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OS SUBTERRÂNEOS DA FAMÍLIA
A DINÂMICA FAMILIAR
E SUAS SUBJETIVIDADES
SUMÁRIO
SEPARAÇÃO CONJUGAL....................................................................... 47
DISSOLUÇÃO DA CONJUGALIDADE...................................................... 47
FILHOS DO DIVÓRCIO........................................................................... 50
ALIENAÇÃO PARENTAL......................................................................... 54
LEGADOS OCULTOS............................................................................... 73
O PSIQUISMO FAMILIAR........................................................................ 76
MITOS E SEGREDOS FAMILIARES........................................................... 78
A ESTRUTURA DA FAMÍLIA..................................................................... 81
A FAMÍLIA RECOMPOSTA........................................................................... 85
TERAPIA DE FAMÍLIA.................................................................................. 93
MODELO SISTÊMICO............................................................................... 93
TERAPIA ESTRUTURAL............................................................................. 96
TERAPIA FAMILIAR ESTRATÉGICA............................................................ 98
FUTURO.................................................................................................... 99
3
FAMÍLIA:
UM BEM OU UM MAL NECESSÁRIO
1
Nascida Marie Josephine de Suin, titulada Condessa Diane de Beausacq, foi uma escritora francesa do
século XIX que assinava sob o pseudônimo de Condessa de Diane.
2
Presença de características primitivamente larvais ou embrionias (juvenis) em um organismo adulto.
3
Divindade que personifica a alma humana.
4
Por se tratar de uma época em que os seres humanos se destacaram dos demais animais por produzirem
artefatos em pedra lascada.
4
era praticamente impossível alimentar e criar filhotes, se proteger e buscar sua própria
sustentação. Se o núcleo básico natural era mãe e filho, a sobrevivência de tal núcleo requeria
outros que auxiliassem a conservação da vida da própria relação. Temos, então, aí o princípio
rústico e fundamental do que hoje chamamos de família: grupo social primário de sobrevivência.
Neste sentido podemos considerar que a família é um fenômeno universal proveniente da
fragilidade da própria condição humana, embora as organizações familiares possam e mudem
de cultura para cultura, de momento histórico para momento histórico. A família, portanto, é
tanto um acontecimento universal (base biológica) quanto sociocultural.
5
Ed. 70 (Portugal), 2009.
6
Ed. Presença, 1974.
5
Observa-se, com o desenho acima, que a definição do átomo do parentesco teve seu
eixo modificado com a introdução de outro homem (triângulo à direita), representando a aliança
como elemento fundante do parentesco. Neste tocante Lévi-Strauss desnaturaliza a base
familiar (afasta-se do puramente biológico) incluindo o representante masculino de outro grupo
(clã), tendo a fêmea um significado de troca em busca do fortalecimento de um clã ao se aliar
com outro clã. Na luta evolutiva pela sobrevivência esse arranjo entre clãs fortaleceu quem
assim o fez, criando-se dessa forma a relação de afinidade, além da consanguinidade. Para o
referido antropólogo é mediante a troca de mulheres que se dá a ligação dos elementos sociais
do parentesco. Neste sentido a constituição da família deixa de ser meramente um fenômeno
biológico e passa a ser também cultural ao pressupor a existência prévia de dois grupos (clãs)
que se aliam através do casamento fora de seu próprio grupo, isto é, transcende-se da
endogamia à exogamia8. Com isso Strauss reconhece que o parentesco envolve relações além
da consanguinidade que são as relações de afinidade (aliança).
Segundo, portanto, a Antropologia Estruturalista, o casamento interrompe a
naturalização da relação mãe-filho ao estabelecer a figura do pai, assim como as regras de
acasalamento instituem o tabu do incesto (relação sexual entre pais e filhos e entre irmãos).
Ambos, o tabu ao incesto e o casamento entre clãs (exogamia) estabelece, pois, o império do
7
Ed. Vozes, 1980.
8
Endogamia (endo = dentro, gamia = casamento) significa acasalamento entre indivíduos do mesmo
grupo familiar biológico (consanguinidade), enquanto exogamia (exo = fora, gamia = casamento) significa
acasalamento entre indivíduos fora do grupo familiar, isto é, entre indivíduos não aparentados pela
consanguinidade.
6
sociocultural sobre o biológico. Vide o artigo O Tabu do Incesto e os Olhares de Freud e Levi-
Strauss, de Andrea Mello Pontes9.
A formação da família e sua evolução histórica ao longo dos tempos se confundem com
a história do próprio ser humano. Não há ser humano sem alguém que lhe cuide na infância.
Não há relação humana entre quem cuida e quem é cuidado que não haja em seu entorno
alguém, ou grupo de alguéns, que lhe cuide, proteja, auxilie e tome conta. Família, como grupo
de pessoas que se incumbe da criação da prole ou ninhada, é intrinsicamente tão natural,
biológico e ao mesmo tempo tão humano quanto inescapável. Para o bem ou para o mal a
família é sempre necessária, básica, fundamental, vital e necessária.
9
Disponível in:
http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/dezembro2013/sociologia_artigos/pontes_artig
o.pdf
10
Vem daí a expressão jurídica moderna de pátrio poder. O Código Civil Brasileiro de 2002 modificou a
expressão para poder familiar.
7
Para uma visão mais ampliada da evolução da família ao longo da história humana
sugerimos o texto Transformações da Família na História do Ocidente, da socióloga e professora
universitária portuguesa Maria Engrácia Leandro11.
11
Disponível in: https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/12875/1/leandro.pdf.
12
Escritor francês do século XIX, cujas obras figuram como as mais importantes da literatura, entre elas A
Divina Comédia, A Mulher de Trinta Anos e As Ilusões Perdidas.
8
A socióloga e pesquisadora social argentina Elizabeth Jelin, em seu livro Pan y Afectos15,
explica que “la unidad familiar no es um conjunto indiferenciado de indivíduos. Es una
organización social, un microcosmos de relaciones de producción, de reproducción y de
distribución, con una estructura de poder y con fuertes componentes ideológicos y afectivos que
cementam essa organización y ayudan a su persistência y reproducción” (pág. 26). Assim, o
ambiente doméstico da família é um foro privilegiado e legítimo para expressar tanto as
13
Filósofo e escritor francês, um dos mais marcantes pensadores do século XX.
14
Ed. Artes Médicas, 1996.
15
Ed. Fondo de Cultura Económica de Argentina, 1998.
9
16
Em termos de funcionalidade é esperado que a família seja um espaço gerador de afetos (alimentos
afetivos); que proporcione proteção, segurança e aceitação pessoal; dê apoio emocional e material e que
atenda às necessidades básicas humanas; que propicie estabilidade e socialização.
17
O que nos interessa, psicologicamente, são os afetos e como eles circulam e se interagem no seio do
ambiente interpessoal familiar. Psicologia é, acima de tudo, o estudo dos afetos e dos desejos, entre
outras coisas. Por isto não devemos desconsiderar o chamado “parentesco sócio afetivo”, como é o caso,
por exemplo, dos “irmãos de criação” e de pessoas que nas quais temos tanta vinculação afetiva que as
consideramos como uma “mãe” ou como um “irmão”.
10
Família não é apenas um conjunto de pessoas, mas sim uma estrutura. Tal estrutura
é representada pela forma como se organiza o grupo e como interagem entre si seus membros.
E é neste conjunto invisível de exigências e funções que tanto se organiza as relações
socioafetivas de seus membros quanto se forma a personalidade individual e se influencia a
personalidade de cada um. A família, psicologicamente falando, é o pilaste de sustentação do
sujeito humano.
A família tem, pois, como função primordial contribuir para a saúde física e mental dos
indivíduos nela habitantes, principalmente às crianças que junto ao seio familiar estão se
desenvolvendo. De um modo geral a família é o primeiro grupo social da criança, razão pela qual
ela (família) assume a socialização primária do infante, bem como seu fundamental papel que é
o da afetividade. Um bebê, por exemplo, não necessita apenas de proteção e nutrientes, mas
também de afetos e cultura. E, como veremos mais adiante, a família desempenha esta essencial
função psicossocial que é a de intermediar a criança e a sociedade.
18
Ed. Saraiva, 2002.
19
Dramaturgo inglês, que viveu entre os anos 1564-1616, considerado o maior escritor da língua inglesa
e o mais destacado dramaturgo da história do teatro.
11
O NUCLEO DA FAMÍLIA
Em termos antropológicos vimos que a família natural é aquela constituída pela fêmea
e sua prole (mãe e filhos). Porém em termos biopsicossocial a família é mais ampla, contendo
outros membros (parentes). Nesta lógica o núcleo21 de uma família em sua totalidade de
parentesco (família nuclear) é o conjunto de mãe-pai-filho(s).
A família nuclear nestes termos é a também chamada família tradicional, família
burguesa ou família simples. Em sua forma mais elementar a família nuclear é especificada como
um casal com filho(s). Mais precisamente um casal com filho(s) morando sob o mesmo teto.
Embora o conceito de família nuclear (pais e filhos na mesma casa) não seja mais
suficiente para os dias atuais22, devido inclusive a diversos novos arranjos domésticos, ainda há
algo de idealizado e expectado em sua formatação. Como escreve a psicóloga e doutora em
Psicologia Social, Adriana Wagner, no âmbito das diversas mudanças sociais surgidas nas
décadas recentes, pode-se dizer que “a pluralidade de arranjos familiares pode ser considerada
como uma das características mais marcantes destes novos tempos: divórcio, recasamentos,
uniões homoafetivas, adoção, pais e mães solteiros, poliamor, entre tantas outras, são
configurações relacionais que têm aparecido e passam a conviver com o modelo tradicional da
família nuclear. Esse cenário acaba por demandar uma postura mais flexível, que permita
integrar novas formas de ser família23”.
A família frequentemente idealizada corresponde a uma família harmônica e coesa, vista
como um lugar de refúgio e paz. Tal família platônica e pura encontra eco nas famílias dos
comerciais televisivos, a chamada família margarina. A “verdadeira” família feliz de que tanto
falou o russo Leon Tolstói. Todavia, a família nuclear idealizada (pais e filhos sempre felizes) não
20
Escritor e humorista, autor de livros como O Analista de Bagé e A Velhinha de Taubaté.
21
Em termos celulares o núcleo é a região da célula onde se encontra o material genético (DNA) dos
organismos. Por extensão, o núcleo é o elemento que ocupa a posição central de uma estrutura.
22
Segundo o Censo 2010 do IBGE, 16% das famílias brasileiras têm formação não tradicional. Verifica-se,
cada vez mais, a elevação no número de famílias monoparentais, unitárias (pessoa sozinha), diádicas
(casal sem filhos, também denominadas de família nuclear incompleta), recompostas ou recasadas, etc.
23
Desafios Psicossociais da Família Contemporânea: pesquisas e reflexões, págs. 99/100, ed. Artmed,
2009.
12
24
A Mulher do Pai: essa estranha posição dentro das novas famílias, ed. Summus, 2007.
25
Um dos maiores escritores da literatura universal, autor do clássico romance Guerra e Paz. A frase citada
é a abertura do seu livro Anna Karenina, provavelmente a mais famosa abertura literária de todos os
tempos.
13
unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive
e mantém vínculos de afinidade e afetividade. A família extensa é ainda comum em regiões
rurais e menos nos grandes centros urbanos onde predomina a família nuclear e a família
monoparental.
Outro termo bastante empregado na literatura específica sobre o estudo das famílias é
o de família ampliada. A família ampliada representa a família alargada além dos limites de
coabitação. Exemplo: um tio que não mora com um sobrinho faz parte da sua família ampliada.
A expressão família ampliada, portanto, agrega o conjunto dos parentes (parentela)26.
26
Denomina-se ainda família de origem. Família de origem é a antiga família nuclear do filho(a) quando
este(a) não mora mais lá. Também existe a chamada família binuclear, sendo esta oriunda do divórcio
onde os filhos possuem, assim, dois lares, quando os pais permanecem corresponsáveis pelos cuidados
parentais. Existe ainda, porém sem amparo legal, o que se convencionou denominar de família
poliafetiva, que ocorre entre pessoas que mantém simultaneamente relações de afeto paralelas com dois
ou mais indivíduos que se conhecem e se aceitam uns aos outros,
27
Poeta satírico italiano do século XIX.
14
Centremos nossa atenção na família nuclear tradicional: casal com filho(s). Como grupo
social a família nuclear tem seus papéis sociais. O papel social é definido como um conjunto de
normas e expectativas que condicionam o comportamento dos indivíduos pertencentes ao
grupo, não tanto em conformidade com as características pessoais de cada indivíduo, mas pelo
que se espera de quem ocupa determinada posição social. Sociologicamente falando o papel
social é aquilo que se espera de alguém que tem um estatuto social. Neste sentido se pode dizer
que o papel social tem o status do papel e o exercício ou desempenho do mesmo (função).
O papel social é um conceito da Sociologia que, de maneira geral, determina a posição
e função dos indivíduos na sociedade. Cada papel social agrupa um conjunto de normas, regras,
comportamentos e deveres de cada indivíduo na estrutura social a que pertencem.
Podemos distinguir no papel social status e função. Quem, por exemplo, exerce o papel
social de professor detém um status: o status de ser professor. Quem exerce o papel social de
professor empreende a função de ser professor que é o de ensinar e educar. Todavia nem
sempre status e função atuam juntos. Expliquemos melhor. Há professor que embora possua o
status e a representação social de ser professor não funciona bem como professor, às vezes tem
aquele que nem funciona. Também existem pessoas, um amigo, por exemplo, que mesmo não
sendo professor pode funcionar em alguns momentos pode funcionar como um professor ao
seu companheiro. O mesmo acontece com outros papéis sociais. Tem gente que não é
psicoterapeuta, mas que em determinadas circunstâncias funciona terapeuticamente para
alguém. Assim como tem pessoas que são habilitadas ao exercício de psicoterapeuta, mas que
não está funcionando como tal. Quem já não disse em algum momento para seu cônjuge ou
parceiro(a) amoroso(a) expressões do tipo eu não sou sua mãe. Evidente que o(a) parceiro(a)
amoroso(a) não está vendo o outro como mãe, mas está se comportando como se fosse um
filho e demando do outro uma função materna. Mais do que status, para o desempenho do
papel a função se faz fundamental. Quando em um dado papel social o status e a função estão
incongruentes, dependendo das razões, podemos chamar de disfuncionalidade.
Em uma família nuclear são até quatro os papéis sociais existentes, a saber:
Conjugal
Parental
Filial
Fraternal.
28
Filósofo que viveu o período clássico da Grécia Antiga em torno dos anos 427-347 aproximadamente.
Conjuntamente Sócrates e Aristóteles fundou a filosofia ocidental.
15
O papel conjugal, que está relacionado ao casal, transcende ao ato de casar ou de uma
pessoa se unir à outra. Duas pessoas casadas, ou que moram juntas, formam um casal enquanto
status. Porém, há de se ver se funcionam como um casal. De antemão destaquemos que uma
relação conjugal traz a expectativa que a parceria se estabeleça através de laços sexuais e
afetivos, provenientes do desejo de compartilharem juntos a vida, independente de terem ou
não filhos, bem como de ser esta união institucionalmente formalizada ou não.
O papel conjugal pressupõe a interdependência entre seus membros e o exercício de tal
interdependência envolve, por sua vez, compreensão, cooperação, compartilhamento,
competição, cumplicidade e mutualidade. O papel conjugal não deve se confundir com o papel
parental (cuidar de filhos), embora na esfera da conjugalidade possa residir a reprodução.
Conjugalidade é uma coisa. Parentalidade é outra.
A psicóloga e professora portuguesa Ana Paula Relvas afirma que um casal surge quando
dois indivíduos se comprometem numa relação que pretendem que se prolongue no tempo.
Incontestável que a conjugalidade tem a ver com a díade conjugal.
Socialmente a família nuclear tem seu início na formação da díade conjugal. O que se
espera para um bom funcionamento conjugal é que os indivíduos envolvidos se comprometam
a estabelecer e manter uma relação estável e duradoura. Para tal é necessário que consigam se
adaptar e se complementar mutuamente. É uma verdadeira negociação a dois. Uma
contratualidade entre dois indivíduos distintos e suas subjetividades.
29
Poeta e escritor mineiro.
16
Já paternidade tem outra e distinta função. A função paterna representa "soltar" o filho
para o mundo. Soltar aqui está entre aspas exatamente por não significar largar, mas sim ajudá-
lo a andar com suas próprias pernas até não mais necessitar de pais para viver e/ou lidar com
seus conflitos existenciais. Assim sendo, considerando que a função materna é simbolizada pelo
colo, a função paterna é "tirar" do colo e ajudá-lo a prosseguir por seus próprios meios a estrada
e o mundo a fora. Por isto que se diz que o papel paterno é dessimbiotizante, ou seja, se entrepor
psicologicamente entre o filho e a mãe, dando curso ao processo de individuação da criança em
crescimento.
É normal que a primeira relação humana de um indivíduo humano seja este com sua
mãe (biológica ou substituta). Para o bebê esta é uma relação puramente simbiótica. Simbiose
é uma metáfora biológica que utilizamos em Psicologia para descrever a situação de
dependência emocional. Essa dependência emocional, que Winnicott chamava de dependência
absoluta, é absolutamente normal nas etapas iniciais da vida humana, porém quanto mais o
30
Escritora e jornalista ucraniana naturalizada brasileira. É considerada uma das mais importantes
escritoras do século XX. Autora de obras-primas como A Paixão Segundo G.H., Uma Aprendizagem ou o
Livro dos Prazeres, A Hora da Estrela, entre outras.
17
bebê deixa de ser bebê ela começa a passar a não ser mais saudável. A simbiose normal31 caso
perdure para além da fase lactente é psicopatológica.
O corte do cordão umbilical representa de fato a separação física e biológica entre o
neonato e o corpo materno. Já a separação psicológica (processo de separação e individuação32)
é um processo gradual e a posteriori.
A função paterna não é um papel atado ao exercício por uma criatura biologicamente
macho (homem). Trata-se de uma função, e como tal ela se realiza na triangulação dos papéis
funcionais mãe-pai-filho. Talvez seja melhor dizer mãe-filho-pai. É uma dinâmica processual e
interpessoal que se trama naquilo que se convencionou denominar de Complexo de Édipo33.
Para o narcisismo infantil primário a percepção da existência do objeto materno (mãe)
é o primeiro ”não-eu” da vida de uma criança. Já o entendimento da função do objeto paterno
(pai) é o primeiro “não-mãe” da vida de uma criança. Assim o pai representa o surgimento da
cena psíquica simbiótica como um terceiro elemento distinto que resulta em separação a idílica
fantasia infantil de que se tem a mãe só para si. A mãe pode amar seu filho, mas também ama
outra coisa ou objeto que não somente ele. Esta outra coisa ou objeto, é retratado na linguagem
psicanalítica como figura paterna (pai).
Vemos isso ser retratado nos espaços publicitários, como, por exemplo, nos dias da mãe
e do pai. No dia das mães é comum encontramos representações de uma mãe (mulher)
segurando seu bebê (colo). Já no dia dos pais é frequente encontramos representação de um
pai (homem) segurando seu filho por uma das mãos com uma estrada pela frente.
Simbólica e representativamente falando a figura paterna (função) é o corte do cordão
umbilical psicológico (narcísico) entre o psiquismo do bebê e sua mãe. Em termos figurados é
um interdito ao incesto simbiótico dos primeiros tempos de vida.
31
Expressão usada pela médica e psicanalista húngara radicada nos EUA, Margaret Mahler, para designar
à fase desenvolvimental onde o bebê vive com sua mãe uma espécie de prolongamento do seu corpo. É
como se fosse uma cápsula (mãe-bebê) onde nada mais existe à sua volta.
32
Individuação é o processo que encaminha o sujeito rumo a sua identidade, singularidade e autonomia.
33
Expressão criada por Freud para designar uma etapa do desenvolvimento psicossexual da criança que
é quando ela começa a perceber que não é o centro do universo e nem tudo para sua mãe. É quando a
criança realmente começa a perceber a importância do pai, neste caso como objeto de amor do objeto
materno.
