Você está na página 1de 21

a c u l t u r a n a r ú s s i a c o n t e m p o r â n e a

notas de verão sobre


impressões de inverno Boris Schnaiderman

O colapso da antiga União Soviética e as crises sucessivas da Rússia


atual salientaram os traumas sociais e culturais da terra de
Dostoiévski, mas permitem perceber, através de suas fraturas, as
utopias e o poder renovador do povo russo. Neste “Dossiê”, a CULT
traz o depoimento de intelectuais como o historiador Aaron
Gurévitch e o lingüista Meletínski, que representam as tendências
das ciências humanas na Rússia contemporânea, além de ensaio
de Boris Schnaiderman – nosso maior intérprete da cultura russa –
sobre sua viagem a esse país cujos dilaceramentos têm uma
surpreendente semelhança com os dramas do Brasil contemporâneo.
36 CULT - março/99
À direita, Boris Schnaiderman em
novembro de 1997, diante do
cinema e sala de concertos Puchkin,
em Moscou (o cartaz anuncia,
em alfabetos latino e cirílico, a
première russa de Batman e Robin).
Na página oposta, as escadarias
de Potemkin, que fazem parte
da mitologia soviética e foram
celebradas por Sergéi Eisenstein
no filme O encouraçado
Potemkin, de 1925.

Já faz tantos meses que vocês, forte nos seus oitenta anos; ela, rechonchuda, algo lamacento e pastoso e temos de fazer
meus amigos, me pedem que lhes sorridente, amabilíssima. esforços para não cair.
descreva o quanto antes as minhas impressões Tomamos um táxi e vamos jantar em casa As calçadas e passeios encontram-se em
do estrangeiro... deles. Um apartamento acanhado, apenas péssimo estado. As pessoas estão quase todas
Fiódor Dostoiévski dois cômodos, cada um com um sofá, mas há muito simplesmente vestidas, mas de vez em
Notas de inverno sobre impressões de verão uma parede forrada de livros em várias lín- quando aparecem rapazes e moças com os
guas. Aquela pobreza extrema impressiona atavios normais no Ocidente, alguns até

1 O avião da British está descendo na


direção de Moscou*. Avistam-se pela jane-
ainda mais quando lembramos que o dono
da casa é um dos grandes nomes das ciências
humanas e que seus livros circulam em
muito bem trajados.
Os prédios de apartamentos têm quase
todos aquele aspecto que já conhecíamos anos
linha imensas planícies geladas, dá um arre- muitos países. Mas se o ambiente é pobre, a atrás: mal conservados, lembrando envelhe-
pio só de olhar. Este país me fascina e me mesa é farta, dá vontade de perguntar como cimento precoce. Mas, num ou noutro quar-
assusta. Lembro-me de uma tarde em Odes- os russos conseguem, no meio daquela teirão, há prédios construídos recentemente
sa (eu tinha uns seis anos) quando voltei penúria, receber os hóspedes com tanta e já com acabamento melhor. Depois, iríamos
para casa aos prantos, os pés enregelados. prodigalidade. ver, nos arredores, umas construções enor-
Os russos em volta pouco se importam Por volta de meia-noite, eles chamam um mes, também recentes, de aspecto solene, com
com aquela extensão gélida. Homens de táxi que vai nos levar ao hotel da Univer- placas em letras garrafais: APARTA-
quarenta a cinqüenta anos e mulheres de sidade. Um Lada velho mas valente nos MENTOS DE ELITE. Evidentemente,
grandes cabeleiras loiras parecem ter voltado conduz em meio a uma tempestade de neve, as batatas do vencedor estão em toda a parte.
à infância. Dão risadinhas e soltam exclama- resfolegando e dando a impressão de que Na rua se encontram muitos sem-teto,
ções, mostrando um ao outro a aparelhagem não vai conseguir sair do turbilhão. A mas, depois do Brasil, isso não nos espanta.
eletrônica que estão levando. Certamente, eles tempestade amaina, porém, e nos deslumbra- Em alguns aspectos, porém, essa miséria se
têm muito em comum com os rapazes que se mos com a visão de Moscou, que ainda diferencia da nossa. Estávamos no metrô
aproximavam de mim em 87, perguntavam- guarda a majestade de uma capital de império. quando entrou uma mulher ainda nova com
me num inglês miserável se eu queria vender Tudo tem proporções enormes. A cidade está um bebê no colo e começou a pedir esmola
peças de roupa e saíam correndo depois que bem iluminada e os edifícios que aparecem em altos brados, como alguém que exige o
eu lhes respondia em russo. Dá vontade de estão todos recém-pintados. Celebraram-se que é seu direito, e atacando o governo que
dizer: “Ao vencedor as batatas”. recentemente os 850 anos da fundação de não tomava providências para acabar com a
No aeroporto, formam-se filas intermi- Moscou e isso explica a paisagem garrida. miséria.
náveis para controle de passaportes. Um ho- Em toda parte se vê a imagem de São Jorge Depois da viagem de metrô, entramos
mem magro esgueira-se para perto de nós, matando o dragão, símbolo da cidade, mas numa lanchonete, pouco depois aparecem ali
lança um olhar cobiçoso para o meu relógio que depois nós vamos encontrar com duas adolescentes e também exigem aos gritos
de pulso e diz em voz baixa que ele pode freqüência também em Petersburgo. que lhes dêem auxílio. Enfim, algo completa-
facilitar tudo. A suíte no hotel, ou melhor, as duas suítes mente inconcebível no Brasil. Será porque
Encaminhamo-nos para o casal que veio conjugadas parecem quase um acinte depois ali tudo é mais recente, e não houve ainda
nos receber. Ele, atarracado, sisudo, bem do despojamento da habitação de nossos aquela “cristalização”, depois da qual cada
amigos. um sabe o lugar que lhe cabe e não ultrapassa
No dia seguinte, saímos para a rua. É os limites consagrados? Ou será que, apesar
* A viagem a que este texto se refere contou com uma ajuda da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), difícil andar, pois a temperatura subiu um de toda a violência e opressão dos anos de
que o autor agradece. pouco, o gelo da véspera se converteu em regime soviético, o povo adquiriu certa noção

março/99 - CULT 37
O Teatro Bolshói,
em Moscou

de cidadania? (“Cidadão” era o tratamento Em Petersburgo, ficamos num hotel entanto, não se ouve isso no rádio na pro-
corrente entre desconhecidos, na rua). enorme que dá para uma das pontes prin- gramação mais corrente, nem é a música to-
Jerusa (Pires Ferreira) ficou muito im- cipais da cidade. Em outros tempos, havia cada em lanchonetes, táxis etc. Parece que a
pressionada porque, no hotel, a encarregada ali grandes bandeiras vermelhas com os música russa nunca existiu, pois o que nos
do andar, que estava bem vestida e penteada, dizeres: “Glória ao trabalho!” Pois bem, ao chega ao ouvido é certo som pasteurizado de
conversava de igual para igual com as faxi- acordar, olhamos para a ponte e vimos out- danceteria. E tanto em Moscou como em
neiras. E essas também não nos tratavam com doors vermelhos enfileirados. Foi preciso Petersburgo não é difícil encontrar um jovem
aquele servilismo típico dos hotéis no fixar bem a vista para ver que, em lugar da ao volante de um carro parado, com o toca-
Ocidente. Para dizer a verdade, eu não me velha inscrição, estava ali propaganda de fita a todo vapor repetindo a zoeira de sempre.
impressionei tanto com esse fato, pois estava coca-cola. Outras surpresas desagradáveis nos
acostumado com isso em minhas viagens Tanto em Moscou como em Petersburgo reserva a imprensa periódica atual. Se antes
anteriores. vêem-se butiques muito chiques com as era aquela repetição monótona de chavões e
Junto ao gradil de uma igreja, velhos e últimas marcas de produtos ocidentais. E haja notícias rigorosamente filtradas, agora se
velhas ficam vendendo seus pertences. Ali importação! Quase todos os objetos de uso sente uma grande massificação, um nivela-
há pentes usados, bonecas em farrapos, cotidiano vêm do exterior, desde a pasta de mento por baixo, depois dos grandes mo-
velhos urinóis, toalhinhas bordadas. Que dentes até a tesourinha de unhas, e toma-se mentos da imprensa russa com a glasnost,
miséria extrema, haver compradores para água mineral da França e da Itália, embora quando se procurou dar um mergulho na
tudo aquilo! Não, certamente, isso impres- existam águas russas excelentes. realidade do país, com todas as suas misérias
siona mesmo quem está bem acostumado Em toda parte, lanchonetes anunciando e contra-sensos.
com a miséria brasileira. “fastfud” em alfabeto cirílico, mas às vezes Assim, a revista Ogoniók, que foi o
Depois da recepção na noite de nossa os nomes ingleses não são transliterados. O grande porta-voz da intelectualidade
chegada, aceitamos convites de outros russo de hoje não diz que vai ao escritório, partidária da pierestróika, transformou-se
professores da Universidade e pudemos ver ele vai ao “office”, e até o chá ele desaprendeu agora numa revistinha de fatos do dia e
outros apartamentos. O que assusta é o de tomar de samovar. Em vez disso, coloca fofocas, do tipo de tantas que existem no
desnível entre uns e outros. Quase todos um saquinho em sua xícara, e até a vodca Ocidente. É verdade que as revistas de
eram pobres, mas estivemos num bem muitas vezes vem da Finlândia. cultura, de nível muito bom, continuam
confortável e até luxuoso para os padrões O tráfego de carros é intenso e não parece saindo, mas com tiragem limitada. Por isso,
russos. O professor que nos recebeu não fez muito disciplinado. Os “novos russos” dá arrepios lembrar que a Ogoniók, nos seus
segredo sobre o fato de que era filho de um (como os chamam), os beneficiários das bons momentos, chegou em 1987 a uma
figurão do partido e, por isso, dispunha batatas ao vencedor, têm meios de ditar as tiragem de 3.082.811. Mas terá sido tudo
daquelas regalias. Monarquista convicto, ele suas normas. E o descalabro geral, o mau em vão? Afinal, não sumiram do mapa
me fez perguntas sobre o herdeiro do trono estado dos veículos, o relaxamento reinante aqueles milhões de leitores das publicações
brasileiro (“o rei do Brasil”, dizia ele). contribuem para agravar esse quadro. culturais, como também não deixaram de
Em toda parte, uma irrupção violenta dos Outro motivo de espanto é a música mais fazer parte da população aqueles milhões
aspectos de uma cidade capitalista ocidental. corrente no país. Já chegou ao conhecimento que adquiriam as obras dos clássicos. Aliás,
Junto a um edifício de colunas brancas, quase geral que a música russa “de concerto” essa minha suposição é reforçada pelo fato
um grande cartaz anunciando filme do é uma das grandes realizações artísticas de de que, ao surgir em 1996 a ameaça de
Batman. E outros cartazes com propaganda nosso tempo. Igualmente, o jazz e o rock fechamento das principais bibliotecas públi-
de danças eróticas e sessões de strip-tease. têm entre os russos grandes cultores. No cas russas, por falta de verba, houve comícios

