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publicado NEPRI 2015:

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P OL Í T I C A S

P Ú BLIC A S

D E S I G U A L DA DE S
POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

Ação Pública e Problemas Sociais em Cidades Intermediárias

VOLUME 1. ACESSO À JUSTIÇA, DIREITOS HUMA?OS E CIDADA?IA

VOLUME 2. CO?SUMOS, LAZERES, MODOS E ESTILOS DE VIDA

VOLUME 3. DESE?VOLVIME?TOS E SUSTE?TABILIDADE

VOLUME 4. EDUCAÇÃO, SABERES E CULTURAS

VOLUME 5. GOVER?A?ÇA DE TERRITÓRIOS E DE CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

VOLUME 6. I?SEGURA?ÇA, VIOLÊ?CIA E CRIME

VOLUME 7. MERCADOS DE TRABALHO E ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL: MOBILIDADES E FLUXOS

VOLUME 8. MORFOLOGIA SOCIAL E DI?ÂMICAS DAS CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

VOLUME 9. MOVIME?TOS SOCIAIS E PARTICIPAÇÃO

VOLUME 10. POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

VOLUME 11. RELAÇÕES SOCIAIS DE GÉ?ERO E RAÇA

VOLUME 12. SAÚDE, SISTEMAS DE SAÚDE E CORPO

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

FICHA TÉCNICA

TÍTULO:
Ação Pública e Problemas Sociais em Cidades Intermediárias

AUTORES:
Vários

COORDENADORES:
Balsa, Casimiro
Rodrigues, Luciene
Cardoso, Antônio Dimas
Soulet, Marc-Henry

COMISSÃO DE LEITURA:
Albuquerque, Cristina
Balsa, Casimiro
Boneti, Lindomar
Cardoso, Antônio Dimas
Diogo, Fernando
França, Iara Soares de
José, São José
Macedo, Luiz António
Maia, Rosemere
Martins, Luci Helena
Nofre, Jordi
Olímpio, Marcos
Paula, Andréa Rocha de
Pires, Iva
Rodrigues, Luciene
Vaz, Domingos

APOIO À EDIÇÃO:
Vital, Clara
Sampaio, Leonor

ISBN: 978-989-20-4086-8

Lisboa, 2013

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

Í6DICE

Í?DICE ........................................................................................................................................................ 4
?EOLIBERALISMO E EDUCAÇÃO: o ensino superior brasileiro nos anos 90 ........................................ 5
Christine Veloso Barbosa Araújo
Maria Helena de Souza Ide
POLÍTICAS PÚBLICAS DE COMBATE À POBREZA ?OS ESPAÇOS URBA?OS: da razão técnico-
funcional à insurgência de processos e agentes sociais novos .................................................................. 18
Lindomar Wessler Boneti
O CRESCIME?TO DA POBREZA. Limites das fontes estatísticas em Portugal e resultados possíveis .. 34
Fernando Diogo
DA I?TER-RELAÇÃO CE?TRAL / LOCAL ?A AÇÃO PÚBLICA. Serviços sociais e atendimento
integrado: modelos e perspetivas .............................................................................................................. 53
Cecília Dionísio
DESE?VOLVIME?TO ECO?ÔMICO, DESIGUALDADES E I?JUSTIÇAS SOCIOESPACIAIS EM
CAMPOS DOS GOYTACAZES. O papel das políticas públicas urbanas. ................................................ 67
Teresa de Jesus Peixoto Faria
Raquel Callegario Zacchi
6atália Guimarães Mothé
DIFUSÃO I?TER?ACIO?AL E MODELAGEM DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA REDUÇÃO DA
POBREZA: reflexões sobre políticas sociais brasileiras ........................................................................... 87
Samira Kauchakje
EM ?OME DA ORDEM: política urbana e criminalização da pobreza na Cidade do Rio de Janeiro no
limiar do século XXI ................................................................................................................................ 108
Rosemere Maia
MAPEAME?TO DE I?DICADORES HABITACIO?AIS SOCIAIS: uma contribuição para planejamento
de políticas públicas ................................................................................................................................ 127
Deborah Marques Pereira
Anete Marília Pereira
Marcos Esdras Leite
Aline Crystiane Carvalho Mendes
AS POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCATIVAS E OS CURSOS PROFISSIO?AIS. Um caso de parceria entre
uma Escola Secundária e uma Empresa do ramo da Indústria numa Cidade Intermediária.................. 147
Zulmira de J. C. da Silva Rodrigues

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

6EOLIBERALISMO E EDUCAÇÃO:
o ensino superior brasileiro nos anos 90

Christine Veloso Barbosa Araújo


UNIMONTES
Universidade Estadual de Montes Claros
christinevba@gmail.com

Maria Helena de Souza Ide


UNIMONTES
Universidade Estadual de Montes Claros
mhelenaide@hotmail.com

Resumo

Este artigo analisa as transformações ocorridas no contexto da educação superior no Brasil nos anos 1990.
Sob o aval de organismos internacionais, interessados na reestruturação do capital produtivo nos países
periféricos, o governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) implementou políticas neoliberais que levaram
à expansão desse nível de ensino no Brasil, em especial das Instituições de Ensino Superior (IES)
privadas. O texto apresenta uma análise e uma reflexão crítica sobre as transformações por que passaram
o ensino superior no país nesse período, e como essas mudanças impactaram a função social da
universidade1.

Palavras-chave: Organismos internacionais, Educação superior, Expansão do ensino superior

1
Agradecemos o apoio da Fapemig.

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

Introdução

A expansão da educação superior nos países da América Latina e mais


especificamente no Brasil, ocorrida na década de 90, contemplou a implementação de
políticas neoliberais aliadas aos interesses da burguesia financeira mundial. Esse
processo ocorreu por intervenção dos organismos internacionais como o Banco Mundial
(BM), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e até mesmo a Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) que, interessados em garantir
a segurança do capitalismo, impuseram condicionalidades aos países periféricos em
troca de sua estabilidade econômica. Esses organismos defendiam o financiamento da
educação superior pelos setores privados, favorecendo o empresariamento da educação,
através da criação de empresas educacionais mais preocupadas em vender produtos
acadêmicos, que produzir conhecimento científico e tecnológico. No Brasil, o governo
de Fernando Henrique Cardoso (FHC) foi marcado pelo célere crescimento do número
de instituições de ensino superior privadas. As alianças estabelecidas nesse período
permitiram a implementação de uma nova política educacional ajustada aos ideais da
agenda neoliberal. Assim, seu governo permitiu o crescimento de instituições voltadas
para, basicamente, atividades de ensino em detrimento das instituições vinculadas à
pesquisa, ciência e tecnologia. Nessa perspectiva, a educação sofreu transformações e
tensões até hoje não solucionadas. Este artigo apresenta de forma sucinta as principais
políticas e reformas estabelecidas pelos organismos internacionais para os países
periféricos nos anos 1990. A abordagem inclui a era FHC e as transformações ocorridas
no ensino superior no Brasil durante esse período, sugerindo uma análise crítica dos
fatos transcorridos.

Organismos Internacionais e as reformas educacionais nos países periféricos

Desde a década de 1940, quando foram criados, os organismos internacionais


comprometidos com o capital, como o Banco Mundial (BM), o Fundo Monetário
Internacional (FMI) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO), interferem nas políticas sociais, econômicas e culturais dos países
periféricos. Isso porque seus objetivos passam pela garantia da estabilidade e segurança
do sistema capitalista e a consequente necessidade de inserir esses países na dinâmica
da globalização do capital. A fim de assegurar uma situação econômica estável, os

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países periféricos recorrem à concessão de empréstimos e, endividados, se vêem


comprometidos com os organismos internacionais através de condicionalidades que se
concretizam por meio de interferências desses organismos, nas políticas
macroeconômicas e setoriais. Neste contexto, o controle das políticas educacionais
apresenta-se de forma destacada, visto que existe um consenso entre esses organismos
sobre o papel da educação como “mola propulsora do desenvolvimento/crescimento
econômico” (Lima, 2002: 44).
A partir dos anos 80, com o endividamento dos países periféricos junto ao Banco
Mundial (BM) e ao Fundo Monetário Internacional (FMI), começam a ganhar contorno
diversas políticas voltadas de forma impositiva para a garantia da estabilidade
econômica e de ajuste estrutural aos países da América Latina, mais especificamente ao
Brasil. Esse processo deu início à Reforma do Estado e, inserida nesta, à Reforma
Educacional. (Lima, 2002)
No início da década de 1990, a Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), o Banco Mundial (BM), o Fundo das
Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e o Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), organizaram a “Conferência Mundial de Educação para
Todos” em Jomtien, na Tailândia. O Brasil foi apontado como um dos países com
problemas na universalização da educação básica e analfabetismo. De acordo com Katia
Regina de Souza Lima (2002), as diretrizes de Jomtien para o país constam no Plano
Decenal de Educação para Todos (1994-2003), que foi elaborado a partir da
Conferência Nacional de Educação para Todos em 1994 e, posteriormente, no
“Programa Educação para Todos” implementado no governo FHC.
Em 1992, o discurso sobre a qualidade na educação começou a ser apontado pela
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), através de um
documento que defendia a necessidade de adequar os países periféricos à realidade
mundial e às exigências do mercado de trabalho, abrindo, assim, espaço para parcerias
de financiamento e gestão das escolas, conferindo-lhes “autonomia” para isso.
Os documentos produzidos pelos organismos internacionais nessa época
sugeriam a educação como “alívio para a pobreza” e garantia de desenvolvimento, e
defendiam a formação e qualificação de recursos humanos como essencial para o
aumento da competitividade dos países da América Latina e do Caribe. No entanto, o
“alívio” e o desenvolvimento estavam atrelados a reformas políticas e flexibilização da

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

economia com abertura de mercado, entre outras ações, obviamente com subordinação
dos países periféricos.
No contexto da educação superior, o Banco Mundial (1995), através do
documento intitulado “La enseñanza superior: las lecciones derivadas de la
esperiencia” aponta o que julga ser o cerne da crise nesse grau de ensino. O Banco
diagnostica a crise como assumindo proporções mais graves nos países em
desenvolvimento e preconiza algumas medidas a serem adotadas no âmbito das
reformas, dentre elas: maior diferenciação das instituições; diversificação das fontes de
financiamento das instituições estatais; redefinição do papel do Estado; questões
relativas à autonomia e à responsabilidade institucional.
De acordo com José Dias Sobrinho, naquele período, sob a orientação e até
mesmo sob imposição de organismos multilaterais como, por exemplo, o Fundo
Monetário Internacional (FMI)

[...] vários países da América Latina empreenderam reformas para adequar o Estado e a
sociedade a uma nova ordem, passando a economia a constituir-se o centro de todos os
valores. A educação superior teve de se adequar aos novos imperativos e submeter-se à
centralidade econômica. A imposição de reformas visando a ajustar a educação às novas
exigências da crescente onda de acumulação do capital produziu agudas tensões, ainda
não resolvidas. (Sobrinho, 2003:101)

Luiz Fernandes Dourado et al (2003:17) afirma que a reforma do sistema


educativo no Brasil resultou na ampliação da esfera privada em contraposição ao
alargamento dos direitos sociais. Ainda segundo o autor, várias mudanças se efetivaram
com relação ao papel social das instituições educativas, inclusive o financiamento das
mesmas e seu campo de atuação. Isso leva ao questionamento do papel da universidade
na sociedade contemporânea ao se colocar a serviço do capital, minando assim o seu
espaço privilegiado de produção do conhecimento.
A compreensão das tensões e transformações ocorridas na educação superior no
Brasil em função das políticas e mecanismos implementados pelos países latino-
americanos a partir da reforma educacional na década de 90, em consonância com os
organismos internacionais, passa, portanto, pela análise da reestruturação da educação
superior ocorrida no governo FHC.

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A Era FHC e as Políticas de Educação Superior

O governo de Fernando Collor de Melo foi o primeiro a adotar plenamente as


políticas neoliberais, inclusive com ações voltadas para a implementação, no seu
governo, das políticas preconizadas pelo Banco Mundial para a universidade. Porém, a
fragilidade de suas alianças e sua inaptidão para gerir os processos políticos levaram-no
ao impeachment (Leher, 2003). O governo de FHC, no entanto, criou fortes alianças
comprometidas com o Consenso de Washington, cujo objetivo se voltava para a defesa
dos interesses da burguesia financeira internacional, empenhada em implementar as
políticas de ajuste estrutural na América Latina. Os integrantes dessa coalizão
pertenciam ao Partido da Frente Liberal (PFL) e ao Partido da Social Democracia
Brasileira (PSDB). A gestão de FHC implementou uma política educacional bem
ajustada com a agenda neoliberal. A equipe do seu governo foi integrada por membros
do Núcleo de Pesquisa e Ensino Superior (NUPES/USP), por técnicos do Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Banco Mundial (BM) com a finalidade
de implementar a nova política de educação brasileira que, de acordo com Roberto
Leher (2003: 86), seria adequada à “nova estrutura produtiva do país”.
Essa nova estrutura produtiva não previa elevação na formação cultural e
científica dos trabalhadores. Ao contrário, os investimentos em Ciência e Tecnologia
foram reduzidos, enquanto a importação de produtos intensivos em tecnologia elevou-
se. Cresceram setores como serviços e os baseados em recursos naturais, e diminuíram
setores como a indústria de informática e comunicação, numa clara evidência da
subordinação aos interesses da burguesia internacional financeira.
A reestruturação na educação superior no governo de FHC contemplou a
diversificação de cursos e de instituições de ensino superior, principalmente privadas,
levando-as a uma transformação com o objetivo de adaptá-las às demandas
mercantilistas, que incluía os serviços educacionais. Justificada pela bandeira da
“democratização”, a ideologia neoliberal favoreceu a expansão e criou um sistema de
competição ao permitir a flexibilização em detrimento da indissociabilidade ensino,
pesquisa e extensão. Novas modalidades de ensino superior foram criadas, como, por
exemplo, pós-médios e a Educação à Distância (EAD), promovendo a formação
profissional rápida, ou a conhecida “certificação em larga escala” como meio de
proporcionar igualdade de oportunidades.

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Centenas de novas instituições de ensino superior privadas foram criadas nas


mais diversas regiões do país, sem a necessidade de grandes investimentos. Cresceram
os cursos sequenciais, e, na segunda metade dos anos 90, o percentual de matrículas nas
instituições privadas do país chegou a 77%, contra 30% nas públicas. (Leher, 2003)
No que diz respeito às universidades públicas, estas sofreram cortes de verbas,
achatamento salarial dos docentes e redução de investimentos em pesquisa. Tudo sob a
custódia do BM. Segundo Leher, as verbas eram “insuficientes até mesmo para o
custeio de rubricas como energia, água, telefonia etc.” (Leher, 2003: 82). De acordo
com Dourado, as universidades públicas tiveram que se ajustar “a uma perspectiva
gerencialista, produtivista e mercantilizadora” (Dourado, 2003: 20). Nesse processo,
receberam autonomia para buscar parcerias com empresas privadas e captar recursos.
Ao abordar a questão da autonomia das universidades públicas, Marilena Chaui nos
apresenta a seguinte reflexão:

[...] autonomia possuía sentido sócio-político e era vista como a marca própria de uma
instituição social que possuía na sociedade seu princípio de ação e de regulação. Ao ser,
porém, transformada numa organização administrada, a universidade pública perde a
idéia e a prática da autonomia, pois esta, agora, se reduz à gestão de receitas e despesas,
de acordo com o contrato de gestão pelo qual o Estado estabelece metas e indicadores
de desempenho, que determinam a renovação ou não renovação do contrato. A
autonomia significa, portanto, gerenciamento empresarial da instituição e prevê que,
para cumprir as metas e alcançar os indicadores impostos pelo contrato de gestão, a
universidade tem “autonomia” para “captar recursos” de outras fontes, fazendo
parcerias com empresas privadas. (Chaui, 1999: 216)

Lima lembra que os organismos internacionais defendem “o financiamento da


educação superior a partir da concepção de que o Estado e a sociedade civil devem se
responsabilizar, conjuntamente pela sua efetivação” (Lima, 2002: 50), numa tentativa de
inferir que flexibilizar e diversificar são formas de “democratizar” o acesso.
Ainda na “era” FHC, outra análise que se impõe é sobre o sistema de avaliação,
o qual, segundo J. Dias Sobrinho, “tem função central nas reformas do Estado, da
sociedade e da educação superior” (Dias Sobrinho, 2003: 98). Dourado empreende uma
crítica ao modelo de avaliação adotado, argumentando que da forma como foi
estruturado “deu maior importância aos produtos acadêmicos do que aos processos
históricos de desenvolvimento institucional ou às áreas de produção do trabalho

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acadêmico” (Dourado, 2003:24). Isso intensificou o processo de mercantilização, o


acirramento da concorrência, e instituiu uma lógica produtivista na qual a avaliação
passa a ser um instrumento de regulação e controle. Segundo Dias Sobrinho:

Se qualidade é representada pelos resultados objetivos, a avaliação é tomada por


controle desses produtos, associado à flexibilização de formas, tempos, contratos, fontes
de financiamento e outros itens relativos à noção de eficiência como noção
economicista. (Dias Sobrinho, 2003: 108)

Como exemplo dos instrumentos utilizados para avaliar e medir a qualidade do


ensino destacam-se o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e o Exame Nacional de
Curso (ENC), ou Provão, substituído desde 2004 pelo Exame Nacional de Desempenho
de Estudantes (ENADE).
Ainda sobre a avaliação, Dourado et al afirma que:

A avaliação é utilizada como instrumento de regulação e controle, ao mesmo


tempo em que garante a implementação efetiva da reforma da educação
superior, com a aquiescência da opinião pública, que passa a ser alimentada
com informações sobre a qualidade das instituições e dos cursos ofertados.
(Dourado et al., 2003: 25)

Assim, Dourado infere que é o “consumidor” dos produtos acadêmicos que


decide a qualidade da instituição, baseado nas informações dos instrumentos de
avaliação. Nesse contexto, sugere que o sistema de avaliação deve produzir informações
suficientes para a tomada de decisão na implementação de políticas educacionais, que
inclui a utilização de recursos financeiros públicos, e enfatiza a necessidade de se “criar
uma cultura de avaliação acadêmica que ajude as IES [...] a vincularem a produção
acadêmica ao bem-estar coletivo” (Dourado, 2003: 25), posto ser esta uma função social
da universidade.
As políticas de FHC marcaram seu governo como um período de expansão e de
reconfiguração da universidade brasileira, intensificadas, segundo Dourado “após a
aprovação da nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB), Lei nº 9.394/96, tendo como eixos
articuladores a flexibilidade e a avaliação estandartizada” (Dourado, 2003: 27). É
inegável que a expansão há tempos é uma demanda da sociedade brasileira, no entanto,
seu aspecto deliberadamente privado trouxe transformações e tensões no campo

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

universitário, além de apresentar uma feição excludente que se contrapõe à educação


como um direito social.