34
Poeta e escritor carioca falecido em 2005.
18
35
Pastor e escritor estadunidense do século XIX.
36
Lembremos, à guisa de exemplificação, que os primeiros irmãos bíblicos foram Caim e Abel.
37
Artigo Rivalidade Fraterna: uma proposta de definição conceitual, disponível em:
https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/115536.
38
Psicologia em Revista , v. 13, n. 2, p. 293-308, dez. 2007.Disponível in:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-11682007000200006.
19
39
Considerado um dos maiores nomes da poesia brasileira no século XX. Seu mais conhecido e celebrado
poema é No Meio do Caminho (No meio do caminho tinha uma pedra/tinha uma pedra no meio do
caminho...”).
40
Escritor francês do século XVII.
20
Tudo que é vivo um dia nasceu e um dia perecerá. Nada é para sempre. A eternidade
não pertence ao ser humano, ao menos enquanto ser biopsicossocial. Como expressou certa vez
o escritor português José Saramago, a eternidade não existe. Um dia o planeta desaparecerá e
o Universo não saberá que nós existimos.
Não existe mais a civilização Asteca ou a Maia, nem os sumérios ou os acácios, nem
também existe mais o Império Romano. As coisas humanas podem durar anos, décadas, séculos
ou até milênios, mas um dia acaba. Tudo que hoje é vivo um dia nasceu, cresceu ou crescerá,
floresceu ou florescerá, decaiu ou decairá, e morrerá. Tudo finda. Tudo acaba. Como nos versos
finais do poema Evocação ao Recife, de Manuel Bandeira42, “Recife.../Rua da União/A casa do
meu avô.../Nunca pensei que ela acabasse!/Tudo lá parecia impregnado de
eternidade./Recife.../Meu avô morto./Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro/como a casa
do meu avô.”
O que tem começo tem fim, lembrava-nos o pensador italiano Nicolau Maquiavel43.
Tanto o ser humano enquanto indivíduo, quanto os agrupamentos de humanos como a família.
Em termos ampliados é difícil muitas vezes identificar o início de uma determinada
família. Porém é bem mais fácil no tocante à família nuclear. Considerando que a família nuclear
(pais-filhos) é aquele conjunto ou estrutura familiar baseada no casal com filhos, podemos dizer,
então, que o início de uma família nuclear (tradicional) se faz com a formação do casal
(casamento), cresce com o nascimento dos filhos, floresce com o crescimento destes, decresce
com a saída dos filhos de casa e termina com a morte do último cônjuge. O nascimento, o
crescimento, o florescimento, o decrescimento e a morte da família nuclear é o que chamamos
de ciclo de vida familiar, ou, mais precisamente, o ciclo de vida da família nuclear.
Sim, em termos de uma família fundada na conjugalidade para a criação da prole, a
família nuclear começa na formação do casal conjugal. Todavia tal constatação se faz no sentido
concreto e social. Em termos psicoafetivos a família nuclear tem seu início antes do casamento
ou formação do casal. No tocante à afetividade, psicologicamente falando, o casal que fundará
socialmente a família nuclear se início a partir da forma como cada cônjuge individualmente
iniciou sua saída afetiva de casa, ou seja, da sua família de origem.
41
Escritor português, prêmio Nobel de Literatura de 1998.
42
Poeta, crítico literário e professor de Literatura. Autor de um dos poemas mais conhecido da literatura
brasileira, Vou-me Embora para Pasárgada.
43
Viveu entre os anos de 1469-1527. Denominado de “pai da ciência política moderna”.
21
Socialmente falando uma família nuclear45 nova começa quando da formação do novo
casal. O casamento, ou a união conjugal, não somente forma um novo casal, mas também
representa a união entre duas famílias. Engana-se aqueles que acham que um casamento é uma
coisa fácil. Casar pode até ser fácil, todavia continuar casado requer inúmeras tarefas
adaptativas que o casal terá pela frente na formação e consolidação do sistema marital.
Um casamento requer que duas pessoas renegociem uma gama de questões, boa parte
delas advindas das famílias de origem de cada um (cultura familiar). Namoram-se anos a fio,
cinco, sete, nove, dez... porém, quando se casa (morar juntos, dividir cotidiano, despesas e
tarefas domésticas,) alguns casais não se sustentam. Entra aquela tal de “incompatibilidade de
gênios”.
E não é somente o ajustamento entre os parceiros do casal. Existe igualmente a
renegociação referente os relacionamentos com os demais da família ampliada (pais, irmãos) e
até com amigos pessoais. Como salientam Carter e McGoldrick46 que a inabilidade durante o
casamento de formar um relacionamento de casal, a partir do instante quando as duas pessoas
estão compartilhando o mesmo teto, indica que elas ainda estão muito emaranhadas com suas
próprias famílias para definirem uma nova família (novo sistema familiar). Sabe aquela
expressão popular que diz que a sogra deve ficar a uma média distância do casal, a ponto que
não fique “nem tão perto que venha de chinelos, nem tão longe para que traga uma mala”? Pois
é, a difícil arte de manter essa tal de média distância. Escrevem as referidas autoras: “os
problemas que refletem a incapacidade de mudar o status familiar são normalmente indicados
por fronteiras deficientes em torno do novo sistema. Os parentes por afinidade podem ser
intrusivos demais e o novo casal ter medo de colocar limites, ou o casal pode ter dificuldade em
estabelecer conexões adequadas com os sistemas ampliados, separando-se em um grupo
fechado de duas pessoas”.
44
Ed. Artmed, 1995.
45
Aquela que é fundada na conjugalidade.
46
Op. cit.
22
47
Psicologia: teoria e prática, v. 13, n. 1, p. 141-153, 2011, disponível in:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1516-36872011000100011&script=sci_arttext.
48
Paralelamente o processo de independência dos filhos, os próprios pais geralmente enfrentam a crise
da meia-idade, bem como os avós estão se fragilizando com o passar dos anos. Os pais, por sua vez,
começam uma nova etapa de vida que é a de começar a cuidar da geração mais velha.
49
A respeito do assunto vide: Família e Adolescência: a influência do contexto familiar no desenvolvimento
psicológico de seus membros, dos professores Elisângela Prata e Manoel Antonio dos Santos, disponível
in: http://www.scielo.br/pdf/pe/v12n2/v12n2a05.pdf.
50
Carter e McGoldrick (op. cit.) denominam de “lançando os filhos e seguindo em frente”.
23
da “perda” dos filhos. Dentro da crise do ninho vazio temos os confrontos com a finitude da
vida. Novos valores e prioridades podem surgir.
O casal agora sem filhos coabitando é um casal que se reencontra, livre das obrigações
e tarefas parentais. Sentimentos e afetos ambivalentes podem predominar, tais como liberdade
e vazio da perda. Uma nova realidade se faz presente ao casal.
51
Op. Cit.
24
de origem, melhores serão as chances de enfrentar os ciclos de vida em sua nova família de
maneira autônoma. Um filho que sai de casa emocionalmente mais maduro pode melhor
escolher o que levará emocionalmente de sua família de origem, o que não levará e aquilo que
ele construirá sozinho com seus novos parceiros afetivos.
Ninguém nasce amando. Basta observar com atenção um bebê: desde cedo ele
demonstra estar sentido medo, ansiedade, tristeza, alegria e raiva, mas e o amor? O recém-
nascido te ama? O recém-nascido tem sentimentos de culpa, pudor ou vergonha? A resposta é
não. O ser humano vem ao mundo, isto é, nasce com emoções ou afetos básicos (afetos
primários), tais como os acima falados: medo, ansiedade, tristeza, alegria e raiva. Outros
sentimentos ou afetos serão construídos e desenvolvidos mais adiante na existência humana
(afetos secundários), tais como a culpa, o pudor, a vergonha e o amor. Os afetos secundários
não são assim denominados por serem menos importantes, mas sim por serem posteriores. E
são sentimentos que se desenvolvem na psique humana através de nossas interações com os
outros (os americanos chamam de afetos sociais).
O amor é tema da literatura, do cinema, da poesia, da filosofia, da psicologia e de tantos
outros ramos do saber e das artes humanas. O amor é assunto de todos nós. Quem já não falou
de amor? A questão é: sabemos verdadeiramente o significado desse sentimento que
chamamos de amor e com o qual relacionamos à ideia de felicidade? Como nasce ele e quais
seus motivos? O texto a seguir é apenas um breve ensaio sobre a psicologia do amor e a razão
de nossas escolhas amorosas. O tema é vasto, complexo e talvez infindável e inesgotável. Aqui
teremos somente algumas reflexões e estudos iniciais a respeito do mesmo: uma ligeira revisão
sobre este afeto que está para a alma humana assim como o oxigênio está para o organismo.
Desde os tempos míticos o homem se debruça sobre o tema. Os gregos da Antiguidade,
por exemplo, representavam o amor através dos deuses Afrodite e Eros. Eros, filho de Afrodite
com Ares, aquele que flechava os corações das pessoas tornando-as apaixonadas, ele mesmo
certa vez também se apaixonou por Psique (alma). Após inúmeras peripécias divinas e
sofrimentos, Eros se une em definitivo com Psique. Eros e o amor são assuntos do clássico livro
O Banquete de Platão54. Nele encontramos - na fala de Aristófanes - o relato do mito da
53
Escritor e poeta francês do século XIX.
54
Ed. Martin Claret, 2015.
26
androgenia, segundo o qual inicialmente, os seres humanos eram seres esféricos, completos e
perfeitos. De tão perfeitos que eram os humanos tentaram desafiar os deuses do Olimpo,
aspirando chegar à sua morada. Por tal ousadia Zeus os divide, cortando-os em duas metades:
um lado masculino e outro feminino (é bem possível residir daí a expressão cara-metade), e os
condenou a vagar pelo mundo à procura de sua parte perdida. Tal mito significa, comentam as
filósofas e professoras Maria Lúcia Aranha e Maria Helena Martins55, o anseio do ser humano
pela totalidade, representada pelo encontro do “par perfeito”. Vem do livro O Banquete a
seguinte frase de Sócrates a respeito de Eros: um anelo de qualquer coisa que não se tem e se
deseja ter.
Etimologicamente a palavra amor tem origem latina cuja grafia é idêntica: amor. Amor
em latim vem da raiz étima amma (sonoridade infantil chamando mãe) + or (efeito ou
consequência). O sentido expresso no termo é claro: amor é uma resposta afetiva. Será? O que
é amor, esta palavra tão gasta e vulgarizada em nossos dia-a-dia?
Seja o que for amor ele é um afeto, ou faz parte da nossa vida afetiva. Inicialmente
parece ter a ver com carinho e cuidado. Como todo afeto o amor é fundamental na criação de
nossos laços afetivo com os outros. Uma única palavra, porém com diversos significados, tais
como amor físico, amor materno, amor fraterno, amor erótico, amor platônico, amor cristão,
amor ao seu time de futebol, amor à vida...
Sábio eram os gregos, pois tinham várias palavras para significar vários tipos de amor,
tais como Philia (amor da amizade), Pragma (amor prático), Storge (amor entre pais e filhos),
Eros (amor da atração), Ágape (amor dadivoso), Ludus (amor brincante), Mania (amor louco),
entre outras. Cada palavra cada termo, descreve o amor em suas diversas facetas. Assim, por
exemplo, quando encontramos na Bíblia, no Evangelho de João, a expressão Deus é amor, em
grego se escreve Ágape.
Nossos ancestrais portugueses foram mais econômicos com as palavras e enxugaram
tudo em uma única: AMOR. Genericamente podemos definir amor como um conjunto de
sentimentos como carinho, ternura, afeição, que se desenvolvem entre os seres que possuem
condições de demonstrá-los. Nossa ênfase aqui, neste momento, é nos centrar naquele amor
que os gregos chamavam de Eros. Eros envolve a atração física, mas também a atração afetiva.
É o amor dos casais.
Herdamos de Platão a fórmula do amor: amor é desejo, e desejo é falta. Porém há uma
aparente contradição nesta fórmula, ao menos em termos de permanência e continuidade do
amor. Se amor é desejo e se desejo é falta, então amamos o que nos falta, ou a falta nos
direciona a amar e a buscar. Acontece que se conseguimos possuir nosso objeto de desejo
(objeto do amor), então ele não mais nos falta, visto que o “possuímos”. E se desejo é falta e se
não nos falta mais o objeto, então não mais desejamos. E se amor é desejo, e se já “possuímos”
nosso objeto de desejo, então por não haver mais falta não há mais desejo, assim como sem
haver desejo não há mais amor. Complicado, não? Imagina o imbróglio filosófico da questão.
Pois bem. A contradição acima está na estreita relação entre amor e desejo. A saída de
tal contradita nos foi dada inicialmente por Santo Agostinho. Ele, sem abandonar a ideia
platônica de que amor é desejo e desejo é falta, propõe-nos a compreender a questão nos
55
Filosofando, ed. Moderna, 2009.
27
seguintes termos e significados: quando se tem o objeto do desejo assim o tem no presente. O
desejo permanece frente ao incerto, ou seja, o futuro. O desejo que subjaz e persiste no desejo
que se realiza na “posse” do objeto amado é o desejo de continuar com o objeto, visto que o
amanhã é sempre algo ainda não atingível (e por isto nos falta) e quando o amanhã chega não
é mais amanhã é presente, presente este que é sempre e constantemente contingente e
passageiro. Desse modo sustenta Agostinho, quando se “possui” o objeto do amor o amor se
transforma em medo – medo de perder no amanhã o objeto amado. Por isso amor é zelo,
dedicação, desvelo e cuidado.
Ninguém nasce amando, porém todos nascemos em um contexto social que nos
possibilite ser cuidado. Sem tal contexto é a família (primeiro grupo social de um indivíduo
humano) ou seu substituto.
Este primeiro grupo social (família) será o primeiro espaço social em que o ser humano
terá para sentir suas primeiras emoções e seus sentimentos. Praticamente quase todos os afetos
humanos - senão todos - terão suas origens nessas primeiras experiências de relacionamento
social (raiva, medo, alegria, tristeza, ciúme, inveja, angústia, etc.). O sentimento amoroso
também tem seus alicerces nessas primárias vivências interpessoais. Aliás, podemos afirmar que
o primeiro objeto de amor da vida humana é o objeto materno (mãe). Tal objeto (mãe) será o
protótipo e modelo para as futuras relações amorosas extrafamiliares. Freud nos fez ver que o
ato de um bebê sugar o seio da mãe se torna matriz para toda relação de amor mais adiante.
Considerando que a mente primitivamente é narcísica, e que a primeira relação objetal
humana (mãe-bebê) é uma relação marcadamente simbiótica, então a primeira experiência
amorosa do ser humano é uma experiência amorosa narcísica. O psiquismo do lactente se crê
único para sua mãe. Trata-se, pois, de uma ilusão psíquica onde a mente infantil se acha
perfeitamente amada por uma mãe que o ama total e incondicional. O par perfeito. Esta unidade
mãe-bebê é o que o psicanalista húngaro Michael Balint denominava de primary love (amor
primário).
A ilusão narcísica de uma relação unitária simbiótica e perfeita será base das ilusões
juvenis e adultas relacionadas à paixão, como veremos a seguir.
A psicanalista inglesa Melanie Klein, desbravadora teórica do estágio oral narcísico do
psiquismo humano, detalhou a relação objetal primária (bebê-mãe) em duas posições
diferencias: posição esquizoparanoide e posição depressiva.
Na posição esquizoparanoide a mente do lactente não conhece a mãe como uma pessoa
integral (objeto total), mas sim como objetos parciais cujas experiências relacionais provocam
sensações de prazer e frustração (desprazer). A mãe ainda não é vista como mãe, mas sim como
56
Escritora portuguesa, ganhadora do Prêmio Camões em 2004.
28
seio, nos dizeres de Melanie Klein. Quando a experiência é prazerosa e gratificante (quando o
seio sacia a fome ou a necessidade) então o seio é bom. Quando não, o seio é mau. Nesta
dicotomia entre seio bom e seio mau, o seio bom é representado psicologicamente como um
objeto higienizado que coisas ruins, frustrantes e negativas (daí o termo objeto parcial). Trata-
se do seio ideal. Somente mais adiante, com o amadurecimento do bebê ainda na fase oral, o
psiquismo lactente poderá perceber gradualmente que o seio que gratifica (seio bom) é o
mesmo seio que frustra (seio mau). Tanto o seio bom quanto o seio mau fazem parte do mesmo
objeto, ou seja, da mãe (daí o termo objeto total). Na posição depressiva, portanto, a relação
objetal (bebê-objeto total) é ambivalente, afinal de ama e se odeia o mesmo objeto.
Em relação à posição esquizoparanoide a posição depressiva é mais madura, enquanto
que a esquiparanoide é imatura. Quem ama sem ambivalência idealiza. Quem ama ambivalente
realmente ama. Não há objeto amoroso perfeito e idealizado, somente nas fantasias, ilusões e
anseios narcísicos da alma humana.
Para uma melhor compreensão dessa dinâmica psíquica infantil em sua fase lactente e
oral, vide Melanie Klein e as Fantasias Inconscientes57, da psicóloga e professora universitária
Marcella Pereira de Oliveira.
57
Disponível in: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/wep/v2n2/v2n2a05.pdf.
58
Junto com Camões, Fernando Pessoa é o mais importante nome da literatura portuguesa, e com certeza
o mais universal poeta português.
29
Paixão vem do latim passione que está relacionado ao ato de suportar sofrimento e traz
em seu bojo o significado de passividade. Em grego se utiliza o termo pathos (padecimento).
Pathos, por sua vez, também significa emoção (vide a palavra “apatia”) e doença (vide a palavra
“patologia”). Como diz a filósofa Marilena Chauí, o apaixonado é afetado por uma experiência,
emoção ou sofrimento. Pathos é o oposto de práxis (atividade, ação) no sentido em que se
recebe o sofrimento. Por isto na semana santa celebra-se a paixão de Cristo, isto é, o sofrimento
de Cristo.
A paixão é uma emoção ampliada de maneira quase doentia, ou até mesmo doentia. É
um sentir tipicamente doloroso e limítrofe com a patologia onde aquele que é acometido pela
paixão perde sua individualidade psíquica devido à atração e o fascínio que o objeto da paixão
proporciona. Em sua natureza passiva o apaixonado é representado pela pessoa que se vê
“flechado” (acometido) pela paixão. Quem não reconhece nesta imagem a figura do Cupido, por
exemplo?
59
O processo primário de pensamento é regente na fase oral do psiquismo humano. Trata-se de um
pensamento não verbal, atemporal (sem noção de tempo), sem limite (sem noção de não),
predominantemente fantasmático, narcisicamente onipotente e fortemente marcado pelas sensações.
60
Escritora inglesa e uma das mais importantes figuras do modernismo literário.
30
Atente o(a) leitor(a) que não estamos no conceito “vulgar” de paixão, no sentido popular
e romanceado que usualmente damos ao mesmo. Em filmes como Love Story64 a paixão é
resumida em frases do tipo amar é ter jamais que pedir perdão. Ora se amor fosse isto (jamais
pedir perdão) significaria que jamais magoaríamos a pessoa amada ou seríamos magoados por
ela. E só há uma maneira de nunca magoarmos alguém: sendo tudo o que é ela quer que eu
seja, isto é, ser o seu objeto pleno de desejo. E vice versa.
Quando uma pessoa se vê acometida pela paixão ela tem fortes sensações de
arrebatamento. O coração dispara, não consegue deixar de pensar na pessoa “amada”, sente-
se ansiosa e angustiada na ausência desta, quer sempre estar perto da mesma, eleva-se a
estratosfera o apetite e a atração sexual dirigido ao objeto da paixão, altera-se o sono, a
alimentação e o humor, por aí vai. Tal arrebatamento é consequência de alterações
neurofisiológicas no organismo do apaixonado, pois o cérebro se encontra banhado de
neurotransmissores e hormônios, entres eles a adrenalina, a noradrenalina e a dopamina. Esta
última é responsável pela sensação de dependência em que se acha a pessoa apaixonada em
relação a seu objeto de desejo. Também há uma diminuição da liberação de serotonina, fazendo
com que a pessoa fique obsessivamente pensando no amado(a) de maneira fixante. Não nos
esqueçamos do papel dos feromônios65 no fenômeno da paixão, afinal estes hormônios
propiciam a “comunicação química” entre os apaixonados.