38 CULT - março/99
Campanário de Ivan III,
no interior do Kremlin,
em Moscou

Jovens soviéticos participam de


pilhagem do convento Símonov,
que seria destruído em 1930

de protesto que obrigaram as autoridades a nhada por um fato da história recente de Todavia, não se levou a efeito a construção.
desistir daquele retrocesso absurdo. Moscou – a reinauguração do templo do Segundo algumas fontes, constatou-se que o
Outro motivo para desconfiar das Cristo Redentor, o maior da cidade. solo era encharcado demais para uma edificação
conclusões pessimistas sobre o futuro cul- Construído em meados do século passa- desse porte. E, em lugar do palácio, construiu-
tural: a freqüência dos jovens aos teatros. do, era um edifício que aliava o estilo das se ali uma grande piscina aquecida.
Depois de um período em que a crise econô- igrejas medievais russas com o desejo de Por conseguinte, havia razões de sobra
mica esvaziara completamente as salas de pompa e grandiosidade dos czares do século para o atual governo promover uma repara-
espetáculo, o público está voltando ao teatro, XIX, o que dava ao conjunto algo de pesado ção daquele ato de vandalismo. Depois de
aliás num momento de boas realizações. E o e opressivo, ao contrário das outras igrejas muitas discussões pela imprensa, aprovou-
que espanta é a grande proporção de jovens. russas. De longe, as cúpulas do templo não se a reconstrução do edifício, tal qual. E em
Rapazinhos e moças de quatorze a dezesseis destoavam das igrejas do Kremlin, mas de vez de colocar ali um marco que lembrasse à
anos assistindo, a respiração presa, a uma perto a diferença era flagrante. população e aos turistas o ocorrido, com o
montagem de Tio Vânia, de Tchékhov, ou a Todavia, certamente não foi esse o motivo devido respeito pelo templo derrubado, esse
uma adaptação arrojada, bem moderna, da que levou os responsáveis pelo traçado da foi reconstruído fielmente, com todas as
novela Coração de cachorro, de Mikhail metrópole (o Plano Geral para a Reconstru- despesas que isso acarretou, ostentando hoje
Bulgákov. Daria para ouvir o vôo de um ção da Cidade de Moscou, de 1935, tinha a o seu contorno pesado, em contraste com a
inseto, tal a concentração e seriedade com que assinatura do próprio Stálin) a decidirem pela leveza e graça das catedrais do Kremlin, que
eles assistiam à representação. E diga-se derrubada do edifício. Numa época em que lhe ficam próximas. Isso num país em que
depois disso que tudo está perdido! o governo stalinista fazia questão de ex- há toda uma população na miséria e onde os
pressar uma atitude anti-religiosa (anos de- jornais noticiam mortes e mais mortes de

2 Quem chega hoje à Rússia tem a impres-


são nítida de que houve no país uma
pois, ela mudaria completamente, embora
continuasse a educação atéia dos jovens), con-
siderou-se aquele local o mais apropriado para
crianças por infecção hospitalar (às vezes,
abrindo-se um jornal, tem-se a impressão
nítida de estar no Brasil).
restauração monárquica. Nos quiosques de a construção do Palácio dos Sovietes. Outros templos foram também recons-
jornais e revistas vendem-se grandes retratos Em 1931, anunciou-se a abertura do truídos. Assim, numa das entradas do
de Nicolau II e da família imperial. Em toda concurso para o projeto. Inscreveram-se nele Kremlin ficava a capela de Nossa Senhora de
parte se vê o brasão da Rússia atual: a águia arquitetos de muitos países, dentre os quais Íver, que foi derrubada, ao que parece,
bifronte, isto é, o mesmo da dinastia dos nomes em grande evidência, inclusive Le porque impedia uma eventual passagem de
Romanov. Nas bancas de livros mais popu- Corbusier e Walter Gropius. “Em 1934 foi tanques. Reconstruída, ela ostenta o encanto
lares (vender livros na rua chega a ser uma aprovado o projeto de três arquitetos sovié- das antigas capelinhas russas. Quando a
tradição), o tema predileto é a velha Rússia ticos, que era bastante pomposo, um verda- visitei, estava ali um pintor procurando
dos czares. deiro monstrengo aos nossos olhos de hoje, refazer os afrescos primitivos. Que resultaria
E também em toda parte as marcas de mas adequado ao sistema stalinista”, como de tudo aquilo? Seria possível alguém pintar
uma religiosidade profunda. As igrejas de escrevi em meu livro Os escombros e o mito – A os mesmos ícones antigos?
Moscou foram quase todas restauradas, as cultura e o fim da União Soviética (São Paulo, Incréu e materialista de convicção, assis-
cúpulas douradas e azuis fulgindo ao sol. Companhia das Letras, 1997). O edifício to a tudo isso com grande perplexidade. En-
A importância que os russos grego- deveria ser o mais alto do mundo, 315 metros caro com respeito a crença alheia, mas às ve-
ortodoxos, que são a grande maioria, dão às de altura, e seria encimado por um monumento zes me assusto com o fanatismo que se ma-
suas tradições religiosas pode ser testemu- a Lênin com mais de 100 metros. nifesta.

março/99 - CULT 39
Projeto do Palácio
dos Sovietes

3 Quando estávamos em Moscou, havia


muita discussão em torno de um artigo, que
astronômicas do período soviético, mas, com
todas as dificuldades, o livro cultural tem o
seu lugar importante.
soviético, devido à ênfase exclusiva no social.
Os vários estudos incluídos no volume
detêm-se particularmente na abordagem
não cheguei a ler, do conhecido escritor Quantitativamente, nas livrarias, os li- junguiana desse tema. Assim, um dos tra-
Daniil Grânin, sobre “o fim da intieliguêntzia vros de temas sociais e políticos sobrepujam balhos, de autoria de N. N. Firsov, com re-
russa”. Depois, tive oportunidade de ler os puramente literários. Se uma Liudmila ferência às condições atuais na Rússia, chama-
outros no mesmo sentido. Pietruchévskaia e uma Liudmila Ulítzkaia, se: “Os partidos políticos contemporâneos e
Realmente, lutando para sobreviver, por exemplo, atraem o interesse dos leitores os arquétipos do inconsciente coletivo”. Mas
submetendo-se muitas vezes a um trabalho de ficção, se um poeta como Guenádi Aigui, há também, no livro, quem aponte para os
extenuante em outros setores, o intelectual que passou mais de trinta anos sem publicar elementos mitológicos na valorização do
russo tem muitos motivos para entrar em nada em seu país, encontra finalmente o seu mercado. É o caso do estudo de M. V. Iev-
desespero. público (naturalmente pouco numeroso, pois guênieva, “Fundamentos psico-sociais na
Assim mesmo, uma visão apocalíptica, sua poesia é avessa a qualquer concessão ao constituição da mitologia política”. Nesse
como a de Grânin, não me convence. gosto médio) e se nas prateleiras aparecem contexto, adquire especial relevo a afirmação
Vi professores da Universidade de Ciên- edições de escritores do passado antes mal- do pensador russo A. E. Golossóvker, em
cias Humanas de Moscou interessadíssimos ditos (assinalem-se nesse sentido as impor- 1987 (citado no trabalho de A. N. Mossiéiko,
na apresentação de um trabalho de Jerusa tantes publicações da Sociedade Vielímir “O inconsciente coletivo e a mitologia das
sobre a relação entre o oral e o escrito na Khlébnikov, de Moscou, que se dedica a relações étnicas contemporâneas”), sobre as
cultura popular brasileira e, depois, deba- publicar a obra do grande poeta e o que se conseqüências danosas de quando um povo
tendo, confrontando a experiência brasileira relaciona com ela), o interesse da maioria dos perde seus contos e mitos.
com o que se fez na Rússia. E com o mesmo leitores se dirige para outros campos. Na realidade, todos esses trabalhos ex-
interesse acompanharam a minha exposição Tratemos disso um pouco mais em põem uma concepção oposta à de Eleazar
sobre as gravuras e desenhos de nosso pormenor, na base das minhas últimas lei- Mieletínski, da mesma universidade que
Oswaldo Goeldi para as obras de Dos- turas. publicou o livro de estudos, pois ele faz, em
toiévski. O velho hábito russo de discutir Além das traduções de Freud, Jung e Os arquétipos literários [leia texto na página
idéias encontrava ali um campo fértil. E, além outros autores da psicanálise, aparecem 45], uma crítica de nível às concepções de
dos professores de carreira feita, muitos estudos russos neles baseados. Freud e Jung, bem como às de Campbell,
jovens em vias de obter os seus primeiros A teorização de Jung parece ir ao Neumann, Bachelard, Northrop Frye e
títulos universitários. encontro das preocupações de muitos Durand, na base de sua própria abordagem
Já se tratou muito, também, do fim do intelectuais russos com a religião e com o dos mitos e da literatura, que se fundamenta
livro cultural na Rússia. Chegou-se a afirmar “componente humano do político”, como no social e tem muito em comum com a visão
que o mercado fora totalmente tomado pelos escreveu A.P.Lógunov, no prefácio da do psicólogo Lev Vigótski, sobre a relação
best sellers, os livros do esoterismo mais vulgar coletânea A mitologia política contemporânea – entre o social e o psicológico.
e a pornografia barata. Realmente, o início Conteúdo e mecanismos de seu funcionamento O pequeno livro de A. Káchina-Ievréi-
dos anos 90 dava essa impressão. Mas quem (Moscou, Universidade Estatal Russa de nova, O subterrâneo de um gênio – Fundamentos
vai hoje a uma grande livraria na Rússia vê, Ciências Humanas, 1996). Trata-se de um sexuais da obra de Dostoiévski (Leningrado,
ao lado de toda uma parafernália de lixo conjunto de trabalhos orientados no sentido Atus, 1991), surge na esteira da quebra dos
cultural originário do Ocidente, um elenco de frisar a importância do estudo dos mitos tabus sexuais na sociedade russa atual.
de títulos de obras russas e traduzidas que políticos, que, segundo os autores, foram Reimpressão de um livro de 1923, constitui
dá até inveja. Elas estão longe das tiragens menosprezados na Rússia, no período aplicação muito imediatista das concepções