A Função Social da Universidade

As transformações por que passou o ensino superior no Brasil na década de 90


refletiram-se na função da universidade enquanto instituição social. Impactadas pela
agenda neoliberal, as universidades públicas tiveram que adaptar-se para atender às
demandas do capital como questão de sobrevivência. Ao analisar as alterações e tensões
ocorridas no interior das instituições de ensino superior, vale recorrer a Marilena Chaui
para retomar suas idéias sobre a verdadeira função da universidade.

Desde seu surgimento (no século XIII europeu), a universidade sempre foi uma
instituição social, isto é, uma ação social, uma prática social fundada no
reconhecimento público de sua legitimidade e de suas atribuições, num princípio de
diferenciação, que lhe confere autonomia perante outras instituições sociais, e
estruturada por ordenamentos, regras, normas e valores de reconhecimento e
legitimidade internos a ela. A legitimidade da universidade moderna fundou-se na
conquista da idéia de autonomia do saber em face da religião e do Estado, portanto, na
idéia de um conhecimento guiado por sua própria lógica, por necessidades imanentes a
ele, tanto do ponto de vista de sua invenção ou descoberta como de sua transmissão.
(Chaui, 1999: 217)

Chaui apresenta uma reflexão sobre a condição a que se impôs a universidade


enquanto “organização social” em detrimento de sua origem como “instituição social”.
O capital, ao propor uma política de gestão da educação superior inserida no processo
de mundialização e reestruturação exige, implicitamente, das instâncias educativas a
adaptação a novos modelos que venham garantir o seu financiamento e seu campo de
atuação. Não por acaso, ao se transformar numa organização administrada, a
universidade pública perde sua autonomia e aceita a “flexibilização”, que vai da
mudança em seu regime de trabalho à adaptação de seus currículos às necessidades do
mercado onde está inserida, dependendo, inclusive, de parcerias com empresas privadas,
para conseguir fontes de financiamento.

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Ao buscar recursos externos para financiar sua pesquisa, a universidade se


distancia de sua formação crítica para servir aos interesses do mercado. Por vocação, a
universidade é:

[...] campo de reflexão, crítica, descoberta e invenção do conhecimento novo,


comprometido com a construção e consolidação de uma sociedade democrática [...] ao
abrir mão dessa identidade histórica, corre o risco de servir a propósitos de reprodução
do poder e das estruturas existentes e não à sua transformação. (Catani et al., 1999: 186)

Dourado também indaga sobre a vocação e o papel social da universidade,


especialmente a pública, e a define como universidade administrada, pois inserida no
processo de reestruturação capitalista, compete-lhe “contribuir significativamente com a
produção da mais-valia relativa, ou seja, ela deve formar profissionais e gerar
tecnologias e inovações que sejam colocadas a serviço do capital produtivo” (Dourado,
2003: 19). Nessa ótica, Dourado conclui que a universidade “vincula sua produção às
necessidades do mercado, das empresas e do mundo do trabalho” (Dourado, 2003:19).
Marilena Chaui distingue três etapas para a passagem da condição de instituição
à de organização. Ela afirma que, numa primeira etapa, a universidade dos anos 1970,
denominada como universidade funcional, privilegiou a formação rápida de mão-de-
obra para o mercado de trabalho conferindo à classe média o diploma universitário
através da mudança nos “currículos, programas e atividades”. Nos anos 1980, uma
segunda etapa ocorreu dando prosseguimento à etapa anterior, em meio ao crescimento
das escolas privadas e às parcerias com as empresas. Foi a chamada universidade de
resultados, em que as empresas asseguravam emprego e estágios remunerados aos
futuros profissionais. Já nos anos 1990, a terceira etapa é, segundo Chaui, a da
universidade operacional, voltada para si mesma:

Regida por contratos de gestão, avaliada por índices de produtividade, calculada para
ser flexível, a universidade operacional está estruturada por estratégias e programas de
eficácia organizacional e, portanto, pela particularidade e instabilidade dos meios e dos
objetivos. Definida e estruturada por normas e padrões inteiramente alheios ao
conhecimento e à formação intelectual, está pulverizada em microorganizações que
ocupam seus docentes e curvam seus estudantes a exigências exteriores ao trabalho
intelectual. (Chaui, 1999: 220-221)

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

Assim, frente às demandas do capital, as universidades tiveram que se adaptar à


concorrência que se estabeleceu, por consequência da expansão da educação superior.
Ao desvincular o ensino da pesquisa, as políticas neoliberais para a educação
permitiram o empresariamento da educação. Isso trouxe consequências como, por
exemplo, a desvalorização docente com contratos “flexíveis” de trabalho e achatamento
salarial. Muitos deixaram a dedicação exclusiva para buscar complementação dos seus
vencimentos através da prestação de serviços e consultorias. Chaui afirma que a
docência passou a ser “transmissão e adestramento”, ao ser pensada como:

habilitação rápida para graduados, que precisavam entrar rapidamente num mercado de
trabalho do qual serão expulsos em poucos anos, pois tornam-se, em pouco tempo,
jovens obsoletos e descartáveis; ou como correia de transmissão entre pesquisadores e
treino para novos pesquisadores. (Chaui, 1999: 221)

Outra consequência foi o comprometimento da pesquisa com a ideia de


produtividade em detrimento da descoberta, da criação e da investigação crítica e
reflexiva. Ao se transformar em organização, a universidade vincula sua pesquisa à
relação custo-benefício. Muitos docentes sem perfil de pesquisador, por vezes, foram
contratados para produzirem estrategicamente resultados em prazo e custos bem
definidos, para atenderem às empresas parceiras. Essa condição mina a reflexão, a
historicidade dos fatos, e limita o pensamento criativo e a curiosidade pelo novo, enfim,
pela pesquisa descomprometida.
Embora as políticas neoliberais defendam a “democratização” do ensino através
de sua expansão, as formas de acesso revelam um caráter excludente e elitizado
considerando, por exemplo, o número de instituições que se instalaram em shoppings ou
em locais próximos a “grandes centros de compras” (Leher, 2003). A respeito dessa
temática, que altera a função social da universidade, Leher coloca que muitas famílias
se sacrificavam para manter seus filhos na faculdade:

Mas o limite do humano obriga um imenso contingente a se desfazer dos sonhos. Entre
a sobrevivência biológica e o prosseguimento dos estudos, a realidade é cruel: sem
moradia, abrigo, alimento, vestuário mínimo e transporte, o sonho não tem espaço. Por
isso, grosso modo, somente chegam ao final dos cursos pagos os segmentos de médios
para cima. (Leher, 2003: 85)

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Dourado et al entende que a expansão do ensino superior é necessária, assim


como são necessárias mudanças na educação superior. No entanto, o governo federal e o
Conselho Nacional de Educação (CNE) devem estabelecer:

[...] políticas e mecanismos de reestruturação desse nível de ensino, tendo por critério a
busca da qualidade social, como horizonte político-pedagógico para a efetiva expansão
e interiorização da educação superior pautada pela indissociabilidade entre ensino e
pesquisa e pelo compromisso social da universidade. (Dourado et al., 2003: 28)

Esse formato inspira o que deveria ser a verdadeira expansão da educação: uma
educação abrangente, inclusiva e comprometida com o verdadeiro desenvolvimento
social.

Considerações finais

As políticas de reestruturação do capital na década de 90 favoreceram, sem


dúvida, a expansão da educação superior através do crescimento do número de
instituições educacionais privadas no Brasil. Os mecanismos utilizados são passíveis de
críticas e considerações as mais diversas, no sentido de atentar para as questões sociais e
políticas que os envolvem. Faz-se necessário discutir políticas que promovam condições
para o acesso democrático à educação superior de qualidade. Ao se tratar de qualidade é
preciso avaliar o que de fato a define, quando os critérios para estabelecê-la foram, e
continuam, baseados em modelos quantificáveis, como relação entre números de
docentes, publicações, pesquisas concluídas e outros. Outra questão que se evidencia
nessa reflexão, refere-se à necessidade de se estabelecer critérios equânimes para os
investimentos destinados à pesquisa científica no país, descomprometida com os
interesses de empresas privadas ou multinacionais, do governo e dos organismos
internacionais, garantindo a indissociabilidade ensino e pesquisa. Por fim, e não menos
importante, é necessário estabelecer políticas que promovam a igualdade de
oportunidades para formação do conhecimento autêntico, num cenário onde as
qualificações e especializações estão diretamente relacionadas à demanda do mercado
de trabalho.
Ainda que para atender aos objetivos do capital, é inegável que a Reforma da
Educação proporcionou um crescimento da oferta de educação superior. Esse processo

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

é, portanto, bastante complexo e não se esgota nesta reflexão. A expansão continuou no


Governo Lula e suas políticas passaram pela proposta de ampliação de vagas e garantia
de acesso à educação superior a pelo menos 30% da população jovem, com
direcionamento de recursos públicos para financiar a educação. Vista aos olhos
capitalistas como um extraordinário mercado educacional, a expansão tende a ampliar-
se.
Para que se cumpra uma efetiva reconfiguração da educação superior não se
pode consentir o estabelecimento de políticas e mecanismos de múltiplos interesses,
sem a participação da sociedade. A universidade não tem que ser eficiente, produtiva ou
competitiva para atender às demandas do capital. Ela deve atender à sua função pública,
independente de quem a financia, formando cidadãos críticos e propositivos de uma
sociedade melhor e menos desigual. Primar pela produção científica descomprometida e
pela formação intelectual crítica e reflexiva é um desafio que ora se impõe à sociedade
civil em suas mais diversas instâncias representativas.

Bibliografia

BANCO MUNDIAL (1995). La enseñanza superior – las lecciones derivadas de la


experiência. Washington. [Disponível em outubro de 2012] URL:
www1worldbank.org/educa/>
CATANI, A. M. et al (1999). A Universidade pública no Brasil: identidade e projeto
institucional em questão. In TRINDADE, H. (org) Universidade em ruínas na
república dos professores. Petrópolis, RJ: Vozes / Porto Alegre, RS: CIPEDES,
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CHAUI, M. (1999). A Universidade em ruínas. In TRINDADE, H. (org) Universidade
em ruínas na república dos professores. Petrópolis, RJ: Vozes / Porto Alegre,
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DIAS Sobrinho, José (2003). Educação Superior: Flexibilização e Regulação ou
Avaliação e Sentido Público. In: DOURADO, et al. (Orgs). Políticas e gestão da
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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

educação superior: transformações recentes e debates atuais. São Paulo: Xamã,


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LEHER, R. (2003). Expansão privada do ensino superior e heteronomia cultural: um
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LIMA, K. R. S. (2002). Organismos internacionais: o capital em busca de novos
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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

POLÍTICAS PÚBLICAS DE COMBATE À POBREZA 6OS


ESPAÇOS URBA6OS:
da razão técnico-funcional à insurgência de processos e agentes sociais novos

Lindomar Wessler Boneti


Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR
Lindomar@boneti.com

Resumo

Trata-se de uma reflexão teórica sobre os fundamentos epistemológicos das políticas públicas de combate
à pobreza. Com o advento do Estado Moderno, no combate à pobreza utilizava-se como parâmetro a
epistemologia da razão moderna, acentuada na técnica e no saber profissional. Mas nos dias atuais, com o
advento de agentes e problemas sociais novos, esta estratégia não é mais eficaz, necessitando também se
considerar questões da identidade e do Ser Social. No que diz respeito ao método, estabelece-se um
diálogo entre a dimensão teórica e dados empíricos coletados em ambientes de extrema pobreza,
desconsidera-se o entendimento de associar políticas públicas a ações de governo, pressupondo que o
estudo das políticas públicas implica associá-las à teoria de Estado. Argumenta-se que o fundamento
epistemológico clássico das políticas públicas de combate à pobreza esteve historicamente assentado
sobre a razão técnico funcional com enfoque no indivíduo produtivo, quando o meio produtivo e Estado
apresentavam-se como agentes definidores. Mas, na contemporaneidade ao lado do Estado e do meio
produtivo apresentam-se ações e agentes insurgentes novos na definição de políticas públicas,
destituindo-se o absolutismo da técnica como parâmetro de verdade, enfocando problemáticas como o
resgate da identidade, da singularidade, da diferença e da igualdade social.

Palavras-chave: Políticas Públicas, Pobreza, Espaços Urbanos

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Introdução

Neste texto dedica-se a analisar as complexidades teóricas e conceituais


relacionados ao processo de elaboração e implementação das políticas públicas de
combate à pobreza, considerando os diferentes momentos históricos, em especial o da
contemporaneidade.
Na análise realizada neste texto, busca-se superar o entendimento que associa
políticas públicas a ações de governo centralizadas em avaliações de resultados e do
gerenciamento dos recursos públicos. Parte-se do pressuposto de que o estudo das
políticas públicas implica no entendimento da existência de uma complexidades
teóricas, metodológicas, políticas e ideológicas e que se faz necessário, antes de tudo,
associar políticas públicas à teoria de Estado e às dimensões políticas e de classes
sociais.
Do ponto de vista metodológico, analisa-se as implicações teóricas,
metodológicas e políticas do processo de elaboração e implementação das políticas
públicas de combate à pobreza numa dimensão temporal, histórica, diferenciando-se
dois principais períodos: as políticas públicas tendo como fundamento epistemológico a
Razão Moderna, especialmente a técnica como parâmetro de referência de verdade,
quando apresentavam-se como agentes definidores basicamente o meio produtivo e
Estado. Nesse período as políticas públicas de combate à pobreza tinham como foco
primeiro a implementação de ações de recuperação da vida produtiva/material; Na
contemporaneidade, quando destitui-se o absolutismo da verdade técnica como
parâmetro, apresentando-se ao lado do Estado e do meio produtivo novos agentes
definidores de políticas públicas, trazendo ao debate novas lutas sociais como é o caso
do resgate do sujeito, das identidades, da diferença e das desigualdades sociais.

