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O Problema de Inversão de Jacobi

David T. Martins

Seja 𝑀 uma superfície de Riemann compacta de gênero 𝑔 > 0.

∙ 𝐵 = (I, Π) = (𝑒(1) , . . . , 𝑒(𝑔) , 𝜋 (1) , . . . , 𝜋 (𝑔) ) matriz complexa 𝑔 × 2𝑔

∙ 𝐿(𝑀 ) = {𝐵 · x | x ∈ Z2𝑔 } ⊂ C𝑔

∙ 𝐽(𝑀 ) = C𝑔 /𝐿(𝑀 )

∙ Fixado 𝑃0 ∈ 𝑀 , temos 𝜙 : 𝑀 ↦→ 𝐽(𝑀 ) dado por


(︃∫︁ )︃𝑇
𝑃 ∫︁ 𝑃
𝜙(𝑃 ) = 𝜁1 , . . . , 𝜁𝑔
𝑃0 𝑃0

∙ 𝜙 estende-se a 𝜙 : Div(𝑀 ) → 𝐽(𝑀 ) por Z-linearidade.

∙ Para cada 𝑛 ≥ 1, definimos 𝑀𝑛 = {𝐷 ∈ Div(𝑀 ) | 𝐷 ≥ 0 e deg 𝐷 = 𝑛}.

Definição 1. Se 𝐷 ∈ 𝑀𝑔 , então

𝑟(−𝐷) = 1 + 𝑖(𝐷) ≥ 1.

Dizemos que 𝐷 é especial se 𝑟(−𝐷) > 1.

Observação 2. 𝐷 é não-especial ⇔ 𝑟(−𝐷) = 1 ⇔ 𝑖(𝐷) = 0.

Lema 3. Considere um divisor 𝐷 = 𝑃1 + · · · + 𝑃𝑔 ∈ 𝑀𝑔 e vizinhanças 𝑈𝑗 ∋ 𝑃𝑗 . Nestas


condições, existe um divisor não-especial 𝐷′ = 𝑃1′ + · · · + 𝑃𝑔′ ∈ 𝑀𝑔 com 𝑃𝑗′ ∈ 𝑈𝑗 ∀𝑗. Além
disso, 𝐷′ pode ser escolhido como consistindo de 𝑔 pontos distintos.

Demonstração. Defina

⎨𝐷𝑗

= 𝑃1 + · · · + 𝑃𝑗 𝑗 = 1, . . . , 𝑔
⎩𝐷0 = 0.

Em particular, temos que 𝐷 = 𝐷𝑔 .

Afirmamos que para cada 𝑗 = 1, . . . , 𝑔, existe um divisor 𝐷𝑗′ da forma 𝑃1′ + · · · + 𝑃𝑗′
com 𝑃𝑗′ ∈ 𝑈𝑗 e 𝑖(𝐷𝑗′ ) = 𝑔 − 𝑗. Note que, pelo Riemann-Roch, para cada 𝐷𝑗′ efetivo de
grau 𝑗 temos que

𝑖(𝐷𝑗′ ) = 𝑟(−𝐷𝑗′ ) − deg 𝐷𝑗′ + 𝑔 − 1 = 𝑔 − 𝑗 + 𝑟(−𝐷𝑗′ ) − 1 ≥ 𝑔 − 𝑗,


pois ℒ(−𝐷𝑗′ ) ⊇ C, i.e., 𝑟(−𝐷𝑗′ ) ≥ 1.
Vamos provar a afirmação por indução em 𝑗. Para 𝑗 = 1, considere 𝐷1′ = 𝑃1 , assim