61
O Ego Ideal, como dizia Freud, é o herdeiro psíquico do narcisismo infantil.
62
O Que Será: indagações da paixão, Estudos de Psicanálise, n. 33, p. 117-124, jul. 2010, disponível in:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372010000100012#2,
63
Poeta português.
64
Filme romântico de Arthur Hiller que fez enorme sucesso em 1970.
65
Hormônios sexuais que impulsiona a atração sexual entre indivíduos da mesma espécie.
31
Pois é. Embora a imagem da paixão comumente esteja associada ao coração (pois ele
dispara), a flecha do cupido não atinge este órgão muscular vital à vida, mas sim o cérebro. Este
sim é responsável pelas loucuras da paixão.
Resistir à paixão não é fácil não. O queimar da euforia proporcionada pela paixão pode
acometer qualquer um a qualquer momento, porém é mais comum na adolescência, a tal ponto
que chamamos este período desenvolvimental de o tempo das paixões. A explosão química da
paixão é capaz de viciar, e há pessoas assim viciadas que tão logo termina uma paixão já está
rumando para outra em busca de endorfinas e sensações. Tem gente que não se apaixona por
pessoas propriamente ditas, mas sim pelo próprio sentimento da paixão. Pessoas que amam
estar apaixonadas.
A adolescência é por natureza o período de vida das grandes paixões, haja vista ser uma
fase evolutiva caracterizada pela exuberância hormonal, impulsos e emotividade. O jovem ali se
vê em meio a um redemoinho de desejos, sentimentos, dúvidas, que se confundem pela
incipiente capacidade cognitiva e emocional de discernir prazer, êxtase, gozo e harmonia
interior. Na imaturidade afetiva inerente à adolescência, o amor-paixão toma roupagens
idealizantes e, às vezes, possessivas. São sentimentos fortes e avassaladores onde predomina a
avidez e a urgência dos afetos. Quando dizemos que o amor é cego estamos de fato falando da
paixão em seu espírito puramente juvenil.
Se na adolescência as paixões são uma espécie de teste drive para as futuras relações
amorosas da maturidade, no adulto a paixão tem seu caráter regressivo. Não importa a idade
que o adulto tenha, apaixonado ele se torna emocionalmente um verdadeiro adolescente.
Porém, com a diferença que geralmente o adulto tem muito mais a perder.
Decididamente paixão não é amor, mesmo que em nome da paixão digamos ao outro
"eu te amo". A paixão na adolescência é necessária e normal para o desenvolvimento emocional
do indivíduo. Todavia a paixão quando acomete um adulto ela é nada mais nada menos que uma
patologia do amor, uma regressão psíquica.
“A paixão é um incêndio
na fábrica de fogos de artifício.
A paixão é um balé
à beira do precipício.
Quando a paixão termina
o mito se quebra.
32
Várias são as formas de se definir o que é amor, e nenhuma delas define em completo
o que é o amor. Talvez o amor seja de difícil definição, ou talvez não seja possível reduzi-lo a um
conceito. Seja como for o termo vem do latim amore/amor que é uma emoção ou sentimento
que leva uma pessoa não somente a desejar outra pessoa, mas principalmente a desejar o bem
dessa pessoa. Mas será que o amor existe como afeto puro e específico, ou será ele uma
combinação de afetos que quando uma pessoa os sente faz com que diga “estou amando”? Será
também que estava certo o poeta português Fernando Pessoa quando afirmou que nunca
amamos ninguém. Amamos, tão somente, a ideia que fazemos de alguém? Ou será ainda que
quem estava certo era a escritora Clarice Lispector que dizia que amor é a desilusão do que se
pensava que era amor? Mas o amor é tão importante no cimentar das relações afetivas e íntimas
do ser humano, entre elas o amor entre os cônjuges, entre pais e filhos, entre irmãos e irmãs,
entre o indivíduo e determinados parentes significativos, entre um amigo e seu amigo. O amor
merece reflexão.
Freud já no início do século XX dizia que a escolha do objeto amoroso na vida adulta em
princípio parte dos primeiros objetos amorosos da infância. Segundo a visão freudiana um ser
humano tem originalmente dois objetos sexuais: ele mesmo e a mãe.
Creio não ser necessário qualquer conhecimento de Psicologia para se reconhecer que
primeira experiência amorosa do ser humano é com os pais, mais precisamente com a mãe ou
quem ocupe o lugar da função materna.
Ninguém nasce amando. Os afetos inatos ou primários são a ansiedade, o medo e a
raiva. Afetos secundários – chamados pelos americanos de “afetos sociais” – são afetos
desenvolvidos através de experiências interpessoais , como, por exemplo, ciúme, pudor,
vergonha, culpa, gratidão e amor, entre outros. São sentimentos complexos construídos sob o
contato com os outros e a cultura, e que têm como base as emoções primárias. Nossa primeira
66
Escritor e compositor gaúcho.
67
Poetisa portuguesa conhecida por compor importantes sonetos da literatura de Portugal..
33
escola afetiva é a infância e é de lá que trazemos muito de nossa bagagem emocional à vida
adulta.
O ser humano nasce sem ainda conhecer o mundo que o circunda e muito menos as
pessoas que nele habitam. A mente humana primariamente é solitária, isto é, vazia de pessoas.
A mente rudimentar é, portanto, anobjetal 68 e amúndica69, sem qualquer noção da existência
de qualquer coisa que não seja ela mesma. Sabemos que isto é uma pura ilusão da mente que
originariamente continua funcionando fora do útero materno como se fetal ainda fosse. Como
bem descreveu a psiquiatra e psicanalista infantil norte-americana Margaret Mahler, o
nascimento psicológico vem depois do nascimento biológico. No início da existência humana
além do útero a noção de Eu é tão somente um potencial a se realizar. E o Eu nasce,
posteriormente ao nascimento biológico, através da relação com o ambiente cuidador.
O bebê vai gradualmente descobrindo-se dependente de alguém. É como se o psiquismo
fosse aos poucos se dando conta de que não é uma solidão existencial. A mente descobre a mãe,
ou mais precisamente seu primeiro objeto, seu primeiro não-eu.
É através dos cuidados maternos, no interjogo das gratificações e frustrações, que surge
o objeto externo frente aos olhos infantis. É a mãe quem o sustenta, é a mãe quem o alimenta
é a mãe quem o protege, é a mãe quem o agasalha, é a mãe quem o atende em suas mínimas
necessidades, é a mãe...
É com este objeto materno que o ser humano toma contato e desenvolve seus primeiros
afetos secundários. Decididamente, a mãe é o primeiro objeto para onde a energia psíquica e
atenção do bebê se dirige. A mãe é o objeto que satisfaz (ou frustra) nossos mais íntimos desejos
de então.
Na infância não escolhemos nossos primeiros objetos amorosos, no sentido de que não
escolhemos os pais que tivemos, nem a família em que nascemos. É a partir da puberdade e da
adolescência que iniciamos dirigir nossos interesses afetivos-sexuais (libido) para fora do âmbito
familiar. Todavia é a infância que muito determina a maneira como iremos amar
exogamicamente.
A nossa primeira escolha objetal amorosa foi denominada por Freud de
escolha objetal anaclítica, isto é, uma relação de apoio derivada das condições
naturais de desamparo, fragilidade e impotência do bebê em ele mesmo atender
suas necessidades mais primárias. São tempos mentais idealizantes que levamos
pela vida afora, inclusive na vida adulta70.
A paixão – como visto – é um sentimento forte carregado de
identificações e idealizações. Não é de todo incompreensível entender a paixão
como uma espécie de reedição da experiência ilusória primária de completude da
relação bebê-mãe. Busca-se com o outro atingir a perfeição.
68
Ausência de objetos internos (representações psíquicas de objetos externos).
69
Ausência de noção de mundo.
70
Vê-se aqui a defesa do presente texto em compreender os relacionamentos amorosos a partir de uma
ótica baseada nas raízes inconscientes originadas a começar de nossas famílias de origem. Por este ângulo,
ou viés compreensivo, nossas escolhas amorosas adultas têm sempre um quê de infantil, ou seja,
repetições de alguns padrões adquiridos na meninice. Sentimentos e desejos infantis, portanto, se
misturam aos sentimentos e desejos adultos no momento da escolha do objeto amoroso.
34
Porém, nem toda escolha é paixão. Existe a escolha pelo amor, com mais maturidade,
menos idealização, porém jamais isenta de qualquer resquício infantil. Escreveu Freud em Cinco
Lições de Psicanálise71: "é absolutamente normal e inevitável que a criança faça dos pais o objeto
da primeira escolha amorosa. Porém a libido não permanece fixa nesse primeiro objeto:
posteriormente o tomará apenas como modelo, passando dele para pessoas estranhas, na
ocasião da escolha definitiva. Desprender dos pais a criança torna-se, portanto, uma obrigação
inelutável, sob pena de graves ameaças para a função social do jovem”.
Os filhos crescem. Chega-se à época da adolescência e com ela o desapegar infantil dos
pais. A sexualização secundária e a transformação do corpo infantil em um corpo adulto pronto
à reprodução são conjugadas pelas primeiras grandes paixões juvenis. No progresso da
maturação sexual a transferência do amor aos pais para os pares extrafamiliares é uma das
maiores mudanças emocionais que sofre o ser humano. O desejo eclode agora fora do lar. Surge
o enamoramento. Começamos a conquistar e sermos conquistados. Damos agora nossos
primeiros passos na dança do acasalamento.
A necessidade que tínhamos de se apegar da primeira infância permanece, pois, adultos
ou não, continuamos incompletos, frágeis e vulneráveis. Nosso psiquismo é regido pela raiz
primária da busca pelo retorno do momento “mágico” e seguro da mais significativa das relações
humanas: mãe-bebê.
A ilusão faz parte do psiquismo humano e também se faz presente na escolha amorosa.
Busca-se no outro complementariedade, sendo esta uma das principais motivações na hora de
escolhermos um cônjuge. A complementariedade vem da crença ilusória de que o cônjuge deve
ser alguém com quem nos completamos. Pari passu com a complementariedade temos a
similitude, isto é, busca-se no parceiro características e qualidades semelhantes àquelas que
possuímos. Diz um dito popular que os opostos se atraem, pode ser até verdade, porém apenas
no início, pois o que conserva uma relação são as semelhanças.
71
Ed. Imago, 1997.
72
Transmissões psíquicas entre gerações.
35
73
Em Busca da “Cara-Metade”: motivações para a escolha do cônjuge, pág. 384, disponível in:
http://www.scielo.br/pdf/estpsi/v27n3/10.pdf.
36
Será o amor uma paixão comedida, ou será a paixão um amor exagerado? Ambos e
nenhum dos dois. Paixão e amor são entidades afetivas distintas. Paixão é uma coisa, amor é
outra, embora no amor haja algo de paixão – como teoriza o psicólogo e professor universitário
norte-americano Robert Sternberg (vide quadro abaixo) -, e na paixão exista algo parecido com
amor (mesmo que ilusório, idealizado e transitório).
Outra clara distinção é a que paixão, paixão mesmo, tende a acabar rápido (em média
seis meses a um ano, mais ou menos74) e de maneira frequentemente ruidosa e dramática, e o
amor tende a ser mais prolongado, quiçá durável.
Paixão é à primeira vista ou quase. Amor é uma construção que vai se fazendo aos
poucos. Como ensinavam os antigos gregos, para existir amor requer intimidade, reciprocidade
e tempo. Não se ama alguém de um dia para o outro.
Paixão é feita de idealizações e simbioses. Já o amor é feito de trocas, renúncias e
consensos. A questão da paixão é que a pessoa apaixonada confunde o que é terno com eterno.
O amor não é um sentimento cego, isto é, se vê as diferenças e defeitos e mesmo com
as diferenças e defeitos se ama. Diríamos que amar é tolerar as diferenças. Já na paixão o
sentimento é cego, ou seja, não se percebe as diferenças ou defeitos. O objeto da paixão é
perfeito. Por isso o apaixonado não parece viver a ambivalência que é normal das relações
afetivas. Já quem ama convive com a ambivalência.
Robert Sternberg desenvolveu a chamada teoria triangular do amor. Esta teoria visa
melhor explicar o fenômeno amoroso e os relacionamentos amorosos. Para ele o amor é um
afeto composto de três qualidades básicas que se manifestam ou não nas relações amorosas em
geral. Tais componentes são paixão, intimidade e compromisso.
Para Sternberg o componente da paixão75 é a energia da relação. A paixão envolve a
atração sexual e a limerência76. A intimidade se refere à sensação de proximidade, sendo
baseada na confiança, no carinho, na ternura e na amizade. Já o compromisso á decisão de se
continuar no relacionamento, compartilhar sonhos e conquistas.
As combinações dos três componentes resultam em sete formas denominadas de:
74
Há quem aponte até quatro anos, como é o caso da médica Cibele Fabichak, em seu livro Sexo, Amor,
Endorfinas e Bobagens, ed. Matrix, 2016.
75
Paixão aqui não é paixão enquanto pathos.
76
Estado cognitivo-emocional involuntário e inconsciente, que resulta em desejo romântico por outra
pessoa. Embora parecida com a paixão (pathos) a limerência é o amor romântico e a paixão o amor
intenso e louco. A paixão (pathos) normalmente tem curta duração. A limerência tanto dura muito mais,
podendo durar até a vida inteira.
37
Uma família unida e funcional é uma família baseada no amor. Amor entre o casal, amor
entre pais e filhos, amor entre os irmãos. É um amor ambivalente e não idealizado no sentido
de perfeito (família margarina). É o amor que convive com outros afetos, inclusive negativos
como raiva, ciúme e inveja. Uma família assim coesa e funcional é quando o amor predomina,
apesar de.
AMORES DROGADICTOS
Sim, existem pessoas que vivem tórridos relacionamentos amorosos. Amores intensos,
energéticos, agudos, veementes e excessivos, porém não extensos, mas sim fugazes, efêmeros
e passageiros. Pessoas que possuem uma longa folha corrida de paixões, amores ardentes e
arrebatadores, um verdadeiro currículo de páginas e páginas de vida afetiva extasiante e
impetuosa. Todavia quantidade não é necessariamente sinônimo de qualidade. São tantas as
relações que se iniciam com profunda ânsia de eternidade, mas que se esvaem como fumaça
entre os dedos. O escritor britânico de origem irlandesa Oscar Wilde já dizia que a única
diferença entre um capricho e uma paixão eterna é que a primeira dura um pouco mais.
Há uma clara, contudo sutil, diferença entre uma pessoa internamente intensa e uma
pessoa que busca intensidades. Vejamos melhor. Um sujeito (self) pode buscar outro (objeto)
no qual possa descarregar toda sua inquieta intensidade. Já outro sujeito (self) pode buscar
outro (objeto) com vistas a este outro - devida a sua própria elevada carga de eletricidade - lhe
provocar intensidade. Aqui cabe, pois, outra diferença: intensidade não é sinônimo de
intensamente.
77
Escritor e poeta brasileiro. O poema acima se intitula Limites do Amor.
39
78
Borderline é um transtorno de personalidade, no qual predominam comportamentos impulsivos,
autodestrutivos e sentimentos crônicos de vazio. Pessoas com tal transtorno apresentam um padrão de
comportamento caracterizado por instabilidade nos relacionamentos interpessoais, o que faz que vivam
experiências amorosas de maneira intensa e descontrolada.
40
79
Filósofo dinamarquês do século XIX, considerado o primeiro filósofo existencialista.
41
80
Processo Grupal, ed. Martins Fontes, 1988.
42
diversas, duas personalidades e visões de mundo não idênticas, duas subjetividades singulares.
E tudo isso se mescla no constituir de um casal.
Na formação de um laço conjugal ocorrem várias articulações psíquicas conscientes e
inconscientes, desde a escolha do parceiro amoroso até o legado familiar de origem. Em seu
hoje clássico livro Um Divã Para a Família81 os psicanalistas Pincus e Dare, ressaltam que desejos
inconsumados e sentimentos infantis dolorosos ou não tendem a reaparecer na vivência da
conjugalidade. Devido à intensidade do laço afetivo os parceiros podem fazer acordos tácitos e
inconscientes baseados nas demandas de cada um. A história do casal se inicia na história
pessoal dos parceiros envolvidos. Ao longo do tempo, ao longo da história de um casal, haverá
de haver momentos gratificantes e de satisfação, bem como momentos de insatisfações e
conflitos. A cada conflito superado tanto o casal como os cônjuges vão amadurecendo. Embora
idealisticamente falando para muitos o casamento seja uma representação de felicidade, ele é
permeado por conflitos, atritos e incertezas. A estabilidade em um casamento está muito
relacionada com a capacidade de flexibilização de cada parceiro envolvido.
Vários estudiosos do casamento, do ponto de vista psicológico, entendem que nele
existe uma espécie de contrato secreto82 onde demandas inconscientes de cada cônjuge se
interligam de maneira não escrita e não verbalizada, afinal a conjugalidade é um terreno fértil
para reedições de dramas familiares anteriores, assim como para a elaboração de conflitos não
bem resolvidos em vivências infantis.
Nem todos os motivos que nos levam escolher casar são conscientes. Grande parte de
nossas escolhas são lastreadas em nossas primeiras relações objetais, isto é, com nossos
primeiros objetos cuidadores (pais). A qualidade dos vínculos do convívio familiar na infância
humana tende a estabelece um padrão básico de relacionamento, no qual o sujeito é
inconscientemente levado a repetir tal padrão em momentos posteriores da vida.
Em seu livro O Nó e o Laço83 o psiquiatra e psicanalista Alfredo Simonetti, professor de
Psicologia Médica da Faculdade São Camilo (SP), afirma que mais do que beleza, inteligência,
corpo, sucesso ou amor, escolhemos o(a) parceiro(a) conjugal para completar a própria neurose.
Podemos casar por amor sim, mas também casamos para juntar nossas neuroses. Para ele, o
tempo do namoro é o período necessário para cada um descobrir se sua neurose se encaixa com
a do outro.
O casamento não somente muda o estado civil dos cônjuges e o endereço deles, mas
também provoca uma reconfiguração psíquica subjetiva. Tal transformação na verdade tem seu
início já na adolescência quando o púbere passa pelo luto psicológico da perda dos pais
idealizados da infância. É o momento em que o jovem começa a se desligar das figuras parentais
de sua fase infantil. A maneira elaborativa de tal desligamento e movimento psíquico de saída
da endogamia em muito influenciará suas futuras relações afetivas, principalmente a conjugal.
A conjugalidade representa uma identidade compartilhada, em parte efeito da trama
identificatória inconsciente formada a partir da história individual e familiar de cada um dos
membros do casal. A conjugalidade se traduz em um ideal, sonhos e projetos conjugais
compartilhados.
81
Ed. Artes Médicas, 1989.
82
Segundo o psiquiatra e psicanalista francês Alberto Eiguer, na organização inconsciente do casal ambos
os indivíduos intercambiam objetos inconscientes. Trata-se de uma espécie de entrecruzamento entre os
inconscientes dos parceiros envolvidos.
83
Ed. Integrare, 2015.
43
84
Poetisa mineira.
85
Casamento Contemporâneo: o difícil convívio da individualidade com a conjugalidade. Disponível in:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79721998000200014.
86
Ed. Artes Médicas, 1993.
87
Um e Um São Três, ed.Summus, 1991.
88
Do ponto de vista da dialética, o absoluto do casal representa a síntese dos dois parceiros. Escreve
Caillé: “os parceiros de um casal se distinguem pelo sexo, por sua história pessoal, pela cultura familiar de
origem. Toda dinâmica de casal se fundamenta no confronto de percepções diferentes do mundo, na
oposição de visões antagônicas. A vida do casal pode ser definida como um perpétuo processo dialético
que atinge sínteses transitórias e reformuláveis” (pág. 103, op. cit.).
44
89
Ed. Martins Fontes, 2006.