40 CULT - março/99
A catedral de São
Basílio, em Moscou

A loja de departamentos
Universal, em Moscou, um dos
símbolos da Rússia capitalista

freudianas, uma abordagem das persona- em desenvolvimento a grande crise do entre essa abordagem e o anedótico e factual
gens de Dostoiévski em termos de manifes- sistema servil e um incipiente surto capitalista corrente na historiografia do séxulo XIX,
tação de neuroses. Para um leitor ocidental que se acentuaria no final do século. pois os autores dos trabalhos baseiam-se
de hoje, ele parece muito linear e sem maior Em defesa de sua tese, o autor lança mão numa grande preocupação em desvendar os
alcance, apesar de bem escrito. Sua reedição, de um material que certamente seria proibido móveis das ações humanas através do tempo.
com tiragem de 50.000, mostra a sofreguidão até há poucos anos: o diário de um comer- De modo geral, no almanaque se procla-
com que, na Rússia, se procurou recuperar ciante de Moscou, conservado em arquivo, ma a proximidade com as pesquisas desen-
tudo o que fora até então sonegado. e onde aparecem, com riqueza de porme- volvidas na Itália a partir dos fins da década
No entanto, esta freqüência com que se nores e uma linguagem saborosa, um tanto de 70 e que se englobam na noção de “micro-
discutem os temas sexuais, antes tabus, não arcaica mesmo na época, os seus problemas história”. Aliás, confirmando essa preocupação
se limita à divulgação apressada de textos conjugais advindos de um casamento por com as fontes italianas, inclui-se a tradução
apresentados de modo sensacionalista, nem interesse, o adultério de parte a parte, as bri- russa de “Ainda sobre a micro-história” de E.
se reduz à mera pornografia. gas com a família do sogro, a religiosidade e, Grandi (Quaderni storici, 1994, nº 86).
Um dos livros que chamaram a atenção finalmente, o homossexualismo (o autor do Um exemplo interessante nesse sentido
para esse tema foi Decameron feminino, de Iúlia estudo afirma que a Igreja russa era bem nos é dado pelo livro de I. N. Ksienofontov,
Vozniessiênskaia, publicado em 1992 (Mos- mais tolerante em relação a este que ao adul- Geórgui Gapon: Fantasias e verdade (Moscou,
cou, Vernissage), com tiragem de 150.000, tério). editora da Enciclopédia Política Russa, 1996),
reedição de um volume que saiu em Israel Esse trabalho de A.I. Kupriianov saiu que estuda uma figura misteriosa do movi-
cinco anos antes. Trata-se de uma coletânea em Casus 1996 – O individual e único na história mento revolucionário russo, o padre orga-
de contos com um toque de bom humor, (Moscou, editora da Universidade Estatal nizador de uma grande manifestação de
sobre dez mulheres russas que permanecem Russa de Ciências Humanas, 1997). Na operários em greve em São Petersburgo, que
numa quarentena de dez dias, por determi- contracapa dessa publicação lê-se: “O ato saíram à rua em 1905, acompanhados de suas
nação das autoridades sanitárias, e se dedicam inesperado, a volta inesperada do destino, a famílias, carregando estandartes religiosos e
a “contar uma à outra diferentes histórias conjunção estranha de circunstâncias, o caso entoando cânticos, para levar ao czar uma
sobre a vida, os homens, o amor, o ciúme e as surpreendente – eis os casi do passado de petição, e foram massacrados pela tropa no
traições e sobre muitas, muitas outras coisas que trata este almanaque”. Desenvolvendo famoso Domingo Sangrento, em 9 de janeiro.
que perturbam qualquer mulher normal, mais essa afirmação, um dos organizadores, Quem foi Gapon? Um agente provocador?
inclusive as soviéticas”. I. L. Biesmiértni, expõe uma série de argu- Um homem identificado com o povo e
Uma atuação importante, nesse sentido, mentos no estudo introdutório “Que casus é ansioso de encontrar uma solução que não
vem sendo desenvolvida por alguns historia- este?”, bem como no encerramento de um fosse contra a veneração do czar e das
dores. É o caso, por exemplo, do trabalho de debate realizado em Moscou sobre o mesmo tradições religiosas? Pesquisando numerosos
A. I. Kupriianov, “A ‘paixão fatal’ de um tema. documentos antes inacessíveis, o autor
comerciante moscovita”. Afirmando de início que o termo latino procura responder a essas indagações sem
A tese central do estudo consiste em foi tomado na acepção de caso, ocorrência, chegar a uma resposta definitiva, mas trans-
afirmar que a crise de um sistema social não acontecimento, ele destaca que a preocupação mitindo ao leitor os resultados de sua pes-
se reduz à contradição entre as forças dos autores foi desvincularem-se da preocu- quisa.
produtivas e as relações de produção, como pação com leis gerais, com módulos de No setor de história da cultura têm saído
se lia nos historiadores marxistas, mas afeta mundo e fixarem-se no estudo do que era obras muito importantes, devendo-se destacar
a população inclusive em sua vida íntima. Ora, considerado episódico e, por isso, despre- aí os livros póstumos de Iúri Lotman, o grande
na Rússia de meados do século XIX, estavam zado. No entanto, ele sublinha a diferença teórico da semiótica, falecido em 1993, mas

março/99 - CULT 41
que também trouxe contribuição importante sendo a autoria da concepção atribuída a cional, teve o seu livro Sobre Pasternak
como historiador e estudioso das manifes- Saint-Simon. (Kherson, Ucrânia, Escolas-Piloto, 1997)
tações culturais. Uma obra como Palestra sobre No artigo “Dialética”, lê-se uma expo- publicado numa edição de 100 exemplares,
cultura russa (São Petersburgo, Arte, 1997), sição sobre a evolução do conceito, com embora se trate de um texto importante para
apesar de seu título modesto (em contraste referência ao uso indevido do termo pelos o conhecimento tanto de Pasternak como do
com o volume imponente, muito bem adeptos da “utopia marxista”. Não aparece próprio autor do livro (felizmente, ele me
ilustrado), transmite as concepções básicas artigo ou verbete sobre Mikhail Bakhtin, fez chegar às mãos um desses exemplares).
do autor sobre cultura e traça um vasto embora nos últimos anos se tenha frisado na A edição foi realizada em Kherson, pequena
panorama da vida da nobreza russa em fins Rússia a importância de sua contribuição à cidade à beira do mar Negro, e esse fato parece
do século XVIII e início do século XIX. filosofia e à teoria da cultura, a par de seus bastante comum nas publicações atuais em
Outros desdobramentos da assim cha- trabalhos sobre literatura, e não obstante ele russo: muitas delas saem longe dos grandes
mada escola de Tártu e Moscou, tão impor- figure em dicionários filosóficos ocidentais e centros, pois às vezes é mais viável conseguir
tante para os estudos da linguagem e da o impacto da divulgação de sua obra no isso na província, ora na própria Rússia, ora
cultura, atualmente extinta, também se Ocidente, a partir da década de 70, apareça em outras repúblicas da Comunidade de
traduzem em muitos trabalhos que se encon- com muita ênfase em trabalhos de pensa- Estados Independentes. Assim, tenho rece-
tram nas livrarias. dores importantes, como foi o caso de Gilles bido publicações de poesia visual, das me-
Os dicionários de filosofia publicados Deleuze e Félix Guattari. Será por causa de lhores produzidas em russo, enviadas, por
recentemente permitem acompanhar um sua relação (embora complexa) com o intermédio de Haroldo de Campos, da cidade
pouco as mudancas na opinião dominante marxismo? de Iéisk, junto ao mar de Azóv.
nas instituições culturais russas. Dostoiévski foi abordado num artigo Enfim, em meio à miséria e ao descalabro
O Dicionário filosófico organizado por I. praticamente com a mesma extensão do a que a Rússia chegou, a cultura continua
T. Frólova (Moscou, Editora de Literatura reservado a Platão. Definido corretamente encontrando os seus meios de realização.
Política, 1991, 6ª edição, refundida e am- como “escritor-filósofo”, é louvado principal-
pliada) teve sua sexta edição, refundida e am-
pliada, em plena pierestróika. Nele aparecem
temas marxistas, inclusive um artigo sobre a
mente pelo romance Os demônios, apresentado
como “advertência premonitória contra as
conseqüências mostruosas da doutrina
4 A cidade de Pedro, São Petersburgo
(antes de 1917, este “São” aparecia quase
“Natureza partidária da filosofia”, e, apesar socialista”. exclusivamente nos documentos oficiais, mas
de uma abordagem menos sectária que a de Seria, porém, uma injustiça atribuir essa agora a maioria dos habitantes faz questão
outras obras no gênero, anteriores, há uma visão simplista de sua obra à crítica russa em de usá-lo e até me corrige para que não o
visão negativa dos oponentes do marxismo. geral. O redobrado interesse por Dostoi- esqueça), Petrogrado, Leningrado e, depois,
Já a Enciclopédia filosófica sucinta, de 1994 évski, que parece crescer nos momentos das novamente São Petersburgo, a antiga
(Moscou, Grupo Editorial Progresso), grandes crises morais na Rússia, já deu metrópole (nem tão antiga assim, data do
apresenta uma diferença radical em relação origem a várias obras importantes, conforme início do século XVIII) parece renascer con-
às obras no gênero publicadas anterior- pude constatar mais de perto ao participar, tinuamente das cinzas.
mente na Rússia. Não só os diversos au- em Petersburgo, em novembro de 97, das Fundada por Pedro, o Grande, em terri-
tores que assinam artigos e verbetes não XXII Leituras Internacionais Dostoi- tório conquistado aos suecos, foi construída
seguem orientação marxista, mas surge até evskianas. em local de grande importância estratégica e
uma preocupação de atacá-la. Não há um Todavia, nos mais diversos campos, o que ponto de irradiação para o mundo, mas com-
artigo sobre Marx, nem sobre o marxismo, predomina nas publicações que chegam às pletamente inadequado para uma cidade: o
mas aparece um sobre materialismo histó- livrarias é a tirania do mercado. Assim, o poeta terreno pantanoso era sujeito periodicamente
rico – uma abordagem bastante negativa, Guenádi Aigui, apesar de sua fama interna- a grandes cheias.