Considerações epistemológicas sobre Políticas Públicas de combate à pobreza

A busca das raízes epistemológicas de políticas públicas implica, antes de tudo,


considerações de qual Estado se refere. Trata-se de explicitar o entendimento que se tem
sobre a relação entre o Estado, as classes sociais e a sociedade civil, pressupondo que é
nesta relação que se origina os agentes definidores das políticas públicas. Entende-se
que cada momento histórico produz, no contexto da inter-relação entre a produção
econômica, cultura e interesses dos grupos dominantes, ideologias a partir das quais

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

verdades relativas tornam-se absolutas. Estas verdades absolutas, construídas


ideologicamente em cada momento histórico, produzem e referenciam as ações
institucionais e, em particular, a elaboração e a operacionalização das políticas públicas.
Isto significa dizer que além dos princípios analisados acima, que interferem na
elaboração e implementação das Políticas Públicas como verdades absolutas, é preciso
considerar também o tipo de organização social de cada formação histórica, ou seja, o
Estado hoje, no Capitalismo, e sua relação com as classes sociais. No estudo das
Políticas Públicas, não se pode deixar de se considerar a relação entre classe social e
Estado, no capitalismo. Assim, torna-se simplista o pensamento positivo de entender o
Estado como uma instituição regida pela lei, a serviço de todos os segmentos sociais.
Portanto, na análise que aqui se faz supera-se o pensamento que associa a formulação
das políticas públicas unicamente à determinação jurídica, fundamentada em lei, como
se o Estado fosse uma instituição neutra. Neste caso, as políticas públicas seriam
definidas tendo como parâmetro unicamente o bem comum e este bem comum seria
entendido como de interesse de todos os segmentos sociais. Mas também se torna
simplista entender o Estado como simples instituição de dominação a serviço da classe
dominante, como defende a tradição marxista. Este entendimento nega a possibilidade
do aparecimento de uma dinâmica conflitante, envolvendo uma correlação de forças
entre interesses de diferentes segmentos sociais ou classes. Não se pode pensar que as
políticas públicas são formuladas unicamente a partir dos interesses específicos de uma
classe, como se fosse o Estado uma instituição a serviço unicamente da classe
dominante. Esta posição também é reducionista pelo fato de não considerar o poder de
força política que têm os outros segmentos sociais não pertencentes à classe dominante.
Esta posição desconhece também a possibilidade de uma classe dominante se fracionar
e com isto romper com a tradicional existente entre o Estado e a classe economicamente
dominante. Desconhece ainda esta posição a atuação dos Movimentos Sociais, das
organizações da sociedade civil etc. Isto não significa dizer porém que a classe
economicamente dominante não tenha predileção em termos da elaboração e
implantação das políticas públicas, mas não se pode dizer que esta predileção se
constitua na única força. Considerando esta complexidade, adota-se, neste texto, o
entendimento, inspirando na leitura de Poulantzas (1990), que não é possível se
construir uma análise da complexidade que envolve a elaboração e a operacionalização
das políticas públicas sem se levar em consideração a existência da relação intrínseca
entre o Estado e as classes sociais, em particular entre o Estado e a classe dominante.

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Por outro lado, considera-se também que nos dias de hoje, no atual contexto da
sociedade, no âmbito da nova configuração social, econômica e política, introduz-se
elementos novos na estrutura social os quais ofuscam os limites e os interesses de
classes, pela própria feição nova do espaço da atuação econômica. Nas últimas décadas,
com o avanço das relações econômicas globalizadas, as manifestações de interesses de
classes e os seus limites, não são convenientemente visíveis. Normalmente tais
interesses são até mesmo camuflados pelos interesses específicos (expressos pelos
grupos econômicos, grandes corporações do setor produtivo ou por diferentes grupos
sociais) e pelas próprias problemáticas sociais (reforma agrária, aposentadoria, fome,
habitação urbana, violência, a questão feminina, a questão gay, etc.) envolvendo
diferentes grupos sociais, cujas manifestações podem representar interesse de classe,
mas este interesse não é necessariamente explicitado na dinâmica da luta do movimento.
Nos dois casos, do movimento social ou das corporações econômicas, a questão se
coloca numa dimensão global.
Mesmo assim entende-se que existe uma estreita afinidade entre os projetos do
Estado (as políticas públicas) com os interesses das elites econômicas. Mesmo que no
nível local (nacional e Estadual) exista uma correlação de força política na definição das
políticas públicas, e no caso as políticas e combate á pobreza, envolvendo os
movimentos sociais e demais organizações da sociedade civil, mesmo que no nível
nacional um partido de esquerda assumir o governo, a definição das políticas públicas é
condicionada aos interesses das elites globais por força da determinação das amarras
econômicas próprias do modo de produção capitalista. Isto significa dizer que ao se
falar da relação entre o Estado e as classes sociais, entra-se obrigatoriamente na questão
dos agentes definidores das políticas públicas, os quais não são apenas nacionais.

Razão Moderna e os fundamentos epistemológicos clássicos das Políticas Públicas


de combate à pobreza

A palavra gênese não significa apenas origem, no sentido simples como parece,
mas trás uma conotação que vai além da origem, à raiz. Isto é, trata-se de analisar o
processo que dá origem à origem dos princípios e dos determinantes inerentes à
elaboração e implementação das políticas públicas. Isto é, pressupõe-se existir enfoques
referenciais que fundamentam o exercício da elaboração e operacionalização das
políticas públicas, como é o caso das concepções epistemológicas, das amarras

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

ideológicas, das questões culturais, etc. Isto é, toda Política Pública é originada de uma
idéia e esta de um princípio, de uma pressuposição ou de uma vontade. Portanto, a
palavra princípio não carrega consigo apenas o significado literal do termo, mas algo
mais, o contexto dos fatores determinantes que dão origem a uma idéia de Política
Pública, como o caso da conjugação de interesses, as inserções ideológicas, as
concepções científicas, as correlações de forças sociais etc. Portanto, necessário se faz
distinguir o Ser das Políticas Públicas do ideal de Ser. Não se trata aqui de fazer uma
apologia a um certo ideal de Ser das políticas públicas, mas retratar simplesmente o seu
Ser. Considerando o momento histórico em que se vive, com grandes reflexos ainda do
racionalismo iluminista, analisa-se a seguir alguns princípios (os principais) que
oferecem às políticas públicas de combate à pobreza um sentido racionalista, capitalista
e, portanto, contemporâneo.
Os séculos XV, XVI e XVII testemunharam um expressivo movimento de
construção da base da ciência e do Estado moderno, o que se constituiu fundamento
clássico epistemológico das políticas públicas. Este movimento, apresentando a
construção da “razão” como meta, dedicou-se em torno de dois principais enfoques, o
método científico e a organização social (o Estado). “Razão” designava a busca de uma
sociedade nova, comparativamente à sociedade medieval, a busca de uma sociedade
racional com base na cientificidade e a busca da superação do teologismo como método
de explicação do real e da organização social. Assim, de um lado, Francis Bacon (1561)
e Descartes (1596) contribuíram com a construção das bases epistemológicas do que se
convencionou chamar de ciência moderna, enfocando prioritariamente o método
científico. Mas “razão”, como sinônimo de cientificidade, de verdade, estava presente
também na busca da superação do Estado medieval. Hobbes (1588), Locke (1632) e
Rousseau (1712), com perspectivas diferentes em relação ao “Contrato Social”
sedimentaram as bases epistemológicas da organização social, o Estado, na
modernidade.
Este movimento envolvendo as bases epistemológicas da ciência moderna e do
Estado moderno construiu uma característica importante muito presente em noções de
verdade, de cientificidade e mesmo na elaboração e operacionalização das políticas
públicas na modernidade: o da universalidade dos parâmetros de cientificidade e de
verdade. Em outras palavras, o movimento que busca a construção de uma sociedade
com base na “razão” científica, inicialmente pela construção de um método científico,

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estipula, na verdade, parâmetros universais de ciência e de verdade, nos quais


encontramos a origem da concepção etnocêntrica de sociedade.
Isto significa dizer que junto ao fundamento epistemológico da ciência moderna
e do Estado moderno a partir de parâmetros universais de verdade e da organização
social, criou-se parâmetros para se pensar e realizar um “modelo civilizatório” tendo
como base a razão científica, sendo que concepção etnocêntrica é o primeiro ingrediente
a se constituir como parâmetro para se medir o grau de racionalidade de uma
organização social. Hoje, existe uma tendência de alguns povos, sobretudo os
considerados desenvolvidos, adotarem o entendimento segundo o qual as suas
sociedades centralizam a verdade em termos de costumes culturais, desenvolvimento
social e econômico etc. Estas sociedades têm dificuldade de compreender como verdade
as diferenças em termos culturais e de organização política se não as suas. Segundo a
concepção etnocêntrica, portanto, existe uma verdade única e universal, entendida como
o centro, e é a partir dela que se institui as atribuições do certo e do errado. O
etnocentrismo tem origem justamente da razão científica, do entendimento que a ciência
é única e universal, que a verdade científica guarda requisitos universais que a
distingue como ciência. É deste pensamento que nascem as atribuições do centro e da
periferia, como atribuição de valor de verdade, que o centro retém mais e melhor
tecnologia, mais riqueza, e mais verdade. Com isto, nasce a tendência de se atribuir
modelos sociais, culturais e de desenvolvimento social. A partir desta concepção, as
necessidades dos grupos dominantes são absorvidas pelos setores pobres como seus,
assim como a superaração das carências da população pobre é feita utilizando-se das
estratégias dos grupos dominantes, criando-se até mesmo uma noção peculiar de
pobreza, utilizando-se parâmetros culturais e sociais das pessoas das classes
dominantes. Este pressuposto da universalidade da verdade e da existência de um
“modelo civilizatório” é algo muito presente na elaboração e implementação de
políticas públicas, especialmente as de combate à pobreza.
Outros elementos, advindos das ciências da natureza, também se constituem
bases epistemológicas das políticas públicas na modernidade. Com o avanço da ciência
do domínio da natureza, a partir do método experimental, a física parece ser o primeiro
ingrediente a se integrar no processo da formação das ciências humanas. A economia
política foi constituída na Inglaterra no decorrer da Revolução Industrial e da glória de
Newton, quando se tinha uma influência considerável da epistemologia positivista. A
partir de então, grandes teóricos das ciências do desenvolvimento econômico, como

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Adam Smith, Walras, Pareto e Saint-Simon desejavam ser o Newton da mecânica social
da produção e do consumo de riquezas (Grinevald, 1975: 40).
A construção das ideias das ciências humanas a partir das ciências da natureza
fez com que esta, as ciências humanas, fosse assumindo ingredientes típicos das
ciências naturais. O primeiro ingrediente que vem da física e que aparece claramente
nos fundamentos das políticas públicas de combate à pobreza de hoje diz respeito à
ideia que associa o progresso da humanidade à força e à energia. Em síntese, o
pensamento de Newton cruzou as fronteiras do mundo natural para o social. Assim, os
teóricos precursores da chamada “ciência do desenvolvimento humano”, como foi o
caso de Saint Simon, Augusto Comte etc. passaram a associar o “progresso humano” à
ideia do movimento, da força e da energia.
Este pressuposto teórico tem fortes influências sobre a própria noção clássica de
pobreza, como é o caso de associar esta condição às capacidades individuais, do Ser
pobre e não da do Estar pobre (Boneti, 2001 e 2005), de pobreza como sinônimo de
“atraso”, incapacidade de evolução. Esta interpretação deu origem não apenas à ideia
segundo a qual o desenvolvimento social está condicionado ao desenvolvimento
industrial, mas a que não existe singularidade no que se refere ao desenvolvimento
social, ele é único e universal.
Outro aspecto importante a ser considerado diz respeito à capacidade individual
e/ou coletiva (da comunidade) de reação à condição de pobreza. A partir desta
interpretação teórica o indivíduo ou mesmo uma comunidade por si só não se habilita a
reagir contra a condição de pobreza. Como o da indústria, a força que impulsiona o
desenvolvimento não nasce do mesmo corpo mas de uma força externa. É mesmo que
dizer que existe um centro no qual as ideias dito científicas se encontram e dele nascem
e impõem um padrão homogêneo a partir do qual devem se adaptar as singularidades.
Isto é mesmo que dizer que comunidades ou pessoas que utilizam modelos singulares de
produção da vida material e/ou social jamais podem se desenvolver socialmente a partir
das suas próprias experiências, mas dependem do impulso da força de ideias e de
tecnologias de comunidades externas. Esta é a razão pela qual o modelo clássico de
políticas públicas de combate à pobreza se caracteriza como antidiferencialista. Isto faz
com que nas ações de combate à pobreza se utilize pressupostos da existência de
comportamentos, condições sociais, culturais, etc. com mais verdade que outros, e que
os “outros” carecem de ajuda, que por si só não saem da estagnação. Isto é, adota-se o

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princípio que todo corpo imóvel precisa de um corpo em movimento para ser
impulsionado.
No âmbito deste processo de construção das ciências do domínio da natureza,
especialmente no século XVIII, a ideia do movimento, sem ser na perspectiva de se ver
o real como essencialmente contraditório, a partir do pensamento dialético, mas na
perspectiva da evolução, originado especialmente da física e da biologia, faz com que se
estipula como “normalidade” o comportamento individual e social associado ao
movimento linear e progressivo. O próprio Marquês de Condorcet (1794), no século
XVIII, no seu Esboço de um Quadro Histórico de Evolução do Espírito Humano, uma
das principais obras teóricas de referência utilizada por Augusto Comte, além de sugerir
o método das ciências naturais, como o caso da matemática, no estudo de problemas
sociais, elabora os princípios da evolução humana como leis naturais e evolutivas.
Assim, pode-se dizer que o grande avanço dos estudos no domínio da natureza
teve uma influência muito grande no estabelecimento de parâmetros de “normalidade”
do comportamento social e individual, o que se constituiu em importante parâmetro de
elaboração e implementação de políticas públicas, especialmente as de combate à
pobreza. Como exemplo, pode-se tomar a concepção darwinista (Charles Darwin),
criando o preceito que como na natureza os organismos vivos tendem a se adaptar às
dificuldades e criar estratégias para competir, na sociedade existe uma competição
natural entre os indivíduos, se constituindo em seleção natural, permanecendo os mais
aptos e os mais capazes e que no caso social estes devem se constituir em “modelos”
para os “menos capazes”. Isto leva ao preceito da meritocracia como instrumento de
seleção dos “mais capazes” no processo da ascensão social e o respeito às normas da
hierarquia social, preceito este muito presente nas políticas públicas, especialmente as
de combate à pobreza.
Mas, considerando-se a noção clássica de políticas públicas de combate à
pobreza, a ideia da técnica é um elemento que se apresenta preponderante. A técnica se
apresenta em dois aspectos: no que se refere à avaliação do Ser pobre, pelo julgamento
de não apropriação de conhecimentos técnicos e/ou de sua operacionalização, e como
meta de implementação de ações de combate à pobreza. Até o século XVIII o apelo à
construção de uma sociedade racional, com base na Razão, da ciência e da organização
do Estado, tinha como fim a busca de mudança referindo-se ao teologismo e a
organização social feudal. Mas muito especialmente no século XVIII o ingrediente
Técnica se fortalece, Ciência e Técnica como sinônimo de mudança e redenção humana.

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No século XIX porém, a perspectiva de mudança através da construção da


ciência moderna e da organização do Estado Moderno associada à Razão, com a
consolidação do Modo de Produção Capitalista e da burguesia como classe dominante,
o apelo à Razão é alterado da busca da mudança para a busca da ordem. Como bem
salienta Pierre Ansart (1970) o francês Saint-Simon, de quem Augusto Comte se tornou
secretário, propôs que a busca da mudança histórica na construção da Razão estaria
concluída e que o momento estaria para a busca da ordem como Razão e que esta seria
representada por: Ciência – Técnica – Indústria – Ordem. Em outras palavras, a
racionalidade estaria representada pela sociedade industrial, com base na ciência e na
técnica.
Esta formulação de Saint-Simon associa verdade (ciência) à utilidade, a técnica,
operacionalizada pela indústria. Assim, consolida-se o preceito de verdade (ciência)
representado pela Técnica. Ou melhor dizendo, ciência que é ciência, resulta em
Técnica, e Técnica que é Técnica resulta em Indústria.
Ainda no mesmo século, Augusto Comte se apropria da fórmula elaborada pelo
seu mestre acrescentando ingredientes novos no conceito de Razão: Ciência – Técnica –
Indústria – Ordem – Progresso (COMTE, 1954). Assim, neste contexto histórico, une-se
o Estado Moderno e o modo de produção capitalista, representado pela indústria, através
da Ciência Moderna e da Técnica.
Com tais fundamentos epistemológicos originados da unificação entre a
indústria moderna e o Estado Moderno, as políticas públicas de combate à pobreza, no
formato clássico, guardaram ingredientes muito típicos da razão moderna. Em primeiro
lugar, as Políticas Públicas sempre se apresentam imbuídas de uma racionalidade. Nos
dias atuais ainda se utiliza a tradição iluminista de associar uma decisão política a uma
verdade comprovadamente científica, como é o caso do processo da elaboração de uma
política pública. Isto significa dizer que uma decisão política deve ser tomada com base
em dados comprovadamente científicos ou técnicos da realidade na qual busca-se
intervir com uma política pública. Neste caso, os dados técnicos têm caráter
determinante mais que a vontade e o desejo da pessoa ou do grupo social envolvido.
Em segundo lugar, além do caráter etnocêntrico e da influência da
termodinâmica é preciso se considerar a ideia de universalidade e a infalibilidade da
ciência como fundamento das Políticas Públicas de combate à pobreza. O caráter de
cientificidade pressupõe universalidade. Isto é, as características do pensamento
científico não se alteram dependendo do contexto histórico e da realidade local. De

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igual forma não existe alteração da concepção de infalibilidade da ciência dependendo


do momento histórico e da realidade local. Assim, concepção de infalibilidade que se
tem em relação à técnica é outro aspecto que é desenvolvido e que passa a ter grande
presença nas políticas públicas. Pela sua associação com a ciência, nascida desta, a
técnica recebe um caráter de infalibilidade, da não possibilidade do erro. Ou seja, tudo o
que é científico, que tem origem na ciência, não se questiona. Esta concepção acarreta
implicações na elaboração e a implementação das políticas públicas em muitos aspectos.
Um destes aspectos, que se pode citar como exemplo, é o caso da adoção de modelos de
condições sociais, como é o caso da condição de pobreza, a partir de realidades ditas
desenvolvidas, o que, em geral, pode-se praticar equívocos. Outro aspecto muito
presente nos pressupostos das políticas públicas de combate à pobreza é o significado da
industrialização. Esta, enquanto representante da técnica, originada da ciência, se
constitui sinônimo de desenvolvimento social e de verdade, o que pode também se
constituir em equívoco.
Por último, necessário se faz considerar o caráter de utilidade do conhecimento
científico. A conjugação da ciência (e da técnica) ao desenvolvimento econômico
determina o aparecimento de outra característica do conhecimento científico, o da
utilidade, ou seja, o de se considerar conhecimento científico aquele que é útil. Este
pensamento também faz parte do processo histórico do desenvolvimento da ciência.
Portanto se conclui que as políticas públicas de combate à pobreza na essência
da Razão Moderna, apresentam-se com apenas dois agentes definidores, o meio
produtivo e o próprio Estado, interligados pelo argumento de verdade e cientificidade
através da técnica (Meio produtivo – Técnica – Estado). Assim, a técnica se apresenta
na essência da epistemologia moderna como a representação da verdade, da justiça e da
redenção humana.

