância em relação às figuras parentais. Os pais, por sua vez, trazem para a relação
com os filhos consequências psíquicas e emocionais de suas relações com seus próprios pais.
Quando uma criança nasce ela herda um lugar simbólico no seio da família, resultado, inclusive
da aliança da conjugalidade de seus genitores162.
A psicanalista Olga Ruiz Correa163 afirma que tanto o vinculo materno quanto o grupo
familiar constituem o berço psíquico do sujeito humano onde se funda o que ela denominou de
tecelagem psíquica grupal.

“Aquilo que herdastes dos teus pais, conquista-o para fazê-lo teu”.
(Johann Wolfgang von Goethe164)

O PSIQUISMO FAMILIAR

162
A psicanalista francesa Piera Aulagnier denominava de contrato narcísico.
163
Transmissão Psíquica entre Gerações, in: http://www.scielo.br/pdf/pusp/v14n3/v14n3a04.pdf.
164
Escrito alemão do final do século XVIII e início do século XIX, considerado um dos expoentes da
literatura germânica.
76

O que fica atrás de nós e o que jaz à nossa frente


têm muito pouca importância,
comparado com o que há dentro de nós.
Ralph Emerson165

Já dizia Winnicott, tudo começa em casa. Pois é, nesta casa onde tudo começa (família)
as pessoas que nela habitam convivem com a proximidade íntima de suas subjetividades
conscientes e inconscientes. Uma verdadeira e quase invisível urdidura e trama de desejos e
necessidades não faladas e veladas se entrelaçam em uma teia invisível de junturas e nós. Um
interjogo de transferências e contransferências permeiam os espaços interpessoais e
intrapsíquicos.
Sendo a familiar nuclear baseada na conjugalidade podemos considerar a díade (casal)
como um sistema em funcionamento, cuja dinâmica é fundamentada em um troca psíquica
entre os cônjuges. O chamado Eu Conjugal, assim é entendido como uma espécie de aparelho
psíquico que vai além do enlace entre duas personalidades, pois inclui a psicodinâmica
inconsciente compartilhada. O próprio filho (ou filhos) quando nasce já está envolto em um
espaço psíquico de triangularização afetiva.
A combinação psíquica dos membros da família gera o que o psicanalista francês Didier
166
Anzieu denominou de organizadores psíquicos grupais que são processos psicológicos que
sustentam a vida do grupo, tais como fantasias, ilusões e imaginações. Neste sentido, o
psiquismo familiar é resultante de um processo de transmissão psíquica (inconsciente) que
ocorre inicialmente no casal que forma o par conjugal e depois, com o nascimento dos filhos,
para a família nuclear como um todo. Tanto o casal forma a identidade conjugal quanto a família
a identidade familiar.
O psiquismo familiar, portanto, é fruto da intersubjetividade dos indivíduos familiares,
intersubjetividade esta que promove um entrelaçamento de demandas psicológicas entre as
pessoas envolvidas.

165
Escritor, filósofo e poeta estadunidense do século XIX.
166
O Grupo e o Inconsciente: o imaginário grupal, ed. Casa do Psicólogo, 1993.
77

Sendo a família um espaço relacional não é difícil entender que no intercâmbio dos
vínculos intersubjetivos a família produza uma dinâmica funcional que lhe é própria e singular.
Como descreve a psicóloga Cláudia Regina Pinna, em sua monografia de Pós-Graduação em
Psicologia pela PUC (RJ), a família, como unidade psicossocial, tem como funções: “proteção,
desenvolvimento psicoafetivo, transmissão de uma cultura, ideais e valores simbólicos, criação
do sentimento de pertencimento e identidade, elaboração e transformação da transmissão
psíquica geracional. Dentre a variedade de agrupamentos familiares, o vínculo é o fio condutor
que perpassa os respectivos cônjuges, chegam às famílias de origem, através da filiação (eixo
vertical) ou pela afiliação (eixo horizontal).”167
Evidente que o psiquismo familiar é um construto teórico e não uma realidade física
propriamente dita. O conceito de psiquismo familiar nos facilita melhor entender a trama
relacional subjacente ao comportamento dos membros de uma família e suas transações
afetivas e conluios inconscientes. Podemos, com tal formulação hipotética, representar e refletir
a urdidura e a textura que envolve elementos intrapsíquicos individuais que dialogam
dialeticamente entre si em uma espécie de partilhamento mental inconsciente, de modo a
constituir um funcionamento intersubjetivo, resultado de um investimento psíquico entre os
sujeitos do grupo familiar. Trata-se de uma psicodinâmica dos vínculos que ocasiona os lugares,
posições e funções exercidas no palco inter e plurisubjetivo da família.
Mediante o conceito de psiquismo mental tem-se a possibilidade de melhor enxergar a
dinâmica familiar como um espaço de circulação de afetos, desejos e demais trocas
intersubjetivas. Afinal, toda família de alguma maneira é regida por um funcionamento que é
mais do que a soma do psiquismo individual de suas partes.

“O poder nunca é propriedade de um indivíduo;


pertence a um grupo e existe somente
enquanto o grupo se conserva unido”.
(Hannah Arendt168)

MITOS E SEGREDOS FAMILIARES

Existem certas ocasiões em que um homem


tem de revelar metade do seu segredo
para manter oculto o resto.

167
Espaços de Moradia e Processos de Subjetivação Grupal nas Famílias da Atualidade, pág. 21, disponível
in: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/32738/32738.PDF.
168
Filósofa alemã de origem judaica, considerada uma das mais influentes do Século XX.
78

Philip Chesterfield169

Toda família tem no interior de sua história segredos, mitos e tabus. Toda família ao
longo de sua existência vai criando lendas e crenças, assim como também vai omitindo
acontecimentos e verdades. Toda família tem seu lado um quê de sagrado e outro lado um quê
de profano. Toda família tem sua máscara com que se apresenta ao mundo, porém igualmente
tem parte ocultas e conteúdos encobertos. Todas as famílias não são iguais, mas todas as
famílias são iguais, pois, cada uma a sua maneira, têm seus segredos, seus mitos e seus tabus.
Há segredos e segredos. Há segredos que não afetam o conjunto familiar, porém há
segredos que afetam. Vários podem ser os segredos em uma família, tais como abuso sexual,
adoção, aborto, doença mental, homossexualidade, suicídio, adultério, filho ilegítimo, entre
outras. Em seu artigo os psicólogos Klaus Cavalhieri, Isabela Machado da Monica Barreto e Maria
Aparecida Crepaldi170, sustentam que um segredo familiar pode deturpar os processos
comunicacionais entre os membros familiares, individuais ou subgrupais, e tal dinâmica pode
deixar a família em estado de vulnerabilidade a comportamentos sintomáticos dentro da própria
família. Segundos os autores “um segredo familiar pode ser compreendido como a omissão
intencional de qualquer informação que influencia diretamente os demais membros de uma
família ou que lhes diz respeito”.
Um segredo, qualquer segredo, contém aquilo que é da ordem do omitido, gerando,
assim, bloqueios tanto na comunicação quanto na interação entre os familiares. É o caso que
acontece quando um casal adota um filho e opta por manter segredo dessa adoção, inclusive
dos próprios familiares e da criança adotada. As razões para tal silêncio podem ser várias, tais
como evitar um trauma na criança ou receio que esta um dia procure sua família de origem, por
exemplo. Muitas vezes um segredo não revelado age como uma força silenciosa sobre todos os
personagens envolvidos e pode ter consequências futuras nefastas171.
Os não-ditos familiares representam lacunas nas histórias familiares. Trata-se de não
revelações e enigmas que circulam inverbais no âmbito familiar e que não podem ser
simbolizados ou elaborados. Um segredo exclui algo (pessoa ou evento) que não pode ser visto
ou falado e ganha seu verdadeiro lugar dentro do contexto familiar. Um não-dito em uma
criança, por exemplo, pode se expressar através de sintomas que se não forem elaborados, por
sua vez, pode perpassar à gerações futuras. Dessa maneira quando um filho criança intui ou
sente que certas verdades sobre si estão sendo sonegadas pode criar crenças ou fantasias sobre
o que não lhe é dito e isto gerar comportamentos ansiosos e/ou sintomáticos.

169
Político e escritor inglês do século XVIII.
170
Influência do Segredo na Dinâmica Familiar: contribuições da teoria sistêmica, disponível in:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-494X2017000200011#1a.
171
Vide Segredos de Família: uma abordagem geral, disponível in: https://www.maxwell.vrac.puc-
rio.br/29089/29089_4.PDF.
79

A terapeuta de família norte-americana Evan Imber Black, autora do livro Os Segredos


na Família e na Terapia Familiar172, diz que as tensões e os conflitos gerados pelos segredos
permanecem insolúveis haja vista os conhecimentos necessários para solução também
permanecerem inacessíveis. Dentre os segredos mais comuns do ambiente familiar um dos que
mais desorientam são aqueles que dizem respeito às origens, ou seja, os relacionados à
concepção. Conforme Imber Black “a falta de conhecimento sobre nós mesmos faz com que
sintamos que nós mesmos somos irreais173”.