90
Em 2016, por exemplo, o Brasil registrou queda no número de casamentos e aumento no número de
divórcios. Naquele ano tivemos (fonte IBGE) 1.095.535 casamentos civis, dos quais 1.090.181 entre
pessoas de sexos diferentes, representando uma queda de 3,7% do total registrado em 2015. Em
contrapartida foram concedidos 344. 526 divórcios, um aumento de 4,7% em relação ao ano anterior.
91
Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos, ed. Zahar, 2004.
45
92
Conjugalidade e Casamentos de Longa Duração na Literatura Científica, disponível in:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/cclin/v9n1/v9n1a04.pdf.
46
Eu morri cegamente
Tu pegaste-me na mão
Tu viste-me morrer
E encontraste-me a vida
Tu és a minha vida
E assim eu vivo”.
(Harold Pinter93)
SEPARAÇÃO CONJUGAL
93
Poeta inglês e autor de peças teatrais, considerado um dos maiores dramaturgos do século XX, Prêmio
Nobel de Literatura de 2005.
94
Escritor e filósofo humanista francês do século XVIII.
47
DISSOLUÇÃO DA CONJUGALIDADE
Cognição Individual;
Metacognição Familiar;
Separação do Sistema;
Reorganização do Sistema;
Redefinição do Sistema.
A primeira fase, o da cognição individual, aos menos um dos cônjuges está pensando em
se divorciar, iniciando o processo psicológico de separação emocional. Porém, nem sempre o
indivíduo que pensa em se separar realmente vem a se separar.
No segundo estágio a pessoa passa de estar pensando e comunica ao outro, à família
em geral e aos amigos, sua pretensão em se separar. É o momento da revelação, momento este
que provoca desequilíbrio sistêmico e sofrimento para a família. Há famílias que manejam
melhor do que outras essa fase. Porém, mais uma vez, não significa que revelado o desejo dos
cônjuges de se separarem que de fato isso possa a ocorrer, ou seja, que se ingresse na fase
seguinte.
Caso o casal passe do estágio de metacognição familiar, ocorre a separação do sistema
conjugal de fato. Este é um momento bastante difícil para o sistema familiar e o resultado em
muito dependerá da maneira como o sistema familiar vinha lidando com as etapas anteriores.
Quanto mais resistente ou reativa for a família, maior será a crise.
O quarto estágio envolve o processo de impor novas fronteiras intrasistêmicas. Novos
papéis, regras, rotinas e padrões, assim como novas estruturas hierárquicas, devem ser
desenvolvidos, pois é a etapa em que o sistema familiar deve se reorganizar frente à nova
realidade pós-divórcio.
O último estágio é o referente à redefinição do sistema. É a fase final em que a família,
superado os abalos e arranjos provocados pela separação sistêmica, segue a vida em frente. Isso
ocorre quando a família consegue resolver as demandas dos estágios anteriores, alcançando,
assim, uma nova autodefinição.
95
Op. Cit.
48
Evidente que com o caminhar pela vida ambos os parceiros, ou um deles, sofram
transformações ou evoluam com o tempo, às vezes essas mudanças e crescimentos se façam
em ritmos diferentes e não complementares. Tal “gap” (hiato) que vai surgindo pode ir levando
até mesmo a necessidade de uma separação. Um bom casamento no inicio não é sinônimo de
o mesmo que será bom pela vida inteira. Conjugalidades que não mais proporcionam níveis de
satisfação geralmente levam a problemas de convívio e desajustes conjugais.
O divórcio quando acontece é um dos momentos mais críticos à família dentro do
contexto do ciclo de vida familiar. Todo o sistema familiar sofre um abalo, algumas vezes de
proporções sísmicas. Por mais consensual que um divórcio possa ser, a separação do sistema
conjugal traz uma complexidade nova à família como um todo, sendo este, portanto, uma época
de adaptação e ajustes.
A separação de um casal é o desfazimento de um laço afetivo. Trata-se de uma perda,
não somente de uma pessoa amada ou de quem um dia foi amado, mas também de sonhos,
planos, expectativas e ideais. O término de um casamento abrange a elaboração de várias
perdas concomitantes: da própria conjugalidade, do casamento ideal e do parceiro ideal, da
família sonhada, dos bens materiais, do status, da identidade, etc. A dissolução da conjugalidade
e a separação do casal engloba, portanto, uma cadeia de eventos e uma série de mudanças
(psicológicas, sociais, jurídicas, econômicas, financeiras, sexuais e afetivas).
No tocante ao parceiro deixado, lembremo-nos do capítulo anterior quando
enfatizamos que no casamento 1 + 1 = 3, ou seja, que o casamento implica a construção de uma
nova identidade, além da identidade dos cônjuges. O eu-conjugal (identidade do casal) que
levou tempo se construindo necessita agora, no processo da separação da conjugalidade, se
desfeito. Como diz Terezinha Féres-Carneiro, “no processo de separação, a identidade conjugal,
construída no casamento, vai aos poucos se desfazendo, levando os cônjuges a uma redefinição
de suas identidades individuais97”.
Pois é, quando acontece de haver separação conjugal, a identidade conjugal construída
vai se desfazendo. É um desfazimento, ou um luto, com o morto vivo, aliás, reciprocamente, são
96
Poeta, diplomata e compositor musical. Musicalmente compôs com grandes nomes da MPB do século
XX, entre eles Tom Jobim, Chico Buarque e Toquinho.
97
Separação: o doloroso processo da dissolução da conjugalidade, disponível in:
http://www.scielo.br/pdf/epsic/v8n3/19958.pdf.
49
dois mortos vivos. A elaboração do luto pela separação conjugal passa por este “morrer”
bilateral.
No clássico livro A Separação dos Amantes: uma fenomenologia da morte98, o
psicanalista austríaco Igor Caruso analisou o que ocorre no dinamismo psíquico dos cônjuges
em separação, principalmente naqueles cujo amor e o casamento sofram até então satisfatórios
e que se acabou ou se rompeu por razões várias. Quem vive a separação, ainda amando, diz
Caruso, experimenta uma elaboração de luto paradoxal, pois tem que lidar em sua consciência
com a “morte” de alguém vivo - ao tempo em que tem que lidar com sua “morte” na consciência
do outro (luto recíproca99).
Toda separação é sempre um momento de perda e de luto, afinal se dedicou tanto
tempo sonhando e projetando no outro e no casamento elementos relacionamos a apego,
segurança e felicidade. Para muitos, até, fica evidente o sentimento de desamparo que a perda
do casamento enseja. Frustrações e decepções estão no “pacote” denominado de divórcio.
Um longo e doloroso processo de luto necessita ser elaborado, principalmente pelo
cônjuge que não tomou a iniciativa da separação. Trata-se de um findar de um projeto de vida
até então compartilhado e que ambos investiram. Até o cônjuge que tomou a iniciativa da
separação tem também seu luto a elaborar. E estamos aqui a falar também do luto pelos desejos
secretos de nossas almas que buscam no outro a autoestima e a idealização, assim como anseios
infantis, bem como demandas mal resolvidas com as figuras parentais.
O luto pelo vínculo antes criado acomete ambos os cônjuges. O que tomou à dianteira
(decidiu se separar) começou primeiro e dentro da vigência do casamento. O que foi deixado,
por sua vez, se vê em meio a um olho do furacão. O sentimento de ser deixado, ser rejeitado,
pode ser avassalador, principalmente junto à ideia de que o outro está bem e feliz sem ele(a).
Todo e qualquer vínculo de apego quando “quebrado” gera muita tristeza, raiva, medo e
ansiedade. São estes sentimentos, muitas vezes até contraditórios, que necessitam serem
elaborados100. É como na letra da música Meu Mundo Caiu imortalizada na voz da própria
compositora e cantora Maysa:
98
Ed. Cortez, 1981.
99
A sensação de morte recíproca se refere ao fato de que na separação conjugal cada um tem de “morrer”
em vida dentro do outro.
100
Vide artigo Relações Amorosas: rupturas e elaborações, das psicólogas Lidia Levy e Isabel Gomes,
disponível in: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-48382011000100003.
50
que, por outro lado, possa ser reinvestida em outros objetos, no mundo e na vida. A perda é o
início de uma transição (luto) que requer reorganização de vida.
A primeira etapa é sempre a aceitação da separação. Nos momentos primeiros é bem
possível que haja fenômenos psíquicos de negação, mas é pela dor da aceitação que começamos
o processo de diminuição e extinção da dor. Superado o choque, inicia-se uma nova etapa que
passar por lidar com os sentimentos ambivalentes de amor, tristeza e ódio. Enquanto persistir a
raiva, por exemplo, alguma não aceitação reside. Conjugado a isto o enlutado passa a preencher
o lugar vazio deixado pelo outro no cotidiano, inclusive assumindo tarefas e funções antes
exercidas por este. Desenvolvem-se habilidades que antes não eram utilizadas. Na conciliação
dos desejos e lembranças opostas (“fui feliz com quem hoje me faz infeliz”) a fase de
reorganização se processa, pois uma nova vida precisa ser vivida. E quando menos se vê a dor
da separação e da perda, chega-se o instante em que o dor não dói mais.
FILHOS DO DIVÓRCIO
101
Comediante estadunidense falecido em 1977, considerado um dos mestres do cinema de humor.
51
A separação conjugal (divórcio) tende a desorganizar o sistema familiar a sua volta como
um todo. Isto inclui os filhos, caso o casal os tenha. Tal desestabilização emocional é menos
resultado da separação em si e mais da maneira como ela é vivenciada e administrada pelo casal.
Se para muitas pessoas já é um tanto difícil conservar um casamento ao longo do tempo, mais
complexo ainda é proteger psicologicamente os filhos quando da ocorrência de um divórcio
entre os pais.
Regra geral a família funcional passa um sentimento de proteção e amor aos filhos,
principalmente quando crianças. A separação dos pais, na infância dos filhos, tende a ameaçar
a sensação anterior de estabilidade, amparo e abrigo. Dependendo da faixa etária que o filho se
encontre o divórcio dos seus pais e toda mudança daí decorrente podem resultar em
sentimentos de culpa, ansiedade e medo, bem como as crianças podem se mostrar irritadas,
desconfiadas, inseguras e mal humoradas.
Na infância as crianças necessitam tanto do contato com os pais quanto do conforto e
segurança que estes lhe propiciam. A separação dos pais é um momento potencialmente crítico,
tornando a realidade dos infantes confusa, podendo, inclusive, comprometer o
desenvolvimento saudável dos mesmos.
É comum que o impacto da separação dos pais traga repercussões, algumas delas tais
como:
Tristeza;
Desilusão com um ou ambos os pais;
Vergonha;
Sentimentos de culpa;
Receios de serem abandonadas e não amada;
Agressividade;
Perturbações psicossomáticas;
Queda do sistema imunológico;
Transtornos alimentares;
Alterações do sono;
Queda no rendimento escolar;
Dificuldades sociais.
O divórcio pode ser considerado uma espécie de remédio a um casamento que deixou
de ser minimamente satisfatório, todavia não será considerado um remédio pelos filhos
pequenos. Como escrevem as professoras americanas Júlia Lewis, Judith Wallerstein e Sandra
Blakeslee, “para a criança o divórcio é a causa inicial das dificuldades subsequentes, não a
52
solução para o casamento problemático. Não querem adaptar sua vida ao divórcio, tentam fazer
com que o divórcio vá embora, querem é restaurar o casamento... É difícil para as crianças
distinguir seus fortes desejos da realidade102”.
O efeito da separação dos pais na criança em relação à saúde mental destas tem sido
alvo de vários estudos e pesquisas. Quando o conflito interparental é elevado, marcado por
desavenças, altercações, bate-bocas e até agressões físicas, eleva-se igualmente a
potencialidade nociva de tais choques e brigas no funcionamento mental dos filhos pequenos
em processo de desenvolvimento psicoemocional, estando eles (filhos) propensos a evoluírem
para quadros depressivos e ansiosos. Discórdias parentais, separação ou divórcio, por exemplo,
aumentam a possibilidade do prosperar do Transtorno de Ansiedade de Separação (TAS)103.
Em princípio todo rompimento conjugal de alguma maneira gerará algum dano de curto
prazo nos filhos pequenos, afinal a criança desde sempre até então estava acostumada à família
intacta, isto é, a convivência mútua com ambos os genitores. O ciclo de vida familiar sofre assim
uma modificação não normativa (separação sistêmica), o que vai exigir dos filhos infantes uma
capacidade muitas vezes precoce de adaptação forçada às mudanças.
O impacto do divórcio terá suas significativas diferenças dependendo da faixa etária dos
filhos. Desse modo Monica McGoldrick e Betty Carter104 apresentam pesquisas em que crianças
entre seis e oito anos demonstram sofrerem mais o abalo da separação de seus pais. Em torno
dos seis e oito anos a criança é suficientemente crescida para entender o que está acontecendo,
contudo não tem maturidade emocional ainda para lidar com o impacto do rompimento
sistêmico. É comum, portanto, ela exibir tristeza e saudade em relação ao genitor que sai de
casa, e tem ela a fantasia de que pode reaproximar os pais. Em outros casos, citam as referidas
autoras, algumas crianças são levadas a assumirem papéis paternos, passando, com isso,
prematuramente a ter responsabilidades adultas que lhes são emocionalmente prejudiciais.
Abaixo um rápido resumo de alguns problemas que podem resultar do divórcio parental:
102
Filhos do Divórcio, pág. 132, ed. Loyola. 2002.
103
O TAS é caracterizado, segundo o DSM-V, como uma reação anormal a uma separação de um ente
bem próximo, separação esta que pode ser real ou imaginária, e que interfere significativamente nas
atividades diárias e no desenvolvimento do indivíduo. O TAS pode gerar visível sofrimento psíquico,
podendo, também, levar a várias prejuízos e consequências psicossociais, e é preditivo de transtornos
psiquiátricos adultos, entre eles o transtorno do pânico.
104
Op. Cit.
53
Durante O estado de ânimo da gestante (mãe) pode ter influência direta no feto,
gestação podendo este nascer abaixo do peso normal, bem como apresentar
atraso no desenvolvido cognitivo e motor.
O bebê é como se fosse uma esponja, ou seja, tende a absorver tudo ao
seu redor. Dependendo do clima emocional ambiental, principalmente
da mãe, o infante é propenso a ter noites mal dormidas, comportamento
0 – 2 anos irritadiço, sintomas psicossomáticos (mal-estar, dor de barriga, febre sem
motivo aparente). Se estiver com um pouco de mais idade é usual
apresentar pesadelos noturnos, assim como desânimo e redução das
brincadeiras infantis.
A criança ainda não entende bem o que é a separação dos pais. Pensa
que a saída de uma dos genitores de casa é culpa sua e, por isso, tende a
2 – 6 anos reagir ou sendo muito obediente (na fantasia de que se um bom filho o
papai (ou mamãe) voltará para casa), ou ficando agressivo e rebelde. O
medo de serem abandonadas também é corriqueiro nesta faixa etária.
Surgem sentimentos de rejeição, fantasias de reconciliação e problemas
6 – 8 anos comportamentais, tais como agressividade e irritabilidade, desejo de
isolamento e queda na produção escolar.
9 – 12 anos É uma época em que os filhos podem manifestar sentimentos de
vergonha pelos pais, assim como raiva dos mesmos devido à separação.
Na adolescência o divórcio dos pais tende a causar problemas como
amadurecimento acelerado (quando o adolescente assume o lugar do
13 – 18 anos genitor ausente), conflitos de lealdade ou até distúrbios de conduta
caracterizados por conflitos com figuras de autoridade, furtos e
pequenas delinquências e consumo de álcool e outras drogas.
Embora a separação dos pais possa e deva gerar alguns problemas adaptativos nos
filhos, isso não significa que todos os filhos de pais separados irão desenvolver problemas
psicopatológicos ao longo da vida. Como acima dito, muito dependerá da maneira como os pais
se separam e como eles administram o processo de dissolução da conjugalidade, afinal terminar
a conjugalidade não é sinônimo de terminar a paternidade. A respeito disso, inclusive, a doutora
e professora em Psicologia Vera Regina Ramirez - citada por Cristina Dantas, Bernardo Jablonski
e Terezinha Féres-Carneiro, professores da PUC (RJ), em Paternidade: considerações sobre a
relação pais-filhos após a separação conjugal105 - menciona haver encontrado em suas pesquisas
e investigações com pais separados depoimentos de que o relacionamento com os filhos
melhoraram qualitativamente após divórcio, porque o tempo passado junto com os filhos
crianças é mais dedicado realmente aos filhos, proporcionando, com isso, um aumento na
cumplicidade e na intimidade entre eles. Também nos pode ser útil observar os resultados de
pesquisa qualitativa efetuada com jovens adultos (filhos de pais separados) pela doutora em
Psicologia e professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Leila Torraca, apresentado
no artigo Família Pós-Divórcio: a visão dos filhos106, que analisou como eles perceberam as
mudanças ocorridas em suas vidas a partir da separação conjugal dos seus pais, especialmente
em relação à convivência familiar.
É importante, portanto, que os filhos desde sua infância mantenha e fortaleçam seus
vínculos afetivos com seus genitores após a separação conjugal destes, afinal é no seio da família
mais próxima ao qual a criança pertence que se iniciam e se estabelecem suas primeiras relações
interpessoais. Evidente que a família contribui sobremaneira para um saudável
desenvolvimento do ser humano a partir de sua meninice, e, mesmo após a separação do núcleo
familiar, possa continuar presente para a criança na forma como ela vive e no contexto e
ambiente que ela está inserida.
105
Disponível in: http://www.scielo.br/pdf/paideia/v14n29/10.pdf.
106
Disponível in: http://www.scielo.br/pdf/pcp/v27n1/v27n1a04.pdf.
54
ALIENAÇÃO PARENTAL
107
Escritor português, autor de obras como Último Volume e Como é Linda a Puta da Vida.
108
Ensaísta, filósofo e poeta de origem libansesa. Autor de várias obras de sucesso no século XX, sendo a
mais conhecida O Profeta.
55
Quando um pai ou uma mãe que é responsável pela guarda de seus filhos, devido a seus
sentimentos raivosos com o outro genitor, utiliza dos filhos como instrumento de agressão e
vingança frente a este, estamos no âmbito da alienação parental. Os casos mais comuns estão
relacionados a situações onde o progenitor detentor da guarda apega-se excessivamente à
criança impedindo este de conviver com o outro progenitor. Tal genitor passa a desqualificar o
outro, inclusive inventado inúmeras histórias inverídicas sobre o mesmo com vista a
desacreditá-lo e desmoralizá-lo junto à criança.
Consciente ou inconscientemente o genitor alienante treina a criança para que rompa o
laço afetivo com o outro genitor, criando assim danosos sentimentos de ansiedade e medo
frente o genitor alienado. Isso é resultado de um subjacente ardor de vingança, tendo em vista
o alienador não haver conseguido elaborar o luto da separação. Tal treinamento é na verdade
uma espécie de “lavagem cerebral” na criança, pois acaba por provocar o implante de falsas
memórias109. Nesta luta do genitor guardião pelo afeto do filho em detrimento do genitor não-
guardião se oculta agressões mentais ao psiquismo da criança. Progressivamente vai se
destruindo a imagem que o filho faz do pai alienado.
Em 2010 no sistema judicial brasileiro foi criada a Lei da Alienação Parental (lei 12.318).
Abaixo descrevemos na íntegra os artigos 2º e 3º da referida lei:
109
O fenômeno das falsas memórias é visto como o fato de haver lembrança de eventos que nunca
ocorreram ou não ocorreram exatamente como a lembrança se dá. A implantação de falsas memórias é
quando são geradas a partir de sugestões de informações inverídicas e que são incorporadas pelo
indivíduo como se fossem realmente vividas. Segundo a Universidade de Berkeley na Califórnia,
informações transmitidas através de sugestionabilidade podem aumentar não somente a frequências das
falsas memórias, como também a confiança do sujeito nessas memórias.