A Crise da Razão Moderna, as Políticas Públicas e a insurgência de processos e


agentes sociais novos

A Razão Moderna tendo como base a técnica começa ser questionada justamente
com o advento de problemas sociais típicos da contemporaneidade como foi o caso das
duas guerras mundiais, a destruição em massa graças a técnica, a crise ambiental, o
abalo das identidades suprimidas pelo pressuposto da homogeneidade advindo com o
procedimento técnico, a indiferença com as singularidades.

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A crise da Razão Moderna se expressa através de uma dinâmica social


insurgente a qual extrapola o âmbito institucional dos movimentos sociais
transnacionais e debates acadêmicos para o mundo do Ser e da busca pela construção
das identidades individuais e coletivas.
No mundo acadêmico faz-se importante lembrar o debate originado desde o
início do Século XX o qual ficou conhecido como a Teoria Crítica, da Escola de
Frankfurt. Intelectuais como Max Horkhaimer, Theodor Adorno e Hebert Marcuse,
Jürgen Habermas, etc., construíram notoriedade ao questionarem o pressuposto
associando Razão à Técnica. Dentre muitas obras produzidas por este grupo de
intelectuais sobre a temática citada, indispensável citar Técnica e Ciência como
“ideologia” de Habermas (1970).
Mas a dinâmica social contemporânea, ala própria extrapola os muros da
institucionalização acadêmica onde o debate em torno da elaboração e da
implementação de uma política públicas é feito entre os “agentes do poder” (como diz
Lindblon 1981), quer seja nacional ou global, constituindo-se de um processo
contraditório entre disputa de interesses pela apropriação de recursos públicos,
viabilização do projeto do capitalismo global ou a luta pelo reconhecimento das
singularidades, diferenças e identidades.
Entende-se que os agentes do poder, os participantes da correlação de força, são
constituídos não necessariamente, ao menos num primeiro momento, por representação
de classe, mas sobretudo pela ordem do interesse específico, pela representação de
empresas ou pela representação de organizações populares, por exemplo.
Evidentemente que no cômputo geral as afinidades entre os interesses específicos
acabam caracterizando uma conjugação de forças afinadas aos interesses específicos de
classe social. Isso significa dizer que a relação direta e dicotômica entre diferentes
classes sociais ou entre o Estado e a sociedade civil, deve ser relativizada. A afinidade
de interesses específicos pode configurar um projeto de uma determinada classe social.
A luta de classe se configura numa dinâmica geral quando as especificidades se
congregam numa afinidade de classe.
O que existe de novo nos dias atuais fazendo que a presença dos movimentos
insurgentes assuma um novo caráter? O primeiro aspecto que fortalece a insurgência de
movimentos novos são as especificidades que constituem o caráter das relações
econômicas e sociais globais dos dias atuais. Enquanto uma sociedade globalizada,
vive-se um momento quando múltiplas dinâmicas sociais em andamento são marcadas

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por fortes tensões entre vetores que concorrem a homogeneizar as sociedades, e os que,
ao contrário, tendem a valorizar a diferenciação social, ou seja, acentuar as diversas
ordens de singularidades. Neste contexto, os movimentos insurgentes hoje se
apresentam como resultado de um processo de mundialização no contexto de suas
múltiplas formas e dentro de uma trama histórica complexa, derivados tanto do inédito
quanto do insurgente. Neste caso, os movimentos insurgentes hoje não se apresentam
unicamente de uma forma institucionalizada, como um movimento social organizado,
mas também através de vontades, desejos e lutas pela reconstrução de identidades
sociais.
Neste contexto, o fim da guerra fria, a globalização da economia, e
especialmente o aparecimento de movimentos insurgentes, leva-se a construir outro
entendimento de Estado e Nação. Os tradicionais limites nacionais estão seriamente
atingidos pela invasão da universalização das relações sociais e econômicas. Assim, os
ditames de uma economia global é um importante condicionante das políticas públicas
nacionais. Como bem lembra Manoel Castells (1999: 111), uma economia global é uma
economia com capacidade de funcionar como uma unidade em tempo real, em escala
planetária.
Assim, um importante agente definidor de políticas públicas, com fortes
influências sobre a noção clássica de pobreza e de ações do Estado sobre esta condição
é o Projeto do Capitalismo Globalizado. Este se constitui de um agente definidor de
políticas públicas nacionais, pois este projeto envolve uma correlação de forças de nível
internacional, na qual figuram interesses econômicos e políticos. O projeto do
capitalismo internacional se apresenta definido, discutido, avaliado e reavaliado
anualmente pelos países considerados industrializados, no sentido de garantir sucesso às
metas de expansão das relações econômicas globais. Este projeto em si se constitui de
um agente definidor de Políticas Públicas nos Estados nacionais cuja atuação se
materializa através de duas principais atuações que se apresentam interligadas: através
das relações econômicas e através das relações políticas. As questões econômicas
normalmente aparecem na dinâmica da correlação de forças do mercado global
impondo regras e procedimentos que favoreçam os países presentes neste mercado com
maior poder de barganha. Em relação à política, esta se configura no nível da
organização Estatal, exteriorizada através da esfera diplomática, mas amarrada aos
determinantes econômicos. Em outras palavras, existe uma ordem comandada por um
projeto mundial de produção econômica e organização política que se apresenta ao

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mundo como um vetor hegemônico buscando homogeneizar as relações econômicas,


tecnologias de produção, hábitos culturais e demais habilidades. Esta força política
exerce poder sobre o caráter das políticas públicas de combate à pobreza dos países
nacionais.
O projeto do capitalismo global se apresenta como agente definidor de políticas
públicas a partir do modelo clássico, utilizando-se do discurso racional e da capacidade
técnica como parâmetros na elaboração e implementação de políticas públicas de
combate à pobreza. Neste caso, o Estado e o meio produtivo se apresentam como
agentes definidores preponderantes.
Mas os movimentos insurgentes normalmente se apresentam como uma espécie
de contra-hegemonia (conforme a denominação de Boaventura de Souza Santos, 2001:
45-63), não mais a partir de uma luta direta e específica de classe, mas a partir de uma
problemática específica. Busca-se o resgate da individualidade, da diferença e da
singularidade, especialmente através dos movimentos insurgentes de caráter
transnacionais, podendo se constituir institucionalmente em Movimentos Sociais ou
simplesmente em ações insurgentes não institucionalizada mas de busca do resgate das
identidades sociais.
Assim considera-se que os movimentos insurgentes hoje se apresentam, em
geral, contra-hegemônico, porque, diferente dos do passado que buscavam o
atendimento de necessidades básicas como a sobrevivência física, a conquista da
propriedade da terra, ou a defesa de interesses de classe, tendem ressaltar o que é
singular, diferente, contrariando uma lógica hegemônica mundial, buscando alternativas
novas de produção, de relações com a propriedade, de uma nova ordem na relação entre
produção e meio ambiente, de busca de superação do convencionalismo da relação
afetiva e sexual, etc. Trata-se do resgate da individualidade, da singularidade, da
diferença, enfim, do sujeito.
Conclui-se, portanto que ao mesmo tempo em que o projeto do capitalismo
mundial se fortalece e torna agressivo em suas estratégias de expansão dos ganhos
econômicos, com abertura de novos mercados consumidores e de trabalho qualificado
(para quem a homogeneidade cultural e de habilidades técnica é de extrema valia),
fortalece-se a busca da singularidade, a valorização da diferença e da individualidade
com a redescoberta da socialização da produção e da vida em comunidade, de formas
alternativas de sobrevivência, de diferentes organizações da sociedade civil. Estas

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

ações, tanto de um lado quanto do outro, direta ou indiretamente, devem ser


consideradas como agentes definidores das políticas públicas de combate à pobreza.
Entende-se que esta nova configuração, que a princípio se apresenta como sendo
das relações econômicas, mas que leva consigo a produção da cultura, os hábitos
culturais e a simbologia social, é determinante no aparecimento de um novo perfil sobre
a estrutura social. Neste novo perfil apresentam-se agentes outros participando da
elaboração e implementação das políticas públicas. A participação destes novos agentes
traz uma nova interpretação da organização de classes, das representações profissionais
e sindicais, do papel do Estado, do papel das ONGs e dos Movimentos Sociais e, com
isto, o aparecimento de um novo entendimento sobre a elaboração, gestão e caráter das
políticas públicas de combate à pobreza.
Estes outros agentes participantes desta correlação de forças, certamente não
com tanto poder de barganha como as representações das elites econômicas, têm peso
considerável na elaboração e implementação das políticas públicas de combate à
pobreza.

Conclusão: Como definir uma Política Pública de combate à pobreza e qual a


dinâmica da sua elaboração e operacionalização na contemporaneidade

Conclui-se portanto que apesar de que o fundamento epistemológico clássico


das políticas públicas de combate à pobreza se deu em torno da Razão Moderna, tendo a
técnica como parâmetro de referência de verdade, quando apresentavam-se como
agentes definidores basicamente o meio produtivo e Estado, na contemporaneidade
destitui-se o absolutismo da verdade técnica como parâmetro, apresentando-se ao lado
do Estado e do meio produtivo novos agentes definidores de políticas públicas, trazendo
ao debate novas lutas sociais como é o caso do resgate do sujeito e das identidades.
Cria-se assim a necessidade de rever o modelo clássico de adotar a razão técnica como
parâmetro de combate à pobreza e dar atenção ao resgate das identidades sociais.
Portanto, a partir da organização social, política e econômica das últimas
décadas, é possível entender como políticas públicas de combate à pobreza a ação que
nasce no próprio contexto social, mas que passa pela esfera estatal como uma decisão de
intervenção pública na realidade, quer seja para fazer investimentos ou uma mera
regulamentação administrativa. Entende-se por políticas públicas de combate à pobreza
o resultado da dinâmica do jogo de forças que se estabelecem no âmbito das relações de

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

poder, relações essas constituídas pelos grupos econômicos e políticos, classes sociais e
demais organizações da sociedade civil. Tais relações determinam um conjunto de ações
atribuídas à instituição estatal, que provocam o direcionamento (e/ou o
redirecionamento) dos rumos de ações de intervenção administrativa do Estado na
realidade social e/ou de investimentos. Nesse caso, pode-se dizer que o Estado se
apresenta apenas como um agente repassador à sociedade civil das decisões saídas do
âmbito da correlação de força travada entre os diversos segmentos sociais, ganhando
força, na contemporaneidade, agentes e ações insurgentes de reconstrução da identidade
social.

Bibliografia

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

O CRESCIME6TO DA POBREZA.
Limites das fontes estatísticas em Portugal e resultados possíveis

Fernando Diogo
CES-UA
Universidade dos Açores
fdiogo@uac.pt

Resumo

A rapidez e a profundidade das transformações sociais por que está a passar a sociedade portuguesa
colocam desafios e agudizam tenções no desenvolvimento das políticas públicas, especialmente nas que
têm como objetivo a redução da pobreza ou a minimização dos seus efeitos. Coloca-se a questão da
fiabilidade dos instrumentos de informação estatística disponíveis para conceber e monitorizar essas
políticas, face à rapidez e profundidade do agravamento dos indicadores indiretos de pobreza e de
degradação da situação social em geral.
A partir da recente publicação dos dados do IDEF 2010/2011, explora-se as limitações das fontes
estatísticas para medir a pobreza em Portugal. Para realizar este trabalho, mobilizam-se dados estatísticos
do IDEF 2005/2006 e 2010/2011, do ICOR (2003-2010), assim como outras estatísticas.
As conclusões vão no sentido da manutenção do essencial das principais categorias sociais afetadas pela
pobreza, embora com um aumento do seu volume e da sua intensidade. Discute-se as condições para a
emergência, pela primeira vez em Portugal, de uma nova categoria social de indivíduos em situação de
pobreza, os novos pobres.

Palavras-chave: Pobreza, Medição, Evolução, Crise

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

Introdução

A análise da pobreza em Portugal chegou a um impasse, provocado por dois


processos concomitantes, cujo efeito combinado é o de ocultação da evolução e
características da pobreza.
Referimo-nos, em primeiro lugar, às grandes transformações societais, com
amplas repercussões entre os mais despossuídos, que têm perpassado o país e, em
segundo, às evidentes debilidades estatísticas e concetuais dos principais indicadores
usados pelo estado português e pela UE para medir a pobreza. De ambos estes processos
daremos conta detalhada neste texto.
Desde as primeiras análises sobre o assunto, desenvolvidas a partir dos anos 80,
através dos estudos da Cáritas Portuguesa coordenados por Bruto da Costa e Manuela
Silva (1985, 1989), passando pelo recrudescimento do interesse pelo problema com a
introdução do Rendimento Social de Inserção em 1997, as estatísticas oficiais
disponíveis para lidar com a pobreza caracterizaram-se sempre pela sua escassez. De
destacar, a introdução, em 2003, do Inquérito às Condições de Vida e
Rendimento/Statistics on Income and Living Conditions (ICOR EU-SILC) que substitui
o Painel dos Agregados Domésticos Privados da União Europeia (Batista e Perista,
2010: 41), instrumento que, desde 1995, fornecia resultados sobre a pobreza (Capucha,
2005: 106).
Complementarmente, a análise da pobreza tem-se feito a partir dos dados do
Inquérito às Despesas das Famílias (IDEF) e seus antecessores (Inquérito aos
Orçamentos Familiares, IOF e Inquérito às Receitas e Despesas das Famílias, IRDF,
Capucha, 2005: 110 e Rodrigues, 2007: 122), tendo este inquérito a desvantagem de ser
quinquenal e a vantagem de ser estatisticamente significativo para as diferentes regiões
do país (NUTS II).
Este texto focaliza-se nestes instrumentos, nos seus resultados e na exploração
das suas limitações, em ordem a abrir a porta à sua utilização crítica e ao uso de outras
formas de aferir o problema da pobreza em Portugal, tendo em conta as transformações
societais (ou mudanças sociais) que referimos.

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

Constatação de partida: a taxa de pobreza em Portugal quase não mudou desde


2008

Se analisarmos as principais fontes estatísticas oficiais sobre a pobreza em


Portugal podemos realizar duas constatações, relativamente à sua evolução recente
(2005-2011): os dados do IDEF mostram-nos uma descida da taxa de pobreza e os do
ICOR uma descida, seguida de subida e de estagnação, verificando-se esta última
tendência nos anos mais recentes.