“Nos tornamos prisioneiros quando não temos consciência”


(Serge Tisseron174)

Há várias formas de classificar os segredos familiares. Uma das mais conhecidas é aquela
oferecida por Imber-Black ao classificar os segredos em positivos e negativos. Os segredos
positivos são temporários e estão normalmente ligados a surpresas como quando guardamos
escondidos algum presente a ser dado em uma determinada data especial. Os segredos
negativos, contudo, corrompem a confiança nas relações.
Os autores do livro Psicodinâmica da Família175, Pincus e Dare, destacam que em uma
família um segredo nunca é um segredo individual, mas sim um segredo sistêmico, visto haver
um processo de influência mútua que fortalece ou enfraquece os efeitos do segredo. Os
segredos em família são segredos do sistema familiar por estarem estreitamente ligados aos
relacionamentos intrasistêmicos.
Vários são os exemplos encontrados na literatura científica sobre a influência do segredo
familiar no desenvolvimento pessoal. Entre diversos estudos temos a da pesquisadora
australiana Nola Passamore et. al. (Sigilo dentro das Famílias Adotivas e seu Impacto sobre os
Adultos Adotados), citado no artigo Influência do Segredo na Dinâmica Familiar,176 que
constatou que em famílias adotivas que assumiam abertamente a adoção tendiam a apresentar
comportamentos de mais cuidado e menos controle. Já em famílias onde a adoção era mantida
em segredo era comum que membros apresentassem maiores sentimentos de solidão, padrão
de apego evitativo e ansioso, além de deterem maiores índices de problemas em
relacionamentos íntimos.
Pelo acima exposto, segredos familiares frequentemente formam alianças, divisões e
rompimentos implícitos ou explícitos dentro do conjunto da família. Claro que toda família de
alguma maneira tem lá seus segredos, todavia os segredos negativos, dependendo de sua
natureza e intensidade, podem ser danosos ou prejudiciais, principalmente quando envolvem
uma criança diretamente.

172
Ed. Artes Médicas, 1994.
173
Op. cit., pág. 99.
174
Psiquiatra, psicanalista e Doutor em Psicologia francês.
175
Ed. Artes Médicas, 1981.
176
Op. cit.
80

Os mitos familiares, por sua vez, são relatos e histórias contadas através de gerações
que resultam com o tempo em um sistema de crenças. Alberto Eiguer, em seu livro O Parentesco
Fantasmático: transferência e contratransferência em terapia familiar psicanalítica177 afirma
que “o mito familial é definido como um relato, uma história, implicando um conjunto de crenças
partilhadas por toda a família, eventualmente transmitidas há gerações”. São verdades (ou
idealizações) inquestionáveis, compartilhadas por todos e que dão origem aos sentidos na
família. Os mitos, portanto, formam um sistema de valores tanto ideológicos quanto afetivos
que modela os comportamentos, lugares, papéis e funções dos membros familiares. Neste
sentido asseguram a coesão e a homeostase da família, e fortalecem a manutenção de papéis
de cada membro específico.
Segundo psiquiatra e terapeuta familiar sistêmico alemão Helm Stierlin o mito está para
a família como o mecanismo de defesa do Ego está para o indivíduo, pois sua fundamental
função é a de ser organizador grupal178. O mitólogo romeno Mircea Eliade já dizia que conhecer
os mitos é aprender a origem das coisas.
Para os psicólogos e professores franceses Claudine Combier e Gabriel Binkowski179 um
mito familiar é, uma imagem na qual a família se constrói por si mesma e por meio da qual ela
tenta se manter. Tal mito determina o papel de cada um e alimenta o sentimento de
pertencimento ao grupo familiar. Todavia argumentam os mitos familiares podem também
provocar certos efeitos patogênicos quando de sua imobilização e estagnação. Assim, há de
se observar quais conflitos e hábitos entre pais e filhos têm raiz em quais mitos familiares180.
Considerando, portanto, que os mitos familiares são crenças bem sistematizadas e
compartilhadas, em seu interior e bojo habitam muitas regras secretas de relações, regras estas
que se preservam encobertas na banalidade corriqueira das rotinas familiares. Tais crenças se
acham tão integradas e entranhadas na vida comum da família que se tornam verdades
inelutáveis e incontestáveis.
Assim sendo, a família não é apenas um espaço psicoafetivos entre pessoas
aparentadas, mas acima de tudo é um lugar impregnado de mitos, lendas, regras, ritos, fantasias
e segredos.

“Os mitos são sonhos públicos; os sonhos são mitos privados”.


(Joseph Campbell181)

177
Ed. Casa do Psicólogo, 1995.
178
Contudo, os mitos familiares também podem tomar proporções psicopatológicas quando são
baseados em crenças falsas e rigidez interativa. O não questionamento de determinadas crenças
familiares e a estereotipia das mesmas em alguns comportamentos muitas vezes podem trazer sérios
problemas nos relacionamentos intrafamiliares ou extrafamiliares.
179
Adoção e Mito: os destinos do "mito familiar" na cena da família contemporânea, disponível in:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982017000100159#aff1.
180
O mito constitui em sua essência a concepção de mundo própria da família, em que se cria a realidade
familiar. Um dos mitos mais comuns é o da união familiar (o importante nessa família é estar junto. Nas
festas e encontros não deve faltar ninguém).
181
Mitologista e escritor norte-americano, autor de livros como O Herói de Mil Faces e O Poder do Mito.
81

A ESTRUTURA DA FAMÍLIA

Podemos definir família como um conjunto interligado de pessoas que têm laços de
parentesco. Podemos também definir família como um sistema intrinsicamente ativo em
constante transformação. Ou melhor, como descreve o professor e diretor italiano da
Accademia di Psicoterapia della Famiglia em Roma, Maurizio Andolfi182, podemos considerar a
família como um sistema aberto (que permeia com o ambiente externo), composto por
unidades que interagem e se articulam entre si através de funções dinâmicas e regras de
comportamento e que busca a se adaptar às mudanças socioculturais e do ciclo vital.
Como tudo que é vivo, o grupo familiar transita pelo tempo e sofre inúmeras
transformações ao longo do seu percurso de existência. Como tudo que é vivo a família luta por
sobreviver. A sobrevivência de uma família não é sinônimo de conservação física, mas sim de
manutenção de um senso de continuidade e de identidade grupal que dá sustentação aos seus
membros.
Todo organismo vivo tem uma propensão de buscar o seu melhor equilíbrio funcional.
Trata-se de um mecanismo biológico de autorregulação que possibilita as condições adaptativas
de o organismo se ajustar às alterações que lhe são impostas, pois sem isso o organismo não
sobreviveria.
Em sua existência e luta por continuidade visa a família propiciar tanto um espaço de
coesão e pertencimento, quanto de promoção e crescimento da individuação e autonomia dos
seus membros. Em outras palavras: que haja ao mesmo tempo e de maneira equânime
intimidade e individualidade. É como a chamada “teoria do lençol curto”, se você cobre a cabeça
descobre os pés, mas se você cobre os pés descobre a cabeça.
A estrutura de uma dada família é invisível aos olhos nus. Empiricamente vemos
pessoas, um grupo de pessoas que se interagem. Porém, assim como uma edificação, suas bases,
alicerces, vigas de sustentação, as estacas escavadas e todas as estruturas em que se assenta a
família se encontram submersos por detrás de sua fachada e acabamento externo. Sem essas
fundações todo o prédio ruiria.
Para podermos “ver” a estrutura de uma família é necessário teoria. Em grego theoria
tinha o significado de contemplar, examinar, especular. Com teoria buscamos explicar ou
justificar um fenômeno. Como dizia Leonardo da Vinci183 “aquele que ama a prática sem teoria
é como o navegante que embarca em um navio sem um remo e uma bússola e nunca sabe aonde
vai parar”.