56
criança que paulatinamente é doutrinada pelo genitor guardião e acaba por ter repulsa ao seu
outro pai. Ele assim descreve a SAP: “um distúrbio que surge principalmente no contexto de
disputas de custódia da criança. Sua manifestação primária é a campanha do filho para denegrir
progenitor, uma campanha sem justificativa. A desordem resultada da combinação da
doutrinação pelo progenitor alienante e da própria contribuição da criança para o aviltamento
do progenitor alienado".
De acordo com Gardner a síndrome se caracteriza pela apresentação dos seguintes
sintomas:
110
Psicologia: teoria e prática, v.7 n.1 São Paulo jun. 2005, disponível in:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-3687200500010000.
57
111
Trecho do poema de abertura do documentário A Morte Inventada, um filme do diretor e roteirista
brasileiro Alan Minas. Filme disponível in: https://www.youtube.com/watch?v=RBoQQqsYfDM.
58
Quem casa quer casa, diz o dito popular. Pois é, casamento parece representar a criação
de um novo ninho, uma nova morada, uma nova família nuclear. A família nuclear completa é
aquela definida como um casal com filhos. Claro que há casais que decidem não ter filhos, ou
não podem e não querem adotar. Sim, é verdade. Mas a maioria das pessoas se casa não
somente para casarem, mas para construírem eles mesmos suas próprias famílias, incluindo
filhos. É como aquele quase mandamento bíblico: crescei e multiplicai-vos. Aliás, não só bíblico,
afinal se crescêssemos e não gerássemos filhos não haveria humanidade.
O presente capítulo, portanto, irá agora abordar a chegada de um filho ao contexto do
casal. Onde antes eram dois (díade) agora são três (tríade)113. Isto se não muda tudo, muda
muita coisa, afinal não é a toa que o nascimento dos filhos é uma das etapas fundamentais do
ciclo de vida familiar. E não custa nada lembrar que cada fase evolutiva do ciclo familiar de vida
é um período de crise (crise normativa), no sentido adaptativo do termo.
O nascimento de um filho, e mais ainda do primeiro filho, é um acontecimento
significativo no seio do casal e da família ampliada. Todo mundo acrescenta mais um grau de
parentesco, ou seja, os cônjuges viram pais, os pais dos cônjuges viram avós, os irmãos dos
cônjuges viram tios, e assim por diante.
Para muitos a chegada do rebento é um momento maravilhoso, mas é igualmente um
momento tumultuado, em grau maior ou menor, dependendo das circunstâncias e do casal. Por
mais que os futuros pais se preparem para a chegada do herdeiro, nunca nenhum adulto está
plenamente preparado para as tarefas e funções que a progenitura nos traz. É necessário um
tempo maturativo para que os membros do casal aprendam a lidar melhor com as novas
competências. Engravidar, depois parir, não acaba com a boa vida do casal, mas modifica
radicalmente a vida antes vivida sem filhos. Digamos que não engravidamos e parimos apenas
prole ou filhos, mas também uma nova forma de se viver.
Maternidade e paternidade são vividas de maneiras diferentes. Segundo a psicóloga
Vera Regina Ramires114 maternidade e paternidade não são vividas da mesma maneira. Em um
contexto heterossexual, por exemplo, o pai, o homem do casal, frequentemente se sente como
que excluído de uma relação de maior intimidade e proximidade que é, inclusive, a maior relação
de intimidade e proximidade que o ser humano pode ter: mãe-bebê. Filhos não só nascem, mas
provocam mudanças na vida e na personalidade dos pais. Como pais eles terão a oportunidade
de reverter suas próprias experiências de filhos, só que agora assumindo o outro lado da mesa,
isto é, sendo eles (que um dia foram crianças, filhos) os pais dessa nova história que começa.
Mas será que começa? Ou será que é uma continuação de uma história antecedente?
112
Jornalista, escritor, dramaturgo, desenhista e humorista brasileiro.
113
No tocante ao primeiro filho.
114
O Exercício da Paternidade Hoje, ed. Rosa dos Tempos, 1997.
59
A chegada de uma criança representa tanto uma mudança social quanto psicológica no
casal. Após o parto o primeiro cenário que se tem é frequentemente uma forte proximidade
recém-nascido e mãe (preocupação materna primária116) e, de certo modo, uma exclusão desta
simbiose materna-filial da figura do pai. Alguns pais têm que lutar por essa sensação de perda e
exclusão, até que a família se acomode às mudanças e vá encontrando um lugar para ele. A
díade do casal muda seu eixo para uma díade mãe-filho, e finalmente transforma-se em uma
tríade psicologicamente falando.
A vivência, por exemplo, do primeiro filho tende geralmente a ser mais mobilizadora do
que a chegada de outros rebentos, principalmente por inaugurar uma nova família nuclear e
também provocar mudanças de status e de vida no casal, que avança para uma nova etapa
desenvolvimental (quem antes foi cuidado na condição de filho, hoje passa a cuidar na condição
de mãe/pai). Novas díades são abertas no seio da nova família nuclear, além da anterior
relacionada aos cônjuges, a saber: mãe-filho e pai-filho. Por mais que se queira inexiste um
manual que ensine os novos pais a serem pais daquele(a) filho(a) específico. Cada mãe/pai tem
que aprender com seu filho a ser mãe/pai desse filho específico. E isso acontece com todos os
filhos, não importa se primeiro, segundo, terceiro ou último. Cada filho é um filho específico,
peculiar e singular.
115
Paternidade: vivência do primeiro filho e mudanças familiares, disponível in:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1516-36872011000100011&script=sci_arttext.
116
Conceito desenvolvido pelo psicanalista inglês Donald Winnicott para referir o estado psicológico no
puerpério da mãe no qual existe um considerável aumento de sua sensibilidade em relação ao filho
lactente. Tem início na gestação e se prolonga às primeiras semanas pós-natal.
60
PROCESSO DE PARENTALIZAÇÃO
117
Período pós-parto que vai do nascimento do filho até ao retorno da menstruação na mulher.
118
Adaptação à Parentalidade: o nascimento do primeiro filho, pág. 6, disponível in:
http://www.scielo.mec.pt/pdf/ref/vserIVn3/serIVn3a03.pdf.
119
A tristeza materna tem certa raiz fisiológica (alterações hormonais, privação do sono, antecedentes
familiares, etc.). Estima-se que cerca de mais de 50% das mulheres, podendo chegar até 80%, apresentam
sinais de tristeza e irritabilidade normalmente três dias após o parto em média podendo durar até 15 dias.
Também se estima que cerca de 15/20% das mulheres são afetadas pela depressão pós-parto (DPP), que
é uma alteração do estado de humor associada ao parto. Os principais sintomas da DPP são: astenia,
ansiedade, alteração no sono e na alimentação e tristeza profunda.
120
Escritor e poeta espanhol.
61
A filósofa francesa Simone de Beauvoir afirmava que não se nasce mulher, torna-se
mulher. A mesma coisa acontece com os pais: não se nasce mãe ou pai, torna-se mãe ou pai.
Tornar-se mãe e pai é para quem até então nunca foi uma nova função.
Não basta apenas querer ter um filho, mas querer ser mãe ou pai. A parentalidade 121
não representa tão somente os aspectos biológicos, porém vai além, mais além. É necessário
que haja no psiquismo a própria aceitação da parentalidade que, inclusive, passa pela herança
dos próprios pais dos pais, isto é, é um trabalho psíquico (consciente e inconsciente) que
consiste na elaboração do que se herda dos seus pais (da época de quando se era filho aquele
que hoje vai ser pai). Nesta perspectiva tornar-se mãe ou pai é algo que envolve
intergeracionalidade122. Assim, a parentalização (tornar-se mãe ou pai) é um processo complexo
da constituição psíquica do ser que vai assumir o papel parental.
O processo de parentalização se inicia com a criança (filho) que fomos e com os pais que
tivemos. Neste sentido a parentalização se inicia bem antes de se ter um filho, pois tem seu
prelúdio no filho que fomos. Trata-se, acima de tudo, de um processo de transição.
A doutora em Psicologia Clínica e professora da PUC (RJ), Silvia Maria Abu-Jamra Zornig,
em seu artigo Tornar-se Pai, Tornar-se Mãe: o processo de construção da parentalidade123
escreve que a pré-história da criança se inicia na história individual de cada um dos pais; o desejo
de ter um filho reatualiza as fantasias de sua própria infância e do tipo de cuidado parental que
puderam ter. Outro importante teórico sobre o desenvolvimento infantil o psiquiatra norte-
americano Daniell Stern124 a0 se posicionar a respeito também diz que as representações
parentais se iniciam antes do nascimento de um filho, e que tais representações parentais,
principalmente a materna, antecedem longamente a concepção. Sustenta Stern, portanto, que
não se pode pensar a parentalidade como restrita à concepção, gestação e parto, pois as
identificações com os pais feitas desde a infância influenciam e até determinam a forma como
o indivíduo poderá exercer e manifestar sua própria condição de pai ou mãe.
Segundo o psiquiatra e psicanalista francês Serge Lebovici a história transgeracional
125
inclui além da história dos pais também a história dos avôs e sua conflitos. Todos esses
elementos vão se concentrar no chamado mandato transgeracional.
121
Parentalidade foi um termo imaginado, em 1961, pelo psiquiatra e psicanalista francês Pierre Claude
Recamier para designar patologias psiquiátricas da maternalidade. Na ocasião Recamier definiu
maternalidade como um conjunto de processos psicoafetivos que se desenvolvem e se agregam na
mulher por ocasião da maternidade. Ao lado da maternidade acrescentou-se também a paternalidade.
122
Que se realização entre duas gerações, ou seja, a geração dos nossos pais e a nossa geração enquanto
pais.
123
Tempo Psicanalítico, vol.42, nº 2, jun. 2010, disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-48382010000200010
124
O Mundo Interpessoal do Bebê, Ed, Artmed, 1992.
125
Transmissão psíquica entre gerações. Enquanto a intergeracionalidade envolve duas gerações (pais-
filhos) a transgeracionalidade envolve, no mínimo, três gerações (filhos-pais-avôs).
62
Tornar-se mãe e pai não é uma tarefa tão simples como inicialmente possa aparentar
aos olhares mais ingênuos, principalmente em termos funcionais. A chegada de um filho muda
126
A Transmissão Geracional em Diferentes Contextos, pág. 80. ed. Summus, 2008.
127
A Análise das Interações Pais/Bebê em sua Abordagem Psicodinâmica: clínica e pesquisa, pág. 43, in:
Observando a Interação Pais-Bebê-Criança, Piccinini, C.A. e Moura, Maria L.S. (orgs.), ed. Casa do
Psicólogo, 2007.
128
Escritor francês, Nobel de Literatura de 2014.
63
muito o ambiente familiar. Nada será tão exatamente igual quanto antes, não importa se será o
primeiro, o segundo, o terceiro ou décimo filho(a).
O processo de parentalização é um processo de elaboração do luto desenvolvimental. O
luto desenvolvimental aqui em questão é o luto relacionado à perda do filhos idealizado e
imaginado pelos pais em relação ao filho real que nasce e se desenvolve.
Além do filho sonhado muito antes até da concepção, o próprio tempo de gestação
possibilita aos futuros pais envolvidos projetarem suas fantasias e ideais na criança que ainda
não nasceu, bem como eles mesmos nos seus novos papéis (mãe/pai). O tempo gestacional,
portanto, é um tempo propiciador de um espaço psíquico onde a subjetividade do bebê
psicologicamente esboçado se processa. No caso do primeiro filho, por exemplo, a chegada de
um terceiro elemento ao casal e a mudança posicional do status que antes detinham de serem
filhos dos seus pais que agora passa a também posição de serem pais de seu filho(a),
psiquicamente reedita a situação edípica e instiga projeções de suas característica mentais
infantis (“ninguém se cura da própria infância”, Comte-Sponville) sobre a criança em gestação.
A chegada a partir do parto do filho real irá contrapor o mesmo em relação ao filho
imaginado e idealizado por cada um dos seus genitores. O filho real igualmente irá contradizer
a relação materno-filial, bem como a paterno-filial, nos seus aspectos ficticiamente sonhados e
eivados de perfeição e narcisismo. Um filho real não é a cópia exata e fidedigna de um filho
fantasiado imaginativamente.
Algumas pessoas, umas mais outra menos, terão dificuldade em abandonar a posição
imaginada de mãe/pai ideal, assim como a de sua contrapartida que é a do(a) filho(a)
idealizado(a). No tocante à mãe, afirma Daniel Stern129, com o nascimento do seu filho se instala
uma organização psíquica que ele cunhou em constelação materna130. Toda uma mudança
psíquica ocorre quando se torna mãe para vir a atender às necessidades do papel maternal. A
nova mãe carece de uma figura materna para amparar suas habilidades parentais. Geralmente
tal figura representa sua própria mãe idealizada.
Pelo acima exposto, em relação às alterações psíquicas referentes às transformações do
sujeito psicologicamente em mãe ou pai, três deverão ser os lutos desenvolvimentais
envolvidos, a saber: o luto dela própria enquanto mãe imaginariamente idealizada, do filho(a)
idealizado e da relação mãe-filho sonhada. Como diz Stern131, o nascer de um filho na vida dos
pais provoca uma neoformação em seus psiquismos, e que a inclusão do bebê na mente destes
produz mudanças profundas.
O lugar de um filho(a) no âmbito da família e do desejo dos pais são temas centrais no
estudo da parentalidade. Toda uma metamorfose se sucede. Ninguém está de todo preparado
para ser pai/mãe especificamente de um determinado bebê. E é neste sentido que o psiquiatra
e psicanalista francês Serge Lebovici entendia a parentalização como um processo em que tanto
o homem quanto a mulher aprendem a ler as necessidades do bebê por meio dos gestos.
Pode-se dizer que ser pai/mãe é uma aprendizagem psicológica. O trabalho psíquico
começa, pois, pela criança imaginária (idealizada). Quando o filho nasce os pais necessitam
passar por uma mudança psicológica que é a de lidar com o filho real versus o filho idealizado.
Quanto mais conflitivo for essa relação (real x ideal) maior será a frustração dos pais. O filho
real, por sua vez, provoca uma desidealização no imaginário dos pais. Ao longo de toda a infância
o embate entre o filho idealizado e o filho real, além das frustrações normais do processo, pode
gerar níveis de sofrimentos acima de um mínimo tolerável a ponto de provocar - dizem os
estudiosos do campo - distúrbios na relação bebê-pais que, por sua vez, podem gerar
impedimentos ou dificuldades no processo de desenvolvimento da criança.
129
A Constelação da Maternidade, ed. Artmed, 1997.
130
Segundo Stern a constelação materna é uma organização psíquica que se instala na mãe com o
nascimento do bebê, que determina uma nova configuração de comportamentos, susceptibilidades,
fantasias, medos e desejos.
131
Op. Cit.
64
É a partir do parto que os genitores irão ter encarar o filho real representado no bebê
real. Ele não será igual ou idêntico ao bebê imaginário, fantasmático e mítico. Neste sentido o
bebê real será uma frustração aos bebês idealizados consciente e inconscientemente. Caberá a
cada pai ter que lidar com as perdas dos outros bebês (imaginário, fantasmático e mítico) e
aprender a conviver e a amar seu filho real.
De alguma forma algo será “depositado” no bebê ideal, que durante seu processo de
desenvolvimento e crescimento sofrerá diretas ou veladas cobranças para corresponder às
idealizações parentais e culturais. De certa maneira é muito provável que alguma idealização
haverá de marcar a relação da criança com seus pais. O risco e perigo estão na intensidade dessa
idealização e sua respectiva cobrança e correspondência, o que na literatura comumente
chamamos de mãe intrusiva. A mãe intrusiva é aquela que não vê no corpo do filho seu
verdadeiro potencial de Self, mas sim a imagem do filho que ela idealiza e quer. Assim, a mãe
intrusiva é uma mãe não-empática. Ao invés de ser uma mãe suficientemente boa132, a mãe
intrusiva é pouco ou nada acolhedora às necessidades psíquicas e afetivas do bebê, denotando
amar seu filho naquilo que ele corresponde às necessidades carenciais dela. A mãe intrusiva,
por conseguinte, impede a abertura do espaço potencial do filho.
132
Expressão criada por Winnicott para descrever uma mãe boa o suficiente para que o bebê possa
conviver com ela sem prejuízos psíquicos na construção do seu ser. Não se trata de uma mãe perfeita,
porém humanamente falha e ao mesmo tempo acolhedora às necessidades afetivas e psicológicas de seu
filho. É como se a criança para ser amada tivesse que desenvolver uma personalidade que não
corresponde com seus verdadeiros potenciais como pessoa.
65
A mãe intrusiva é uma mãe invasiva133. Invade o psiquismo do infante em formação com
vistas a moldá-lo à sua imagem e perfeição. Tal relação (mãe intrusiva-bebê) tende a levar a
criança a reagir às falhas de adaptação da mãe. É como se o psiquismo do bebê tivesse de
renunciar a esperança de ver às suas necessidades satisfeitas e adapta-se às expectativas de sua
mãe invasiva, passando a adotar um modo de ser falso, artificial e inautêntico. O ser do filho
cresce assim como um reflexo de outro filho (o idealizado pela mãe intrusiva) que não é
verdadeiramente ele134. Assim ocorrendo o psiquismo em sua fase imatura e oral sofre o que se
denomina de trauma cumulativo, cuja falha persistente produz uma espécie de fendas repetidas
que se acumulam de maneira silenciosa e invisível nas bases e nos alicerces da construção da
edificação da personalidade humana.
As representações parentais, portanto, podem dificultar o desenvolvimento de
independência e autonomia do Verdadeiro Self dos filhos, gerando, assim, condições nefastas
que não somente prejudicam a continuidade do ser, como também plantando sementes para
futuras psicopatologias no adulto que o bebê um dia será. Para um crescimento saudável da
prole é necessário que o processo de parentalização dos genitores permita que o bebê real que
ali está nos braços parentais tome lugar tanto do bebê fantasmático, quanto do bebê imaginário
e do bebê mítico.
133
A mãe intrusiva não se confunde com uma mãe perversa ou má propriamente dita. Trata-se de uma
mãe de “bom coração”, que realmente acredita que seu filho só poderá ser feliz se corresponder às suas
expectativas idealizadas e narcisistas. Ela ama sua criança, porém naquilo que ela condizer com seus
anseios e ideias do que deve ser um filho.
134
Winnicott denominou de Falso Self. Segundo ele o Falso Self é uma personalidade inautêntica, isto é,
o psiquismo infantil em desenvolvimento para se proteger se organiza de maneira a não ser quem ele
realmente é ou poderia ser. O Falso Self, assim, encobre o Verdadeiro Self.
135
Um dos maiores escritores de língua alemã, que viveu entre os anos de 1749 e 1832. Sua principal obre
prima é o drama trágico Fausto.
66
O nascimento de mais filho ou filhos transforma o filho já existente, até então único, em
primogênito. O ambiente social do agora filho primogênito, por sua vez, sofre diversas
mudanças significativas e profundas. A pediatra e psicanalista francesa Françoise Dolto assim
descreveu a chegada de um irmão mais novo:
“O nascimento do irmão mais novo (qualquer que tenha sido a maneira como foi preparado)
sobrevém como uma tempestade súbita no céu sereno em que o pai e a mãe, aliás o sol e a
terra, serviam de referência inter-relacional para a verticalidade do mundo animado e
inanimado, onde a criança conhecia e garantia sua imagem no corpo137”.
O irmão que chega não deixa de ser para o filho já existente um intruso, um rival. Ambos
irão, de várias maneiras, disputar a atenção e o amor dos pais. O filho mais velho, que
136
Versos iniciais do poema Irmão, Irmãos.
137
Apud Memória e Temporalidade: sobre o infantil em Psicanálise, Bernardo Tanis, pág. 82, Casa do
Psicólogo, 1995.
138
Gestação do Secundo Filho: percepções maternas sobre a reação do primogênito, in:
http://www.scielo.br/pdf/estpsi/v28n1/a07v28n1.pdf.