Gráfico 1. Taxa de risco de pobreza IDEF (2005/2006 e 2010/2011)

25
21
19 19
20 17
16 16
15 12 13

10
16,1 17,9 16,1
15,3 14,6 14,2 14,8
5 11,3

0
Norte Centro Lisboa Alentejo Algarve R.A. R.A. Total
-5 Açores Madeira

2005/2006 2010/2011 diferença

Fonte: IDEF 2005/2006 e 2010/2011

De forma aprofundada, podemos verificar através dos dados IDEF que de 2005
(ano de recolha dos dados da edição 2005/2006) para 2009 (ano de recolha dos dados da
edição 2010/2011) a pobreza desceu no país, de um valor de 16% para 14,8%. Esta é
uma descida que, de forma mais ou menos acentuada, se verifica em todas as regiões,
com a exceção de Lisboa e Vale do Tejo. De notar que, nesta última, a subida da taxa de
risco de pobreza de 12% para 14,2% não lhe retira o estatuto de uma das regiões com a
menor taxa do país, só superada, em 2010/2011, pelo Algarve.
Contudo, é precisamente a partir de 2009 que os efeitos mais agudos do
agravamento da crise financeira, económica e social se começam a sentir. Assim, para
termos informações sobre os efeitos desta crise no aumento da pobreza devemos
recorrer aos dados do ICOR.

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

Gráfico 2. Evolução da taxa de risco de pobreza em Portugal, em % da população residente (2003-


2011)

21
20,5 20,4
20
19,5 19,4
19
18,5 18,5 18,5
18 18,1 18,0 18,0
17,9 17,9
17,5
17
16,5
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011

Fonte: INE, dados do ICOR

Os dados do ICOR apresentam uma redução da pobreza no país, de um valor de


20,4% em 2003 para 18,0% em 2011. Mais detalhadamente, pode observar-se que, na
segunda metade do período em análise, se verifica um aumento significativo entre 2006
e 2007, e uma estabilização (ou estagnação) nos anos mais recentes, entre 2008 e 2011.
Pode alegar-se que as diferentes tendências que as duas fontes apresentam
respeitam ao facto de se reportarem a períodos temporais que não são totalmente
coincidentes. Nesse sentido, apresentamos abaixo os valores das duas taxas para os anos
em que coincidem, 2005 e 2009 (correspondendo aos anos em que os dados IDEF foram
recolhidos):

Quadro 1. Comparação taxas de risco de pobreza ICOR e IDEF, 2005 e 2009, Portugal
Fonte 2005 2009 Tendência
ICOR 18,5% 17,9 Descida -0,6
IDEF 16% 14,8% Descida -1,2
Diferença entre as fontes 2,5% 3,1% -
Fontes: ICOR 2005 e 2009 e IDEF 2005/2006 e 2010/2011

Quer dizer, os dados das duas fontes apresentam a mesma tendência de descida
entre os dois anos em análise. Contudo, ficamos em presença de um prolema adicional,
verifica-se uma taxa de risco de pobreza maior nos dados do ICOR do que nos do IDEF.
Consideramos que isso se deve ao facto da metodologia seguida na recolha de dados no

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

IDEF ser mais robusta, pois lida melhor com o rendimento não monetário, algo a que
corresponde sensivelmente um quinto, 20%, do total dos rendimentos das famílias no
IDEF (Rodrigues, 2010: 123) 2 . Estamos, portanto, no campo das diferenças nas
metodologias de recolha de dados entre estes dois inquéritos (mas não na fórmula de
cálculo da pobreza).
Voltando à questão da tendência da taxa de risco de pobreza. Se não possuímos
dados para o IDEF posteriores a 2009, os dados do ICOR mostram uma estabilizam da
taxa entre 2008 e 2011, como vimos. Contudo, poder-se-ia pensar (e colocar como
hipótese) que o aumento da taxa de risco de pobreza se acentuou em Portugal com o
agravamento da crise económica, algo que se deu em 2008. E poder-se-ia acrescentar
que a implementação de medidas políticas tendo em vista a redução do deficit, algo que
se intensificou a partir de 2009, tornaria esse crescimento mais intenso. Contudo,
manifestamente, não é isso que nos é dado pela taxa de risco de pobreza ICOR-
EUSILC.
A primeira questão que se coloca é: até que ponto os efeitos da crise no aumento
da pobreza não têm sido sobrevalorizados, por via da sua exacerbação através da luta
política e da necessidade jornalística de notícias com impacto? Por outras palavras, se o
aumento da pobreza parece estar presente nas agendas jornalísticas e política,
corresponderá esse efeito de agendamento ao aumento do número de pessoas em
situação de pobreza? Para percebermos a dissonância entre a inamovibilidade da taxa de
risco de pobreza oficial e a perceção pública de que a pobreza está a crescer, devemos
consultar indicadores que nos permitam perceber a questão para além dos termos que
produziram esta dissonância.

MAS, os indicadores indiretos de pobreza não param de se degradar

A tendência observada de manutenção da taxa de risco de pobreza contrasta


flagrantemente com alguns importantes indicadores indiretos de pobreza que podemos
observar. Desde logo, os indicadores de cariz subjetivo. Referimo-nos à perceção dos
responsáveis das instituições de combate à pobreza e à exclusão social. As declarações
públicas destes responsáveis têm sido, ao longo dos últimos anos, no sentido de reportar

2
O que está em causa no rendimento não monetário é, essencialmente, a autolocação, isto é,
autoavaliação do valor hipotético de renda de casa pelos agregados proprietários ou usufrutuários de
alojamento gratuito INE (2012: 43).

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

um aumento dos pedidos de ajuda, um esgotamento dos serviços e apoios que


disponibilizam e o crescimento da pobreza, mormente, afetando indivíduos que, em
muitos casos, pertenceriam, na sua avaliação subjetiva, às classes médias. Este tipo de
afirmações é comum a todas as declarações deste género, sejam produzidas por
responsáveis de instituições de âmbito mais geral, como a EAPN, a AMI ou a Cáritas
Portuguesa, sejam das instituições cujo âmbito geográfico é mais circunscrito, como os
centros sociais e paroquiais ou as associações locais.
Pode alegar-se que, apesar de tudo, esta perceção dos responsáveis das
instituições não é um bom indicador do aumento da pobreza, dado que não há nelas
qualquer preocupação ou fundamentação estatística, isto é, pode considerar-se que
declarações deste tipo não são representativas da situação social do país, não passando
de um efeito de agendamento dos media, ou de um efeito de pack jornalism (jornalismo
de rebanho). Portanto, pode-se alegar que, em si, esta fonte mais não faz do que fundar a
dissonância acima mencionada, entre as agendas políticas e jornalísticas e as fontes
estatísticas.
Um segundo indicador respeita ao grande conjunto de mudanças legislativas
que, desde 2008, se têm traduzido em cortes nas prestações sociais, precisamente
dirigidas aos indivíduos mais vulneráveis à situação de pobreza ou àqueles que estão em
situação de pobreza. Referimo-nos ao abono de família, subsídio de desemprego, baixas
médicas, complemento solidário para idosos (CSI) e rendimento social de inserção
(RSI), assim como às pensões.
Vejamos o exemplo do RSI. As grandes transformações legislativas que tem
vindo a sofrer ao longo do tempo foram sempre no sentido da redução do volume
financeiro transferido para os indivíduos e da redução do número de beneficiários (e,
logo, do volume financeiro global consignado). Como alterações mais significativas
assinale-se i) a passagem de RMG (Rendimento Mínimo Garantido) para RSI em 2004,
algo que levou a uma maior complexidade burocrática no requerimento e
processamento da prestação; ii) a mudança legislativa de Junho de 2010 (D.L. 70/2010),
tendo implicado a redução das prestações por via da eliminação dos apoios
complementares; iii) a mudança legislativa que teve lugar em 27 de Junho de 2012
(D.L. 133), onde se reduziu os montantes máximos a atribuir por família e se instituiu a
obrigatoriedade prévia do acordo de inserção, assim como o fim da renovação
automática, medidas que vêm complexificar a prestação e adiar o seu recebimento,
levando a menos beneficiários (e, logo, a menos custos). No mesmo sentido se pode

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

interpretar, ainda na mudança legislativa de 2012, a inclusão de todos os habitantes da


mesma casa no cálculo da prestação, algo que leva à redução do número de
beneficiários e do valor das prestações; e, finalmente, iv) a redução do valor das
prestações consignada no orçamento de 2013, via diminuição em 6% da percentagem do
Indexante de Apoios Sociais (419,22 euros), passando para 42,495% deste valor.
Contudo, pode alegar-se que boa parte destas prestações sociais, como o RSI,
são dirigidas a quem já está em situação de pobreza, pelo que o efeito que têm é o de
aumentar a intensidade da pobreza (agravando as condições de vida dos indivíduos
pobres, afastando-os, para baixo, do limiar de pobreza) mas não têm impacto no volume
de indivíduos em situação de pobreza e, logo, na respetiva taxa. Contudo, nem todos os
indivíduos abrangidos por estas prestações sociais são, à partida, pobres e a redução dos
seus montantes ou perca do direito a usufruir delas pode atirar os indivíduos para os
braços da pobreza em números suficientemente grandes para que isso se reflita nas
estatísticas. Note-se que estamos a falar de uma fonte de rendimento dos portugueses
que é responsável por 23,9% do total (INE, 2012), a segunda maior fonte, logo a seguir
aos rendimentos do trabalho. Mais, as transferências sociais (incluindo pensões), ainda
segundo o INE (2012b: 2-3), reduziram a pobreza em 17,2% em 2010, valor que mostra
a importância deste tipo de rendimento na redução da pobreza e o impacto potencial da
diminuição dos valores a atribuir por pessoa no seu aumento.
Não obstante as controvérsias à volta da perceção dos dirigentes das Instituições
Particulares de Solidariedade Social (IPSS) e dos efeitos dos cortes nas prestações
sociais no aumento da pobreza, existem outras fontes que vão no mesmo sentido e que
são inequivocamente representativas da situação portuguesa. Em primeiro lugar, o caso
do desemprego. O valor do 4º trimestre de 2012 foi de 16,9% (INE, 2013), o maior
valor desde que há registo em Portugal e muito longe do valor de 7,6% de 2008
(Pordata, 2013). Todavia, pode-se alegar que, nos últimos anos em Portugal, não tem
existido ligação entre aumento do desemprego e aumento da pobreza, pelo contrário,
como podemos ver no gráfico abaixo.

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Gráfico 3. Evolução da taxa de risco de pobreza em Portugal, em % da população residente (2003-


2011) comparada com a taxa de desemprego (2003-2012)

25,0

20,0 20,4
19,4
18,5 18,1 18,5 18,0 18,0
17,9 17,9
15,7
15,0

12,7 t. pobreza
10,8 t. desempego
10,0 9,5
7,6 7,7 8,0 7,6
6,3 6,7
5,0

0,0
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012

Fontes: Fonte: INE, dados do ICOR e Pordata, dados do INE, inquérito ao emprego

A independência entre a taxa de desemprego e a taxa de risco de pobreza é muito


evidente. Contudo, este não deixa de ser um resultado estranho: se o rendimento dos
portugueses depende, em grande parte do trabalho com 54,5% do total dos rendimentos
das famílias a provirem desta fonte (sendo que isso é especialmente verdade para os que
se encontram no primeiro quintil de rendimento, os mais pobres, INE, 2012: 52 e 56),
não se percebe como é que o crescimento exponencial da taxa de desemprego, pelo
menos desde 2009, não tem qualquer efeito no crescimento da taxa de risco de pobreza,
tanto mais que é concomitante com a redução das prestações sociais, a outra grande
fonte de rendimento dos portugueses.
Uma segunda fonte de cariz objetivo que contradiz a tendência de estabilização
da taxa de risco da pobreza respeita aos dados do Produto Interno Bruto. O valor
relativo a 2012 representa uma quebra anual de 3,2% na estimativa rápida do INE
(2013b) e os dados referentes aos últimos anos mostram um processo de quase
estagnação ou de quebra do produto, como se vê no gráfico seguinte (o mesmo
acontecendo com o PIB per capita, cf. Pordata, 2013c):

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Gráfico 4. Evolução da taxa de risco de pobreza em Portugal, em % da população residente (2003-


2011) comparada com a variação do PIB (2003-2012)

25

20 20,4
19,4 18,5 18,5
18,1 17,9 17,9 18,0 18,0
15

10

5
1,56 1,45 2,37 1,94
0 0,78 -0,01
-0,91
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009-2,912010 2011-1,552012-3,2
-5

Taxa de crescimento do PIB a preços constantes t. pobreza

Fontes: Pordata, INE–BP - Contas Nacionais Anuais (Base 2006) e INE, ICOR

Acrescente-se que os dados referentes ao PIB per capita em paridades do poder


de compra para 2011 mostram uma redução de 2,9% do valor português face à média
comunitária (INE, 2012c), trata-se de mais um indicador de degradação da condição
económica dos portugueses, primeira condição para o aumento da pobreza. No mesmo
sentido, os dados do INE sobre os custos do trabalho (INE, 2013c) mostram que estes se
reduziram em 14,9%, no 4º trimestre de 2012, em relação ao mesmo período de 2011.
Sendo que no 3º trimestre, esta variação tinha sido de -14,2%, também face ao trimestre
homólogo de 2011. Ora, se os custos de trabalho se estão a reduzir, e em valores
significativos, isso quer dizer que os portugueses têm menos rendimentos do trabalho,
algo que, como vimos, representa mais de metade dos rendimentos totais das famílias
portuguesas. O mesmo se tinha já verificado em 2011, por relação com 2010, em que no
4º trimestre os custos com o trabalho tinham-se reduzido em 6,5%.
Mais ainda, um estudo recente da Comissão Europeia refere que, de entre os
países com maiores problemas orçamentais, foi Portugal quem aplicou mais medidas
com impacto nos mais vulneráveis à pobreza (CE, 2011: 18, 20, 23), levando a um
agravamento (estimado) da pobreza em 2009 e afetando proporcionalmente os mais
idosos e as crianças (e jovens). Os recentes aumentos de impostos associados ao
congelamento de salários (e até à sua redução) e ao aumento dos bens e serviços
essenciais vêm, também retirar rendimentos aos portugueses e, como tal, aumentar a
probabilidade de os indivíduos se tornarem pobres.

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O conjunto de indicadores que acabámos de revisitar permite verificar que as


principais fontes de rendimento dos portugueses, as transferências sociais e os salários
estão em quebra, e com menos rendimento a probabilidade de pobreza aumenta,
especialmente no caso do desemprego (dado que este significa um corte radical nos
rendimentos, especialmente quando se acaba o subsídio de desemprego). A estes
indicadores devemos, ainda, juntar o grande aumento da carga fiscal que se verificou
em Portugal nos últimos anos, quer em sede de IVA, quer de IRS.

Como explicar esta contradição?

A questão que se coloca é, portanto, a de que não é crível que a pobreza não se
tenha agravado em Portugal nos últimos anos, mau grado a tendência de estagnação
exibida pela taxa de risco de pobreza ICOR-EUSILC. O que justifica o comportamento
desta taxa? Podem ser invocadas dois tipos de explicações, as que se desenvolvem no
quadro concetual que fundamenta a taxa em causa e as que assumem uma posição
crítica em relação a este quadro.

a) Explicações dentro do quadro concetual da definição da pobreza

I. Redução do limiar oficial da pobreza

Relativamente às explicações dentro do quadro concetual da definição da


pobreza, centremo-nos no período de 2008 a 2011, os anos em que a taxa estagna.
Podemos encontrar o início da atual crise financeira, económica e social europeia em
2008 (sendo que Portugal já estava em crise antes disso, a crise europeia veio agravar,
em muito, a nacional), contudo, o crescimento da taxa de desemprego e as medidas de
corte na despesa com forte impacto no agravamento das condições de vida dos
portugueses pertencentes às categorias sociais mais baixas não foram imediatamente
tomadas e os seus efeitos não foram imediatamente sentidos, vimos, no estudo da
Comissão Europeia (CE, 2011), que os primeiros impactos se verificaram em 2009, ano
em que também a taxa de desemprego mostra uma aceleração do seu agravamento.
A primeira explicação para a dissonância entre os indicadores indiretos e os
resultados da taxa ICOR tem a ver com as limitações da definição oficial de pobreza: de
2009 para 2010, o limiar da pobreza, por via da redução do PIB (e, portanto, do

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

rendimento dos indivíduos em cuja mediana se baseia o cálculo da linha de pobreza),


diminuiu, passando de 434 para 421 euros mensais (OD, 2012). É de esperar que o
mesmo se tenha verificado noutros anos deste período. Por outras palavras, a definição
oficial de pobreza é relativa ao rendimento mediano do país, se este baixa, como vem a
acontecer em Portugal, também baixa o limiar de pobreza contido na definição oficial
de pobreza. Desta forma, minimiza-se o número de pobres em função do
empobrecimento geral do país. Existem duas consequências a retirar deste raciocínio:
Em primeiro lugar, indivíduos com rendimentos ligeiramente abaixo do limiar
de 2009 deixam de ser pobres em 2010, sem que o seu rendimento mude, mudando
apenas o limiar de pobreza, para baixo, na escala dos rendimentos.
Em segundo, indivíduos que viram os seus rendimentos reduzidos em 2010 e
que, pelos critérios de 2009, entrariam em situação de pobreza, ficam acima desta linha
em 2010. Estes dois raciocínios podem ser aplicados a vários dos restantes anos do
período em que se verifica a estagnação da taxa 2008-2011.