182
Por Trás da Máscara Familiar, ed. Artes Médicas, 1984.
183
Artista, cientista e inventor renascentista, nascido na Itália em 1452. Da Vince é merecidamente
considerado um dos maiores gênios da Humanidade.
82

Salvador Minuchin, terapeuta familiar argentino que muito contribuiu para o


desenvolvimento das terapias de família, propôs o olhar sobre as famílias mediante um enfoque
estrutural. Através de sua Teoria Estrutural ele e colaboradores analisaram os padrões
transacionais existentes entre os subgrupos pertencentes ao grupo familiar. Como descobriu
Minuchin, a estrutura familiar é um conjunto microscópico e invisível de exigências funcionais
que regula as maneiras pelas quais os membros familiares interagem. Uma família nuclear, por
exemplo, não é composta por pessoas exclusivamente, mas sim por subsistemas como o
individual, o conjugal, o parental, o fraternal.
Pela perspectiva estrutural são três os elementos básicos e essenciais: estrutura,
sistemas e fronteiras. A estrutura familiar, segundo Minuchin, é composta por um conjunto de
regras que governam as combinações e transações da família. É a repetição de tais transações e
seus comportamentos que se estabelecem padrões duradouros de interação. Quanto mais são
repetidas as transações familiares mais se cronificam expectativas que, por sua vez, estabelecem
padrões duradouros. Os psicoterapeutas de família norte-americanos Michael Nichols e Richard
Schwartz comentam:

“todas as famílias têm uma estrutura hierárquica, com adultos e crianças possuindo mais
ou menos autoridade. Os membros da família também tendem a ter funções recíprocas e
complementares. Com frequência essas funções se tornam tão entranhadas que sua origem
é esquecida, e elas são vistas como necessárias, em vez de opcionais. Se uma jovem mãe,
sobrecarregada pelas demandas do seu bebê fica chateada e se queixa para o marido ele
pode responder de várias maneiras. Talvez ele se aproxime e ajude a cuidar do bebê. Isso
cria uma equipe parental unida. Por outro lado, se ele decidir que a esposa está ‘deprimida’,
ela pode acabar em terapia para conseguir o apoio emocional do qual precisa. Isso cria uma
estrutura em que a mãe permanece distante do marido e aprende a buscar apoio fora da
família. Seja qual for o padrão escolhido, ele tende a se autoperpetuar”184.

O que diferencia o espaço de dentro de uma família e o espaço de fora são as fronteiras.
Claro que estamos falando de espaço psicoafetivos e transacionais tanto da família para com o
ambiente social externo quanto entre os membros internos da família.
Afetivamente temos dois movimentos ou direções, a saber: aproximação e afastamento.
Podemos estar pertos de alguém fisicamente, porém estarmos afastados afetivamente, bem
como podemos estar longe fisicamente de alguém, mas afetivamente próximos. É como diz o
seguinte poema da escritora Martha Medeiros:

“não faz diferença


se você vem amanhã
ou não vem
desisti de esperar
por alguém

184
Terapia Familiar: conceitos e métodos, pág. 183, 7ª edição, ed. Artmed, 2009.
83

cuja ausência
me faz companhia”.

As fronteiras familiares (fronteiras sistêmicas) são barreiras


invisíveis que regulam o contato com o outro ou os outros. Neste
sentido temos as fronteiras intersistêmicas, ou seja, as fronteiras que
divisam o espaço interno da família de seu espaço externo. Também
temos as fronteiras intrasistêmicas, que são as fronteiras internas que
limitam os familiares entre si. Como cita Adriana Weber et al., “as
famílias criam fronteiras com a função de delimitação emocional,
estabelecendo ou não barreiras que regulam a permeabilidade das emoções entre os membros
do sistema familiar. As duas principais funções das fronteiras são as de proteção e diferenciação
dos indivíduos frente ao sistema185”.
As fronteiras podem ser nítidas, rígidas ou difusas. As fronteiras nítidas são fronteiras
bem determinadas e demarcadas que possibilitam manter uma proximidade de trocas afetivas
com limites. Os papéis e as transações psicoemocionais entre eles são claros e bem definidos.
Como descreveu o médico e psicanalista Júlio de Mello Filho as “fronteiras nítidas significam que
a família é funcional, e que os subsistemas se comunicam entre si, cumprem suas funções e não
interferem indevidamente nos espaços dos outros186”.
As fronteiras rígidas, por sua vez, criam um distanciamento entre os sistemas ou
subsistemas. Isso causa desconexões, ou seja, ao tempo em que eleva o senso de
individualidade187 de cada membro, compromete o senso de pertencimento e
compartilhamento de afetos e intimidades. Fronteiras rígidas, portanto, como especificam os
psicoterapeutas norte-americanos Michael Nichols e Richard C. Schwartz “são excessivamente
restritivas e permitem pouco contato com subsistemas externos, resultando em desligamento.
Indivíduos ou subsistemas desligados são independentes, mas isolados. Do lado positivo, isso
estimula a autonomia. Por outro lado, o desligamento limita a afeição e a ajuda 188”.

Já as fronteiras difusas criam sistemas ou subsistemas aglutinados ou emaranhados, ou


seja, o espaço de intimidade é tão próximo, mas tão próximo, que podem gerar relações
simbióticas ou fusionais. Dentro do contexto familiar os subsistemas emaranhados, mais uma
vez citando Michael Nichols e Richard C. Schwartz, oferecem muito sentimento de apoio mútuo,
porém prejudica a independência e a autonomia dos seus membros. Quando as fronteiras são
difusas há uma mistura de papéis e fica difícil identificar quanto começa o espaço afetivo de um
e quando termina o espaço afetivo do outro.
Pelo acima exposto, podemos, então, classificar as famílias disfuncionais em famílias
aglutinadas ou emaranhadas (excessivamente coesas) e famílias cismáticas ou desligadas
(excessivamente individuais). Nas famílias aglutinadas o que se sacrifica é a individuação e a

185
Desafios Psicossociais da Família Contemporânea, págs. 26-27, ed. Artmed, 2011.
186
Doença e Família, pág. 221, ed. Casa do Psicólogo, 2004.
187
Lembremos que coabita no espaço psicológico da família tanto a necessidade de coesão e
pertencimento, quanto a necessidade de individuação. A identidade é resultado do movimento de se
diferenciar da “massa familiar”. A individuação possibilita o indivíduo existir psicoemocionalmente fora
do âmbito familiar.
188
Terapia Familiar: conceitos e métodos, pág. 184, 7ª edição, ed. Artmed, 2009.
84

autonomia. Nas famílias cismáticas ou desligadas o que se sacrifica é o sentimento de


pertencimento e a intimidade entre as partes.

RESUMO

CONCEITO DEFINIÇÃO
ESTRUTURA Padrão de organização que estabelece a forma de
interagir dos membros que constituem um
sistema.
SISTEMA Conjunto de elementos (subsistemas) que
interagem entre si e compõem um todo integral.
SUBSISTEMA Subgrupamento familiar. Indivíduo, díades,
tríades e outros conjuntos de pessoas/papéis
podem formar um subsistema.
FRONTEIRAS O que delimita um sistema ou subsistema de
outro. É o limite onde ocorrem as interações
relacionais e que define acesso e restrição ao
interior do sistema ou subsistema. São barreiras
invisíveis que regulam contatos afetivos.
FRONTEIRAS RÍGIDAS .Quando as fronteiras são muito rígidas impedem
ou permite pouco contato com os sistemas ou
subsistemas externos.
FRONTEIRAS DIFUSAS O oposto da rígida. A aproximação entre os
subsistemas é tanta (ausência de limite claro) que
carece de espaço para a diferenciação e
individuação de seus membros.
FRONTEIRAS NÍTIDAS São limites claros que ao delimitar nitidamente o
espaço de cada membro ou subsistema permite a
troca e a comunicação entre eles.
FAMÍLIA AGLUTINADA Também chamada de família emaranhada. Os
limites entre os membros são difusos e há exagero
de intimidade e falta de diferenciação entre eles.
FAMÍLIA CISMÁTICA Também chamada de família desligada. As
fronteiras entre seus membros ou subsistemas
são rígidas não permitindo proximidade afetiva e
troca de intimidade entre seus membros. Há
excesso de diferenciação e carência de coesão
familiar.

FAMÍLIA RECOMPOSTA

“Madrasta é aquilo que a gente nunca planejou ser”.