67
139
Tendência existente em certos organismos, através de mecanismos metabólicos de regulação, para o
equilíbrio e a conservação. Trazido da biologia para o campo da psicologia pelo psiquiatra norte-
americano Don Jackson, a homeostase familiar representa o estado psicodinâmico de equilíbrio que o
sistema familiar busca manter ou restaurar. A família, neste sentido, é vista como um sistema ativo que
se autogoverna e se autorregula.
140
Disponível in: http://www.scielo.br/pdf/pe/v15n1/a11v15n1.
141
Publicado em Estudos de Psicologia 18(2) abril-junho/2013, pág. 277, disponível in:
https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/115536/000939038.pdf?sequence=1.
142
O complexo fraterno, segundo o psicanalista francês Jean Laplanche, é configurado pelo menino ou
pela menina, pelos pais e pelo irmão ou irmã. Trata-se de uma triangularização a quatro, o complexo
fraterno, portanto, exerce importante função estruturante no psiquismo do infante.
143
O Complexo Fraterno, ed. Ideias e Letras, 2016.
68
Assim escreveu psicanalista argentino Luis Kancyper sobre esse encontro do irmão mais
velho com o irmão recém-chegado:
144
Confronto de Gerações: estudo, pág. 65, ed. Casa do Psicólogo, 1999.
145
O Complexo Fraterno: reflexões acerca do ciúme e da inveja entre irmãos, disponível in:
http://rbp.celg.org.br/detalhe_artigo.asp?id=153.
146
Jornalista, político e cientista, um dos principais líderes na Revolução Americana de 1776.
69
ESTILOS PARENTAIS
Não basta ser pai, tem que participar, dizia um antigo slogan de uma campanha
publicitária televisiva.
O ser humano não nasce evidentemente socializado. Um recém-nascido é o nosso
componente animal em estado bruto. Em seu processo civilizatório a criança vai sendo
socializada, isto é, vai assimilando gradualmente características do grupo social a que pertence.
Trata-se de um aprendizado social, processo este em que o indivíduo vai interiorizando regras,
valores e hábitos socioculturais. É a transformação de um indivíduo puramente biológico em um
ser humano biopsicossocial.
147
Escritor francês do século XIX, autor de A Comédia Humana.
148
A socialização primária tem um valor primordial para o indivíduo e deixa marcas profundas em toda a
sua vida, visto ser aí que se constrói o primeiro mundo não biológico do ser humano. É essencial na
construção da personalidade humana.
70
Os seres humanos, embora humanos, não são iguais. Se as pessoas não são iguais,
naturalmente que os pais também não são iguais. Como cada mãe e pai encara a educação e
maneja o processo de socialização primária dos seus filhos divergem em estilos dessemelhantes.
Neste sentido os estilos parentais se caracterizam por um conjunto de atitudes e
comportamentos que os pais exercem em suas práticas educativas. Inicialmente Diana
Baumrind classificou os estilos parentais em três, a saber: autoritativo, autoritário e permissivo.
Posteriormente novos pesquisadores subdividiram o estilo permissivo em dois: indulgente e
negligente. Vejamos, então, cada um deles:
O estilo autoritativo é aquele em que os pais educam de maneira empática com seus
filhos, portanto, são pais abertos ao diálogo. Já o estilo autoritário é aquele em que os pais
exercem sua autoridade de pais de maneira autoritária, isto é, são severos, arbitrários,
dominadores e rígidos. São pais que valorizam a imposição e a punição como métodos
socializantes, não sendo, portanto, abertos ao diálogo com os filhos. O estilo permissivo, por
sua vez, é como o próprio nome diz: são pais excessivamente tolerantes e condescendentes.
Tal classificação baseia-se na perspectiva de duas dimensões, a exigência e a
responsividade. Desse modo podemos compreender que pais autoritários são exigentes, mas
não responsivos; enquanto que os pais permissivos indulgentes são bastante responsivos,
porém não exigentes; bem como os permissivos negligentes nem são responsivos nem
exigentes. Os pais autoritativos (também chamados de democráticos), contudo, são exigentes e
responsivos, há uma reciprocidade, os filhos devem responder às exigências dos pais, mas estes
também aceitam a responsabilidade de responderem, o quanto possível, aos pontos de vista e
razoáveis exigências dos filhos.
149
Segundo os professores norte-americanos de Psicologia Laurence Steinberg e Nancy Darling, define-
se estilos parentais como um conjunto de atitudes que são comunicadas à criança/jovem e que, todas
juntas, criam um clima emocional, no qual os pais atuam de determinada forma.
150
Uma combinação dos termos autoridade + participativo.
151
Escritor, fundador da cadeira nº 2 da Academia Brasileira de Letras.
71
AUTORITATIVO
+ +
AUTORITÁRIO
+ -
INDULGENTE
PERMISSIVO - +
NEGLIGENTE
- -
(+) presença (-) ausência
152
Vide Estilos Parentais em Famílias com Filhos em Idade Escolar, in:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-82202012000200008, e A
Identificação de Estilos Parentais: o ponto de vista dos pais, in:
http://www.scielo.br/pdf/prc/v17n3/a05v17n3.pdf.
153
Vide Situações de Risco e Vulnerabilidade na Infância e na Adolescência, Cláudio Hutz, ed. Casa do
Psicólogo, 2002.
72
154
Educador e pedagogo, falecido em 1997, autor do livro Pedagogia do Oprimido. Doutor Honoris Causa
em várias universidades brasileiras e estrangeiras.
73
LEGADOS OCULTOS
Não é apenas o indivíduo humano que possui em seu interior psíquico aquilo que
convencionamos chamar de inconsciente 155. Um grupo de indivíduos humanos também forma
um inconsciente coletivo e grupal. A família igualmente.
Quando um indivíduo humano nasce ele nasce no âmbito de uma família que, por sua
vez, tem uma história grupal que antecede ao nascimento do novo membro. Neste sentido
somos herdeiros de conflitos, emoções e segredos dos nossos ancestrais. Tal herança é algo
impositiva que internalizamos sem a consciência da mesma. Quando nascemos começamos a
construir nossa história como sujeito, mas nossa história como sujeito se inicia num
entrecruzamento com a história dos nossos pais, avós e demais ancestrais156. O que se transmite
de geração a geração forma o que chamamos de inconsciente familiar. A mente humana, assim,
se forja e se desenvolve em uma trama dinâmica entre o intrapsíquico e intersubjetivo.
O psicanalista argentino Alberto Eiguer, em seu hoje clássico livro Um Divã para a
Família157, denomina o espaço psíquico surgido nas fronteiras entre o intrapsíquico e o
intersubjetivo de interfantasmatização158, espaço este onde se compartilham os inconscientes
dos membros familiares. Segundo Eiguer, conjuntamente a escolha do parceiro conjugal, a
interfantasmatização é um dos organizadores simbólicos da família, onde se estruturam a
modalidade vincular e o modo de subjetivação tanto do indivíduo quanto do grupo como um
todo.
Como uma casa antiga a família tem seu porão. Aliás, melhor dizendo, tem seus porões.
Alianças veladas, pactos e conluios inaudíveis, segredos, lembranças esquecidas de nossos
ancestrais e seus fantasmas compõem e fazem parte do chamado inconsciente familiar. Trata-
se de uma espécie de contrato secreto entre os membros familiares, resultado da memória da
história das famílias ao longo do tempo. Cada geração e cada indivíduo integram os elos de uma
cadeia humana que nos habita sem que percebamos. Como uma árvore genealógica latente ela
155
O inconsciente psíquico vai além daquilo que não se tem consciência em um dado momento
(inconsciente fenomenológico). Em termos gerais e amplos o inconsciente psíquico são processo mentais
que ocorrem sem que a parte consciente do sujeito perceba. Psicanaliticamente falando o psiquismo
humano é como se fosse um iceberg cuja parte superior à linha d’água seria a consciência e a parte
submersa o inconsciente.
156
Antes de surgir um Eu dentro do psiquismo infantil já existe um Nós ao seu redor e que lhe antecedeu.
157
Ed. Artes Médicas, 1989.
158
Circulação de material psíquico grupal.
74
No seio do grupo familiar circulam pensamentos, desejos, fantasias e afetos. Trocas são
feitas ou deixadas de serem feitas. Nas entrelinhas dos discursos e gestos familiares habitam
textos não falados e não ditos, porém agidos. Cada ser humano em particular pertence
incialmente a uma rede circular de um nós que o antecede e ao qual irá a partir de então
pertencer. Nossos antepassados, os mortos e os vivos, sombreiam a família a partir de sua
árvore genealógica explícita e implícita. Como disse Freud, nenhuma geração pode ocultar das
seguintes seus aspectos psíquicos mais relevantes e importantes.
No tocante à transmissão geracional a psicanalista Ângela Piva assim dispõe:
“Mesmo inibindo-se ou desbloqueando-se uma tendência, uma história, uma vivência, ela
jamais será totalmente abolida, e pode aparecer como impensado e portanto deixar atrás
de si um substituto como signo do que não pode ser transmitido. Independente da estratégia
usada para impedir que a transmissão aconteça, o escondido, o negado aparecerá em
gerações futuras como enigma, como impensado, como o negativo, o que acarretará para
seus herdeiros pesadas marcas a serem carregadas160”.
A pré-história de cada indivíduo humano começa muito antes dele nascer, antes até dele
ser fecundado. Todos somos, de alguma maneira, nos dizeres do psicanalista francês René Käes,
sonhos de desejos insatisfeitos. Desse modo qualquer sujeito humano é acima de tudo (ou
abaixo de tudo) um intersujeito.
A família tende a ser um grupo conservador, isto é, tende a perpetuação através da
transmissão de seus legados geração a geração. Se assim não fosse uma família não teria sua
identidade, que é muito mais do que um sobrenome ou um brasão. Compreender a
transgeracionalidade é substancial para o entendimento da psicodinâmica familiar.
O prefixo trans indica “através”, ou seja, revela os componentes que são perpassados
entre as gerações e que compõem a história familiar (consciente e inconsciente). Neste sentido
como escrevem as psicólogas Adriana Weber e Denise Falcke “o processo de transmissão
geracional baseia-se no pressuposto de que todo o indivíduo se insere em uma história pré-
existente, da qual ele é herdeiro e prisioneiro. Isso ocorre porque a identidade do indivíduo se
constitui a partir desse legado familiar que, por sua vez, define o lugar que ele passa a assumir
na família161”.
Não é difícil entender como ocorre o fenômeno transgeracional. Antes de um filho nascer,
por exemplo, o futuro pai (mãe) já foi um(a) filho (a). Muito do que este futuro pai será tem a
ver com sua personalidade e sua história pessoal. Em termos psicanalíticos a mente infantil em
formação internalizará muito das figuras parentais, gerando uma terceira instância psíquica
chamada Superego (as outras são o Id e o Ego). O Superego não significa a internalização dos
pais reais, mas sim dos superegos deles, ou seja, seus padrões morais, seus valores, seus ideais
e seus interditos. Da mesma maneira, que os superegos parentais foram consequência, por sua
vez, da internalização das figuras parentais dos seus pais. Seguindo a linha do tempo, portanto,
159
Considerado por muitos o maior nome da literatura brasileira. Viveu entre os anos 1839-1908. Entre
tantas obras-primas se destacam Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro e Quincas Borba.
160
Transmissão Geracional e a Clínica, Vincular, pág. 36, ed. Casa do Psicólogo, 2006.
161
A Dinâmica Familiar e o Fenômeno da Transgeracionalidade: definição de conceitos, in: Como se
Perpetua a Família?: a transmissão dos modelos familiares, ed. EDIPUCRS, 2005
75
podemos inferir a influência psíquica dos avós na formação do Superego dos pais que chegam
ao filho criança através dos seus genitores (geração mais próxima). À vista disso a
transgeracionalidade representa uma espécie de dialogar psicológico em três gerações: filho-
pais-avós. São, como já mencionados, processos psíquicos transmitidos à descendência, isto é,
de geração a geração, mantendo presentes do longo da historia familiar. Em outras palavras,
trata-se de padrões relacionais que se repetem, mesmo que as pessoas não se apercebam de
tais repetições.
Pelo acima exposto a transgeracionalidade se processa principalmente através de
conteúdos não-ditos, velados, não-nomináveis e não conscientemente simbolizados. Desse
modo segredos, traumas, conflitos mal resolvidos, humilhações e vergonhas pregressas podem
ser transmitidas de maneira impensável e inominável para quem recebe o legado. Assim, um
trauma ou um luto não elaborado de uma avó, por exemplo, pode ser passado indiretamente
ao neto através da mãe que, sendo filha da avó de seu filho, sofreu as consequência diretas do
trauma ou do luto não-elaborado quando da sua relação infantil com esta mãe que a criou.
“Aquilo que herdastes dos teus pais, conquista-o para fazê-lo teu”.
(Johann Wolfgang von Goethe164)
O PSIQUISMO FAMILIAR
162
A psicanalista francesa Piera Aulagnier denominava de contrato narcísico.
163
Transmissão Psíquica entre Gerações, in: http://www.scielo.br/pdf/pusp/v14n3/v14n3a04.pdf.
164
Escrito alemão do final do século XVIII e início do século XIX, considerado um dos expoentes da
literatura germânica.
76
Já dizia Winnicott, tudo começa em casa. Pois é, nesta casa onde tudo começa (família)
as pessoas que nela habitam convivem com a proximidade íntima de suas subjetividades
conscientes e inconscientes. Uma verdadeira e quase invisível urdidura e trama de desejos e
necessidades não faladas e veladas se entrelaçam em uma teia invisível de junturas e nós. Um
interjogo de transferências e contransferências permeiam os espaços interpessoais e
intrapsíquicos.
Sendo a familiar nuclear baseada na conjugalidade podemos considerar a díade (casal)
como um sistema em funcionamento, cuja dinâmica é fundamentada em um troca psíquica
entre os cônjuges. O chamado Eu Conjugal, assim é entendido como uma espécie de aparelho
psíquico que vai além do enlace entre duas personalidades, pois inclui a psicodinâmica
inconsciente compartilhada. O próprio filho (ou filhos) quando nasce já está envolto em um
espaço psíquico de triangularização afetiva.
A combinação psíquica dos membros da família gera o que o psicanalista francês Didier
166
Anzieu denominou de organizadores psíquicos grupais que são processos psicológicos que
sustentam a vida do grupo, tais como fantasias, ilusões e imaginações. Neste sentido, o
psiquismo familiar é resultante de um processo de transmissão psíquica (inconsciente) que
ocorre inicialmente no casal que forma o par conjugal e depois, com o nascimento dos filhos,
para a família nuclear como um todo. Tanto o casal forma a identidade conjugal quanto a família
a identidade familiar.
O psiquismo familiar, portanto, é fruto da intersubjetividade dos indivíduos familiares,
intersubjetividade esta que promove um entrelaçamento de demandas psicológicas entre as
pessoas envolvidas.
165
Escritor, filósofo e poeta estadunidense do século XIX.
166
O Grupo e o Inconsciente: o imaginário grupal, ed. Casa do Psicólogo, 1993.
77
Sendo a família um espaço relacional não é difícil entender que no intercâmbio dos
vínculos intersubjetivos a família produza uma dinâmica funcional que lhe é própria e singular.
Como descreve a psicóloga Cláudia Regina Pinna, em sua monografia de Pós-Graduação em
Psicologia pela PUC (RJ), a família, como unidade psicossocial, tem como funções: “proteção,
desenvolvimento psicoafetivo, transmissão de uma cultura, ideais e valores simbólicos, criação
do sentimento de pertencimento e identidade, elaboração e transformação da transmissão
psíquica geracional. Dentre a variedade de agrupamentos familiares, o vínculo é o fio condutor
que perpassa os respectivos cônjuges, chegam às famílias de origem, através da filiação (eixo
vertical) ou pela afiliação (eixo horizontal).”167
Evidente que o psiquismo familiar é um construto teórico e não uma realidade física
propriamente dita. O conceito de psiquismo familiar nos facilita melhor entender a trama
relacional subjacente ao comportamento dos membros de uma família e suas transações
afetivas e conluios inconscientes. Podemos, com tal formulação hipotética, representar e refletir
a urdidura e a textura que envolve elementos intrapsíquicos individuais que dialogam
dialeticamente entre si em uma espécie de partilhamento mental inconsciente, de modo a
constituir um funcionamento intersubjetivo, resultado de um investimento psíquico entre os
sujeitos do grupo familiar. Trata-se de uma psicodinâmica dos vínculos que ocasiona os lugares,
posições e funções exercidas no palco inter e plurisubjetivo da família.
Mediante o conceito de psiquismo mental tem-se a possibilidade de melhor enxergar a
dinâmica familiar como um espaço de circulação de afetos, desejos e demais trocas
intersubjetivas. Afinal, toda família de alguma maneira é regida por um funcionamento que é
mais do que a soma do psiquismo individual de suas partes.
167
Espaços de Moradia e Processos de Subjetivação Grupal nas Famílias da Atualidade, pág. 21, disponível
in: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/32738/32738.PDF.
168
Filósofa alemã de origem judaica, considerada uma das mais influentes do Século XX.
78
Philip Chesterfield169
Toda família tem no interior de sua história segredos, mitos e tabus. Toda família ao
longo de sua existência vai criando lendas e crenças, assim como também vai omitindo
acontecimentos e verdades. Toda família tem seu lado um quê de sagrado e outro lado um quê
de profano. Toda família tem sua máscara com que se apresenta ao mundo, porém igualmente
tem parte ocultas e conteúdos encobertos. Todas as famílias não são iguais, mas todas as
famílias são iguais, pois, cada uma a sua maneira, têm seus segredos, seus mitos e seus tabus.
Há segredos e segredos. Há segredos que não afetam o conjunto familiar, porém há
segredos que afetam. Vários podem ser os segredos em uma família, tais como abuso sexual,
adoção, aborto, doença mental, homossexualidade, suicídio, adultério, filho ilegítimo, entre
outras. Em seu artigo os psicólogos Klaus Cavalhieri, Isabela Machado da Monica Barreto e Maria
Aparecida Crepaldi170, sustentam que um segredo familiar pode deturpar os processos
comunicacionais entre os membros familiares, individuais ou subgrupais, e tal dinâmica pode
deixar a família em estado de vulnerabilidade a comportamentos sintomáticos dentro da própria
família. Segundos os autores “um segredo familiar pode ser compreendido como a omissão
intencional de qualquer informação que influencia diretamente os demais membros de uma
família ou que lhes diz respeito”.
Um segredo, qualquer segredo, contém aquilo que é da ordem do omitido, gerando,
assim, bloqueios tanto na comunicação quanto na interação entre os familiares. É o caso que
acontece quando um casal adota um filho e opta por manter segredo dessa adoção, inclusive
dos próprios familiares e da criança adotada. As razões para tal silêncio podem ser várias, tais
como evitar um trauma na criança ou receio que esta um dia procure sua família de origem, por
exemplo. Muitas vezes um segredo não revelado age como uma força silenciosa sobre todos os
personagens envolvidos e pode ter consequências futuras nefastas171.
Os não-ditos familiares representam lacunas nas histórias familiares. Trata-se de não
revelações e enigmas que circulam inverbais no âmbito familiar e que não podem ser
simbolizados ou elaborados. Um segredo exclui algo (pessoa ou evento) que não pode ser visto
ou falado e ganha seu verdadeiro lugar dentro do contexto familiar. Um não-dito em uma
criança, por exemplo, pode se expressar através de sintomas que se não forem elaborados, por
sua vez, pode perpassar à gerações futuras. Dessa maneira quando um filho criança intui ou
sente que certas verdades sobre si estão sendo sonegadas pode criar crenças ou fantasias sobre
o que não lhe é dito e isto gerar comportamentos ansiosos e/ou sintomáticos.
169
Político e escritor inglês do século XVIII.
170
Influência do Segredo na Dinâmica Familiar: contribuições da teoria sistêmica, disponível in:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-494X2017000200011#1a.
171
Vide Segredos de Família: uma abordagem geral, disponível in: https://www.maxwell.vrac.puc-
rio.br/29089/29089_4.PDF.