42 CULT - março/99
Ao lado, na foto da
esquerda, o campanário
de Ivan III, em Moscou.
Na imagem da direita,
vista aérea do Kremlin

Na página oposta, na foto maior, vista


da Praça Vermelha. Nas fotos da
direita, no alto, os fundos do Kremlin
banhados pelo rio Moskvá; embaixo,
vista panorâmica de Moscou.

Drenados os pântanos, ergueu-se ali a à Revolução de 1917, foi uma das cidades pressar com tanta força a alma da cidade e
cidade magnífica, onde artistas e artesãos do russas que mais sofreu com a escassez de de seus habitantes, dá certa vergonha tratar
Ocidente europeu encontravam as condições alimentos. Toda uma população definhava de literatura em meio a uma catástrofe na-
propícias que nem sempre existiam nos países então de fome. Foi a época em que o grande cional.
de origem. Os espaços imensos das praças, Óssip Mandelstam dirigia-se à “estrela Mas, assim como a cidade renasce de suas
os palácios imponentes, as pontes monumen- transparente, fogo-fátuo”, dizendo-lhe “A cinzas, o russo sempre encontra meios de
tais testemunham até hoje o esplendor da cidade de Pedro, tua irmã, está morrendo” criar uma realidade cultural que espanta.
Rússia dos czares. Mas, nesse espaço (Cf. Boris Schnaiderman, Os escombros e o E é com esta certeza que me encaminho
imperial, acotovelava-se uma população mi- mito). Sim, a cidade estava morrendo, mas para o avião da British, agora de volta a um
serável, mal vestida e mal alimentada, lado a conseguiu sobreviver e atravessar os anos mundo que tem tanto em comum com o
lado com coches luxuosos e toaletes esplên- tenebrosos do stalinismo. cotidiano russo.
didas. Não é por acaso, pois, que Puchkin, Foi assediada pelos nazistas na Segunda Boris Schnaiderman
em O cavaleiro de bronze, nos conta a história Guerra Mundial, mas, tal como nos anos professor e criador do curso de língua e literatura russa
de um pobre funcionário que, por ocasião de após a Revolução, não se entregou ao inimigo. da USP; tradutor e ensaísta, autor de Dostoiévski

uma grande cheia do rio, corre pelas ruas, O bloqueio acarretou fome atroz, quando prosa poesia (Perspectiva), Turbilhão e semente –
Ensaios sobre Dostoiévski e Bakhtin (Livraria Duas
até a exaustão e a morte, ouvindo atrás de si o ocorreram até casos de canibalismo e Cidades) e Os escombros e o mito – A cultura e o fim

tropel do cavalo de bronze do monumento a morreram cerca de 650 mil de seus habitantes. da União Soviética (Companhia das Letras), dentre outros.

Pedro, o Grande. Tudo isso faz parte da cidade, não há como


Este caráter fantasmagórico da cidade é uma esquecer os fantasmas, como não dá para Post Scriptum
constante na literatura russa. Assim, no final esquecer os nordestinos que trabalharam até Essas Notas foram escritas após uma viagem
de vinte dias à Rússia, em novembro de 1997.
de Um coração fraco, conto da mocidade de a exaustão na construção de Brasília e ali Todos sabem que, depois disso, a crise econô-
Dostoiévski, depois de uma alusão ao “vapor encontraram a morte. (Como isto lembra os mica resultou numa verdadeira calamidade,
gélido” que se desprendia dos cavalos espan- camponeses levados, no reinado de Pedro, o e os jornais têm publicado números sinistros
sobre a miséria da população e a escassez do
cados brutalmente pelos cocheiros e das pessoas Grande, para trabalhar junto ao Nievá, e mínimo essencial à subsistência. Lembro-me
em correria incessante, lemos: “O ar conden- cujos ossos balizaram a nova capital!) de que algumas pessoas com quem tivemos
contato sentiam realmente a aproximação de
sado tremia com o mínimo rumor e, qual Vejo agora os transeuntes na rua, em meio algo terrível. Elas nos diziam que estávamos
gigantes, de todos os telhados de ambas as à cidade-Fênix, correndo para o ônibus ou o vendo apenas a “vitrine da Rússia”, pois no
margens erguiam-se e corriam pelo céu frígido metrô, encolhendo-se dentro dos capotes e interior do país as condições eram muito mais
precárias. Uma vez em que me perdi em
colunas de fumaça que se trançavam e erguendo a gola para se proteger do vento. Moscou e fiquei procurando o hotel da
destrançavam, de modo que, parecia, novos A magnificência dos exteriores parece Universidade, o porteiro de um prédio, e que
edifícios se erguiam por sobre os velhos, e uma sublinhar ainda mais a miséria daquelas vidas. tinha todas as características de um intelectual,
me ensinou o caminho, acrescentando: “...
nova cidade se formava no ar...”. Isso adquire A majestade das estações de metrô, com seus realmente, na Rússia estamos todos perdidos”.
um acento particular quando comparamos esse mármores e mosaicos, com aqueles vastos Com freqüência, diziam-nos que em 90 e 91 a
trecho com o final de A avenida Niévski de salões, como ela me parece opressiva! situação era bem trágica, mas que as coisas
estavam se acomodando: “Na Rússia, a gente
Gógol, em que o próprio demônio acende os O aparelho estatal se encolheu, a moça sempre dá um jeito.”
lampiões da avenida. (Tratei disso, mais que me digita um texto tem evidentemente Não desejando fazer conjeturas, continuo na
extensamente, no artigo “A São Petersburgo formação universitária, tudo se apequenou expectativa, não acreditando muito que o “jeiti-
nho russo” traga bons resultados a curto prazo,
de Fiódor Dostoiévski”, atualmente no prelo naquelas vidas, em meio ao esplendor mas confiando em que as grandes qualidades
pela Revista Ciências e Letras de Porto Alegre.) imperial da cidade. do povo russo permitam encontrar, ainda que a
Sim, o demônio parece ligado a todo o Participo do congresso sobre Dostoi- duras penas, o caminho da recuperação.
destino da cidade. Nos anos que se seguiram évski, mas, embora ele tenha sabido ex- Dezembro de 1998

março/99 - CULT 43
Ateliê do escultor Maniziéiev,
que criava estátuas de propaganda
soviética. Na página oposta,
o lingüista Eleazar Meletínski

44 CULT - março/99
harmonia mítica
com o cosmos
Em entrevista concedida em sua única visita ao Brasil,
Meletínski discute a função do mito, as teorias de
autores como Propp, Jung e Lévi-Strauss, e o caráter
mítico-religioso das ideologias que marcaram a cultura
russa antes e depois do fim do império soviético

A única visita de Eleazar Moisséievitch científica elementos da poética histórica e do transformassem em antimitos. Por outro lado,
Meletínski ao Brasil ocorreu em 1995, estruturalismo, da semiótica. Depois, eu me a ideologia do século XX continua sendo, no
quando o mitólogo russo veio a São Paulo liguei de forma bastante estreita aos semiólogos fundo, mitológica, mesmo a ideologia co-
para uma série de conferências, a convite do franceses e a Claude Lévi-Strauss, que me munista, que é anti-religiosa, antimitológica,
Núcleo de Poéticas da Oralidade do progra- influenciou muito e também é um de meus e ao mesmo tempo repete a estrutura do mito:
ma de Pós-Graduação em Comunicação e mestres. o tempo da revolução comunista é o tempo
Semiótica da PUC-SP. Nessa oportunidade, CULT Em A poética do mito o sr. faz muitas mitológico, Lênin e Stálin aparecem como
Meletínski concedeu entrevista a Jerusa Pires críticas a Lévi-Strauss... heróis civilizadores, os congressos comu-
Ferreira, Boris Schnaiderman e Manuel da E.M.M. Mas também faço críticas a nistas são festas rituais, o Partido Comunista
Costa Pinto – entrevista que permaneceu Jirmúnski, a Propp e a Bakhtin. É natural, é uma igreja e seus adversários são hereges
inédita até a presente publicação pela CULT, nesse intercâmbio de idéias. Em meu livro etc.
mas que conserva sua atualidade, seja pela há uma crítica a eles, mas sobretudo a Vesse- CULT E o que acontece com o fim do comu-
permanência dos temas abordados pelo lóvski, pois ele subestimava o mito. Ele falava nismo?
teórico, seja pelos comentários que faz a muito do sincretismo poético do começo da E.M.M. Depois do comunismo, esse ele-
respeito de seu livro Os arquétipos literários, história da literatura, mas em certa medida mento mitológico é conservado, embora às
que acaba de ser lançado pela Ateliê Editorial. ele ignorava o mito. No que concerne a Lévi- avessas. Idealiza-se o tempo czarista como
Strauss, o que me agrada em sua obra é que idade do ouro – uma idéia mitológica.
•
ele compreende muito bem os elementos CULT As sociedades capitalistas têm uma
CULT Quais são as fontes de seu trabalho racionais na mitologia. Ele nos abriu para relação mitologizante com tecnologia?
com a poética dos mitos? procedimentos específicos – como por E.M.M. Sim, embora de outra maneira. Eu
Eleazar Moisséievitch Meletínski Todos os exemplo a bricolagem – com os quais o mito falei do comunismo porque ele é contra o
meus livros são consagrados à poética histórica, age. Mas, na minha opinião, ele utiliza sua mito, contra a religião, e mesmo assim essa
ou seja, à análise da gênese dos gêneros lógica pessoal para compreender os materiais ideologia anti-religiosa é uma religião; a idéia
literários, sobretudo os gêneros narrativos – da mitologia indígena. Lévi-Strauss raciona- de felicidade da era comunista era uma idéia
análise que está diretamente ligada ao mito, liza a lógica primitiva, mais do que seria cristã às avessas. A consciência mitológica
que é o berço da cultura em geral e dos gêneros desejável. Às vezes ele substitui a mitologia muda suas formas e estruturas. A consciência
literários em particular. A escola da poética real dos índios por construções de seu de massa ou popular é sobretudo mitológica.
histórica é uma escola russa. Seu fundador foi próprio cérebro. CULT Roland Barthes conseguiu dar uma
o acadêmico Alexander Vesselóvski [autor de CULT Como são os mitos do século XX? boa idéia dessa nova mitologização, com sua
A poética dos enredos] e o líder dessa escola nos E.M.M. Não são necessariamente mitos análise dos fenômenos da cultura de massa...
anos 20, 30 e 40 foi meu mestre, V. Jirmúnski. novos, embora esses existam. Os escritores E.M.M. Sim, mas ele analisa uma mitologia
Dito isso, posso dizer que também sou um do século XX utilizaram os mitos tradicio- burguesa. O mitólogo burguês esconde a
discípulo de Vladímir Propp, que era ao nais com um novo tratamento, que expres- história sob a forma da natureza. Ele trata da
mesmo tempo meu amigo e mestre. Mas sasse essa nova situação do homem, aban- história como natureza para ir de encontro
Propp já é uma outra coisa, ele está mais donado na sociedade burguesa, ao passo que ao mito.
próximo do formalismo russo e sua obra na Antiguidade e nas sociedades primitivas CULT A situação dos cientistas e pensadores
representa a passagem do formalismo russo os mitos exprimiam pensamentos e sen- na antiga União Soviética era dificílima. No
para o estruturalismo europeu. Como dis- timentos coletivos, sociais. Há aí uma grande entanto, foram realizados trabalhos formi-
cípulo de Propp, eu reuni em minha atividade diferença. Isso levou a que os mitos se dáveis. Como isso foi possível?

março/99 - CULT 45
À esquerda, cartaz de propaganda comunista em que Lênin e
Stálin aparecem como heróis de proporções míticas. No centro,
o antropólogo Claude Lévi-Strauss. À direita, O tribunal do povo
(1934), de S.B. Nikritin, em que a representação de um julgamento
remete à cena da última ceia de Cristo e seus apóstolos, ou talvez
ao tribunal da Inquisição.