𝑖(𝑃1 ) = 𝑟(−𝑃1 ) − 1 + 𝑔 − 1 = 𝑟(−𝑃1 ) + 𝑔 − 2 = 𝑔 − 1,

A última igualdade segue do fato de ℒ(−𝑃1 ) = C, pois se existisse uma meromorfa


não constante em ℒ(−𝑃1 ), então necessariamente 𝑓 seria holomorfa em 𝑀 ∖ {𝑃1 } e teria
polo de ordem 1 em 𝑃1 , o que contraria o Teorema das lacunas de Weierstrass, desde que
𝑀 tem gênero positivo.
Suponha que temos encontrado 𝐷𝑗′ do tipo requerido para um certo 1 ≤ 𝑗 < 𝑔. Assim,
𝑖(𝐷𝑗′ ) = dim Ω(𝐷𝑗′ ) = 𝑔 − 𝑗, ou seja, o espaço das diferenciais holomorfas que se anulam
em 𝑃1′ , . . . , 𝑃𝑗′ tem dimensão 𝑔−𝑗. Seja {𝜙1 , . . . , 𝜙𝑔−𝑗 } uma base para tal espaço. Olhemos
para 𝜙1 . Temos dois casos a analisar:

1)

𝜙1 (𝑃𝑗+1 ) ̸= 0 ⇒ Ω(𝐷𝑗′ + 𝑃𝑗+1 ) ( Ω(𝐷𝑗′ )


⇒ 𝑖(𝐷𝑗′ + 𝑃𝑗+1 ) < 𝑖(𝐷𝑗′ ) = 𝑔 − 𝑗
⇒ 𝑖(𝐷𝑗′ + 𝑃𝑗+1 ) ≤ 𝑔 − (𝑗 + 1)

Neste caso, definimos 𝐷𝑗+1 = 𝐷𝑗′ + 𝑃𝑗+1 .

′ ′
2) Se 𝜙1 (𝑃𝑗+1 ) = 0, então escolhemos um 𝑃𝑗+1 ∈ 𝑈𝑗+1 arbitrário tal que 𝜙1 (𝑃𝑗+1 ) ̸= 0
(que existe porque uma diferencial não pode se anular identicamente num aberto). Com
isso, recaímos no caso anterior, i.e., Ω(𝐷𝑗′ + 𝑃𝑗+1

) ( Ω(𝐷𝑗′ ). Neste caso, definimos

𝐷𝑗+1 ′
= 𝐷𝑗′ + 𝑃𝑗+1 .

Teorema 4 (Inversão de Jacobi). Todo ponto em 𝐽(𝑀 ) é a imagem de um divisor


efetivo de grau 𝑔.

Demonstração. Considere o mapa

𝜙 : 𝑀𝑔 → 𝐽(𝑀 ).

Vamos mostrar que esse mapa é sobrejetivo. Seja 𝐷0 = 𝑃1 + · · · + 𝑃𝑔 ∈ 𝑀𝑔 com 𝑃𝑗 = ̸


𝑃𝑘 , ∀𝑗 ̸= 𝑘 e tal que 𝑖(𝐷0 ) = 0 (que existe pelo Lema anterior). Denote 𝐾 := 𝜙(𝐷0 ) =
𝜙(𝑃1 + · · · + 𝑃𝑔 ).
Para cada 𝑃𝑗 tomemos um disco coordenado 𝑈𝑗 em torno de 𝑃𝑗 com coordenada local
𝑡𝑗 anulando em 𝑃𝑗 , i.e.
𝑡𝑗 : 𝑈𝑗 −→ C
𝑃𝑗 ↦−→ 0
e escreva em termos das coordenadas locais 𝜁𝑘 = 𝜂𝑘𝑗 (𝑡𝑗 ) 𝑑𝑡𝑗 .
Considere
𝜓 : 𝑈1 × · · · × 𝑈𝑔 −→ C𝑔
(𝑋1 , . . . , 𝑋𝑔 ) ↦−→ 𝜙(𝑋1 + · · · + 𝑋𝑔 )
e 𝐹 := 𝜓 ∘ 𝑇 −1 onde 𝑇 −1 = (𝑡−1 −1
1 , . . . , 𝑡𝑔 ), assim

𝐹 : 𝑡1 (𝑈1 ) × · · · × 𝑡𝑔 (𝑈𝑔 ) −→ C𝑔
(𝑧1 , . . . , 𝑧𝑔 ) ↦−→ 𝜙(𝑡−1 −1
1 (𝑧1 ) + · · · + 𝑡𝑔 (𝑧𝑗 ))