79
Há várias formas de classificar os segredos familiares. Uma das mais conhecidas é aquela
oferecida por Imber-Black ao classificar os segredos em positivos e negativos. Os segredos
positivos são temporários e estão normalmente ligados a surpresas como quando guardamos
escondidos algum presente a ser dado em uma determinada data especial. Os segredos
negativos, contudo, corrompem a confiança nas relações.
Os autores do livro Psicodinâmica da Família175, Pincus e Dare, destacam que em uma
família um segredo nunca é um segredo individual, mas sim um segredo sistêmico, visto haver
um processo de influência mútua que fortalece ou enfraquece os efeitos do segredo. Os
segredos em família são segredos do sistema familiar por estarem estreitamente ligados aos
relacionamentos intrasistêmicos.
Vários são os exemplos encontrados na literatura científica sobre a influência do segredo
familiar no desenvolvimento pessoal. Entre diversos estudos temos a da pesquisadora
australiana Nola Passamore et. al. (Sigilo dentro das Famílias Adotivas e seu Impacto sobre os
Adultos Adotados), citado no artigo Influência do Segredo na Dinâmica Familiar,176 que
constatou que em famílias adotivas que assumiam abertamente a adoção tendiam a apresentar
comportamentos de mais cuidado e menos controle. Já em famílias onde a adoção era mantida
em segredo era comum que membros apresentassem maiores sentimentos de solidão, padrão
de apego evitativo e ansioso, além de deterem maiores índices de problemas em
relacionamentos íntimos.
Pelo acima exposto, segredos familiares frequentemente formam alianças, divisões e
rompimentos implícitos ou explícitos dentro do conjunto da família. Claro que toda família de
alguma maneira tem lá seus segredos, todavia os segredos negativos, dependendo de sua
natureza e intensidade, podem ser danosos ou prejudiciais, principalmente quando envolvem
uma criança diretamente.
172
Ed. Artes Médicas, 1994.
173
Op. cit., pág. 99.
174
Psiquiatra, psicanalista e Doutor em Psicologia francês.
175
Ed. Artes Médicas, 1981.
176
Op. cit.
80
Os mitos familiares, por sua vez, são relatos e histórias contadas através de gerações
que resultam com o tempo em um sistema de crenças. Alberto Eiguer, em seu livro O Parentesco
Fantasmático: transferência e contratransferência em terapia familiar psicanalítica177 afirma
que “o mito familial é definido como um relato, uma história, implicando um conjunto de crenças
partilhadas por toda a família, eventualmente transmitidas há gerações”. São verdades (ou
idealizações) inquestionáveis, compartilhadas por todos e que dão origem aos sentidos na
família. Os mitos, portanto, formam um sistema de valores tanto ideológicos quanto afetivos
que modela os comportamentos, lugares, papéis e funções dos membros familiares. Neste
sentido asseguram a coesão e a homeostase da família, e fortalecem a manutenção de papéis
de cada membro específico.
Segundo psiquiatra e terapeuta familiar sistêmico alemão Helm Stierlin o mito está para
a família como o mecanismo de defesa do Ego está para o indivíduo, pois sua fundamental
função é a de ser organizador grupal178. O mitólogo romeno Mircea Eliade já dizia que conhecer
os mitos é aprender a origem das coisas.
Para os psicólogos e professores franceses Claudine Combier e Gabriel Binkowski179 um
mito familiar é, uma imagem na qual a família se constrói por si mesma e por meio da qual ela
tenta se manter. Tal mito determina o papel de cada um e alimenta o sentimento de
pertencimento ao grupo familiar. Todavia argumentam os mitos familiares podem também
provocar certos efeitos patogênicos quando de sua imobilização e estagnação. Assim, há de
se observar quais conflitos e hábitos entre pais e filhos têm raiz em quais mitos familiares180.
Considerando, portanto, que os mitos familiares são crenças bem sistematizadas e
compartilhadas, em seu interior e bojo habitam muitas regras secretas de relações, regras estas
que se preservam encobertas na banalidade corriqueira das rotinas familiares. Tais crenças se
acham tão integradas e entranhadas na vida comum da família que se tornam verdades
inelutáveis e incontestáveis.
Assim sendo, a família não é apenas um espaço psicoafetivos entre pessoas
aparentadas, mas acima de tudo é um lugar impregnado de mitos, lendas, regras, ritos, fantasias
e segredos.
177
Ed. Casa do Psicólogo, 1995.
178
Contudo, os mitos familiares também podem tomar proporções psicopatológicas quando são
baseados em crenças falsas e rigidez interativa. O não questionamento de determinadas crenças
familiares e a estereotipia das mesmas em alguns comportamentos muitas vezes podem trazer sérios
problemas nos relacionamentos intrafamiliares ou extrafamiliares.
179
Adoção e Mito: os destinos do "mito familiar" na cena da família contemporânea, disponível in:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982017000100159#aff1.
180
O mito constitui em sua essência a concepção de mundo própria da família, em que se cria a realidade
familiar. Um dos mitos mais comuns é o da união familiar (o importante nessa família é estar junto. Nas
festas e encontros não deve faltar ninguém).
181
Mitologista e escritor norte-americano, autor de livros como O Herói de Mil Faces e O Poder do Mito.
81
A ESTRUTURA DA FAMÍLIA
Podemos definir família como um conjunto interligado de pessoas que têm laços de
parentesco. Podemos também definir família como um sistema intrinsicamente ativo em
constante transformação. Ou melhor, como descreve o professor e diretor italiano da
Accademia di Psicoterapia della Famiglia em Roma, Maurizio Andolfi182, podemos considerar a
família como um sistema aberto (que permeia com o ambiente externo), composto por
unidades que interagem e se articulam entre si através de funções dinâmicas e regras de
comportamento e que busca a se adaptar às mudanças socioculturais e do ciclo vital.
Como tudo que é vivo, o grupo familiar transita pelo tempo e sofre inúmeras
transformações ao longo do seu percurso de existência. Como tudo que é vivo a família luta por
sobreviver. A sobrevivência de uma família não é sinônimo de conservação física, mas sim de
manutenção de um senso de continuidade e de identidade grupal que dá sustentação aos seus
membros.
Todo organismo vivo tem uma propensão de buscar o seu melhor equilíbrio funcional.
Trata-se de um mecanismo biológico de autorregulação que possibilita as condições adaptativas
de o organismo se ajustar às alterações que lhe são impostas, pois sem isso o organismo não
sobreviveria.
Em sua existência e luta por continuidade visa a família propiciar tanto um espaço de
coesão e pertencimento, quanto de promoção e crescimento da individuação e autonomia dos
seus membros. Em outras palavras: que haja ao mesmo tempo e de maneira equânime
intimidade e individualidade. É como a chamada “teoria do lençol curto”, se você cobre a cabeça
descobre os pés, mas se você cobre os pés descobre a cabeça.
A estrutura de uma dada família é invisível aos olhos nus. Empiricamente vemos
pessoas, um grupo de pessoas que se interagem. Porém, assim como uma edificação, suas bases,
alicerces, vigas de sustentação, as estacas escavadas e todas as estruturas em que se assenta a
família se encontram submersos por detrás de sua fachada e acabamento externo. Sem essas
fundações todo o prédio ruiria.
Para podermos “ver” a estrutura de uma família é necessário teoria. Em grego theoria
tinha o significado de contemplar, examinar, especular. Com teoria buscamos explicar ou
justificar um fenômeno. Como dizia Leonardo da Vinci183 “aquele que ama a prática sem teoria
é como o navegante que embarca em um navio sem um remo e uma bússola e nunca sabe aonde
vai parar”.
182
Por Trás da Máscara Familiar, ed. Artes Médicas, 1984.
183
Artista, cientista e inventor renascentista, nascido na Itália em 1452. Da Vince é merecidamente
considerado um dos maiores gênios da Humanidade.
82
“todas as famílias têm uma estrutura hierárquica, com adultos e crianças possuindo mais
ou menos autoridade. Os membros da família também tendem a ter funções recíprocas e
complementares. Com frequência essas funções se tornam tão entranhadas que sua origem
é esquecida, e elas são vistas como necessárias, em vez de opcionais. Se uma jovem mãe,
sobrecarregada pelas demandas do seu bebê fica chateada e se queixa para o marido ele
pode responder de várias maneiras. Talvez ele se aproxime e ajude a cuidar do bebê. Isso
cria uma equipe parental unida. Por outro lado, se ele decidir que a esposa está ‘deprimida’,
ela pode acabar em terapia para conseguir o apoio emocional do qual precisa. Isso cria uma
estrutura em que a mãe permanece distante do marido e aprende a buscar apoio fora da
família. Seja qual for o padrão escolhido, ele tende a se autoperpetuar”184.
O que diferencia o espaço de dentro de uma família e o espaço de fora são as fronteiras.
Claro que estamos falando de espaço psicoafetivos e transacionais tanto da família para com o
ambiente social externo quanto entre os membros internos da família.
Afetivamente temos dois movimentos ou direções, a saber: aproximação e afastamento.
Podemos estar pertos de alguém fisicamente, porém estarmos afastados afetivamente, bem
como podemos estar longe fisicamente de alguém, mas afetivamente próximos. É como diz o
seguinte poema da escritora Martha Medeiros:
184
Terapia Familiar: conceitos e métodos, pág. 183, 7ª edição, ed. Artmed, 2009.
83
cuja ausência
me faz companhia”.
185
Desafios Psicossociais da Família Contemporânea, págs. 26-27, ed. Artmed, 2011.
186
Doença e Família, pág. 221, ed. Casa do Psicólogo, 2004.
187
Lembremos que coabita no espaço psicológico da família tanto a necessidade de coesão e
pertencimento, quanto a necessidade de individuação. A identidade é resultado do movimento de se
diferenciar da “massa familiar”. A individuação possibilita o indivíduo existir psicoemocionalmente fora
do âmbito familiar.
188
Terapia Familiar: conceitos e métodos, pág. 184, 7ª edição, ed. Artmed, 2009.
84
RESUMO
CONCEITO DEFINIÇÃO
ESTRUTURA Padrão de organização que estabelece a forma de
interagir dos membros que constituem um
sistema.
SISTEMA Conjunto de elementos (subsistemas) que
interagem entre si e compõem um todo integral.
SUBSISTEMA Subgrupamento familiar. Indivíduo, díades,
tríades e outros conjuntos de pessoas/papéis
podem formar um subsistema.
FRONTEIRAS O que delimita um sistema ou subsistema de
outro. É o limite onde ocorrem as interações
relacionais e que define acesso e restrição ao
interior do sistema ou subsistema. São barreiras
invisíveis que regulam contatos afetivos.
FRONTEIRAS RÍGIDAS .Quando as fronteiras são muito rígidas impedem
ou permite pouco contato com os sistemas ou
subsistemas externos.
FRONTEIRAS DIFUSAS O oposto da rígida. A aproximação entre os
subsistemas é tanta (ausência de limite claro) que
carece de espaço para a diferenciação e
individuação de seus membros.
FRONTEIRAS NÍTIDAS São limites claros que ao delimitar nitidamente o
espaço de cada membro ou subsistema permite a
troca e a comunicação entre eles.
FAMÍLIA AGLUTINADA Também chamada de família emaranhada. Os
limites entre os membros são difusos e há exagero
de intimidade e falta de diferenciação entre eles.
FAMÍLIA CISMÁTICA Também chamada de família desligada. As
fronteiras entre seus membros ou subsistemas
são rígidas não permitindo proximidade afetiva e
troca de intimidade entre seus membros. Há
excesso de diferenciação e carência de coesão
familiar.
FAMÍLIA RECOMPOSTA
189
Advogada e escritora.
85
Uma família recomposta é assim denominada por ser uma nova família decorrente do
divórcio (de um ou de ambos os cônjuges)192. Ela é consequência da reorganização e da
redefinição sistêmica, conforme visto no capítulo SEPARAÇÃO CONJUGAL. Logo após a
separação da conjugalidade, em caso de casal com filhos, é normal uma etapa de
monoparentalidade, etapa onde se processa a elaboração psíquica do luto do casamento e da
190
O mosaico é constituído de pequenas peças de diversas cores que formam um todo figurativo. A família
mosaico representa uma família reconstituída na qual um dos parceiros conjugais ou ambos possuem
filhos de relacionamentos anteriores e que traz (ou trazem) para a nova família tais filhos que se juntam
aos filhos comuns do novo casamento. É uma organização familiar complexa, pois envolve uma
pluralidade de relações parentais, uma multiplicidade de vínculos e ambiguidades, resultado de uma
emaranhada rede de parentesco e relacionamentos.
191
Ed. FGV, 2007.
192
Vide artigo Famílias Recompostas, da socióloga portuguesa Cristina Lobo, disponível in:
http://www.scielo.mec.pt/pdf/spp/n48/n48a07.pdf.
86
família nuclear clássica desfeita. O núcleo familiar antes intacto se desfaz, gerando, muitas
vezes, o fenômeno da binuclearidade193. Se o ciclo de vida familiar usual se inicia com a
formação do casal, o ciclo de vida da família recomposta se acha intrinsicamente atrelado com
o ciclo do divórcio da família precedente. O surgimento de um novo casamento pós-divórcio,
como se descreve no livro Família e Psicologia194, organizado pela psicóloga e professora
universitária portuguesa Rita Francisco e outros, exige um ajustamento à complexidade das
novas fronteiras familiares e da ambiguidade dos novos papéis e funções. A reestruturação das
novas fronteiras sistêmicas familiares será fundamental para o melhor funcionamento da família
recomposta, principalmente para que possa permitir a inclusão de um novo membro na família,
abrindo também espaço para a relação dos filhos com o ex-cônjuge que não reside com os
mesmos, conjuntamente a integração do recém-chegado papel de madrasta ou padrasto.
Ao se reconstituir a família nuclear através de recasamentos novos parentescos até
então não existentes passam a existir: enteados, padrasto e madrasta. Claro que estamos
falando de famílias cujo anterior casamento gerou filhos. O papel de padrasto e de madrasta
não é igual ao de pai e mãe, regra geral, principalmente quando existe pai ou mãe proveniente
da conjugalidade pregressa. Porém, dependendo da situação, havendo filhos pequenos e o
outro genitor é ausente ou negligente, é necessário para o bom desenvolvimento da criança que
o novo ou a nova companheiro(a) do genitor com a guarda possa a vir a desempenhar papel
análogo a da parentalidade195, isto é, assume o lugar vazio de pai/mãe.
O novo companheiro da mãe ou do pai tende no espaço de convívio cotidiano a
desenvolver laços afetivos com seus enteados, e vice-versa. Todavia, nem sempre a coisa parece
ser tão fácil assim. Conflitos entre enteados e padrastos/madrastas podem ser comuns e até
bastante antagônicos e cheios de desavenças e conflagrações.
Além do padrasto paterno também existe o padrasto amigo que é desenvolvido com o
passar do tempo mediante um relacionamento afetivo recíproco e menos pelo exercício de um
estilo parental. A tendência é que crianças com mais idades e adolescentes tenham com seus
padrastos ou madrastas um convívio mais voltado à amizade.
193
A família binuclear é composta por dois lares que se formam após o divórcio.
194
Ed. Leya, 2016.
195
É comum denominarmos de paternagem ou maternagem para diferenciar melhor da parentalidade ou
maternalidade propriamente dita.
196
Psicólogo clínico infantil norte-americano e professor universitário. Autor de livros como Ajudando as
Crianças a Conviver com o Divórcio.
87
Entrar no papel de padrasto ou de madrasta não é fácil. Ninguém foi preparado ao longo
da vida até então para o exercício desse papel e função. A literatura na área aponta ser muitas
vezes mais difícil tornar-se madrasta. Como escreve Edward Teyber “a mulher que se casa com
um homem detentor da guarda dos filhos provavelmente terá pela frente uma boa dose de
conflito197”.
A psicóloga canadense Elizabeth Church foi feliz ao titular seu livro sobre a experiência
do papel de madrasta de Uma Estranha no Ninho. Diz ela: “em geral, a satisfação com o papel
de madrasta aumenta com o tempo. Os primeiros anos costumam ser difíceis e estressantes,
mas quem consegue sobreviver a essa etapa encontra uma nova formação familiar menos
turbulenta e se sente mais tranquila e capacitada para lidar com as demandas cotidianas do
novo grupo”198.
A chegada de uma madrasta ou de um padrasto na vida de uma criança na faixa dos 9
aos 15 anos mais ou menos é geralmente complicada, pois jovens nessa idade tendem a rejeitar
ou antagonizar com o novo companheiro(a) do pai ou da mãe. Frequentemente têm dificuldade
em aceitar serem cuidadas e educadas pelo padrasto/madrasta199.
Decididamente a família recomposta embute várias questões e vertentes complexas. O
recasamento de um dos pais, bem como o residir com ele(a) e seu novo(a) companheiro(a), traz
para o palco da família a convivência com novos atores familiares. Novos personagens entram
em cena, tais como ex-marido, ex-mulher, mulher do pai, marido da mãe, filho(s) do(s)
casamento(s) anterior(es), irmão do casamento atual... Some-se a isso tudo a questão do luto,
afinal uma família formada a partir de recasamento é uma família que se cria de perdas, sendo,
portanto, fundamental a elaboração dessas perdas.
Pelo acima exposto é praticamente quase impossível não haver crise de ajustamento e
conflito no edificar da família recomposta que na verdade é um reconstruir de família, com
novos membros com suas particularidades e características pessoais. Assim sendo, a expressão
de conflitos no âmbito da família recomposta surgente é praticamente inevitável, não sendo tais
conflitos, em princípio, um fator negativo grupal, mas sim a maneira e a forma de como se vai
lidar com eles.
Na transição da família nuclear tradicional para a família recomposta não é de se
esperar, ao menos no início, amor de um enteado pelo padrasto/madrasta ou vice-versa. Você
não é meu pai ou você não é minha mãe pode ser muito comum no principiar de uma família
recomposta ou recasada. A psicóloga Débora Cano et. al.200 da Universidade Federal de Santa
Catarina apresenta uma interessante pesquisa sobre a literatura a respeito da transição do
divórcio ao recasamento percebendo, inclusive, que ainda somos carentes de estudos e
investigações científicas mais aprofundadas e amplas, bem como da construção de novas
metodologias que possam dar conta de pesquisar e melhor entender as várias variáveis e
complexidades inerentes às famílias recompostas. Segunda ela o momento atual descortina
diferentes valores e neoformações familiares que merecem serem compreendidos à luz de seus
contextos e das novas realidades sociais contemporâneas.
197
Op. cit., pág. 200.
198
Pág. 286, Ed. Globo, 2005.
199
A psicóloga e pesquisadora gaúcha Denise Falcke, identificou que o maior drama que pode
subjetivamente vivenciar uma madrasta é ficar presa entre dois ideais: o da maternidade como expressão
de perfeição e o da madrasta como sinônimo de malvadeza (muitas vezes retratada nas fábulas infantis).
200
As Transições Familiares do Divórcio ao Recasamento no Contexto Brasileiro, disponível in:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79722009000200007#nt
88
201
Escritor e pensador inglês do século XVIII.
202
Poeta italiano do século XIV.
89
203
Patriarcal, onde o marido/pai é o provedor único ou principal, cabendo à mulher o papel de esposa e
dona de casa.
204
Gestalt é uma palavra de origem alemã cuja tradução tem o significado de forma, figura, configuração.
90
em geral. A respeito disso temos o artigo de revisão da literatura científica sobre o tema
empreendido em 2016 pelas professoras do Instituto de Psicologia da Universidade do Vales do
Rio dos Sinos (RS), Marina Araldi e Fernanda Serralta, Parentalidade em Casais Homossexuais:
uma revisão sistemática205.
205
Publicado em Psicologia em Pesquisa, vol. 10, nº 2, dezembro 2016, Disponível in:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1982-12472016000200005.
206
Escritor, dramaturgo e ativista político norte-americano.
207
No tocante as garantias jurídicas vide: A Adoção em Relações Homoafetivas, da advogada e doutora
em Ciências Sociais Maria Cristina Baranoski, disponível in:
http://books.scielo.org/id/ym6qv/pdf/baranoski-9788577982172.pdf.
208
Disponível in: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/psicodrama/v17n1/a03.pdf.