E.M.M. O contraste entre as ciências e as também uma revista chamada Arbor Mundi, CULT Propp acredita numa concepção de
idéias revolucionárias, nos anos 20, não era consagrada à história da cultura. arquétipo diferente de Jung, ele materializa
tão grande. Podia-se crer no comunismo e CULT Seu livro Os arquétipos literários sua concepção, à luz do folclore. Existe
trabalhar no domínio científico, qualquer que [recém-lançado no Brasil] pertence a essa hoje, no mundo moderno, um folclore
fosse ele. Nos anos 40 e 50, com o dogmatismo linha de reflexão? vivo?
soviético, isso se tornou quase impossível. E.M.M. Sim. A primeira parte do livro é E.M.M. Naturalmente. Há duas formas: o
Agora, depois da queda do comunismo, a teórica e a segunda é dedicada ao destino de folclore tradicional, do camponês, ainda vivo
situação é paradoxal. Existe uma reação contra alguns arquétipos literários da literatura em certas sociedades; e há um folclore urba-
o dogmatismo, mas essa reação se trans- clássica russa. Aprofundando esse tema, eu no, ligado ao mundo contemporâneo, um
formou em reação contra o racionalismo em escrevi também um trabalho intitulado folclore da cidade, da juventude, das novas
geral – e a ciência nao pode existir sem o Dostoiévski à luz da poética histórica, que estuda idéias, das novas simbologias, que é estudado
racionalismo. Por isso a situação hoje é muito esses arquétipos na obra do escritor. pela antropologia urbana.
difícil. CULT Podemos dizer que o sr. faz uma CULT No ensaio “Tipologia estrutural e
CULT O Instituto de Altos Estudos, que o revisão crítica da teoria dos arquétipos de folclore” (incluído na antologia Semiótica
sr. criou, reúne autores que trouxeram Jung? russa), o sr. defende uma teoria que seria a
grandes contribuições ao ocidente, como E.M.M. Jung é da opinião de que no mito síntese da análise do sintagma, da narrativa
Boris Uspênski e Aaron Gurévitch. Como se refletem as relações entre o pensamento (como em Propp), e da análise do paradigma,
surgiu essa instituição? coletivo subconsciente e o pensamento da semântica (como em Lévi-Strauss). Qual
E.M.M. No começo da pierestróika, I. N. consciente individual, havendo um pro- o significado dessa síntese?
Afanássiev, um jovem historiador e ativista cesso de individuação no qual pouco a E.M.M. Atualmente eu me ocupo, entre
político liberal e democrático, trabalhava pouco se harmonizam os pensamentos outras coisas, de um índex de enredos
numa revista de teorização comunista e individual e coletivo. Sou da opinião de folclóricos. Para Propp, a base de um índex
convidou um grande número de intelectuais que no mito essa situação ainda não está desses seria sintagmática; ele analisa o
independentes (incluindo a mim) para um refletida, que essa harmonização, essa relato do ponto de vista de sua composição.
diálogo, propondo-lhes escrever uma carta a relação complicada entre consciências Eu me interesso mais pelo sentido para-
Gorbatchóv, pedindo-lhe que criasse um individuais e coletivas começa no estado digmático, pelo sentido mais profundo de
instituto independente da burocracia do romance de amor cortês, do romance cada enredo como um todo – e nesse sen-
soviética. Escrevemos essa carta. Gorbatchóv medieval – e não no estágio do mito. Para tido estou mais próximo de Lévi-Strauss.
a recebeu, mas nada fez. Quando, alguns mim, o mundo que rodeia uma pessoa não O mito é algo eterno, reflete a consciência
anos depois, Afanássiev tornou-se diretor da é somente matéria secundária para formar primitiva e, em certos níveis, permanece
nova Universidade de Ciências Humanas, certas imagens, e por isso a mitologia não para sempre, sobretudo na consciência
ele me ligou e pediu que organizasse o é somente uma psicologia. Para uma popular, de massa, porque garante a longo
Instituto. Eu aceitei e convidei os estudiosos pessoa, é muito importante concretizar prazo a harmonização das relações entre
mais independentes e conhecidos mun- essa relação com o mundo que a rodeia, a os homens e aquilo que os rodeia. A ciência
dialmente. Nós escolhemos uma direção sociedade, o cosmos. O objetivo principal não pode responder a esse problema. Há
teórica que abordasse temas como a poética do mito é harmonizar as relações do problemas eternos, do sentido da vida, da
histórica, a antropologia e a psicologia indivíduo com a sociedade e o cosmos, e finalidade da história, do mistério do amor.
históricas, a teoria dos arquétipos, orga- não somente harmonizar sua consciência O mito – e não a ciência – responde a essas
nizando conferências e seminários; temos individual com o subconsciente coletivo. questões.

46 CULT - março/99
o idioma dos
arquétipos Boris Schnaiderman Na foto maior, o suíço Carl Gustav
Jung, criador da psicologia analítica.
No alto, o escritor Dostoiévski, autor
de O idiota. Embaixo, Nicolai
Os arquétipos literários, recém-lançado Gógol, autor de Almas mortas.

no Brasil, reflete o convívio de Meletínski


com a obra de Jung e define os arquétipos
como linguagem temática da literatura
Os arquétipos literários
universal, presente no mito, no epos, no E. M. Meletínski
Tradução de Aurora Fornoni Bernardini,
conto maravilhoso e na ficção moderna de Arlete Cavaliere e Homero de Freitas

autores como Gógol, Dostoiévski e Biéli Ateliê Editorial


320 págs – R$ 17,00

A publicação do livro Os arquétipos


literários, de Eleazar Meletínski, numa bem
estudo tipológico-estrutural do conto O livro Os arquétipos literários resultou
maravilhoso”, publicado, inicialmente, na de seu convívio de muitos anos com a obra
cuidada tradução do russo por Aurora reedição russa de 1969 do clássico livro de de Jung. O que lhe dá um toque peculiar é o
Fornoni Bernardini, Arlete Cavaliere e V. I. Propp, Morfologia do conto maravilhoso, fato de o autor ser um grande estudioso de
Homero de Freitas, constitui um passo im- incluído em quase todas as edições deste, contos e lendas, bem como da literatura em
portante para um conhecimento maior, em inclusive a brasileira. geral, e que se defrontou com as concepções
nosso meio, da obra desse eminente etnólogo, Outros trabalhos seus publicados no junguianas depois que seu universo con-
cujo octagésimo aniversário se comemorou Brasil: “Tipologia estrutural do folclore” ceitual já estava formado.
recentemente, inclusive com um simpósio em (que integra a antologia Semiótica russa) e o Ainda na década de 70, ele publicou em
sua homenagem, realizado conjuntamente fundamental A poética do mito, cuja tradução revistas russas trabalhos sobre Jung, e este
pelo Instituto de Estudos Avançados da USP brasileira teve papel pioneiro na divulgação seu interesse só poderia contribuir para
e pelo Núcleo de Poéticas da Oralidade da de seus trabalhos entre nós. Seus contatos acirrar as desconfianças em relação a alguém
PUC- SP. com o Brasil se fortaleceram ainda mais com como ele, egresso do Gulag. Agora, ele volta
Seu nome tornou-se conhecido, no Oci- o curso que ministrou no Programa de ao tema, numa obra mais desenvolvida, um
dente, sobretudo graças ao trabalho “O Comunicação e Semiótica da PUC-SP. verdadeiro balanço do confronto entre suas

março/99 - CULT 47
Meletínski em Português
• “O estudo tipológico-estrutural do conto maravilhoso”, ensaio incluído no livro
Morfologia do conto maravilhoso, de V.I. Propp, organizado por Boris
Schnaiderman e traduzido do russo por Jasna Paravich Sarhan. Rio de Janeiro,
Forense Universitária, 1984.
• “Tipologia estrutural da folclore”, ensaio traduzido do russo por Aurora Fornoni
Bernardini e incluído no livro Semiótica russa, organizado por Boris Schnaiderman.
São Paulo, Perspectiva, 1979.
• A poética do mito, traduzido do russo por Paulo Bezerra. Rio de Janeiro, Forense
Universitária , 1987.