(Ruth Manus189)

189
Advogada e escritora.
85

Em cerimoniais religiosos de casamento é comum a expressão até que a morte os


separe. Sim, essa era a ideia clássica dos casamentos tradicionais de outrora, isto é, que fossem
para sempre enquanto vivo os cônjuges estivessem. Os casamentos eram para serem duráveis,
talvez menos pelo amor e mais pelo patrimônio.
A família de antigamente (não tão antigamente assim) era formatada de maneira
matrimonial, patriarcal e hierárquica. Porém nas últimas décadas o aumento cada vez maior de
separações conjugais provocaram mudanças consideráveis e significativas nas configurações e
arranjos familiares, entre elas a incidência também elevada de famílias recompostas.
As famílias recompostas resultam de um novo casamento ou união afetiva, com junção
dos filhos dos casamentos anteriores. Na verdade as famílias recompostas são famílias
pluriparentais. A pluriparentalidade é consequência, portanto, da união entre duas pessoas
onde uma ou ambas têm filhos de relações anteriores. Trata-se de uma estruturação familiar
complexa, haja vista a multiplicidade de vínculos nela existente. Essa miscelânea vincular gera
para a família pluriparental um outro título que é família mosaico190.
As famílias recompostas também são chamadas, além de pluriparental e mosaico, de
recasadas, reconstituídas, compostas, reconfiguradas, stepfamily, multiparental, etc. Seja como
for o recasamento dá início a alterações na dinâmica familiar. O conceito de parentalidade
baseada nos laços sanguíneos vai cedendo, assim, espaço também para o social, ou seja, para
os laços construídos através da convivência. Na pluriparentalidade, destarte, existe o
compartilhamento da função parental entre pais sanguíneos (biológicos) e sociais. Trata-se do
fenômeno da dupla paternidade (dual paternity), soma da paternidade biológica com a
socioafetiva.
O sociólogo francês François de Singly, em seu livro Sociologia da Família
Contemporânea191, comenta: “as histórias conjugais de pais separados conduzem a criança a
viver no que Didier Le Gall e Claude Martin denominam ‘rede parental’ e que pode compreender:
seus pais de origem, os novos cônjuges de seus pais, os eventuais ex-cônjuges de seus padrastos
ou madrastas. As crianças circulam no interior dessa rede hipotética de acordo com a forma
como os adultos definem sua inserção doméstica e a sua função parental ou de pais eventuais
e/ou adotivos” (pág. 166).

Uma família recomposta é assim denominada por ser uma nova família decorrente do
divórcio (de um ou de ambos os cônjuges)192. Ela é consequência da reorganização e da
redefinição sistêmica, conforme visto no capítulo SEPARAÇÃO CONJUGAL. Logo após a
separação da conjugalidade, em caso de casal com filhos, é normal uma etapa de
monoparentalidade, etapa onde se processa a elaboração psíquica do luto do casamento e da

190
O mosaico é constituído de pequenas peças de diversas cores que formam um todo figurativo. A família
mosaico representa uma família reconstituída na qual um dos parceiros conjugais ou ambos possuem
filhos de relacionamentos anteriores e que traz (ou trazem) para a nova família tais filhos que se juntam
aos filhos comuns do novo casamento. É uma organização familiar complexa, pois envolve uma
pluralidade de relações parentais, uma multiplicidade de vínculos e ambiguidades, resultado de uma
emaranhada rede de parentesco e relacionamentos.
191
Ed. FGV, 2007.
192
Vide artigo Famílias Recompostas, da socióloga portuguesa Cristina Lobo, disponível in:
http://www.scielo.mec.pt/pdf/spp/n48/n48a07.pdf.
86

família nuclear clássica desfeita. O núcleo familiar antes intacto se desfaz, gerando, muitas
vezes, o fenômeno da binuclearidade193. Se o ciclo de vida familiar usual se inicia com a
formação do casal, o ciclo de vida da família recomposta se acha intrinsicamente atrelado com
o ciclo do divórcio da família precedente. O surgimento de um novo casamento pós-divórcio,
como se descreve no livro Família e Psicologia194, organizado pela psicóloga e professora
universitária portuguesa Rita Francisco e outros, exige um ajustamento à complexidade das
novas fronteiras familiares e da ambiguidade dos novos papéis e funções. A reestruturação das
novas fronteiras sistêmicas familiares será fundamental para o melhor funcionamento da família
recomposta, principalmente para que possa permitir a inclusão de um novo membro na família,
abrindo também espaço para a relação dos filhos com o ex-cônjuge que não reside com os
mesmos, conjuntamente a integração do recém-chegado papel de madrasta ou padrasto.
Ao se reconstituir a família nuclear através de recasamentos novos parentescos até
então não existentes passam a existir: enteados, padrasto e madrasta. Claro que estamos
falando de famílias cujo anterior casamento gerou filhos. O papel de padrasto e de madrasta
não é igual ao de pai e mãe, regra geral, principalmente quando existe pai ou mãe proveniente
da conjugalidade pregressa. Porém, dependendo da situação, havendo filhos pequenos e o
outro genitor é ausente ou negligente, é necessário para o bom desenvolvimento da criança que
o novo ou a nova companheiro(a) do genitor com a guarda possa a vir a desempenhar papel
análogo a da parentalidade195, isto é, assume o lugar vazio de pai/mãe.
O novo companheiro da mãe ou do pai tende no espaço de convívio cotidiano a
desenvolver laços afetivos com seus enteados, e vice-versa. Todavia, nem sempre a coisa parece
ser tão fácil assim. Conflitos entre enteados e padrastos/madrastas podem ser comuns e até
bastante antagônicos e cheios de desavenças e conflagrações.

“O papel de outro pai é um verdadeiro desafio para o padrasto.


Seu êxito depende da eficácia da comunicação familiar,
do apoio do cônjuge e da paciência
para formar relacionamentos com crianças”.
(Edward Teyber196)

Além do padrasto paterno também existe o padrasto amigo que é desenvolvido com o
passar do tempo mediante um relacionamento afetivo recíproco e menos pelo exercício de um
estilo parental. A tendência é que crianças com mais idades e adolescentes tenham com seus
padrastos ou madrastas um convívio mais voltado à amizade.

193
A família binuclear é composta por dois lares que se formam após o divórcio.
194
Ed. Leya, 2016.
195
É comum denominarmos de paternagem ou maternagem para diferenciar melhor da parentalidade ou
maternalidade propriamente dita.
196
Psicólogo clínico infantil norte-americano e professor universitário. Autor de livros como Ajudando as
Crianças a Conviver com o Divórcio.
87

Entrar no papel de padrasto ou de madrasta não é fácil. Ninguém foi preparado ao longo
da vida até então para o exercício desse papel e função. A literatura na área aponta ser muitas
vezes mais difícil tornar-se madrasta. Como escreve Edward Teyber “a mulher que se casa com
um homem detentor da guarda dos filhos provavelmente terá pela frente uma boa dose de
conflito197”.
A psicóloga canadense Elizabeth Church foi feliz ao titular seu livro sobre a experiência
do papel de madrasta de Uma Estranha no Ninho. Diz ela: “em geral, a satisfação com o papel
de madrasta aumenta com o tempo. Os primeiros anos costumam ser difíceis e estressantes,
mas quem consegue sobreviver a essa etapa encontra uma nova formação familiar menos
turbulenta e se sente mais tranquila e capacitada para lidar com as demandas cotidianas do
novo grupo”198.
A chegada de uma madrasta ou de um padrasto na vida de uma criança na faixa dos 9
aos 15 anos mais ou menos é geralmente complicada, pois jovens nessa idade tendem a rejeitar
ou antagonizar com o novo companheiro(a) do pai ou da mãe. Frequentemente têm dificuldade
em aceitar serem cuidadas e educadas pelo padrasto/madrasta199.
Decididamente a família recomposta embute várias questões e vertentes complexas. O
recasamento de um dos pais, bem como o residir com ele(a) e seu novo(a) companheiro(a), traz
para o palco da família a convivência com novos atores familiares. Novos personagens entram
em cena, tais como ex-marido, ex-mulher, mulher do pai, marido da mãe, filho(s) do(s)
casamento(s) anterior(es), irmão do casamento atual... Some-se a isso tudo a questão do luto,
afinal uma família formada a partir de recasamento é uma família que se cria de perdas, sendo,
portanto, fundamental a elaboração dessas perdas.
Pelo acima exposto é praticamente quase impossível não haver crise de ajustamento e
conflito no edificar da família recomposta que na verdade é um reconstruir de família, com
novos membros com suas particularidades e características pessoais. Assim sendo, a expressão
de conflitos no âmbito da família recomposta surgente é praticamente inevitável, não sendo tais
conflitos, em princípio, um fator negativo grupal, mas sim a maneira e a forma de como se vai
lidar com eles.
Na transição da família nuclear tradicional para a família recomposta não é de se
esperar, ao menos no início, amor de um enteado pelo padrasto/madrasta ou vice-versa. Você
não é meu pai ou você não é minha mãe pode ser muito comum no principiar de uma família
recomposta ou recasada. A psicóloga Débora Cano et. al.200 da Universidade Federal de Santa
Catarina apresenta uma interessante pesquisa sobre a literatura a respeito da transição do
divórcio ao recasamento percebendo, inclusive, que ainda somos carentes de estudos e
investigações científicas mais aprofundadas e amplas, bem como da construção de novas
metodologias que possam dar conta de pesquisar e melhor entender as várias variáveis e
complexidades inerentes às famílias recompostas. Segunda ela o momento atual descortina
diferentes valores e neoformações familiares que merecem serem compreendidos à luz de seus
contextos e das novas realidades sociais contemporâneas.