91
“Existe uma grande preocupação referente à falta que faria uma figura masculina ou
feminina à criança adotada por um casal do mesmo sexo. Na realidade brasileira, de um
enorme contingente de famílias monoparentais, além da crescente diversidade familiar que
encontramos, essa questão perde sua relevância. Entretanto, podemos afirmar que os
papéis materno e paterno, de fato importantes para um bom desenvolvimento psicossocial
da criança, não estão mais diretamente associados à figura da mulher ou do homem, nem
mesmo nos casais heterossexuais atuais. Desempenha melhor a função materna e a paterna
o progenitor que mais se identifica com as tarefas associadas a estes papéis, seja homem
ou mulher. Diversas pesquisas americanas mostram que crianças que pertencem a famílias
homoafetivas desenvolvem mecanismos para lidar com o fato de terem dois pais ou duas
mães e que têm um bom ajustamento à situação. A Associação Americana de Psicologia
concluiu, após analisar inúmeras pesquisas, que ‘não há um único estudo que tenha
constatado que as crianças de pais homossexuais - gays e lésbicas – tenham qualquer
prejuízo significativo em relação a crianças de pais heterossexuais’”209.
Desse modo a questão não deve se focar ao sexo dos pais, mas sim à dinâmica da família,
isto é, como a família maneja e lida tanto internamente quanto externamente. Trabalhos de
pesquisa recentes demonstram que quando os filhos crianças são devidamente bem cuidados
não apresentam comprometimentos por terem sido criados em um ambiente familiar
homoafetivo. Em outras palavras, a parentalidade homoafetiva210 funcional não diverge da
parentalidade funcional heteroafetiva. O que importa é a eficiência da pessoa que exerce a
função, seja ela materna ou paterna. Da mesma forma que o exercício da função materna e/ou
paterna independe de ser a mãe ou o pai biológico, também o exercício dessas funções
independe do sexo dos envolvidos.
Outra configuração familiar bastante presente nas sociedades ocidentais dos dias atuais
é a família monoparental.
Uma família é considerada monoparental quando apenas um dos genitores da criança
cria o(s) filho(s). Pela ótica clássica da nuclearidade, trata-se de uma família nuclear incompleta,
209
Op. cit.
210
Sugerimos o artigo Parentalidade Homoafetiva: novas possibilidades de ser família, das psicólogas Isis
Cristine Pottker e Camila Biazus, publicado na Revista de Psicologia do IMED, disponível in:
https://dialnet.uririoja.es/descarga/articulo/5155050.pdf.
92
TERAPIA DE FAMÍLIA
Uma família sem uma ovelha negra não é uma família típica.
Heinrich Boll215
211
“Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus
descendentes”.
212
São várias as causas de a família monoparental ser chefiada por mulheres: seja viuvez, abandono,
separação, produção independente, gravidez indesejada.
213
Revista da SPAGESP, volume 17, nº 01, 2016, disponível in:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-29702016000100002#2a.
214
Doutora e Livre-Docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
215
Escritor alemão, Prêmio Nobel em 1972.
93
A história da terapia de família é mais ou menos recente, porém sua gestação e evolução
data já de certa longa data. Freud, por exemplo, no início do século XX fazia menção de que se
devia prestar atenção às condições sociais dos portadores de distúrbio mental, sobretudo para
às suas relações familiares. O médico e psicanalista austríaco Alfred Adler, contemporâneo de
Freud, deu ênfase de que grande parte das doenças psíquicas tem origem nas relações
interpessoais. O psiquiatra norte-americano Harry Sullivan foi outro a associar sociologia com
psicologia, fundando na década de 50 do século passado a denominada Teoria Interpessoal da
Personalidade.
Um grande passo para o surgimento das terapias de família foi dado pelo antropólogo
de origem inglesa Gregory Bateson que trabalhou nos Estados Unidos no Instituto de Pesquisa
Mental de Palo Alto na Califórnia (Escola de Palo Alto), cujo principal enfoque era a
esquizofrenia, ou melhor, a comunicação do paciente esquizofrênico.
A terapia de família propriamente dita surgiu na década de 1950 nos EUA. Com os
trabalhos pioneiros de Escola de Palo Alto um novo e frutífero campo passou a surgir no campo
da psicologia e psiquiatria com a mudança de foco da prática terapêutica centrada no indivíduo
para os processos intrapsíquicos, principalmente os existentes no ambiente familiar216.
A expansão das terapias familiares foi rápida a partir de então. Várias escolas e
abordagens surgiram, sendo as mais conhecidas o enfoque sistêmico, a psicanalítica, a terapia
estrutural, a terapia familiar estratégica, constelação familiar, entre outras.
MODELO SISTÊMICO
216
Com vistas à evolução histórica das terapias de família vide artigo da psicóloga carioca Andréa Vogel
intitulado Um Breve Histórico da Terapia Familiar Sistêmica, disponível in:
http://132.248.9.34/hevila/IGTnarede/2011/vol8/no14/8.pdf.
94
Nos anos 40 do século XX 217 nos EUA o biólogo austríaco Ludwig Von Bertalanffy
desenvolveu a chamada Teoria Geral dos Sistemas (TGS). Com base nessa concepção teórica a
família é vista como um sistema aberto com interações tanto extrafamiliares (meio ambiente,
comunidade, outras famílias) quanto intrafamiliares (entre seus membros). Neste sentido, o
comportamento de um dos membros familiares influencia os demais e é pelos outros
simultaneamente influenciado. Von Bertalanffy definia o sistema como complexos de elementos
em interação. Segundo ele, trata-se de um conjunto de componentes que interagem por
objetivos comuns e, assim, formam um todo. Cada um dos elementos componentes comporta-
se, por sua vez, como um sistema cujo resultado é maior que a soma dos resultados de cada
parte. Com tal modelo Von Bertalanffy propôs analisar, além dos sistemas em geral, os grupos
sociais nos quais a comunicação entre os membros representa a interação de elementos com
propósitos de organização, equilíbrio e regulação.
Com base na Teoria Geral dos Sistemas, e igualmente considerando a família como um
sistema, busca-se melhor compreender o funcionamento de uma dada família (sistema familiar).
Por essa perspectiva, conforme a terapeuta Vera Lucia Lamanno Calil, “toda e qualquer parte de
um sistema está relacionada de tal modo com as demais partes que, mudança numa delas
provocará mudança nas demais e, consequentemente, no sistema total. Isto é, um sistema
comporta-se não como simples conjunto de elementos independentes, mas como um todo coeso,
inseparável e interdependente. Dessa maneira ‘distúrbio mental’, quando aparece, é parte
integral das interações recíprocas entre os membros da família que operam como um sistema
total218”. Assim sendo, podemos entender que um sistema só funciona através da interação
entre as partes que formam, assim, padrões interacionais que transcendem as qualidades dos
membros individuais.
A lógica básica das terapias sistêmicas se resume na seguinte frase: é preciso reunir para
compreender. Com isso, a abordagem psicoterápica fundada na teoria sistêmica visa não apenas
mudar positivamente o paciente (indivíduo), mas o grupo social primário a quem ele pertence
(família), mediante uma reorganização comunicacional entre seus membros. O foco terapêutico
é o aqui-agora familiar, isto é, o modo como os familiares se comunicam entre si no momento
presente.
Outro elemento bastante empregado nas terapias sistêmicas é a causalidade circular,
isto é, as relações familiares são repetitivas e recíprocas, de maneira que um comportamento
de A provoca uma resposta em B que, por sua vez, estimula A uma contraresposta. O que afeta
um afeto o outro que afetado também afeta quem lhe afetou (feedabck219).
217
Mais precisamente a partir de 1937.
218
Terapia Familiar e de Casal, pág. 17, ed. Summus, 1987.
219
Trata-se de uma retroalimentação. Segundo o modelo sistêmico a família é encarada como um
circuito que se retroalimenta. Assim, a relação causa-efeito deixa de vista como linear e passa a ser vista
como circular, ou seja, uma ação que gera uma reação e que provoca outra ação.
220
O feedback negativo é quando o sistema utiliza-se de mecanismo para a manutenção de um
determinado status quo ou determinado ponto de equilíbrio e estabilidade. Como escrevem Michael
95
Pelo acima exposto, a terapia familiar sistêmica busca mudança no sistema familiar,
através de uma reorganização comunicacional entre os membros. Isso se faz mediante um
processo de recodificação das mensagens e de uma melhor compreensão da rede de
comunicação do grupo familiar. Um terapeuta sistêmico, pois, focaliza o sistema familiar como
se apresenta, isto é, como seus membros interagem no instante da sessão. Através de perguntas
circulares auxiliam cada pessoa da família a aumentar sua perceptibilidade e com maior clareza
ver e entender sua relação com os demais familiares. As intervenções pontuais sobre cada
membro não visa o intrapsíquico em termos verticais, porém o interpsíquico em temos não
apenas horizontais, porém circulares (retroalimentação).
É comum, quase regra geral, que quando uma família procura uma ajuda psicoterápica
assim a faça por causa de um membro familiar específico (bode expiatório221). Geralmente, ou
na maioria das vezes, o motivo da consulta é um filho ou uma filha, podendo ser também díades
ou tríades. Neste sentido a doutora em Psicologia Clínica e professora da Faculdade de Medicina
de São José do Rio Preto (SP), Maria Luiza Piszezman222, lista cinco premissas básicas do enfoque
sistêmico, a saber:
Nichols, Richard Schwartz, em Terapia Familiar: conceitos e métodos (op. cit.) denominar o feedback
negativo não significa fazer algo negativo, mas sim que o sistema necessita fazer algo para corrigir algum
desvio de rota. Dão como exemplo o sistema de aquecimento de uma casa quando a temperatura cai
abaixo de certo ponto. Nesse instante é acionado o termostato que volta a aquecer o ambiente. Trata-se,
portanto, de uma resposta do sistema (circuito autocorretivo) à mudança, com vistas a restaurar um
estado prévio.
221
Também denominado de paciente identificado. Representa, através de sua enfermidade, uma espécie
de sintoma familiar, isto é, entende-se que grande parte dos transtornos mentais individuais possa ser
consequência de um transtorno sistêmico cuja homeostase se mantém no adoecer de um membro. É
como se para não adoecer sistemicamente adoece-se uma parte. A disfuncionalidade de uma dada família
é mantida com roupagens superficialmente funcional por meio de um problema individual ou
subsistêmico. É como se uma família doente “elegesse” uma parte para adoecer e, assim, representar a
própria doença do grupo familiar. Conflitos e dificuldades, desse modo, são deslocados para o bode
expiatório (paciente identificado).
222
Terapia Familiar Breve: uma abordagem, ed. Casa do Psicólogo, 1999.
96
TERAPIA ESTRUTURAL
Salvador Minunchin assim abriu seu livro Famílias e Casais: do sintoma ao sistema224,
escrito conjuntamente outros autores: “os pioneiros da terapia familiar nos ensinaram a ver
além das personalidades individuais, percebendo os padrões que fazem delas uma família – uma
organização de vidas interconectadas por regras definidas, mas não verbalizadas (pág. 16)225”.
Famílias, dizia Minunchin, compartilham regras veladas, ou seja, não escritas ou faladas.
Tais regras regem os tipos de interação permitidos entre os membros familiares, Neste sentido,
as regras são reguladores das condutas familiares. Conhecer as regras é conhecer a estrutura
em que se baseia o funcionamento familiar.
Uma família, afirmava Minunchin, é um sistema que opera através de padrões
transacionais, sendo a estrutura familiar um conjunto invisível de exigências funcionais que
organizam e as maneiras pelas quais os membros da família interagem. Trata-se, portanto, de
uma abordagem terapêutica que visa modificar as regras disfuncionais que regem uma
determinada família.
Em 1961 Minunchin publicou seu mais importante livro, Family Therapy Techniques226,
onde lista três fases do processo de terapia familiar. Inicialmente cabe ao terapeuta se aliar à
família em uma posição de liderança. Em seguida mapear a estrutura subjacente que dá
223
Viveu na Grécia entre os anos 460 a.C. e 370 a.C., é considerado o Pai da Medicina.
224
Ed. Artmed, 2009.
225
Introdução: um modelo de quatro etapas para acessar famílias e casais, disponível in:
http://srvd.grupoa.com.br/uploads/imagensExtra/legado/M/MINUCHIN_Salvador/Familias_Casais_Sint
oma_Sistema/Liberado/Cap_01.pdf.
226
Técnica de Terapia Familiar, ed. Artes Médicas, 1990.
97
sustentação àquela família, para, então, finalmente intervir com objetivos de modificar essa
estrutura através de mudanças nas interações entre os membros da família.
Na abordagem estrutural o terapeuta toma postura mais ativa e o foco é a resolução de
problemas no contexto de famílias que se apresentam disfuncionais. Busca corrigir hierarquias
disfuncionais diferenciando os subsistemas e melhorando a nitidez dos limites e fronteiras 227
entre eles.
Considerando que um indivíduo é subparte de um contexto sistêmico ao qual pertence,
o terapeuta estrutural vê o indivíduo psicologicamente doente como uma expressão (sintoma)
de uma problemática contextual (sistêmica). Tal atitude por parte do terapeuta o leva a
trabalhar com vistas a debelar a tendência da família de se concentrar no membro problemático
ao invés de ela mesma (família) lidar de frente com seus conflitos e impasses.
A guisa de exemplo, sugerimos o texto A Entrevista na Terapia Familiar Sistêmica:
pressupostos teóricos, modelos e técnicas de intervenção, da psicóloga e terapeuta gaúcha
Eliana Piccoli Zordan et. al228.
227
A função das fronteiras intrasistêmicas é proteger a diferenciação dos subsistemas (conjugal, parental,
filial, fraterno, etc.) Para que um sistema seja funcional é necessário que as fronteiras entre os vários
subsistemas que o compõe sejam menos rígidas ou difusas, ou seja, que as fronteiras seja mais
delimitadas e nítidas.
228
Disponível in: http://www.uricer.edu.br/site/pdfs/perspectiva/136_314.pdf.
229
O mais popular escritor inglês do século XIX, autor de obras de sucesso como Oliver Twist, David
Copperfield e Christmas Carol (Um conto de Natal).
98
FUTURO
230
Psicologia: Teoria e Pesquisa, vol. 26, 2010, Disponível in:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722010000500008#tx.
231
Nome papal de Karol Józef Wojtyła, eleito papa da Igreja Católica em 1978.
99
Alguém já disse que terapia de família se aprende fazendo. Cada vez mais,
principalmente agora com as inúmeras e aceleradas mudanças sociais, necessitamos continuar
aprendendo frente aos inúmeros desafios que o século XXI nos oferece no âmbito da família e
de suas novas configurações.
A Humanidade não terminou seu caminhar. Novos problemas se sobrepõem a velhos
problemas humanos. Avançamos em conhecimentos e tecnologias, contudo o ser humano ainda
continua sendo ser humano, com todas suas fragilidades, vulnerabilidades, neuroses, conflitos
e contradições.
Os terapeutas contemporâneos herdam, portanto, todo um patrimônio construído nas
últimas décadas a partir dos anos 50 do século XX, e todo esse acervo até então concebido se
encontra ainda em construção.
Hoje a terapia de família já é uma prática estabelecida e reconhecida, assunto e tema,
inclusive, das grades curriculares acadêmicas. O espaço foi aberto, mas o caminho não se
encontra concluído. São muitas ainda as trilhas e veredas a serem descobertas e exploradas.
Ainda nos anos 80 do século passado o escritor futurista norte-americano Alvin Toffler
assim descrevia:
“Vejo a sociedade evoluindo para um período em que brotam, florescem e são aceitas
muitas diferentes estruturas de família. Seja a cabana eletrônica, com papai, mamãe e filho
trabalhando juntos ou um lar de um casal onde cada qual com sua carreira, ou único
progenitor, ou uma dupla de lésbicas criando uma criança, ou uma comuna ou qualquer
número de outras formas, haverá pessoas vivendo nelas, o que sugere uma variedade muito
mais ampla de relacionamento homem e mulher do que existe hoje233”.
Aquele futuro dos anos 80 já chegou ou está quase chegado. Somos já uma era de bebês
de proveta (fecundação in vitro) e barrigas de aluguel, casamentos homoafetivos (segundo IBGE
em 2017 foram 5887), mais de 11 milhões dos lares brasileiros são de famílias uniparentais
(fonte: IBGE) e a chamada produção independente está se tornando lugar-comum. O que antes
era do âmbito da ficção científica agora se torna realidade. Em breve, quem sabe, homem
poderá gerar filhos. Talvez um dia a família acabe - desde que o ser humano consiga nascer já
pronto à sobrevivência. Talvez... Mas, até lá, continuará existindo famílias seja em que forma,
formato e organização forem. Prosseguirá o ser humano em suas dificuldades adaptativas,
conflitos, paradoxos e sofrimentos. Permanecerá, ainda por muito tempo, a necessidade de se
232
Filósofo e pensador chinês que viveu em meados dos séculos VI e V a.C.
233
Apud Manual de Terapia Familiar, Luiz Carlos Osório e Maria Elizabeth P. do Valle, pág. 24, ed. Artmed,
2009.
100
Conceitos como saúde e doença, felicidade e amor, lar e família, também mudam com
o desenrolar da vida e do tempo. O que hoje leva pessoas aos consultórios clínicos de psicologia
amanhã pode não ser mais demanda, assim como novas urgências e solicitações serão
necessidades.
Provavelmente iremos caminhar para um momento mais pluralista e menos escolástico,
isto é, que a Psicologia como um todo será um campo teórico-prático de articulações de vários
saberes e enfoques. Parece que muito em breve já estaremos prontos para criar uma
abordagem onde o estudo dos fenômenos psicológicos seja encarado sob um prisma ampliado
de diversas perspectivas. Como argumenta o psicólogo norte-americano Ken Wilber234, o grande
problema da psicologia, do modo como ela tem se desenvolvido historicamente, é que, em sua
maior parte, diferentes escolas de psicologia levaram em conta apenas um desses aspectos do
fenômeno extraordinariamente rico e multifacetado da consciência e anunciaram que se tratava
do único aspecto que merecia estudo (ou até mesmo que se tratava do único aspecto que de
fato existia).
O pluralismo em psicologia, todavia, não é sinônimo de puro ecletismo ou junção de
multiplicidades e fragmentos em um balaio só. É diálogo, articulação e integração. Aquilo que o
professor da Universidade de Alberta no Canadá, Joseph Royce, denomina de dialética
construtiva. Diversidade e convergência. Este demonstra ser o futuro mais próximo.
234
Psicologia Integral, pág. 15, ed. Cultrix, 2007.
101
Mahatma Gandhi235
LEITURAS COMPLEMENTARES
Da Família à Família Nuclear Burguesa: uma perspectiva histórica e social, Maria Beatriz
Nader, disponível in: http://www.periodicos.ufes.br/dimensoes/article/view/2229/1725.
Família e Ciclo Vital: a fase de aquisição, Juliana Ronchi e Luziane Avellar, disponível in:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/per/v17n2/v17n2a04.pdf.
Amores Fáceis: romantismo e consumo na modernidade tardia, Sérgio Costa, disponível in:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-33002005000300008&script=sci_arttext.
235
Idealizador e fundador do atual Estado Indiano, defensor do princípio da não-agressão (Satyagraha).
102
Uma Criança em Busca de uma Janela: função Materna e trauma, Silvia Zorning e Lídia Levy,
disponível in: http://www.periodicos.usp.br/estic/article/view/118000/115625.
O Nascimento do Segundo Filho e as Relações Familiares, Cesar Piccinini et all., disponível in:
https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/20544.
Relação Conjugal na Transição para a Parentalidade: gestação até dezoito meses do bebê,
Clarissa Menezes e Rita Lopes, disponível in: https://www.redalyc.org/pdf/4010/401041439010.pdf.
Responsividade e Exigência: duas escalas para avaliar estilos parentais, Fabiana T. da Costa et.
all., disponível in: http://www.scielo.br/pdf/prc/v13n3/v13n3a14.
Novas Configurações Familiares: mitos e verdades, Paulo Roberto Ceccarelli, disponível in:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/jp/v40n72/v40n72a07.pdf.