próprias concepções e a teoria dos arqué- que nortearam outros livros do etnólogo, mas com Púchkin e vai até Andréi Biéli, no início
tipos. trata-se agora de um novo ponto de vista. deste século.
Depois de definir o que ela representa Enfocando as diferenças entre o epos e o Voltando a refletir sobre esse tema, o autor
para Jung, Meletínski é levado a fazer conto de magia, que em seu trabalho já chega a conclusões bem interessantes. Assim,
algumas distinções. O “fundador da psico- referido sobre a polêmica de Lévi-Strauss e abordando o arquetípico da figura do duplo,
logia analítica” não teria levado na devida Propp acentuava a distância entre as nos diz que O nariz, de Gógol, seria uma
conta a importância do social na determinação concepções de um e de outro, ele afirma agora paródia das novelas românticas sobre esse
do comportamento humano; e a mesma que o arquétipo do herói é muito distinto tema. Aliás, ele estuda a passagem de Gógol
crítica ele estende a Freud e a outros autores quando se trata de uma ou de outra forma. do mito e do conto maravilhoso ao epos e,
que trataram dos mitos em relação com a Enquanto no epos ele conduz ao cósmico, ao deste, ao realismo do século XIX.
psique: “As figuras da Grande Mãe e do Pai tribal e estatal, no conto de magia tende ao Dostoiévski teria começado onde Gógol
não seriam de modo algum redutíveis às familiar e social. Paralelamente, ocorre maior terminou, mas afastou-se ainda mais das
relações da pequena família, como tendem a personalização, pois no mito heróico a raízes arquetípicas. Depois, porém, ele teria
fazer os psicanalistas. Tanto a concepção de biografia da personagem central se associa vivificado os arquétipos. Um dos pontos altos
Jung como as de Frye, Bachelard e Durand freqüentemente com a alternância ritual das do livro é, certamente, o estudo arquetipal
não podem ser aceitas na totalidade devido a gerações, sobretudo quanto à alternância dos de Os irmãos Karamazov. Seguindo esta
seu reducionismo psicológico ou ritual- soberanos, isto é, um processo que estaria linha, o autor analisa, por exemplo, a relação
mitológico, que leva à modernização do mito no limite do biológico e do social. entre o capítulo sobre o Grande Inquisidor
arcaico e à arcaização da literatura dos Novos Afirmando isso, o autor frisa a im- e o mito do Anti-Cristo e da volta de Cristo
Tempos.” portância de alguns modelos rituais para a ao mundo. Segundo ele, a “lógica interior”
Mas, tendo feito esta e outras restrições à formação dos enredos arquetípicos, mas de Ivan Karamazov apóia-se internamente
teoria junguiana, revela o autor grande fascínio acrescenta: “Está claro, não se pode reduzir naquilo que Jung chama de “sombra”, isto
por ela e acaba refazendo o caminho que os enredos aos rituais, como fazem os repre- é, “a parte inconsciente e, em certo sentido,
percorreu em outras obras, dessa vez em fun- sentantes do ritualismo, que deduzem dos demoníaca” da alma.
ção da teoria dos arquétipos. A sedução chega rituais não só os enredos, mas a própria cul- Meletínski detém-se particularmente nas
a ponto de Meletínski aceitar a noção de tura em sua totalidade. Pois o ritual é como relações arquetípicas caos/cosmos e herói/anti-
inconsciente coletivo, embora negando-lhe o que o lado ‘formal’, e o mito, o ‘conteudístico’ herói em Gógol, Dostoiévski e Biéli.
caráter hereditário, como queria Jung. do mesmo fenômeno.”. Considera, de modo geral, que os escritores
O que seriam então os arquétipos? Aliás, a passagem do mito ao conto de russos pretendem chegar a uma abrangência
Lemos logo no início do livro: “O propósito magia aparece no livro quase obsessivamente, maior dos problemas de visão de mundo que
do presente trabalho é estudar a origem agora muitas vezes em termos que não são os autores ocidentais – o que seria sua marca
daqueles elementos temáticos permanentes os daquela diferenciação entre o para- distintiva, relacionando-os mais estreitamente
que acabaram se constituindo em unidades digmático da abordagem de Lévi-Strauss e aos arquétipos. Porém, depois desta afirmação,
como que de uma ‘linguagem temática’ da o sintagmático do sistema proppiano, como conclui de maneira bastante pessoal e diferente
literatura universal. Nas primeiras etapas de se lia no trabalho de 1969, embora ela também da opinião consagrada. Segundo ele, Tolstói é
desenvolvimento, esses esquemas narrativos apareça. um escritor não vinculado aos arquétipos. E
se caracterizam por uma excepcional unifor- Curiosamente, o autor vê o herói do em lugar do romance-epopéia, conforme
midade. Nas etapas tardias, eles são bastante romance cortês como herdeiro, ao mesmo designação atribuída pelos estudos literários
variados, porém uma análise atenta revela que tempo, do herói épico e do herói do conto. E a Guerra e paz e que o próprio Tolstói queria
muitos deles não passam de transformações a relação dos dois subsiste, mesmo na ficção efetivar, o autor discerne aí uma antiepopéia e
originais de alguns elementos iniciais. A esses moderna. vê seus personagens como anti-heróis.
elementos primeiros podemos atribuir a Ao contrário do que ocorre em A poética Muito rico e às vezes surpreendente, Os
denominação de arquétipos temáticos, para do mito, o romance contemporâneo comparece arquétipos literários é um livro que merece leitura
maior comodidade.” apenas em breves alusões e toda a segunda atenta e refletida sobre temas que nos ajudam
Ele os estuda no mito, no epos, no conto parte do livro é dedicada à “transformação a entender a retomada de cogitações e nos
maravilhoso e na ficção moderna. Com isso, dos arquétipos na literatura russa clássica”, permitem situar melhor o nosso enten-
naturalmente, voltam à baila preocupações entendendo-se por “clássica” a que se inicia dimento da literatura, da narrativa e do mito.

48 CULT - março/99
Jerusa Pires Ferreira

individualismo e diferença
Leia a seguir entrevista realizada em Moscou com
Aaron Gurévitch, medievalista mergulhado no estudo do
individualismo europeu e que faz da comparação das
mais diversas culturas populares um método que dialoga
com historiadores como Le Goff, Le Roy Ladurie e Peter Burke
março/99 - CULT 49
Quem é Aaron Gurévitch
Nascido em Moscou, em 1924, Gurévitch é
professor do Instituto Geral da Academia das
Ciências e da Universidade Estatal Russa de
Ciências Humanas. Prestigioso medievalista,
publicou obras sobre história socioeco-
nômica e cultural, metodologia histórica,
estudos medievais e nórdicos, e culturas
populares. Em contato com historiadores das
mentalidades, tem empreendido um rigo-
roso diálogo entre o pensamento russo e o
ocidental. Vive em Moscou e em seu cartão
encontramos: ARBOR MUNDI - The World
Tree (nome da revista de cultura em que
colabora, dirigida por Eleazar Meletínski).
À esquerda, o historiador Paul
Zumthor. À direita, o pensador
da cultura Mikhail Bakhtin.
Na página oposta, Aaron Gurévitch.

A visita* discussão em tom franco, ao diálogo e à que se concentra na contradição fecunda e


polêmica. Em seu inglês fluente diz que na paradoxalidade da cultura medieval. Busca
Neve caindo em Moscou e chegamos, como
ainda trabalha com os estudantes, é pesqui- então compreender o que é oscilante, ambi-
tínhamos combinado, à casa de Aaron
sador da Academia de Ciências de Moscou e valente, contraditório. Passa da démarche
Gurévitch. Eu não podia prever algo assim
no momento está preparando em grupo um antropológica à perquirição filosófica, para
quando lhe telefonei e ele me disse que nos
trabalho de grandes dimensões: o Dicionário dar conta da concepção de mundo do
receberia por alguns minutos apenas. Cego,
da cultura medieval. medievo dizendo: o microcosmo era, de qualquer
tinha perdido sua mulher e companheira por
Faz questão de colocar que seus textos mais modo, a réplica do macrocosmo.
cinqüenta anos há bem pouco tempo. No
recentes estão basicamente voltados para o E é aí que passa a discutir as relações entre a
13° andar de um edifício modesto como
indivíduo. Ao nos oferecer um de seus últimos tipificação e a individualização. Trata das re-
tantos outros, um elevador rudimentar, um
livros em espanhol, Los orígenes del indivi- presentações espaço-temporais, tendo em
corredor tosco e depois sua voz, por trás da
dualismo europeo, começa a nos falar de sua conta a semântica. No centro dessas reflexões
porta, pedindo que, ao entrar, tirássemos os
intensa preocupação com essa atitude e no situa a questão da consciência humana, o
sapatos! Das semitrevas de um dia que
que isso implica como procedimento, ao fazer confronto entre a noção cíclica, mitopoética
anoitece às quatro horas da tarde, distin-
história. Considera imprescindível a inserção do tempo, e a noção linear, sem esquecer da
guíamos, sentado ao fundo da sala, aquele
das dimensões antropológica e psicológica dimensão onírica do tempo, de que nos fala
homem sozinho, tateando para encontrar os
na avaliação dos fatos sociais. Thomas Mann.
objetos. Era impossível deixar de evocar o
Comento com ele o que acho da experiência Confessa e, de fato, está sempre preocupado
filme Perfume de mulher, em suas duas versões, peculiar que desenvolve em Cathégories de la
e ali o nosso interlocutor – Al Pacino, altivo e com a sutileza, a fronteira histórica em que as
culture médievale (livro já traduzido em 16 diferenças na percepção e na compreensão de
sabendo das coisas como ninguém. Na voz e línguas). Pergunto-lhe, de frente, o que ele
no corpo uma vibração bem forte, prisioneiro categorias se tornam essenciais.
considera ser nesse caso sua inovação, o que,
de um destino trágico, não perdeu a força diga-se de passagem, Georges Duby, ao
que projeta e que estimula. escrever o prefácio da edição francesa, nem
Universo de pesquisa
Começamos a falar. Há cinco anos perdeu a sempre pôde compreender. E ele responde Já teve por foco os lendários e primeiros
visão. Tem agora 73 anos. Começa dizendo com firmeza: o foco. São os impulsos vários escandinavos, concentrando-se nos nasce-
que está velho, limitado, cego. Essa afirmação que me levam a ver as coisas, não estou instalado douros daquela civilização. Seu parâmetro
não combina porém com sua fala. Voz firme, apenas numa única cultura, como o fazem é a comparação de culturas, e o que de fato
mãos firmes, decisões tomadas. Sua intenção franceses, alemães, italianos, mas a partir de todas lhe interessa mais diretamente são as
é prosseguir, abrindo-se, como sempre, à as culturas com que sempre estive em contato. contradições. Por isso a importância de
Diz haver nessa atitude uma posição de comparar e combinar as mais diferentes
universalismo e abertura. Neste seu livro o tradições. Diz também que os historiadores
autor mostra como subjaz à cultura européia, das mentalidades se concentraram sempre
* A visita ao historiador foi feita por mim e
à chamada civilização medieval, uma camada na França e no mundo românico e que
por Boris Schnaiderman em 3/11/97. Dadas
as circunstâncias, a conversa não pôde ser profunda e arcaica de tradições, de hábitos Duby, por exemplo, ignorou o problema
gravada e assume aqui o papel de uma de pensar e de comportamentos que têm de da cultura popular. Cita Le Goff, Le Roy
rememoração – que traz um rico depoi- ser levados em conta. Qualifica, em seu Ladurie e Peter Burke como historiadores
mento de um pensador de sua dimensão. prólogo, o livro de culturo-lógico e afirma que admira.