197
Op. cit., pág. 200.
198
Pág. 286, Ed. Globo, 2005.
199
A psicóloga e pesquisadora gaúcha Denise Falcke, identificou que o maior drama que pode
subjetivamente vivenciar uma madrasta é ficar presa entre dois ideais: o da maternidade como expressão
de perfeição e o da madrasta como sinônimo de malvadeza (muitas vezes retratada nas fábulas infantis).
200
As Transições Familiares do Divórcio ao Recasamento no Contexto Brasileiro, disponível in:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79722009000200007#nt
88

“O segundo casamento é o trinfo da esperança


sobre a experiência”.
(Samuel Johnson201)

NOVAS GESTALS FAMILIARES

As ligações de amizade são mais fortes que as do sangue da família.


Giovanni Boccaccio202

201
Escritor e pensador inglês do século XVIII.
202
Poeta italiano do século XIV.
89

A partir da revolução industrial no final do século XVIII e começo do século XIX e,


principalmente, depois da revolução sexual da década de 60 do século XX, profundas mudanças
sociais ocorreram no Ocidente. Inevitavelmente tais mudanças também implicaram em
transformações no âmbito da família tradicional.
Atualmente tornou-se comum falar em novas configurações familiares ou novos
arranjos familiares. São expressões que revelam relações afetivas e de parentalidade que não
corresponde à família convencional então imperante até meados do século passado. Novas
texturas e tramas familiares passaram a conviver no cenário social conjuntamente à família
burguesa clássica203 (família nuclear intacta).
O divórcio e sua maior aceitação social é um dos maiores pilares das alterações
observadas nas atuais gestalts204 familiares. Cada vez mais a hegemonia da familiar nuclear nos
moldes tradicionais vai perdendo espaço para uma miscelânea de composições familiares
diversas. Talvez hoje fosse melhor falar não em família, mas em multifamílias.
O leque é vário e com tendência a ir aumentando. Temos atualmente o que se
convencionou chamar de família recasada ou recomposta, família monoparental, união
homoafetiva com filhos, binuclearidade, família composta, família anaparental, etc. Cada vez
mais nem toda família é matrimonial. Contemporaneamente as coisas estão ficando meio
enredadas. Temos sexualidade sem reprodução, temos paternidade sem sexualidade, temos
fraternidade sem consanguinidade, temos novas formas de conjugalidade... Tudo isso também
significa novas culturais e vivências familiares. Porém, seja qual for o modelo ou arranjo de
família, todas continuam buscando ser a família feliz de que falava Tolstói (todas famílias felizes
se parecem. As famílias infelizes são infelizes cada uma à sua maneira).
Segundo o IBGE, em seu último grande censo, a família nuclear tradicional (casal com
filhos) deixou de ser maioria, representando atualmente cerca de 49,9% dos domicílios
brasileiros. 50,1% representam outras variantes familiares, tais como casais homoafetivos, mães
sozinhas com filho(s), pai sozinho com filho(s), três ou mais gerações sob o mesmo teto, netos
morando com avós, famílias mosaico, etc. Isto tudo também acompanhado da queda da taxa de
fecundidade. O tamanho das famílias está diminuindo, ao tempo em que a diversidade tem
aumentado.
Nas últimas décadas para cá a sociedade tem mudado significativamente sua forma de
entender família, Hoje se compreende (e se aceita) que família vai além do vínculo
consanguíneo, e que está muito mais relacionada ao afetivo do que ao biológico. A dimensão
afetiva tomou relevo.
Casais homoafetivos passaram a se transformar em famílias homoafetivas, isto é, casais
homoafetivos com filhos. A adoção realizou-se dentro de um processo natural de formação
familiar. Todavia isto é juridicamente recente e questões ligadas à parentalidade em casais
homoafetivos ainda parece suscitarem dúvidas, perguntas e questões por parte da sociedade

203
Patriarcal, onde o marido/pai é o provedor único ou principal, cabendo à mulher o papel de esposa e
dona de casa.
204
Gestalt é uma palavra de origem alemã cuja tradução tem o significado de forma, figura, configuração.
90

em geral. A respeito disso temos o artigo de revisão da literatura científica sobre o tema
empreendido em 2016 pelas professoras do Instituto de Psicologia da Universidade do Vales do
Rio dos Sinos (RS), Marina Araldi e Fernanda Serralta, Parentalidade em Casais Homossexuais:
uma revisão sistemática205.

“O mais importante não é o objeto do desejo, mas o sentimento em si”.


(Gore Vidal206)

Com o reconhecimento jurídico da família homoafetiva como entidade familiar,


julgadores priorizam o vínculo afetivo independente do sexo dos adotantes. O nosso
ordenamento jurídico e a sociedade como um todo passou a legitimar a família como uma
sociedade de afeto, garantindo, assim, direitos e igualdade ao casamento entre pessoas do
mesmo sexo/gênero. Assim, ao retirar da biologia a prerrogativa do conceito de familiar nuclear,
deu-se ênfase não mais às figuras de mãe e pai, mas sim as funções materna e paterna,
independente dos arranjos familiares. Busca-se Respeitaram então as diferenças e igualizar os
direitos207.
Todavia ainda subsiste debate e querelas entre a parte mais conservadora da nossa
sociedade com a parte mais progressista. Escreve a psicóloga e terapeuta de familiar Maria
Regina Castanho França208 em seu artigo Famílias Homoafetivas:

“Diversas instâncias da sociedade estão envolvidas com o reconhecimento legal da união


estável entre pessoas do mesmo sexo, com a decorrente polêmica levantada pelos setores
mais conservadores da sociedade. Esse provável reconhecimento trará inúmeras
implicações psicológicas, sociais e culturais, tanto do ponto de vista individual quanto no
grupo familiar. Em primeiro lugar ‘tiraria das sombras’ o reconhecimento homoafetivo, que
ainda hoje é vivenciado por muitos indivíduos como algo a ser escondido; muitos indivíduos
e casais optam por ser invisíveis para a sociedade, o grupo cultural e profissional a que
pertencem e a própria família, para não sofrerem os efeitos danosos do preconceito ”.

205
Publicado em Psicologia em Pesquisa, vol. 10, nº 2, dezembro 2016, Disponível in:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1982-12472016000200005.
206
Escritor, dramaturgo e ativista político norte-americano.
207
No tocante as garantias jurídicas vide: A Adoção em Relações Homoafetivas, da advogada e doutora
em Ciências Sociais Maria Cristina Baranoski, disponível in:
http://books.scielo.org/id/ym6qv/pdf/baranoski-9788577982172.pdf.
208
Disponível in: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/psicodrama/v17n1/a03.pdf.
91

Preconceitos e intolerâncias ainda persistem, mas o reconhecimento jurídico tanto da


homossexualidade quanto das uniões homoafetivas contribui para paulatinamente ir
diminuindo discriminação, a incompreensão e o sectarismo.
Um grande questionamento que se tem feito em relação aos casais homoafetivos com
filhos é no tocante a criação destes e suas possíveis consequências ao seu desenvolvimento
psicossocial. Quanto a isto sustenta Maria Regina Castanho França:

“Existe uma grande preocupação referente à falta que faria uma figura masculina ou
feminina à criança adotada por um casal do mesmo sexo. Na realidade brasileira, de um
enorme contingente de famílias monoparentais, além da crescente diversidade familiar que
encontramos, essa questão perde sua relevância. Entretanto, podemos afirmar que os
papéis materno e paterno, de fato importantes para um bom desenvolvimento psicossocial
da criança, não estão mais diretamente associados à figura da mulher ou do homem, nem
mesmo nos casais heterossexuais atuais. Desempenha melhor a função materna e a paterna
o progenitor que mais se identifica com as tarefas associadas a estes papéis, seja homem
ou mulher. Diversas pesquisas americanas mostram que crianças que pertencem a famílias
homoafetivas desenvolvem mecanismos para lidar com o fato de terem dois pais ou duas
mães e que têm um bom ajustamento à situação. A Associação Americana de Psicologia
concluiu, após analisar inúmeras pesquisas, que ‘não há um único estudo que tenha
constatado que as crianças de pais homossexuais - gays e lésbicas – tenham qualquer
prejuízo significativo em relação a crianças de pais heterossexuais’”209.

Desse modo a questão não deve se focar ao sexo dos pais, mas sim à dinâmica da família,
isto é, como a família maneja e lida tanto internamente quanto externamente. Trabalhos de
pesquisa recentes demonstram que quando os filhos crianças são devidamente bem cuidados
não apresentam comprometimentos por terem sido criados em um ambiente familiar
homoafetivo. Em outras palavras, a parentalidade homoafetiva210 funcional não diverge da
parentalidade funcional heteroafetiva. O que importa é a eficiência da pessoa que exerce a
função, seja ela materna ou paterna. Da mesma forma que o exercício da função materna e/ou
paterna independe de ser a mãe ou o pai biológico, também o exercício dessas funções
independe do sexo dos envolvidos.