Note que
⎛ ⎞
𝑔 ∫︁ 𝑡−1 (𝑧𝑗 ) 𝑔 ∫︁ 𝑡−1 (𝑧𝑗 )
𝑗 𝑗
𝜙(𝑡−1
∑︁ ∑︁
−1
1 (𝑧1 ) + · · · + 𝑡𝑔 (𝑧𝑗 )) = 𝜁1 , . . . , 𝜁𝑔 ⎠

𝑃0 𝑗=1 𝑃0
⎛𝑗=1 (︃ )︃⎞
𝑔 ∫︁ 𝑃𝑗 ∫︁ 𝑡−1 (𝑧𝑗 ) )︃ 𝑔 (︃∫︁
𝑃𝑗 ∫︁ 𝑡−1 (𝑧𝑗 )
∑︁ 𝑗 ∑︁ 𝑗
=⎝ 𝜁1 + 𝜁1 , . . . , 𝜁𝑔 + 𝜁𝑔 ⎠
𝑗=1 𝑃0 𝑡−1
𝑗 (0) 𝑗=1 𝑃0 𝑡−1
𝑗 (0)
⎛ ⎞
𝑔 ∫︁ 𝑡−1 (𝑧𝑗 ) 𝑔 ∫︁ 𝑡−1 (𝑧𝑗 )
∑︁ 𝑗 ∑︁ 𝑗
= 𝜙(𝑃1 + · · · + 𝑃𝑔 ) + ⎝ −1
𝜁1 , . . . , −1
𝜁𝑔 ⎠
𝑗=1 𝑡𝑗 (0) 𝑗=1 𝑡𝑗 (0)

Portanto, em coordenadas locais 𝐹 é dado por


⎛ ⎞
𝑔 ∫︁ 𝑧𝑗
∑︁ 𝑔 ∫︁ 𝑧𝑗
∑︁
𝐹 (𝑧1 , . . . , 𝑧𝑔 ) = 𝜙(𝑃1 + · · · + 𝑃𝑔 ) + ⎝ 𝜂1𝑗 (𝑡𝑗 )𝑑𝑡𝑗 , . . . , 𝜂𝑔𝑗 (𝑡𝑗 )𝑑𝑡𝑗 ⎠
𝑗=1 0 𝑗=1 0

Seja 𝐹𝑙 a 𝑙-ésima componente de 𝐹 , então


𝜕𝐹𝑙
(0, . . . , 0) = 𝜂𝑙𝑘 (0) = 𝜁𝑙 (𝑃𝑘 )
𝜕𝑧𝑘
Assim, a Jacobiana da aplicação 𝐹 em (0, . . . , 0) é dada por
⎛ ⎞
𝜁 (𝑃 ) . . . 𝜁1 (𝑃𝑔 )
⎜ 1 1
⎜ .. .. ⎟
⎜ . . ⎟ .

⎝ ⎠
𝜁𝑔 (𝑃1 ) . . . 𝜁𝑔 (𝑃𝑔 )

A condição 𝑖(𝑃1 + · · · + 𝑃𝑔 ) = 0 implica que o posto da Jacobiana é 𝑔. De fato, denote


por 𝐿𝑗 a 𝑗-ésima linha da matriz acima. Suponha que existam 𝑥1 , . . . , 𝑥𝑔 ∈ C, nem todos
nulos, tais que 𝑗 𝑥𝑗 𝐿𝑗 = 0 = (0, . . . , 0). Considere a diferencial holomorfa 𝜔 = 𝑥𝑗 𝜁𝑗 .
∑︀ ∑︀

Desse modo,
⎛ ⎞
𝑔
∑︁ 𝑔
∑︁
0 = 𝑥1 𝐿1 + · · · + 𝑥𝑔 𝐿𝑔 = ⎝ 𝜁𝑗 (𝑃1 ), . . . , 𝜁𝑗 (𝑃𝑔 )⎠
𝑗=1 𝑗=1

= (𝜔(𝑃1 ), . . . , 𝜔(𝑃𝑔 )),

ou seja, 𝜔 ∈ Ω(𝑃1 + · · · + 𝑃𝑔 ), o que é uma contradição.