50 CULT - março/99
Obras de Gurévitch
Veja abaixo uma lista de obras de Gurévitch publicadas em diversas línguas:
• As culturas e o tempo. Rio de Janeiro, Vozes, 1975 (a partir de coletânea
patrocinada pela Unesco).
• Les catégories de la culture Médievale. Paris, Gallimard, 1983.
• Contadini e santi. Problemi della cultura popolare nel medievo. Turim, Einaudi, 86.
• Mittelalterliche Volkskultur. Munique, Beck, 1987.
• Historical anthropology of the middle ages. Cambridge, Polity Press, 1992.
• A síntese histórica e a Escola dos “Anais” (Istorítcheskii síntez i chkola “Analov”).
Moscou, Ed. Indrik, 1993.
• Los orígenes del individualismo europeo. Barcelona, Grijalbo-Mondadori, 1994.
(Simultaneamente publicado em 5 editoras européias: Beck, de Munique; Basil
Blackwell, Oxford; Critica, Barcelona; Laterza, Roma e Bari; Seuil, Paris).

Ele e o medievalista Paul Zumthor têm a personalidade. Considera essa uma con- exemplifica: uma caçada na corte dos reis
muitos pontos em comum e eu poderia dizer quista importante para poder atacar de frente persas não pode ser vista, tendo como
que, presentes um na biblioteca do outro, as limitações ao encarar-se a construção da referência a condição zoológica de hoje...
levantaram ambos o interessante aspecto da história.
manifestação de massas no medievo. Os tempos recentes
Transitando entre história e poética, traz como Bakhtin 1965 – A revelação Em 1994 publicou um texto na coletânea:
um exemplo bem conseguido o de Iúri The history of humour (Cambridge, Uni-
Quando surgiu o livro de Mihail Bakhtin sobre
Lótman, sobre quem comenta: agradável, Rabelais e a cultura popular, o fato foi uma versity Press) que recomenda e afirma que
bom e sábio. (Aliás, é preciso dizer que Lót- revolução surpreendente. Da primeira leitura vi 1988 (plena pierestróika) é um ano marco.
man é para os pensadores modernos uma tratar-se de algo extraordinário, uma revelação, Começou a poder viajar para o exterior e, a
unanimidade). Conta ter participado dos Se- e a palavra tem aqui o sentido pleno “daquilo que partir daí, desenvolver cada vez mais novas
minários Tártu/Moscou e publicado muitos se descobre”, do que é realmente extraordinário. leituras e perspectivas que a cegueira e as
artigos ali e acrescenta que esses seminários, Diz que imediatamente reagiu com um dificuldades não fecham.
em seu conjunto, constituíram um importante artigo no Vopróssy Litieratúry e continua Há muita força e inventividade neste homem
material de informação e de inspiração. achando Bakhtin um pensador notável. Diz e pensador, comprometido sempre com o lado
Confessa que está agora afastado dos grupos que até seus “erros” sempre foram produ- mais difícil – o caminho teórico renovador.
semióticos. tivos; não são para ser rejeitados, mas para Sua biblioteca bem arrumada e farta é um
fazer pensar. Constata, no entanto, que mui- convite para se viajar pela experiência que
Formação e atividades tos epígonos difundiram e perverteram o atravessa vários domínios do saber.
Começou suas atividades de pesquisa e sua espírito da obra bakhtiniana, aplicando meca- Voltando à rua, à neve, vamos pensando: que
vida profissional na Moscou dos anos 40. nicamente suas categorias, tomando dele o rumos seguirá agora seu pensamento, imerso
Ocupava-se de marxismo, pensamento social riso e o carnaval. Nesse sentido faz críticas numa outra condição, privado de tantas
e econômico, era um historiador de expressão severas a Litchatchóv (um estudioso do riso percepções, mas certamente acrescido de
tradicional (refere-se à União Soviética e às na Rússia antiga, espécie de monumento outras? O que poderá continuar a nos trans-
práticas de então). Depois foi investindo na nacional, agora com noventa anos). mitir de rigor e de audácia? Desde já, ele nos
literatura antropológica, no estudo da Escola faz entender que buscando as diferenças
dos Anais, na semiótica, visando sobretudo Estudos comparativos poderemos achar em nós a similaridade,
reconstruir o conceito de História Social. Todo rumo à mistura e à força e partir para a criação
Discute a voga de comparar, mas atenta para
esse trajeto foi muito difícil, confessa, nas de nosso múltiplo tecido identitário,
que se veja o que e como se está comparando.
circunstâncias em que foi feito. Em 1970 desconfiando sempre da simplicidade dos
Ao comparar e encontrar grandes similari-
publica um pequeno livro: Os problemas dos achados fáceis.
dades, é preciso mostrar as diferenças. Releva
começos do feudalismo. Sofreu severos ataques. o fato de as idéias de Marc Bloch conti- Jerusa Pires Ferreira
Foi esse, no entanto, o primeiro passo para nuarem a repercutir no historiador Guré- professora da ECA-USP e do Programa de pós-gradruação

quebrar uma série de imposições que eram vitch e prossegue: Só é possível comparar
em Comunicação e Semiótica da PUC-SP (onde fundou
e dirige o Núcleo de Poéticas da Oralidade); autora
feitas ao historiador e pensador da cultura. fenômenos semelhantes, mas é o estudo das de Cavalaria em cordel (Hucitec), O livro de São Cipriano –
Intensificaria, a partir daí, os estudos para diferenças, das especificidades, das particu- Uma legenda de massas (Perspectiva), Armadilhas
da memória (Fundação Casa de Jorge Amado)
situar nas categorias históricas o individual e laridades que faz clara a percepção dos objetos, e e Fausto no horizonte (Hucitec), dentre outros.

março/99 - CULT 51
o fio da navalha Cristovão Tezza

Em livros recém-lançados no Brasil, o músico Solomon Volkov traça


a história cultural de São Petersburgo, cidade que melhor expressa
as interrogações da cultura russa, enquanto o escritor Andrei Bitov
realiza no romance A casa de Puchkin uma simbiose da poética
pós-moderna com a dualidade entre a alma eslava e o espírito ocidental
52 CULT - março/99
À esquerda, litografia com imagem do
Grande Teatro de São Petersburgo.
À direita, gravura representando
a catedral de Kazan. Na página oposta,
planta de São Petersburgo.

1 Poucas cidades do mundo serão tão


inescapavelmente literárias como São
geral da outra, a (quase) definitiva revolução
de outubro de 1917. Já transformada por
Guerra, São Petersburgo sofrerá o terrível
cerco de 900 dias, quando pessoas caíam nas
Petersburgo, a antiga capital da Rússia. decreto do czar Nicolau II em Petrogrado – ruas, literalmente mortas de fome. No exílio,
Construída no início do século XVIII sobre para reforçar o significado eslavo da cidade o escritor Vladimir Nabokov, também de São
um pântano às margens do rio Neva, pela contra a “invasão” do ocidente –, sediará a Petersburgo, passará a escrever seus livros
vontade única e férrea de Pedro, o Grande, exposição futurista de 1915, com a tela em inglês. No final da década de 50, quando
contra toda a lógica geográfica e estratégica, Quadrado negro, de Casimir Malévitch. No se prenunciava alguma liberalização pelo
São Petersburgo em pouco tempo se tornou ano seguinte, Andrei Biéli publica Peters- breve sopro da era Krushev, uma nova
uma referência obrigatória do universo burgo, um romance cubista que é uma síntese geração de escritores ressurge na cidade, mas
russo, o ponto de encontro e de choque de da efervescência cultural da cidade e se tornou não consegue publicar nada. O melhor
sua cultura com o mundo ocidental. Pelas um dos clássicos do modernismo. exemplo será o poeta Joseph Brodsky (1940-
suas ruas literárias continuam desfilando os A literatura é apenas uma das faces da 1996), que nos anos 60 foi preso (por
funcionários de Nicolai Gógol, as personalidade artística de São Petersburgo. “vadiagem”) e condenado a trabalhos for-
atormentadas figuras de Fiodor Dostoiévski, Ao lado da fantástica arquitetura da cidade, çados; em 1972 será expulso da União
os pais e filhos de Ivan Turguénev, e o célebre da inacreditável ousadia de sua concepção e Soviética, ganhando o prêmio Nobel em 1987
“Cavaleiro de Bronze”, de Alexander realização, todos os campos da arte desen- por sua obra poética e ensaística.
Puchkin – a estátua do czar Pedro que, nos volveram-se na cidade – basta lembrar a Essa magnífica e quase sempre trágica
versos do poeta, se desprende da pedra e música de Mussorgski, Rimski-Korsakov e história pode ser acompanhada passo a
persegue o pobre Ievguéni, cuja amada Tchaikóvski; no século XX, surgirão os passo no livro São Petersburgo – Uma história
morreu numa enchente –, entre centenas de nomes de Prokófiev, Shostakóvitch e Stra- cultural, de Solomon Volkov, um músico
outros personagens que de um modo ou vinski. russo que emigrou para os Estados Unidos
outro anteciparam as grandes questões do Não por acaso, a revolução vitoriosa de em 1976. Esse é exatamente o caso de um
século XX. A famosa estátua eqüestre, 1917 transferirá a capital do país para livro de não-ficção em que caberá o velho e
encomendada pela imperatriz Catarina ao Moscou, temerosa daquele foco de sub- simpático lugar-comum das resenhas: uma
escultor francês Etienne Falconet, terminada versão. E no longo período de Stálin, São obra que se lê como se fora um romance. Ao
em 1782 depois de 16 anos de trabalho, Petersburgo, agora ironicamente rebatizada longo de suas mais de 500 páginas – com
tornou-se o símbolo da cidade. de Leningrado (Lênin detestava a cidade), um texto tão agradável, que poderiam ser
Povoada de revolucionários, terroristas, será vítima de uma das mais sinistras políticas muito mais –, o leitor fará uma saborosíssima
figuras messiânicas, músicos de vanguarda, de extermínio da inteligência de que se tem viagem histórico-cultural pela cidade, de-
filósofos, artistas – todos parece que ex- notícia. Ressoará solitária e clandestina a voz tendo-se em seus momentos mais significa-
perimentando os limites da condição humana da poeta Anna Akhmátova, cujos poemas tivos. São seis capítulos temáticos, que vão
–, São Petersburgo será também o palco de Réquiem e Poema sem herói correm ma- da Petersburgo clássica, de Puchkin, Gógol
insurreições violentas, como a de 1905, ensaio nuscritos de mão em mão. Na Segunda e Dostoiévski – escritores que pelo poder