Outra configuração familiar bastante presente nas sociedades ocidentais dos dias atuais
é a família monoparental.
Uma família é considerada monoparental quando apenas um dos genitores da criança
cria o(s) filho(s). Pela ótica clássica da nuclearidade, trata-se de uma família nuclear incompleta,

209
Op. cit.
210
Sugerimos o artigo Parentalidade Homoafetiva: novas possibilidades de ser família, das psicólogas Isis
Cristine Pottker e Camila Biazus, publicado na Revista de Psicologia do IMED, disponível in:
https://dialnet.uririoja.es/descarga/articulo/5155050.pdf.
92

assim caracterizada pela ausência de um casal no exercício da parentalidade. Tal organização


familiar é reconhecida na Constituição Federal em seu artigo 226, parágrafo 4º211.
A inserção cada vez maior da mulher no mercado de trabalho tem contribuído para a
elevação do número de famílias monoparentais. A maioria dos lares monoparentais é chefiada
por mulheres. Segundo o IBGE (2017) 87,4% das famílias monoparentais são regidas por
mulheres212.
Em uma família monoparental, em tese, o exercício da função materna e paterna é
usualmente exercida pelo genitor único em momentos desenvolvimentais distintos, ou seja,
quando a criança é pequena a função materna se faz preponderante. Com o crescimento da
criança e a chegada da adolescência a função paterna se faz mais necessária e presente. Todavia,
outro membro familiar (tio, avô, por exemplo) pode complementar a função paterna ou
materna ao representar o papel de pai ou mãe. Afinal, lembremos, que o exercício das funções
parentais não está atrelado à consanguinidade. Qualquer pessoa pode substituir um pai ou uma
mãe biológica em suas respectivas funções. Remetemos, pois, o leitor ou leitora para o artigo
das psicólogas Sheila Hnediuk de Melo e Ângela Helena Marin, Influência das Composições
Familiares Monoparentais no Desenvolvimento da Criança: revisão de literatura213.

“Biológica ou não, oriunda do casamento ou não,


matrilinear ou patrilinear, monogâmica ou poligâmica,
monoparental ou poliparental, não importa.
Nem importa o lugar que o indivíduo ocupe no seu âmago,
se o de pai, se o de mãe, se o de filho;
o que importa é pertencer ao seu âmago,
é estar naquele idealizado lugar onde é possível integrar sentimentos,
esperanças, valores, e se sentir, por isso,
a caminho da realização de seu projeto de felicidade pessoal”.
(Giselda Hironaka214)

TERAPIA DE FAMÍLIA

Uma família sem uma ovelha negra não é uma família típica.
Heinrich Boll215

211
“Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus
descendentes”.
212
São várias as causas de a família monoparental ser chefiada por mulheres: seja viuvez, abandono,
separação, produção independente, gravidez indesejada.
213
Revista da SPAGESP, volume 17, nº 01, 2016, disponível in:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-29702016000100002#2a.
214
Doutora e Livre-Docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
215
Escritor alemão, Prêmio Nobel em 1972.
93

A história da terapia de família é mais ou menos recente, porém sua gestação e evolução
data já de certa longa data. Freud, por exemplo, no início do século XX fazia menção de que se
devia prestar atenção às condições sociais dos portadores de distúrbio mental, sobretudo para
às suas relações familiares. O médico e psicanalista austríaco Alfred Adler, contemporâneo de
Freud, deu ênfase de que grande parte das doenças psíquicas tem origem nas relações
interpessoais. O psiquiatra norte-americano Harry Sullivan foi outro a associar sociologia com
psicologia, fundando na década de 50 do século passado a denominada Teoria Interpessoal da
Personalidade.
Um grande passo para o surgimento das terapias de família foi dado pelo antropólogo
de origem inglesa Gregory Bateson que trabalhou nos Estados Unidos no Instituto de Pesquisa
Mental de Palo Alto na Califórnia (Escola de Palo Alto), cujo principal enfoque era a
esquizofrenia, ou melhor, a comunicação do paciente esquizofrênico.
A terapia de família propriamente dita surgiu na década de 1950 nos EUA. Com os
trabalhos pioneiros de Escola de Palo Alto um novo e frutífero campo passou a surgir no campo
da psicologia e psiquiatria com a mudança de foco da prática terapêutica centrada no indivíduo
para os processos intrapsíquicos, principalmente os existentes no ambiente familiar216.
A expansão das terapias familiares foi rápida a partir de então. Várias escolas e
abordagens surgiram, sendo as mais conhecidas o enfoque sistêmico, a psicanalítica, a terapia
estrutural, a terapia familiar estratégica, constelação familiar, entre outras.

MODELO SISTÊMICO

216
Com vistas à evolução histórica das terapias de família vide artigo da psicóloga carioca Andréa Vogel
intitulado Um Breve Histórico da Terapia Familiar Sistêmica, disponível in:
http://132.248.9.34/hevila/IGTnarede/2011/vol8/no14/8.pdf.
94

Nos anos 40 do século XX 217 nos EUA o biólogo austríaco Ludwig Von Bertalanffy
desenvolveu a chamada Teoria Geral dos Sistemas (TGS). Com base nessa concepção teórica a
família é vista como um sistema aberto com interações tanto extrafamiliares (meio ambiente,
comunidade, outras famílias) quanto intrafamiliares (entre seus membros). Neste sentido, o
comportamento de um dos membros familiares influencia os demais e é pelos outros
simultaneamente influenciado. Von Bertalanffy definia o sistema como complexos de elementos
em interação. Segundo ele, trata-se de um conjunto de componentes que interagem por
objetivos comuns e, assim, formam um todo. Cada um dos elementos componentes comporta-
se, por sua vez, como um sistema cujo resultado é maior que a soma dos resultados de cada
parte. Com tal modelo Von Bertalanffy propôs analisar, além dos sistemas em geral, os grupos
sociais nos quais a comunicação entre os membros representa a interação de elementos com
propósitos de organização, equilíbrio e regulação.
Com base na Teoria Geral dos Sistemas, e igualmente considerando a família como um
sistema, busca-se melhor compreender o funcionamento de uma dada família (sistema familiar).
Por essa perspectiva, conforme a terapeuta Vera Lucia Lamanno Calil, “toda e qualquer parte de
um sistema está relacionada de tal modo com as demais partes que, mudança numa delas
provocará mudança nas demais e, consequentemente, no sistema total. Isto é, um sistema
comporta-se não como simples conjunto de elementos independentes, mas como um todo coeso,
inseparável e interdependente. Dessa maneira ‘distúrbio mental’, quando aparece, é parte
integral das interações recíprocas entre os membros da família que operam como um sistema
total218”. Assim sendo, podemos entender que um sistema só funciona através da interação
entre as partes que formam, assim, padrões interacionais que transcendem as qualidades dos
membros individuais.
A lógica básica das terapias sistêmicas se resume na seguinte frase: é preciso reunir para
compreender. Com isso, a abordagem psicoterápica fundada na teoria sistêmica visa não apenas
mudar positivamente o paciente (indivíduo), mas o grupo social primário a quem ele pertence
(família), mediante uma reorganização comunicacional entre seus membros. O foco terapêutico
é o aqui-agora familiar, isto é, o modo como os familiares se comunicam entre si no momento
presente.
Outro elemento bastante empregado nas terapias sistêmicas é a causalidade circular,
isto é, as relações familiares são repetitivas e recíprocas, de maneira que um comportamento
de A provoca uma resposta em B que, por sua vez, estimula A uma contraresposta. O que afeta
um afeto o outro que afetado também afeta quem lhe afetou (feedabck219).

Outro importante conceito operacional da Teoria Sistêmica é o conceito de homeostase,


que é entendida como um processo de autorregulação que mantém a estabilidade do
preservando seu funcionamento. O psiquiatra norte-americano Don Jackson em 1954 definia a
homeostase familiar como um estado constante ou estabilidade de um sistema, o qual é
geralmente mantido por mecanismos de retroalimentação negativa220.