II. Degradação das condições de vida das classes médias que, apesar de
tudo, não atira as pessoas das classes médias para baixo do limiar de
pobreza

Todavia, estas explicações para a manutenção da taxa de pobreza nos últimos


anos não parecem ser suficientes para justificar a estagnação face a um agravamento
significativo da situação social, como foi acima explicado, tanto mais que estamos
perante uma descida relativamente pequena do limiar de pobreza, no caso em apreço, 13
euros3.
Assim, coloca-se a hipótese de que parte da manutenção da taxa de pobreza é
explicado pelo facto do agravamento da situação social e económica atingir os
indivíduos das classes médias, levando ao seu empobrecimento e degradação, mas
conservando-os acima do limiar de pobreza. Aliás, a hipótese da vulnerabilidade e da
fragilização da classe média portuguesa foi recentemente colocada, também a propósito
da atual crise (Estanque, 2012: 101).

3
Sem esquecer que, para os indivíduos com rendimentos muitos baixos, uma quantia percebida como
pequena para outras categorias sociais assume, para eles, um outro valor, quer subjetivamente, quer no
contexto do seu rendimento. Nesse sentido, recorde-se que 13 euros representam 3% do limiar de pobreza
em 2009 e uma taxa de variação negativa 2009-2010 de -2,9%.

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

Não obstante, a força do aumento do desemprego (associada aos cortes nas


prestações sociais, à queda do PIB, a outros fatores como o aumento dos impostos e à
perceção dos dirigentes das IPSS), implica que a hipótese de fragilização das classes
médias conservando rendimentos que lhes permitam manterem-se à tona de água, não
nos parece suficiente para explicar a imobilidade da taxa de risco de pobreza.

b) Explicações críticas do quadro conceptual da definição oficial de pobreza

I. Crítica da definição oficial de pobreza

É, portanto, necessário outro tipo de explicações para justificar a estagnação da


taxa de risco de pobreza ICOR, a partir da crítica aos conceitos usados. A
problematização do conceito de pobreza (e de exclusão social), assim como a sua
medição têm sido alvo de um elevado número de reflexões4, contudo, as transformações
recentes do problema em Portugal, das quais pretendemos dar conta neste texto,
condicionam o alcance dessas discussões, dado que modificam substancialmente o
substrato empírico que as enquadra. Neste sentido, pretendemos, na sequência de outros
textos (Diogo, 2006), adicionar outras explicações ao debate. A primeira dessas
explicações tem a ver com a própria definição oficial de pobreza.

II. Crítica do próprio conceito de pobreza

A questão central respeita às limitações do conceito de pobreza presente no IDEF e


no ICOR. Qualquer que seja a definição escolhida recorta-se uma categoria social que é,
em larga medida, arbitrária e engloba um conjunto muito variado de pessoas (Glewwe e
Van der Gaag, 1989: 2, Pereira, 2010a: 5 e Townsend, 1993: 86). O número e as
características dos indivíduos em situação de pobreza variam consideravelmente em
função da definição escolhida, pelo que as políticas sociais de mitigação e combate
adotadas dependem, então, de fatores arbitrários, característica que não ajuda à sua boa
execução.
Na definição oficial de pobreza, proveniente da União Europeia, em particular do
Eurostat (que é a presente no IDEF e no ICOR), considera-se pobre quem tem um

4
Para uma revisão crítica dessas referências veja-se Capucha (2005: 65 e ss) e Pereira (2010b: 23 e ss).

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

rendimento abaixo de 60% da mediana do rendimento nacional por adulto equivalente.


De notar que para o Eurostat está em causa o limiar de risco de pobreza e não o limiar
de pobreza, embora, na prática, seja a mesma coisa. Esta definição é perfeitamente
arbitrária, não havendo um fundamento científico claro para a sua adoção (D’Agostino
& Duvert, 2008: 15). E, além disso, fornece apenas algumas informações sobre a
pobreza, de caracter mais descritivo (Capucha, 2005: 71), não dando conta da sua
multidimensionalidade e da sua relação com as desigualdades mais amplas que
estruturam as sociedades. Neste sentido, têm sido apresentadas propostas para a sua
substituição por conceitos com maior fundamentação teórica e social (vide, por
exemplo, Pereira, 2010a e 2010b). Elvira Pereira (2010a: 9) estabelece, aliás, o limiar da
pobreza em 75% do rendimento mediano por adulto equivalente (para Portugal), a partir
dos recursos necessários para satisfazer as necessidades básicas, como alternativa à
definição adotada pelo Eurostat.
Acresce que será muito difícil, em qualquer circunstância, medir, dar conta e
expressar um problema social tão complexo como a pobreza num único número síntese.
É, em parte, tendo em conta esta dificuldade que nas estatísticas proporcionadas pelo
ICOR se juntou as ideias de privação material e de pessoas entre 0 e 50 anos vivendo
em agregados familiares com baixa intensidade de trabalho (cf. por exemplo, Eurostat,
2012).

III. Competição com os conceitos de senso comum

As consequências da fragilidade desta definição estão relacionadas com a ideia de


que a pobreza é muito mais do que uma categoria analítica. Com efeito, em primeiro
lugar, a simples substituição das noções de senso comum relativas à pobreza, através do
processo de rutura epistemológica, não produz os resultados esperados.
No caso vertente, as noções de senso comum são parte da realidade social e
contribuem para a sua construção, dada a forma como fundamentam as decisões e ações
do atores, quer numa perspetiva individual, quer enquadrados em instituições. As
categorizações do senso comum, pelo menos no que respeita às ciências sociais, são
parte importante da realidade social que se procura compreender (Ogien, 1983: 18 e ss e
Thomas, 1928, cit. Bühler-Niederberger, 2010a:156), pelo que não faz sentido produzir
um processo de rutura que as ignore. Quer dizer, se o senso comum não é o motor das
ciências sociais é boa parte da realidade que se pretende estudar, portanto, a rutura é

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

com uso do senso comum como instrumento de compreensão da realidade, mas ele
existe no trabalho das ciências sociais como objeto.
Isto significa que as medições de pobreza que não contam com a perceção dos
indivíduos estão, à partida, fragilizadas.
Em segundo lugar, a substituição de uma noção de senso comum por uma noção
construída no seio da ciência, sobretudo com fracas bases teóricas, implica que esta
definição “científica” alternativa vá concorrer com as definições do senso comum na
construção da realidade social.
No limite, as noções de cariz científico são apropriadas pelo senso comum e tornam-
se, elas próprias, parte da realidade que se pretende explicar (Capucha, 2005: 66 e
Diogo, 2006). Neste sentido, assumem relevo dois exemplos de grande interesse, por
um lado, a apropriação dos termos da psicanálise, pelos indivíduos, incorporando-os na
sua linguagem do dia-a-dia e nas suas representações sociais, algo que foi estudado por
Moscovici (1976 [1961]), por outro, o processo de produção e reprodução das classes
sociais nas sociedades ocidentais, dado que este processo contou com um amplo
contributo teórico da sociologia, apropriado pelos indivíduos e responsável por boa
parte da configuração concreta das classes sociais e pelo seu devir histórico (Accardo,
1991).
Portanto, pode-se colocar como hipótese que um dos efeitos desta definição oficial
de pobreza é o de contribuir poderosamente, através do mecanismo da categoria oficial
(Diogo, 2007), para rotular como pobres os indivíduos por ela abrangidos contribuindo
para a sua menorização social e esquecendo outros que, por algum motivo, não são
abrangidos mas que passam pelo mesmo tipo de dificuldades. Sobre esta última
possibilidade note-se que, como Eduardo Vitor Rodrigues tem afirmado nas suas
intervenções, os membros das classes médias que viram os seus rendimentos
diminuírem e o seu nível de compromissos manter-se (designadamente créditos vários)
ficam com um rendimento disponível que os pode colocar abaixo do limiar de pobreza,
nas dificuldades do dia-a-dia que sentem, embora, formalmente, estejam acima.

IV. Centramento nos pobres versus centramento nas desigualdades sociais

Finalmente, a opção metodológica pela análise das problemáticas sociológicas da


estratificação social e das desigualdades sociais a partir da ideia de pobreza encerra uma
opção política e limita cientificamente a análise. Este problema não está relacionado

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

especificamente com a definição de pobreza do Eurostat mas com todas as definições


que se possam encontrar deste conceito.
Em relação à limitação científica, a pobreza é uma questão que tende a ser abordada
na perspetiva dos indivíduos: da relação dos indivíduos com as instituições, dos
problemas dos indivíduos, dos efeitos da pobreza nos indivíduos, das características dos
indivíduos… enfim, implica o risco de se aceitar uma visão do mundo em que o
funcionamento da sociedade está focado nos indivíduos que estão abaixo de um certo
patamar num conjunto de escalas sociais relevantes (Paugam, 1991), com destaque para
a questão dos rendimentos e do consumo. Ora, os indivíduos que sofrem da situação de
pobreza são apenas uma parte dos processos societais que os levaram aí e para
compreender a pobreza (e poder atuar sobre ela) não basta cingir-nos aos indivíduos
nessa situação, sendo necessário trabalhar as questões das desigualdades sociais e das
formas extremas de estratificação social. Por outras palavras, uma teoria sobre a origem,
características e efeitos sociais da pobreza não é possível sem o seu enquadramento
numa teoria mais geral de compreensão e explicação da estratificação e das
desigualdades sociais. Centrar a pobreza nos pobres e esquecer ou minorar o papel da
sociedade é algo que é induzido pela própria ideia de pobreza. Só a consciência crítica
dessa limitação pode levar a abordagens que tenham em conta as dimensões societais
desta problemática e, dessa forma, construir um conhecimento sociológico pertinente
sobre a realidade social. A definição oficial de pobreza não contem qualquer reporte a
este enquadramento societal da pobreza, sendo, por isso, limitativa da sua caracterização
e explicação.

V. Opção política

O estudo da pobreza sem ter em conta as dimensões societais acaba, em


consequência, por ser uma opção política, dado que se encerra o problema nos
indivíduos em situação de pobreza não problematizando o papel na produção e
reprodução da pobreza destas dimensões societais, e dos indivíduos e instituições que
lhes dão corpo, desde logo as elites, as classes dominantes e as corporações (conceitos
que se intercetam mas que não se confundem).
Assim, corre-se o risco de poupar a sociedade a uma análise crítica do seu
funcionamento, construindo um objeto de investigação que, muito provavelmente, não
dará boa conta da realidade social. Não se trata de uma fatalidade, mas estamos perante

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

uma inclinação a agir (mobilizando a expressão que Bourdieu criou com outros
propósitos) que se encontra corporizada na definição oficial de pobreza.

Conclusão: O lugar dos novos pobres

O que fazer, portanto com os dados atuais? Podemos confiar neles? A queda do
PIB e o crescimento exponencial do desemprego, concomitantemente com a quebra dos
rendimentos dos portugueses, seja com origem em transferências sociais, seja com
origem nos salários, assim como os aumentos dos impostos, a redução das
transferências sociais e a perceção dos responsáveis de instituições de apoio social, são
os grandes indicadores que nos permitem inferir a existência de grandes transformações
sociais em curso na sociedade portuguesa. Estas transformações vão, inequivocamente,
no sentido do empobrecimento geral e a taxa oficial de risco de pobreza não dá conta
disso. Neste sentido, a resposta à questão de se podemos confiar nos dados atuais é
negativa.
Infelizmente, estes números são os que temos sobre a pobreza em Portugal e o
que nos dizem é que esta continua a ser o que se pode designar como um problema
estrutural (Batista e Perista, 2010), afetando em maior proporção os mais velhos, os
mais novos, os agregados mais numerosos e os mais pequenos, os que estão menos
relacionados com o emprego e os menos escolarizados (Batista e Perista, 2010: 5 e ss,
Capucha, 2005: 113, Diogo, 2012, Rodrigues, 2007: 195 e ss). Esta estruturalidade da
pobreza portuguesa significa que ela é, em boa parte, intergeracional e afeta de forma
persistente no tempo os indivíduos pobres (pobreza tradicional).
O que estes valores não nos permitem perceber é se existem novos pobres. As
transformações societais que temos vindo a atravessar de forma acelerada nos últimos
anos, e os seus efeitos na estrutura de classes, ainda estão por estudar. Contudo, parece
inegável que a crise, nos seus vários componentes, está a levar à pobreza numerosos
indivíduos (e famílias), mesmo os que, pertencendo às classes médias, estavam mais ao
abrigo deste fenómeno.
Enfim, o diagnóstico sobre as debilidades dos dados que nos são fornecidos pela
definição e taxa oficiais de pobreza (IDEF e, sobretudo, ICOR) parece sólido mas as
explicações para as falhas encontradas nesta taxa precisam, claramente, de serem
aprofundadas com estudos mais detalhados sobre o problema, quer intensivos, quer
extensivos. Estes estudos permitiriam perceber mais claramente o que está mal com a

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

taxa de pobreza e, mais relevante, perceber como se caracteriza e como tem evoluído a
pobreza em Portugal. Quer dizer, sem estes estudos não podem ser produzidas políticas
eficientes e eficazes de mitigação dos efeitos da pobreza e de redução do número de
pobres. E sem estes estudos, todas as discussões teóricas sobre a definição da taxa de
pobreza são muito limitadas, porque não estão ancoradas numa realidade em mutação.

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

DA I6TER-RELAÇÃO CE6TRAL / LOCAL 6A AÇÃO PÚBLICA.


Serviços sociais e atendimento integrado: modelos e perspetivas

Cecília Dionísio
CesNova
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
Universidade Nova de Lisboa
cec.dionisio@gmail.com

Resumo

Face a um contexto de mudança social com a tendencial complexificação dos problemas sociais, aliado
por sua vez ao imperativo de racionalização de recursos, as novas politicas públicas enfrentam desafios de
Governação que ultrapassam as teses de pluralismo assistencial, verificando-se uma re-definição das
dinâmicas e dos modelos de intervenção social que implicam responsabilidades partilhadas. Visando
contribuir para uma reflexão alargada sobre de que forma os agentes produtores de ação pública se
rearticulam, nomeadamente na dinamização de respostas inovadoras orientadas para realidades
contemporâneas, apresentamos uma síntese teórica ao nível da conceptualização das políticas públicas
com enfoque nas lógicas de ação dos atores e, a partir de uma sistematização exploratória de diferentes
práticas e modelos de atendimento e acompanhamento social integrado em Portugal, perspetivamos as
linhas gerais de análise dos dispositivos de planeamento, incorporação e aplicação de medidas de políticas
públicas na área da solidariedade e ação social com enfoque na colaboração ativa entre prestadores de
serviços públicos e não públicos.

Palavras-chave: Atendimento Social Integrado, Governação, Parcerias

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

Esferas de Responsabilidade Pública – Os atores / produtores / agentes da ação


pública no domínio social

As atuais perspetivas de política social salientam que a responsabilidade pública


nela implicada, intrincada na sua finalidade e contexto de espaço público, não se caduca
mas antes se enriquece com a tendência englobadora de interação entre vários agentes,
incluindo de origem privada, na sua formulação e no seu planeamento, na sua execução,
na sua avaliação e, tendencialmente, no seu financiamento.
A pespetiva de Interação (Kay, 2006) salienta a política pública como processo
dinâmico, com participantes diversos no ‘jogo’ ao invés da existência de um único
decisor, sendo aqueles muitas das vezes não formais ou reconhecidos como tal, e, por
sua vez, respetivos entendimentos diversos quanto ao problema/situação em presença.
Se em 1956 um dos primeiros sistematizadores no campo da Política Social – Marshall
– descreve a política social como a política desenvolvida pelos governos direcionada
para o bem-estar dos cidadãos, atualmente a ênfase coloca-se ao nível dos resultados e
dos seus domínios de intervenção, salientando-se o cariz holístico que a mesma deve
expressar e reconhecendo-se a sua interpenetração nos contextos económicos globais e
dos sistemas políticos alargados, abrangendo uma ampla diversidade de agentes, sendo
necessário ter em conta os contextos nacionais e locais e as diversas modalidades da
intervenção do Estado, que implicam um número cada vez maior de dispositivos e de
agentes especializados (Balsa, 2006a)
Para Coutinho (2006), a Política Social é uma matriz da qual fazem parte
orientações políticas e económicas, assentes em sistemas sociais e cuja base social de
suporte refere organizações públicas (o sistema público-administrativo) e /ou privadas
(empresas privadas lucrativas e empresas não lucrativas e não privadas), integrando
objectivos e medidas de carácter social, económico, institucional e político que em cada
momento têm impacto sobre o consumo, o investimento, a segurança, a participação, a
liberdade e a dignidade dos povos. As interdependências com as políticas económicas e
fiscais são reconhecidas nas diferentes conceções de política social, sendo que implicam
um jogo de forças e diferentes performances entre a produção e o consumo
individualizado e a equidade.
Estas perspetivas salientam, precisamente, que a diversidade de campos de
intervenção torna não só necessária como premente a responsabilização de todos os
atores sociais, de diferentes setores e enquadramentos societais, no espaço público.