março/99 - CULT 53
de sua literatura acabaram por definir a alma impacto do kafkiano “julgamento” de niev, O herói do nosso tempo, de Lermontov,
da cidade –, passando pelo início do século Brodsky (conforme relata Solomon Volkov além de inúmeras referências ao Cavaleiro
XX e sua extraordinária revolução mo- a partir de entrevista com o autor), foi de Bronze, personagem fantástico da obra
dernista, depois pelos anos negros do publicado apenas 8 anos depois, no exterior, de Puchkin. Já o prólogo (“ou capítulo,
Grande Terror stalinista e do cerco de permanecendo na lista dos livros proibidos escrito depois dos outros”) – Que fazer? –
Leningrado (a Leningrado de Dmitri até 1987. retoma tanto o romance de N. G. Tcherni-
Shostakóvitch, nas palavras de Volkov) até Bitov enfrenta a história literária de São chévski, escrito na prisão em 1863, confor-
a Petersburgo de Joseph Brodsky, a Petersburgo já a partir do título, altamente me esclarece nota do tradutor, quanto o título
geração mais recente, que continua a ouvir simbólico: a Casa de Puchkin é o Instituto de um célebre panfleto de Vladimir Ilitch
o longínquo Cavaleiro de Bronze, de de Literatura Russa da Academia de Lênin, dos anos revolucionários.
Puchkin, galopando nas ruas da cidade. Ciências de Leningrado, e é lá que trabalha Num primeiro momento, o leitor mais
Galopando para onde? – pergunta-se (em nossos anos 60) o personagem central ou menos familiarizado com uma certa
Solomon Volkov. Uma pergunta sem do romance, Liova Odoievstsiev, filho e neto tradição da prosa russa (que, nas palavras
resposta, mas que está no cerne de São de filólogos, numa família de estirpe nobre. de Brodsky, preferiu o mimetismo do
Petersburgo desde sua fundação. Uma per- Ele se relaciona com três mulheres, mas gigante Tolstói às alturas metafísicas de
gunta que, aliás, não pode ter resposta – é o uma delas, Faína, ocupa praticamente todo Dostoiévski, o que acabou descambando
que depreendemos desse livro, como se a o espaço do livro, junto com o amigo (de na mediocridade do realismo socialista)
cidade fosse, por si só, pela sua origem e Liova e de Faína) Mitichatiev. Há também sentirá alguma estranheza em Bitov,
pela sua história, o fio da navalha da cultura um certo tio Dickens. O enredo, se alguma coisa que poderíamos, a propósito,
russa, o ponto de interrogação do que ela podemos dizer que existe um enredo no chamar de “a invasão do ocidente”, como
pretende ser e de o seu destino real. sentido “normal” da palavra, é nebuloso, temiam os eslavófilos de Petrogrado.

2 Um outro modo de revisitar São Peters-


burgo e sua história, agora estritamente no
incerto, difuso e freqüentemente duplo.
Trata-se mais de um eixo condutor: Liova
sente um terrível ciúme de Faína e acaba
Quase não há no romance aquela “nitidez
dramática” que aprendemos a amar em
obras tão diferentes quanto Os irmãos
campo da literatura, é ler o romance A casa de por duelar com Mitichatiev, ao modo do Karamazov e A morte de Ivan Ilitch, uma
Puchkin, de Andrei Bitov, escritor da geração próprio Puchkin e de Mikhail Lermontov nitidez que permanecerá viva nas obras
de Brodsky, nascido em 1937. De algum (1814-1841), outro clássico russo. O autor experimentais do início do século, cujo
modo, também Bitov tenta responder à – ele mesmo, Andrei Bitov – intromete-se melhor exemplo será talvez Petersburgo, de
grande pergunta da cidade. O livro seguiu o muitas vezes na narrativa, comentando-a, Andrei Biéli. E, obra tão filha dos anos 60
caminho difícil e tortuoso de toda produção refazendo-a e apresentando versões dife- e 70 quanto a literatura que se produzia
não-oficial da União Soviética. Escrito em rentes. O livro inteiro é carregado de no ocidente, Bitov assimila os truques mais
1970, sob o desespero do fim da era Krushev, citações literárias, a partir dos títulos dos ou menos datados daquilo que, por
da pesada estagnação que se seguiu e sob o capítulos: Pais e filhos, da obra de Turgué- rarefação teórica, se convencionou chamar

54 CULT - março/99
Obras citadas
• Menos que um, ensaios de Joseph Brodsky. Companhia das Letras, 1994.
Tradução de Sergio Flaksman.
• Petersburgo, romance de Andrei Biéli. Ars Poetica, 1992. Tradução direta do
russo de Konstantin G. Asryantz e Svetlana Kardash; posfácio de Albert Avramenko;
notas de Robert A. Maguire e John E. Malmstad.
• Réquiem, poema de Ana Akhmátova. Art Editora Ltda., 1991. Tradução livre e
notas de Aurora Fononi Bernardini e Hadasa Cytrynowicz; prefácio de Leo Gilson
Ribeiro.
• Problemas da poética de Dostoiévski, de Mikhail Bakhtin. Forense-Universitária,
1981. Tradução direta do russo de Paulo Bezerra.
Acima, guache representando
a estátua eqüestre de Pedro,
• O mestre e margarida, romance de Mikhail Bulgákov. Ars Poetica, 1992.
o Grande. Na página oposta, Tradução direta do russo de Konstantin G. Asryantz; posfácio de Boris Sokolov.
à esquerda, Vladimir Nabokov • A hero of our time, de Mikhail Lermontov. Traduzido do russo para o inglês por
nos anos 70; à direita, o compositor
Dmitri Shostakóvitch. Vladimir e Dmitri Nabokov. Everyman’s Library, Alfred A. Knopf, Nova York, 1992.

Lançamentos
São Petersburgo - Uma história cultural A casa de Puchkin
Solomon Volkov. Andrei Bitov
Tradução de Marcos Aarão Reis Tradução do russo de Paulo Bezerra
Editora Record Editora Record
584 págs. – R$ 50,00 414 págs. – R$ 38,00

de “pós-modernismo”. Simplificando, Se analisamos A casa de Puchkin apenas Menipo de Gadare, século III a.C); nas
trata-se do recurso de lembrar o leitor, pelo ângulo formal, estaremos diante de uma palavras de Bakhtin, ela é “a combinação
reiteradamente, de que aquilo que ele está curiosa obra pós-moderna, já repousando na orgânica do fantástico livre e do simbolismo
lendo é uma obra de ficção, um recurso prateleira do tempo. Mas, de fato, esse é um e, às vezes, do elemento místico-religioso com
que Bitov não economiza. livro substancialmente temático – e como toda o naturalismo de submundo”, uma
Um russo “pós-moderno” – essa leveza a literatura russa, pré-e pós-revolução, parece fortíssima tradição literária russa. “A
de brincar com estruturas narrativas como incapaz de se descolar do mundo social, menipéia”, diz Bakhtin, “é o gênero das
numa bem-humorada aula de literatura concreto, filosófico, religioso, das causas ‘últimas questões’, em que se experimentam
acadêmica – não parece algo estranho? E primeiras e dos fins últimos; a velha pergunta as últimas posições filosóficas” – ela vive sob
transparece também uma influência da – para onde vamos? – estará sempre presente. o sopro da totalidade.
narrativa americana, com toques de William O narrador tateante de Bitov, ele próprio, Um universo que vive sempre na tensão
Faulkner, a sintaxe circular que avança para parece sussurrar ao leitor o tempo todo, sob de seu próprio limite, prestes a explodir, a se
o centro da cena pelas beiradas e que se o mormaço estagnado do sistema totalitário transfigurar em outra coisa, incontrolável:
define pelas negativas, tateante: “Para tanto provavelmente mais perfeito que já se criou esse é o mundo que, desde Gógol, será umas
era indispensável que ele não precisasse de na terra (Eles queriam construir um novo das marcas mais notáveis de alguns mo-
ninguém para que ninguém precisasse dele, homem, diz Joseph Brodsky, e conseguiram), mentos da literatura russa, como Petersburgo,
porque a mínima dependência, a mínima que não pode dizer tudo o que tem a dizer; o de Andrei Biéli, e O mestre e margarida, de
obrigação de amar levava-o imediatamente narrador se move num mundo delirante em Mikhail Bulgákov. A casa de Puchkin, de
ao fundo do poço como um tronco pesado e que as palavras não têm direção ou sentido; Bitov, é uma experiência literária que cabe
já ebanizado; tampouco suportaria a mínima elas não pertencem aos objetos a que se perfeitamente nessa tradição. E representa,
carga de sentimentos: explodia, dissipava- referem e as coisas não são nem o que são, mais uma vez, na sua simbiose formal com a
se, desfazia-se em cacos – cacos secos, nem o que parecem ser. Sem ar, o próprio novidade pós-moderna, a clássica dualidade
pontiagudos, miúdos, de que se constituía espaço se transfigura num universo me- que está na origem de São Petersburgo, a
a muito custo. E Liova o sentiu não donho de possibilidades. Assim, os truques “alma russa” versus a “decadência do
exatamente assim, não inteiramente em pós-modernos serviram perfeitamente para ocidente”. Uma questão que Bitov define,
palavras mas com muita plenitute, em a paisagem desconstruída de Bitov. Na bela num momento do livro, com uma bela e
proporções densas, como se ele já não fosse pretensão de mergulhar em toda a tradição delicada imagem: “Essa permanente preo-
Liova mas o próprio tio Mítia, e expe- literária de São Petersburgo – porque só nela cupação russa com o destino da Torre de
rimentou tamanha nostalgia, tamanho medo seria possível respirar –, Andrei Bitov retoma Pisa...”
e embaraço ao enxergar aquela imagem que a linhagem que o teórico russo Mikhail Cristovão TTezza
ezza
se projetava na memória que parecia vê-la Bakhtin (1895-1975), outro perseguido de escritor, autor de Breve espaço entre cor e sombra, Trapo e

precisamente naquele momento e não meia São Petersburgo, chamará de “sátira Uma noite em Curitiba (editora Rocco), entre outros, e
professor do Departamento de Lingüística da Universidade
hora antes.” menipéia” (gênero cujo nome vem de Federal do Paraná

março/99 - CULT 55

Você também pode gostar