217
Mais precisamente a partir de 1937.
218
Terapia Familiar e de Casal, pág. 17, ed. Summus, 1987.
219
Trata-se de uma retroalimentação. Segundo o modelo sistêmico a família é encarada como um
circuito que se retroalimenta. Assim, a relação causa-efeito deixa de vista como linear e passa a ser vista
como circular, ou seja, uma ação que gera uma reação e que provoca outra ação.
220
O feedback negativo é quando o sistema utiliza-se de mecanismo para a manutenção de um
determinado status quo ou determinado ponto de equilíbrio e estabilidade. Como escrevem Michael
95

Pelo acima exposto, a terapia familiar sistêmica busca mudança no sistema familiar,
através de uma reorganização comunicacional entre os membros. Isso se faz mediante um
processo de recodificação das mensagens e de uma melhor compreensão da rede de
comunicação do grupo familiar. Um terapeuta sistêmico, pois, focaliza o sistema familiar como
se apresenta, isto é, como seus membros interagem no instante da sessão. Através de perguntas
circulares auxiliam cada pessoa da família a aumentar sua perceptibilidade e com maior clareza
ver e entender sua relação com os demais familiares. As intervenções pontuais sobre cada
membro não visa o intrapsíquico em termos verticais, porém o interpsíquico em temos não
apenas horizontais, porém circulares (retroalimentação).
É comum, quase regra geral, que quando uma família procura uma ajuda psicoterápica
assim a faça por causa de um membro familiar específico (bode expiatório221). Geralmente, ou
na maioria das vezes, o motivo da consulta é um filho ou uma filha, podendo ser também díades
ou tríades. Neste sentido a doutora em Psicologia Clínica e professora da Faculdade de Medicina
de São José do Rio Preto (SP), Maria Luiza Piszezman222, lista cinco premissas básicas do enfoque
sistêmico, a saber:

1. O comportamento individual é função do comportamento dos outros indivíduos


com os quais mantém relações. Se o comportamento de um se altera igualmente se
altera o comportamento do outro;
2. Os indivíduos são membros de um sistema;
3. Os membros de um sistema significam suas condutas;
4. Um sistema se organiza em torno de dois eixos: interdependência e hierarquia;
5. Um sistema vive no interjogo de duas tendências opostas: uma que visa à mudança
e outra que visa à permanência.

Dentro do enfoque sistêmico foram desenvolvidas abordagens diversificadas, sendo as


mais relevantes a Terapia Familiar Estrutural e a Terapia Familiar Estratégica. A primeira é

Nichols, Richard Schwartz, em Terapia Familiar: conceitos e métodos (op. cit.) denominar o feedback
negativo não significa fazer algo negativo, mas sim que o sistema necessita fazer algo para corrigir algum
desvio de rota. Dão como exemplo o sistema de aquecimento de uma casa quando a temperatura cai
abaixo de certo ponto. Nesse instante é acionado o termostato que volta a aquecer o ambiente. Trata-se,
portanto, de uma resposta do sistema (circuito autocorretivo) à mudança, com vistas a restaurar um
estado prévio.
221
Também denominado de paciente identificado. Representa, através de sua enfermidade, uma espécie
de sintoma familiar, isto é, entende-se que grande parte dos transtornos mentais individuais possa ser
consequência de um transtorno sistêmico cuja homeostase se mantém no adoecer de um membro. É
como se para não adoecer sistemicamente adoece-se uma parte. A disfuncionalidade de uma dada família
é mantida com roupagens superficialmente funcional por meio de um problema individual ou
subsistêmico. É como se uma família doente “elegesse” uma parte para adoecer e, assim, representar a
própria doença do grupo familiar. Conflitos e dificuldades, desse modo, são deslocados para o bode
expiatório (paciente identificado).
222
Terapia Familiar Breve: uma abordagem, ed. Casa do Psicólogo, 1999.
96

contribuição principal de Salvador Minuchin e a segunda de Jay Haley. Outras abordagens


também importantes desenvolvidas a partir do olhar sistêmico sobre a família foram a Terapia
Familiar Experimental, a Terapia Familiar Boweniana e a Terapia Familiar Comportamental, que,
conjuntamente à Terapia Familiar psicanalítica, trabalham terapeuticamente às famílias como
um processo de interação entre as partes.

“Todas as partes de um organismo formam um circuito.


Portanto, toda parte é começo e fim”.
(Hipócrates223)

TERAPIA ESTRUTURAL

Salvador Minunchin assim abriu seu livro Famílias e Casais: do sintoma ao sistema224,
escrito conjuntamente outros autores: “os pioneiros da terapia familiar nos ensinaram a ver
além das personalidades individuais, percebendo os padrões que fazem delas uma família – uma
organização de vidas interconectadas por regras definidas, mas não verbalizadas (pág. 16)225”.
Famílias, dizia Minunchin, compartilham regras veladas, ou seja, não escritas ou faladas.
Tais regras regem os tipos de interação permitidos entre os membros familiares, Neste sentido,
as regras são reguladores das condutas familiares. Conhecer as regras é conhecer a estrutura
em que se baseia o funcionamento familiar.
Uma família, afirmava Minunchin, é um sistema que opera através de padrões
transacionais, sendo a estrutura familiar um conjunto invisível de exigências funcionais que
organizam e as maneiras pelas quais os membros da família interagem. Trata-se, portanto, de
uma abordagem terapêutica que visa modificar as regras disfuncionais que regem uma
determinada família.
Em 1961 Minunchin publicou seu mais importante livro, Family Therapy Techniques226,
onde lista três fases do processo de terapia familiar. Inicialmente cabe ao terapeuta se aliar à
família em uma posição de liderança. Em seguida mapear a estrutura subjacente que dá

223
Viveu na Grécia entre os anos 460 a.C. e 370 a.C., é considerado o Pai da Medicina.
224
Ed. Artmed, 2009.
225
Introdução: um modelo de quatro etapas para acessar famílias e casais, disponível in:
http://srvd.grupoa.com.br/uploads/imagensExtra/legado/M/MINUCHIN_Salvador/Familias_Casais_Sint
oma_Sistema/Liberado/Cap_01.pdf.
226
Técnica de Terapia Familiar, ed. Artes Médicas, 1990.
97

sustentação àquela família, para, então, finalmente intervir com objetivos de modificar essa
estrutura através de mudanças nas interações entre os membros da família.
Na abordagem estrutural o terapeuta toma postura mais ativa e o foco é a resolução de
problemas no contexto de famílias que se apresentam disfuncionais. Busca corrigir hierarquias
disfuncionais diferenciando os subsistemas e melhorando a nitidez dos limites e fronteiras 227
entre eles.
Considerando que um indivíduo é subparte de um contexto sistêmico ao qual pertence,
o terapeuta estrutural vê o indivíduo psicologicamente doente como uma expressão (sintoma)
de uma problemática contextual (sistêmica). Tal atitude por parte do terapeuta o leva a
trabalhar com vistas a debelar a tendência da família de se concentrar no membro problemático
ao invés de ela mesma (família) lidar de frente com seus conflitos e impasses.
A guisa de exemplo, sugerimos o texto A Entrevista na Terapia Familiar Sistêmica:
pressupostos teóricos, modelos e técnicas de intervenção, da psicóloga e terapeuta gaúcha
Eliana Piccoli Zordan et. al228.

TERAPIA FAMILIAR ESTRATÉGICA

Acidentes acontecem até nas melhores famílias.


Charles Dickens229

O desenvolvimento da terapia estratégica deve a nomes norte-americanos como Jay


Halley, Don Jackson, Milton Erickson e Gergory Bateson, entre outros. Outra grande fonte de
influência foi o Mental Research Institute (MRI), instituição de pesquisa em área de saúde
mental criado nos EUA em 1958.
Dentro da ótica sistêmica a terapia estratégica também entende a família como um
sistema em funcionamento, tendo como foco terapêutico a resolução de problemas. Com base
na Teoria Geral da Comunicação criada a partir da Escola de Palo Alto (EUA), as pessoas estão
sempre se comunicando.

227
A função das fronteiras intrasistêmicas é proteger a diferenciação dos subsistemas (conjugal, parental,
filial, fraterno, etc.) Para que um sistema seja funcional é necessário que as fronteiras entre os vários
subsistemas que o compõe sejam menos rígidas ou difusas, ou seja, que as fronteiras seja mais
delimitadas e nítidas.
228
Disponível in: http://www.uricer.edu.br/site/pdfs/perspectiva/136_314.pdf.
229
O mais popular escritor inglês do século XIX, autor de obras de sucesso como Oliver Twist, David
Copperfield e Christmas Carol (Um conto de Natal).
98

O modelo estratégico entende que os problemas familiares geralmente se desenvolvem


devido a três causas, a saber:

- soluções mal orientadas se transformam em problemas crônicos;


- os problemas são consequência de hierarquias inadequadas;
- problemas surgem quando as pessoas tentam se proteger ou controlar de forma
encoberta ou latente. Por isso, os sintomas têm função sistêmica.