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Nesta senda, pode assim considerar-se que as políticas públicas são políticas que
abrangem todos os domínios da vida, interligadas com as funções do Estado.
Para Peter Townsend (1975) todas as sociedades têm políticas sociais, mesmo
que não estejam formuladas numa forma integrada, e têm serviços sociais, numa
concepção mais alargada, partindo da perceção das necessidades e dos problemas
sociais, numa lógica de destaque para a intervenção social associada a “problema”,
numa escala mais prática, tendência por sua vez assumida nos paradigmas da gestão
pública associada ao conceito de ‘problema público’.
Fernanda Rodrigues (1999) refere-se a uma orientação de análise da
política social com base numa perspectiva empírica, nomeadamente pelos problemas a
que se dirige, pelos grupos sociais-alvo, pelo tipo de bens e serviços proporcionados,
mas também pelos setores, tipo de administração e instituições em que se organiza,
pelas finalidades específicas que financia, pelos direitos e garantias que assegura.
Já Marshall também referia que a política social, concretizada através de
serviços ou rendimentos, incluía a segurança social, a assistência, entre outras áreas
como a habitação, educação, combate ao crime, saúde, etc., inovando neste âmbito a
questão da diversidade do seu campo de atuação societário.
Podemos então considerar que a amplitude do campo de intervenção da política
social pública torna necessária a responsabilização dos agentes sociais num todo e torna
pertinente a sua interação, numa lógica de acessibilidade cívica, de plasticidade na
adaptação à realidade contemporânea e de eficiência e eficácia estratégica num contexto
de limitação de recursos no bem-estar público, por um lado, e de uma sociedade em
rede, por outro.
O processo indutor de inovação social assente na parceria dos diferentes atores
tem assim um efeito contagiante nas práticas de intervenção e ação social pública em
serviços sociais tendencialmente integrados, tornando pertinente analisar em que
medida os mesmos se inserem nos modelos de Governação Pública estratégica.

6ovos paradigmas de Governação na intervenção multi-escala – a inovação pela


integração territorial multisetorial

Assente na premissa da multidimensionalidade dos problemas sociais, subsiste a


defesa das políticas sociais públicas tendencialmente globais e multisectoriais, por sua

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vez pressupondo uma intervenção holística traduzida em abordagens de integração e


partilha, nas quais a metodologia do Atendimento Social integrado se insere.
Com efeito, numa Sociedade em Rede, caraterizada por economias mistas na
proteção social/”mixed economies of social care”, por definição do Conselho da Europa,
a integração das políticas e práticas implicam parcerias de partilha de responsabilidades
por multi-agentes territorializadas mas igualmente de forma multinível/multiescala, a
um plano nacional e local.
Surgem aqui os desafios no âmbito da Nova Gestão Pública (New Public
Management) e da Governação, nomeadamente na articulação dos agentes produtores e
executores das políticas, de diferentes enquadramentos institucionais e de diferentes
níveis da Administração Pública, nomeadamente Central e Local. Estes desafios, por
sua vez, tendem a originar em termos de macroestrutura a proliferação de parcerias e
formas de prestação de serviços públicos baseadas em sistemas de rede que superam a
hierarquização de estruturas (Rocha, 2011), acompanhando uma tendencial alteração
estrutural das formas de poder as quais se baseiam mais em formas complexas,
horizontais e negociadas que em formas meramente verticais, hierárquicas e autoritárias
(Ramonet, 1998).
É neste âmbito que se pode associar em termos de Analise de Políticas Públicas
o Modelo de Governação assente no governo como ?etwork (Mintzberg, 1995) e a
Teoria da Governação Multinível, referente ao plano Europeu, onde se inserem as redes
de Política (“Policy Networks “) enquanto estruturas híbridas integradas de governação
política com capacidade para misturar diferentes combinações de burocracia, mercado,
comunidade ou associação corporativa, resultando de lógicas interpretativas da
interação entre os setores públicos e privados (Falkner, 2000). Esta abordagem surge
com o objectivo de analisar as dinâmicas sectoriais que têm surgido em resposta à
dispersão de recursos e capacidades para a ação política entre atores públicos e
privados, contudo não está isenta de se constituir também como uma tentativa de
conciliação dos valores de serviço público tradicionais com os valores provenientes das
novas abordagens de organização e gestão das organizações públicas (Pitschas, 2007).
Em Portugal a reforma da Administração Pública e os novos métodos de gestão
estratégica e operacional que introduzem, entre outros itens, o benchmarking na
avaliação dos impatos das políticas e nele incluindo o desempenho dos recursos
humanos, têm vindo a contribuir para a adoção de linguagens comuns que por sua vez
podem vir a constituir-se como elementos fundamentais que concorrem para uma

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

verdadeira integração e transversalidade dos vários níveis de governação, os quais não


se podem impor aos agentes de sociedade civil mas que preconizam um esforço comum
para a superação da dispersão, de fragmentação e da sobreposição de serviços, de
respostas e de recursos. Estes são desafios que podem influenciar a mudança na própria
identidade das organizações e, nestas, dos seus colaboradores, tendo em conta os fins a
prosseguir e assim a própria produção do serviço e, concomitantemente, o resultado da
política.
Por sua vez, também os cidadãos têm um papel a desempenhar para que o
espaço público não seja esvaziado de verdadeiras questões publicas /public issues, na
senda de Bauman, assumindo-se a partilha de responsabilidades um requisito para a
autonomia, numa lógica de emancipação, das sociedades e para a autonomia individual
‘de facto’, precedida pelo exercício de cidadania: “There are no autonomous individuals
without an autonomous society, and the autonomy of society requires deliberate and
perpetually deliberated self-constitution, something that may be only a shared
accomplishment of its members.” (Bauman, 2000: 40).
Torna-se assim necessário equacionar vários níveis de análise no que concerne a
formulação e operacionalização de um serviço enquanto medida de política pública, que
possam abranger a natureza normativa, estatutária e técnica englobando nesta as
próprias identidades profissionais e o papel dos cidadãos. Daí aprofundarmos a pesquisa
nos seguintes: político-normativo; sócio-organizacional; técnico-interventivo e cívico-
participativo.5
Na verdade, a perspetiva de Integração de serviços (conforme preconizada pela
Integrated Care ?etwork, 2004) pressupõe, mais que a convergência, a coincidência na
missão, na cultura, na gestão, nomeadamente de objetivos de estrutura decisória, nos
orçamentos e mesmo nas estruturas físicas e nos modelos de registos.
No plano Europeu, o conceito de serviços sociais integrados articula-se com o
conceito de Serviços Sociais de Interesse Geral na União Europeia (COM (2006) 1777),
nos quais inserem os serviços de apoio pessoal e de cuidados na área social/Proteção, de
Saúde e Emprego. Visam melhorar o acesso aos direitos, atenuar a exclusão dos grupos
mais vulneráveis e contribuir para o fortalecimento da coesão social.

5
Níveis de investigação operacionalizados em quatro eixos de análise: definição da política; produção do
serviço; relação dos técnicos com o serviço; relação dos técnicos com o público.

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

Segundo Brian Munday (2007), a integração supera a noção de parceria, mesmo


que entendida enquanto trabalho conjunto e de rede, propondo quatro níveis
cumulativos de intervenção integrada:

Figura 1. 6íveis de intervenção integrada

Integração

Coordenação

Cooperação
Colaboração

Fonte: Adaptado de Munday, 2007

A partir de uma análise comparativa sobre as práticas de serviços integrados na


Europa, Munday constata situações de integração num plano vertical e horizontal,
elencando-as ao nível dos territórios, ao nível dos decisores e das estruturas de
coordenação e ao nível dos profissionais (multidisciplinariedade –
interdisciplinariedade), podendo verificar-se em processos macro ou micro.
Também Antunes e Moreira, a partir de um levantamento com base em 24
estudos sobre experiências de serviços integrados (em especial de proteção social e
saúde) em 16 países, identificam vários níveis de integração:

Figura 2. 6íveis de integração de Serviços


Integração de serviços ao nível ministerial ou de governo / administração pública
Integração setorial de serviços
Agencias multiserviços com estruturas físicas comuns
INTEGRAÇÃO

Parceria de serviços
Cooperação de serviços
Multidisciplinariedade dos profissionais
Cooperação reativa, ad-hoc, limitada
Separação /Fragmentação
Fonte: Adaptado de Antunes e Moreira, 2011

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A metodologia de serviço do Atendimento Integrado, encarada enquanto


Intervenção de serviços de forma planeada e sustentada com base em redes formais,
implica um conjunto de abordagens e de métodos de coordenação com o objetivo de
melhorar os resultados produzidos face ao público e traduz um esforço de adaptação das
instituições à mudança social, valorizando as parcerias, a acessibilidade cívica e a
rentabilização de recursos.

Práticas e modelos de atendimento e acompanhamento social integrado em


Portugal

Compreender, num sentido extensivo, as lógicas de definição e de articulação


das diferentes orientações e estratégias das políticas sociais, pressupõe, como vimos, a
caracterização dos próprios mecanismos de comunicação, de apropriação técnica e de
consolidação das várias medidas de política, incluindo uma caraterização aprofundada
quanto à heterogeneidade organizacional e ao respetivo enquadramento dos
profissionais dos diferentes setores de intervenção, abrangendo a forma de
operacionalização e o circuito organizacional do percurso aplicativo dessas medidas por
parte dos diversos agentes com ação pública territorializada, nomeadamente organismos
do Poder Central, do Poder Local e da Sociedade Civil6.
Propomo-nos a desenvolver vários níveis analíticos tendo como base empírica os
serviços de atendimento de ação social local organizados de acordo com a metodologia
de “Atendimento Integrado”. As experiências em curso nalguns territórios de Portugal
consubstanciam-se em serviços de Atendimento de Ação Social tendencialmente
uniformes, desenvolvidos por técnicos de intervenção social com diferentes
enquadramentos organizacionais (Administração Pública Central – APC; Administração
Pública Local – APL e Organizações do Terceiro Setor – OTS), preconizam diferentes
modelos de intervenção e, por sua vez, corporizando instrumentos e modalidades
próprias de ação pública, nas formas e nos lugares das práticas e suscitando novos
desafios de governação das políticas públicas de transformação de paradigmas.
As práticas de Atendimento Integrado em Portugal tiveram o seu início a partir
de dinâmicas Europeias com enfoque territorial, nomeadamente no âmbito dos
Programas de Luta Contra a Pobreza. Em termos sistemáticos, a base geral do modelo

6
Análise desenvolvida na Tese de Doutoramento “Esferas de Responsabilidade Pública”, sob orientação
do Professor Doutor Casimiro Marques Balsa, FCSH/UNL, presentemente em curso.

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

foi implementada como resultado de uma experiência-piloto desenvolvida no âmbito do


Programa Comunitário (EQUAL), resultante de uma parceria alargada entre organismos
da Administração Pública Central, Local, Instituições de Solidariedade e um Centro de
Estudo (CESIS), naquela que foi considerada uma experiência-piloto formal cujos
resultados seriam passíveis de disseminação e que foi, inclusivamente, considerada
como ‘boa-prática’ de desenvolvimento social local na avaliação da implementação do
3.º Plano Nacional de Ação para a Inclusão Português.
Presentemente, estão a ser aplicadas em dinâmicas territoriais de base concelhia,
com diferentes modelos quer técnicos quer de coordenação.
Em termos globais, os seus princípios assentam numa abordagem holística que
supere a fragmentação das políticas, das respostas, das necessidades do indivíduo.
A metodologia preconiza, pois, um modelo sistémico de intervenção
plurisetorial (Ação Social/Proteção; Emprego; Saúde (Serviço Social de Saúde -
Centros de Saúde)); pluriorganizacional (Organizações da Administração Pública
Central, Local, Instituições de Solidariedade e Centro de Estudos/Academia);
multidisciplinar (Técnicos de Serviço Social / Psicólogos /Educadores, outros
profissionais); e, em termos operativos, a utilização de instrumentos de registo comuns,
construídos em parceria; a formalização através de Protocolo /Reconhecimento Público;
a intervenção através de um Gestor de Caso/’Case manager’ identificado por problema
dominante, com partilha de escalas e espaços de atendimento. Não obstante, as práticas
revelam diferentes formas e entendimentos de atuação integrada.
Assim, neste âmbito, tomamos como objeto de análise as experiências de serviço
social integrado em alguns territórios de Portugal.
A partir da sistematização de 18 experiências7, e com base em 10 dimensões de
8
análise , foi possível delinear de forma exploratória diferentes modelos de
implementação de serviços de atendimento integrado em Portugal.
Considerando que a estabilização dos mesmos depende de um conjunto de
técnicas de aprofundamento de pesquisa que abrangem entrevistas semi-estruturadas a
decisores políticos, gestores e técnicos envolvidos, de entre outras em curso,
apresentamos as principais linhas diferenciadoras que vão sendo identificadas e que

7
Parcerias de Atendimento e Acompanhamento Social Integrado em Portugal entre 2005 e 2012. A
análise teve por base a recolha de evidências documentais, complementada por observação direta.
8
Sendo estas: Tipologia territorial; Tipologia de agentes; Estrutura; Enquadramento comunitário; Serviço
Prestado e Apoios; Suportes de Registo; Espaço físico; Formalização da parceria; Formalização de
procedimentos; Imagem e Comunicação.

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permitem iniciar a construção, a validar, de cada um. Trata-se, assim, de primeiramente


identificar contrastes, induzidos num processo operatório de polarização (Gurvitch), que
se vão complexificando e intrincando e dos quais optamos por selecionar os seguintes:

Quadro 1. Modelos de Atendimento Integrado em Portugal – pólos diferenciados


Integração (-) Integração ( +)
Parceria não reconhecida Parceria formalizada
Iniciativa de organismos/instituições Iniciativa enquadrada em parcerias amplas (Conselho
Local de Ação Social, outras)
Unidade territorial limitada Várias unidades territoriais
Agentes semelhantes Diversos Agentes (APC; APL, OTS)
Estrutura decisória de nível técnico Estrutura decisória ao nível de Conselho de Parceiros
Sem planeamento Planeamento conjunto
Recursos Humanos: isolados e a tempo Recursos Humanos: a tempo inteiro, em equipas
parcial multidisciplinares
Serviço de Ação Social Serviços e Apoios de Ação Social e Rendimento Social
de Inserção Social, apoios pecuniários de vários
agentes e programas
Vários espaços de atendimento Partilha de espaços de atendimento
Sem manual de procedimentos e/ou Com manual de procedimentos e/ou regulamento
regulamento próprio próprio
Vários suportes de registo de informação Sistema de informação partilhado

Verifica-se que a metodologia inerente ao Atendimento Integrado, através de


parcerias de intervenção no âmbito do Atendimento e Acompanhamento Social (AAS),
tem vindo a ser implementada de acordo com dinâmicas diferenciadas mas
demonstrando no global a valorização, nomeadamente em grande parte por iniciativa
dos Municípios, ao trabalho em parceria com vista a uma resposta mais eficaz e
eficiente às solicitações da população em situação de vulnerabilidade social através do
AAS. Por outro lado, em alguns destes territórios, mesmo sendo consensuais as
vantagens do trabalho em parceria no AAS, alguns agentes revelam resistências em
realizar Atendimentos de acordo com procedimentos e suportes de registo comuns e/ou
ainda sem que sejam definidos os contributos em termos de recursos e apoios que cada
agente pode efetivamente disponibilizar, nomeadamente tendo em conta competências
definidas ou orçamentos afetos.

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

Relativamente ao produto da análise per si dos Serviços de Atendimento


Integrado, podemos concluir a tendencial existência de um esforço na articulação inter-
-setorial para um serviço integrado, mas com lacunas numa efetiva integração
multisetorial e multidisciplinar. Por outro lado, a tendência de uniformização de
procedimentos e critérios, importantes para uma global gestão de fluxos de informação
e principalmente de criação de fontes de dados intensivas e verdadeiramente indicativas
da realidade social, passíveis de contribuir para o aprofundamento dos diagnósticos e
para a formulação de novas políticas públicas, tem-se afigurado como elemento de
resistência. Todavia, esta poderá também incorrer de algum modo numa limitação em
termos de adaptação, inovação e proximidade face à realidade de intervenção,
constrangimentos estes que importa também identificar.
Subsistem, ainda, os velhos problemas de desfasamento entre serviços públicos,
respostas sociais, programas públicos/estatais, iniciativas comunitárias e respetivas
profissionalidades, travadas pelas competências e atribuições formais que se assumem e
nas responsabilidades e desafios de mudança que se pretendem ou não assumir,
complexidade esta que por sua vez emerge transversalmente na sistematização de
modelos e a qual deve ser tida em consideração.
Por fim, denote-se que esta análise servirá de base de enquadramento à questão
da interação dos atores, interessando-nos todavia mais o processo de implementação da
política que a avaliação dos seus resultados, pelo que os modelos servem de suporte a
uma compreensão que se pretende dinâmica e alargada e que neles não se esgotam.