Portanto, pelo Teorema da Função Inversa, existe uma vizinhança 𝑉 de (0, . . . , 0) de
modo que 𝐹 : 𝑉 → 𝐹 (𝑉 ) ∋ 𝐾 seja um homeomorfismo.
Seja 𝑐 = (𝑐1 , . . . , 𝑐𝑔 ) ∈ C𝑔 e escolha um inteiro 𝑁 suficientemente grande de modo
que 𝐾 + 𝑐/𝑁 ∈ 𝐹 (𝑉 ). Pela sobrejetividade de 𝐹 nessa vizinhança vai existir um ponto
𝑝 = (𝑧1 , . . . , 𝑧𝑔 ) tal que 𝐹 (𝑝) = 𝐾 + 𝑐/𝑁 e, consequentemente, um divisor 𝑄1 + · · · + 𝑄𝑔
(e.g., 𝑡−1 −1
1 (𝑧1 ) + · · · + 𝑡𝑔 (𝑧𝑔 )) tal que

𝜙(𝑄1 + · · · + 𝑄𝑔 ) = 𝐾 + 𝑐/𝑁

ou
𝑁 (𝜙(𝑄1 + · · · + 𝑄𝑔 ) − 𝐾) = 𝑐.

Assim, para mostrar que 𝑐 ∈ Im 𝜙, é suficiente mostrar que existe um divisor efetivo
de grau 𝑔 tal que
𝜙(𝐷) = 𝑁 (𝜙(𝑄1 + · · · + 𝑄𝑔 ) − 𝐾).

Considere o divisor, de grau −𝑔,

𝐷′ := 𝑁 (𝑃1 + · · · + 𝑃𝑔 ) − 𝑁 (𝑄1 + · · · + 𝑄𝑔 ) − 𝑔𝑃0 .

Pelo Teorema de Riemann-Roch

𝑟(𝐷′ ) = deg(−𝐷′ ) − 𝑔 + 1 + 𝑖(−𝐷′ ) = 1 + 𝑖(−𝐷′ ) ≥ 1.

Portanto, existe uma função meromorfa 𝑓 ∈ ℒ(𝐷′ ), ou seja, tal que (𝑓 ) − 𝐷′ ≥ 0. Defina
𝐷 := (𝑓 ) − 𝐷′ , que é efetivo de grau 𝑔. Pelo Teorema de Abel, 𝜙(𝑓 ) = 0, assim

𝜙(𝐷) = −𝜙(−𝐷′ ) = −(𝑁 𝜙(𝑃1 + · · · + 𝑃𝑔 ) − 𝑁 𝜙(𝑄1 + · · · + 𝑄𝑔 ) − 𝑔𝜙(𝑃0 ))


= 𝑁 (𝜙(𝑄1 + · · · + 𝑄𝑔 ) − 𝐾).

Corolário 5. Como um grupo 𝐽(𝑀 ) é isomorfo ao grupo dos divisores de grau zero
módulo seu subgrupo dos divisores principais.

Demonstração. Dado 𝑥 ∈ 𝐽(𝑀 ), existe 𝐷 ∈ 𝑀𝑔 tal que 𝜙(𝐷) = 𝑥, pela sobrejetividade


de 𝜙 : 𝑀𝑔 → 𝐽(𝑀 ). Como 𝜙(𝑔 𝑃0 ) = 0, temos que 𝜙(𝐷 − 𝑔 𝑃0 ) = 𝑥 e deg(𝐷 − 𝑔 𝑃0 ) = 0,
ou seja, 𝜙 : Div0 (𝑀 ) → 𝐽(𝑀 ) também é sobrejetivo. Em particular, Div0 (𝑀 )/ ker 𝜙 ∼
=
𝐽(𝑀 ). Pelo Teorema de Abel, ker 𝜙 = PDiv(𝑀 ) ⊂ Div0 (𝑀 ), assim,

Pic0 (𝑀 ) := Div0 (𝑀 )/ PDiv(𝑀 ) ∼


= 𝐽(𝑀 ).

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