Tal abordagem leva o nome de estratégica devido ao fato de o terapeuta definir


objetivos claros e precisos a serem alcançados, voltados à resolução de problemas. Assim, o
papel do terapeuta é ativo, sendo ele um agente de mudança, isto é, responsável pela promoção
da estratégia utilizada. Cabe, pois, ao terapeuta identificar problemas solúveis, definir metas,
planejar intervenções, examinar as respostas e reações às intervenções, e avaliar o resultado.
Neste sentido, fica-se evidenciada a função do terapeuta como condutor do trabalho, devendo
o mesmo assumir as rédeas do processo terapêutico.
O foco do trabalho terapêutico é, portanto o sintoma. O sintoma é o problema a ser
resolvido. Não cabe, entretanto, ao terapeuta resolver diretamente o problema, mas sim
entendê-lo e formulá-lo claramente à família para que ela saiba como solucioná-lo. Segundo
Haley, um sintoma é uma cristalização de uma sequência. Mostrando às pessoas envolvidas tal
sequência, pode se propiciar novas formas de pensar dentro do contexto terapêutico. Desse
modo a principal tarefa da terapia estratégica reside em identificar e modificar a sequência
atitudinal que resulta no sintoma. Não basta entende a dinâmica, mas mudá-la.
Como contido no artigo A Perspectiva Sistêmica para a Clínica da Família230, da psicóloga
e professora da UNB Liana Fortunato Costa, trata-se de uma abordagem pragmática
fundamentalmente voltada à clínica. Para cada problema é criada uma estratégica específica
para abordá-lo.

“Acreditar na família é construir o futuro”.


(João Paulo II231)

FUTURO

230
Psicologia: Teoria e Pesquisa, vol. 26, 2010, Disponível in:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722010000500008#tx.
231
Nome papal de Karol Józef Wojtyła, eleito papa da Igreja Católica em 1978.
99

Se queres prever o futuro, estuda o passado.


Confúcio232

Alguém já disse que terapia de família se aprende fazendo. Cada vez mais,
principalmente agora com as inúmeras e aceleradas mudanças sociais, necessitamos continuar
aprendendo frente aos inúmeros desafios que o século XXI nos oferece no âmbito da família e
de suas novas configurações.
A Humanidade não terminou seu caminhar. Novos problemas se sobrepõem a velhos
problemas humanos. Avançamos em conhecimentos e tecnologias, contudo o ser humano ainda
continua sendo ser humano, com todas suas fragilidades, vulnerabilidades, neuroses, conflitos
e contradições.
Os terapeutas contemporâneos herdam, portanto, todo um patrimônio construído nas
últimas décadas a partir dos anos 50 do século XX, e todo esse acervo até então concebido se
encontra ainda em construção.
Hoje a terapia de família já é uma prática estabelecida e reconhecida, assunto e tema,
inclusive, das grades curriculares acadêmicas. O espaço foi aberto, mas o caminho não se
encontra concluído. São muitas ainda as trilhas e veredas a serem descobertas e exploradas.
Ainda nos anos 80 do século passado o escritor futurista norte-americano Alvin Toffler
assim descrevia:

“Vejo a sociedade evoluindo para um período em que brotam, florescem e são aceitas
muitas diferentes estruturas de família. Seja a cabana eletrônica, com papai, mamãe e filho
trabalhando juntos ou um lar de um casal onde cada qual com sua carreira, ou único
progenitor, ou uma dupla de lésbicas criando uma criança, ou uma comuna ou qualquer
número de outras formas, haverá pessoas vivendo nelas, o que sugere uma variedade muito
mais ampla de relacionamento homem e mulher do que existe hoje233”.

Aquele futuro dos anos 80 já chegou ou está quase chegado. Somos já uma era de bebês
de proveta (fecundação in vitro) e barrigas de aluguel, casamentos homoafetivos (segundo IBGE
em 2017 foram 5887), mais de 11 milhões dos lares brasileiros são de famílias uniparentais
(fonte: IBGE) e a chamada produção independente está se tornando lugar-comum. O que antes
era do âmbito da ficção científica agora se torna realidade. Em breve, quem sabe, homem
poderá gerar filhos. Talvez um dia a família acabe - desde que o ser humano consiga nascer já
pronto à sobrevivência. Talvez... Mas, até lá, continuará existindo famílias seja em que forma,
formato e organização forem. Prosseguirá o ser humano em suas dificuldades adaptativas,
conflitos, paradoxos e sofrimentos. Permanecerá, ainda por muito tempo, a necessidade de se

232
Filósofo e pensador chinês que viveu em meados dos séculos VI e V a.C.
233
Apud Manual de Terapia Familiar, Luiz Carlos Osório e Maria Elizabeth P. do Valle, pág. 24, ed. Artmed,
2009.
100

buscar ajuda e auxílio. Seguiremos construindo modelos de abordagens terapêuticas familiares.


Assim caminha a Humanidade.

Conceitos como saúde e doença, felicidade e amor, lar e família, também mudam com
o desenrolar da vida e do tempo. O que hoje leva pessoas aos consultórios clínicos de psicologia
amanhã pode não ser mais demanda, assim como novas urgências e solicitações serão
necessidades.
Provavelmente iremos caminhar para um momento mais pluralista e menos escolástico,
isto é, que a Psicologia como um todo será um campo teórico-prático de articulações de vários
saberes e enfoques. Parece que muito em breve já estaremos prontos para criar uma
abordagem onde o estudo dos fenômenos psicológicos seja encarado sob um prisma ampliado
de diversas perspectivas. Como argumenta o psicólogo norte-americano Ken Wilber234, o grande
problema da psicologia, do modo como ela tem se desenvolvido historicamente, é que, em sua
maior parte, diferentes escolas de psicologia levaram em conta apenas um desses aspectos do
fenômeno extraordinariamente rico e multifacetado da consciência e anunciaram que se tratava
do único aspecto que merecia estudo (ou até mesmo que se tratava do único aspecto que de
fato existia).
O pluralismo em psicologia, todavia, não é sinônimo de puro ecletismo ou junção de
multiplicidades e fragmentos em um balaio só. É diálogo, articulação e integração. Aquilo que o
professor da Universidade de Alberta no Canadá, Joseph Royce, denomina de dialética
construtiva. Diversidade e convergência. Este demonstra ser o futuro mais próximo.

“O futuro dependerá daquilo que fazemos no presente”.

234
Psicologia Integral, pág. 15, ed. Cultrix, 2007.
101

Mahatma Gandhi235

LEITURAS COMPLEMENTARES

Concepções de Família e Práticas de Intervenção: uma contribuição antropológica, Cláudia


Fonseca, disponível in: https://www.scielosp.org/scielo.php?pid=S0104-
12902005000200006&script=sci_arttext&tlng=en.

Da Família à Família Nuclear Burguesa: uma perspectiva histórica e social, Maria Beatriz
Nader, disponível in: http://www.periodicos.ufes.br/dimensoes/article/view/2229/1725.

Família e Ciclo Vital: a fase de aquisição, Juliana Ronchi e Luziane Avellar, disponível in:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/per/v17n2/v17n2a04.pdf.

Amor, Casamento e Sexualidade: velhas e novas configurações, Maria de F. Araújo, disponível


in: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1414-98932002000200009&script=sci_arttext&tlng=es.

Amores Fáceis: romantismo e consumo na modernidade tardia, Sérgio Costa, disponível in:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-33002005000300008&script=sci_arttext.

Construção e Dissolução da Conjugalidade: padrões relacionais, Terezinha Féres-Carneiro e


Orestes Diniz Neto, disponível in: https://www.redalyc.org/html/3054/305423778014/.

235
Idealizador e fundador do atual Estado Indiano, defensor do princípio da não-agressão (Satyagraha).
102

Paternidade: considerações sobre a relação pais-filhos após a separação conjugal, Cristina


Dantas, Bernardo Jablonski e Terezinha Féres-Carneiro, disponível in:
https://www.redalyc.org/html/3054/305425355010/

Uma Criança em Busca de uma Janela: função Materna e trauma, Silvia Zorning e Lídia Levy,
disponível in: http://www.periodicos.usp.br/estic/article/view/118000/115625.

O Nascimento do Segundo Filho e as Relações Familiares, Cesar Piccinini et all., disponível in:
https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/20544.

Relação Conjugal na Transição para a Parentalidade: gestação até dezoito meses do bebê,
Clarissa Menezes e Rita Lopes, disponível in: https://www.redalyc.org/pdf/4010/401041439010.pdf.

Definições, Dimensões e Determinantes da Parentalidade, Ricardo Barroso e Carla Machado,


disponível in: http://impactum-journals.uc.pt/psychologica/article/view/996/445.

Responsividade e Exigência: duas escalas para avaliar estilos parentais, Fabiana T. da Costa et.
all., disponível in: http://www.scielo.br/pdf/prc/v13n3/v13n3a14.

Novas Configurações Familiares: mitos e verdades, Paulo Roberto Ceccarelli, disponível in:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/jp/v40n72/v40n72a07.pdf.

Terapia de Família, Heloisa S. Ribeiro Gomes, disponível in:


http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1414-98931986000200011&script=sci_arttext&tlng=pt.

A Trajetória da Família do Portador de Sofrimento Psíquico, Vânia Moreno e Márcia Alencastre,


disponível in: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v37n2/06.

Você também pode gostar