6otas Conclusivas: O Atendimento Integrado enquanto objeto de análise dos


dispositivos de planeamento, incorporação e aplicação de medidas de políticas
públicas em parceria na área da solidariedade e ação social

Na análise de políticas públicas é reconhecido que sistemas sociais complexos


implicam a consideração da interação entre os atores e a questão da distribuição de
poderes, tratando-se de perspetivar aquelas enquanto reveladoras da essência da ação
pública (Knoepfel et al, 2006).
O enfoque na multiplicidade de atores que influenciam as políticas públicas é
destacado nas teorias procedimentais de implementação e agenda/agenda setting
(Howlett and Ramesh, 2003; Cefait, 2001), ou mesmo face ao modelo clássico de
política pública desenhado por Easton em 1965.

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

Os processos inerentes às políticas públicas serão, pois, resultado de um


conjunto de gramáticas de ação e interação, contextualizadas em práticas e expetativas,
com modalidades próprias de interpretação e legitimação, ancoradas em desafios e
incertezas mas por sua vez também influentes na mudança.

Policy is not about the promulgation of formal statements but the processes of
negotiation and influence; indeed, much policy work is only distantly connected to
authorized statements about goals: it is concerned with relating the activities of different
bodies to one another, with stabilizing practice and expectations across organizations,
and with responding to challenge, contest and uncertainty (Kay, 2006: 102).

Se a importância dos atores na análise das políticas públicas é refletida por um


largo espetro de abordagens, podendo ir desde uma dimensão normativa, de teoria de
escolha racional, a uma abordagem de caráter mais cognitivo que abrange as políticas
públicas com construção de uma relação com o mundo, produto de crenças coletivas dos
atores envolvidos (públicos e privados) face à forma como são colocados os problemas
públicos e são concebidas as respostas adaptadas a essa perceção dos problemas
(Bongrand e Laborier, 2005), impõe-se uma decisão metodológica compreensiva, que
não só construtivista ainda que incrustada na teoria e na prática.
Conforme referido, a análise dos circuitos de implementação, bem como das
profissionalidades, dos circuitos de produção, incorporação e apropriação técnica e da
aplicação e reprodução da política implica um plano de investigação exaustivo, com
recurso a várias técnicas e fontes de dados. Por sua vez, pressupõe a construção de um
modelo de análise extensivo e integrado, tal como o objeto de estudo, nomeadamente
um sistema de análise transacional que abranja os valores culturais, as crenças sociais,
as atitudes pessoais, os sistemas ecológicos, as instituições sociais e a tecnologia -
implicados na teoria, na ideologia e nos contextos das políticas, estratégias e práticas
das políticas (Hayden, 2006). Ainda, na senda de Dubois (1999) e da sua proposta de
utilização da política no guichet enquanto objeto de estudo da identidade e dos papéis
sociais, da regulação de tensões e da produção de consentimento de uso e transformação
das instituições, nomeadamente pelos profissionais e utilizadores do serviço no guichet,
importa sistematizar quadros de análise com trajetórias, posições sociais e lógicas de
dominação a partir de interpretações empíricas e teóricas a enquadrar nos processos de
interação social (Goffman) e da sociologia dos regimes de ação (Thévenot e Boltansky,

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2006). Por sua vez, pode operacionalizar-se numa análise de ‘framing’/’analyse des
cadres, através da qual não se procuram propriamente representações mentais mas antes
procedimentos de organização, de experiência e de atividade indexadas sobre
gramáticas da vida pública e da ação coletiva (Cefait, 2001), mas também passível de
ser superada pela comunicação entre lógicas de ação distintas (Balsa, 2010).
Crê-se corroborar assim, ainda, a pertinência do objeto de análise numa reflexão
dinâmica de investigação-ação que possa contribuir para uma mudança de paradigma de
intervenção de social, em especial permitindo incidir na forma como os vários níveis se
articulam bem como aferir o impacto do papel das organizações e dos profissionais de
diferentes sectores, enquadramentos e níveis territoriais face aos diversos
posicionamentos dos públicos-alvo dos serviços.

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DESE6VOLVIME6TO ECO6ÔMICO, DESIGUALDADES E


I6JUSTIÇAS SOCIOESPACIAIS EM CAMPOS DOS
GOYTACAZES.
O papel das políticas públicas urbanas.

Teresa de Jesus Peixoto Faria


Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
teresapf@uenf.br

Raquel Callegario Zacchi


Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense
raquelcallegario@yahoo.com.br

Natália Guimarães Mothé


Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
nataliamothe@gmail.com

Resumo

Campos dos Goytacazes, cidade média no norte do Estado do Rio de Janeiro, apresenta os mesmos
problemas sociais e urbanos das grandes metrópoles – segregação, fragmentação e desigualdades e
injustiças socioespaciais, cujo exemplo mais eloquente é a presença de favelas e de condomínios
residenciais fechados. Desde a perspectiva de instalação, no vizinho município de São João da Barra, do
Complexo Industrial e Portuário do Açu, trazendo uma nova promessa de desenvolvimento para a região,
a cidade vivencia um processo de expansão que se caracteriza pela ocupação de espaços periurbanos,
como a área da Estrada do Contorno. Desde os anos 1990, esta área vem recebendo a instalação de novos
empreendimentos públicos e privados, transformando seus usos e representações e reforçando o processo
de fragmentação espacial e social. Porém, a favela Margem da Linha permanece literalmente à margem
dos investimentos públicos e não usufrui dos benefícios aportados pelos empreendimentos privados.
Neste artigo, analisamos o desenvolvimento da cidade e a política urbana municipal, com relação ao
quadro descrito, observando as ações do poder público e sua vontade política, ou não, de dirimir ou de, ao
menos, reduzir as desigualdades e injustiças socioespaciais já existentes e as geradas por esses novos
investimentos.

Palavras-chave: Política Urbana, Complexo Portuário do Açu, Campos dos Goytacazes

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

Introdução

O Município de Campos dos Goytacazes 9 e região 10 tiveram como principal


atividade econômica, desde o período colonial, a criação de gado e mais tarde a
monocultura da cana de açúcar e a transformação industrial desse produto (açúcar e
álcool). Atualmente, a economia da região está mais diversificada e além da indústria
sucro-alcooleira, existe a criação de gado, cultura do café, de frutas, pequenas
indústrias. Porém, a mais importante atividade é a produção de petróleo e gás, aportando
aos municípios que integram a ‘Bacia de Campos’ a qual produz mais de 80% do
petróleo do Brasil, altas rendas em royalties e participação especial. Os municípios de
Campos dos Goytacazes, São João da Barra, Quissamã, Carapebús e Macaé,
concentram a maior parte destas rendas petrolíferas.
O perfil econômico da região está mudando, mais uma vez, com os grandes
investimentos que começaram a ser projetados e implantados, desde 2007, na região, os
(GPIs) Grandes Projetos de Investimento: i) plantio de eucaliptos da Aracruz celulose,
ii) produção de etanol, iii) o Complexo Logístico e Industrial do Porto do Açu, e iv)
complexo Barra do Furado (Cruz, 2009).
Esses grandes investimentos provocam intervenções, cujos impactos
econômicos, sociais, territoriais e ambientais, já começaram a se apresentar, porém a
amplitude e alcance de seus efeitos, sejam eles positivos ou negativos, são
incontroláveis e imprevisíveis.
Dos GPIs citados, vamos nos ater ao Complexo Logístico Industrial e Portuário
do Açu (CLIPA), ou Superporto do Açu ou apenas Porto do Açu, um empreendimento
logístico da empresa LLX Logística S.A., através de suas subsidiárias, LLX Porto do
Açu Ltda. (LLX Açu) e LLX Minas-Rio Logística Ltda. (LLX Minas Rio). Faz parte de
um projeto maior do grupo EBX, controlado pelo empresário Eike Batista.
Desde a perspectiva, anunciada em 2006, de sua instalação, no visinho
município de São João da Barra, o Porto do Açu transformou-se em uma promessa de

9
Situado no norte do Estado do Rio de Janeiro, possui, segundo os dados do Censo-IBGE de 2010,
população total de 448.995 habitantes, sendo que 45.008 na zona rural e 418.725 habitantes na zona
urbana.
10
Chamamos região de Campos dos Goytacazes, os atuais municípios vizinhos que, no período colonial,
faziam parte da antiga Capitania de São Tomé, e que após um processo de desmembramento e de
autonomia municipal, iniciado ainda no século XIX, hoje integram as regiões Norte e Noroeste
fluminense, que até 1987, constituíam uma única região, a Região Norte Fluminense. Neste artigo
tratamos particularmente dos Municípios de Campos dos Goytacazes, São João da Barra e Macaé situados
na atual região Norte Fluminense que segundo Ribeiro (2010) possui em torno de 700.000 habitantes.

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desenvolvimento para a região, envolvendo grandes investimentos públicos e privados.


Ademais, as cidades estudadas recebem altas rendas petrolíferas (royalties e
participação especial), já que são grandes produtoras de petróleo, o qual, à época de sua
descoberta, igualmente representou e ainda representa um fator de desenvolvimento
para a região, cuja atividade sucroalcooleira estava em pleno declínio.
Neste artigo discutimos os primeiros impactos socioespaciais advindos das
intervenções e investimentos que vem sendo realizados na região, desde que esta passou
a receber altas receitas petrolíferas e o projeto para implantação do Complexo Portuário
do Açu. Também analisamos a política urbana da cidade de Campos dos Goytacazes,
observando as ações do poder público municipal, e sua vontade política, ou não, de
dirimir ou de, ao menos, reduzir as desigualdades e injustiças socioespaciais.
O estudo é o resultado de nossas observações e questionamentos a propósito da
expansão da cidade e dos processos socioespaciais que dela decorrem. Cujo exemplo
mais eloquente são as transformações recentes e rápidas que vem ocorrendo nas
adjacências da Estrada do Contorno (Avenida doutor Silvio Bastos Tavares). Esta área
situava-se em zona rural e “abandonada” por longo tempo, considerada periférica e
desvalorizada principalmente pela presença da favela Margem da Linha que ali se
encontra desde a década de 1960 (Póvoa, 2002; Pohlmann, 2008). Além disso, grande
parte da região é definida no Plano Diretor de 200811, como Zona de Expansão Urbana.
A pesquisa, que ainda está em curso, se desenvolve a partir da observação direta
no terreno de estudo, aplicação de questionários, entrevistas e também de pesquisa
histórico documental (planos e leis urbanísticas, os projetos das políticas públicas
urbanas e programas sócias), de leitura de trabalhos científicos, matérias de jornais, sites
na internet, referentes à problemática estudada.
Desde os anos 1990, essas áreas adjacentes à Estrada do Contorno vem
assistindo a instalação de novos empreendimentos públicos e privados que tem mudado
radicalmente seus usos, morfologia urbana e social, e representações. São
concessionárias de automóveis, hipermercado, hotel, shopping center, além de
condomínios residenciais fechados (verticais e horizontais) que reforçam o processo de
segregação e fragmentação espacial e social.

11
Plano Diretor democrático e participativo, conforme definido no estado da cidade...

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

Paralelamente, observam-se medidas por parte do poder público através de


dotação de infraestrutura urbana e mudança de legislação, para atrair novos
investimentos.
Partimos do pressuposto que esses investimentos e intervenções foram
embalados pela promessa de desenvolvimento trazida primeiramente pela indústria
petrolífera e atualmente pela instalação do porto do Açu e que estão sendo alimentados
pelo mercado imobiliário com impulso e apoio do poder público.12
Porém, a favela Margem da Linha permanece literalmente à margem dos
investimentos públicos e não usufrui dos benefícios aportados pelos empreendimentos
privados. Essa iniquidade na distribuição dos recursos urbanos, onde só os grupos
privilegiados se beneficiam, reforçando as desigualdades socioespaciais pode ser
considerada como injusta.
Por outro lado, o governo municipal vem desenvolvendo ações passíveis de
resolver os problemas sociais e urbanos: os programas Morar Feliz (habitação popular)
e Bairro Legal (infraestrutura para bairros carentes).
Pensamos que a noção de justiça espacial pode ser um marco conceitual crítico
para pensar a cidade, e analisar a desigualdade entre os territórios, assim como o papel
Estado, seu discurso e ação, na redução ou amplificação das desigualdades
socioespaciais, contribuindo para a compreensão da problemática que motiva o presente
estudo.
Os estudos de Entrena (2003), Vale e Gerardi (2005), Souza (2007) e Spósito
(2010) embasaram as nossas reflexões e contribuíram para a nossa compreensão de
como se configura o processo de expansão urbana de Campos que como observamos,
ocorre sobre a zona rural adjacente à cidade.
As noções de empreendedorismo urbano (Harvey, 2005) e de cidade-mercadoria
(Vainer, 2009) serviram referência teórica orientando as nossas reflexões e respostas à
indagação se os investimentos tanto do poder público como da iniciativa privada são
motivados pela lógica da produtividade e da competitividade urbana.
Se seguirmos as reflexões de Vale e Gerardi (2005), podemos considerar que o
crescimento urbano de Campos dos Goytacazes se apresenta como difuso.
Considerando que o entorno da cidade é ainda ocupado por várias propriedades rurais,

12
A expansão urbana recente de Campos dos Goytacazes, a partir do processo de conversão de terras
rurais em urbanas e mudanças de uso do solo promovida pelos proprietários fundiários com o apoio do
Estado foi analisada por Zacchi (2012), através do estudo das terras da antiga Usina do Queimado e do
PDUC de 1979.

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

essa urbanização que se espraia avançando sobre as áreas que num passado recente
foram de uso agrícola, sem que haja vínculo dos novos habitantes com esse tipo de
atividade, pode tornar tênue a separação entre a cidade e o campo.
A faixa de transição entre cidade e campo, nas quais se misturam atividades
urbanas e agrícolas, que competem pelo uso do mesmo solo, é concebida pela maioria
dos autores que estudam os espaços periurbanos, como espaços plurifuncionais, que
estão submetidos a grandes e rápidas transformações, cujo dinamismo está, em grande
medida, marcado pela cidade (Estrena, 2003; Vale e Gerardi, 2005; Souza; 2007).
As terminologias para esses espaços de transição variam entre os pesquisadores.
Espaço periurbano é um termo mais utilizado pelos franceses e será a denominação
adotada neste trabalho. Todavia, existem outras denominações como: franja rural-
urbana ou “rurbana” (Freyre, 1968), sombra urbana, subúrbio, ex-urbano, região urbana
e semi-urbano (Vale e Gerardi, 2005). Periurbano será a designação adotada no presente
artigo.
Caldeira (2000) observa que concomitantemente à expansão e consolidação da
ocupação de áreas periféricas por populações pobres, a partir da década de 1980, ocorre
a intensificação de outros processos socioespaciais urbanos. De um lado, a consolidação
da ocupação do solo urbano das periferias pelos “enclaves fortificados”, os quais têm
como versão residencial os condomínios fechados e, de outro, a verticalização das áreas
centrais. Concluímos que essa é a atual configuração territorial predominante, nas mais
importantes cidades brasileiras cujos espaços se apresentam fragmentados, segregados e
marcados por profundas desigualdades socioespaciais.
Soja (2010) afirma que a diferenciação espacial gera uma discriminação
territorial, explicitando a oposição entre espaços privilegiados e espaços estigmatizados,
cujos efeitos, não podem ser explicados ou reduzidos apenas ao conceito de segregação.
A partir dessa constatação, Soja (2010) alerta que é crucial, tanto na teoria quanto na
prática, dar ênfase à espacialidade da justiça e das injustiças, não apenas na cidade, mas
em todas as escalas geográficas, da local a global. Para isso, propõe a adoção do termo
específico justiça espacial.
Justiça espacial se tornaria, então, um conceito e um princípio de ordenamento que
permite entender as situações reais (expressas no território) caracterizadas pela injustiça
social. O filósofo John Rawls apesar das críticas que sofreu é uma das principais
referências para os estudos teóricos sobre justiça social. Sobretudo no sentido de justiça
como equidade. Assim, concordamos com Gervais-Lambony, Dufaux e Musset (2010)

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

que propõem tratar o problema da justiça como conceito adaptado aos estudos que
analisam as desigualdades sociais no meio urbano.

Processo de urbanização de Campos: a construção do “centro” como o lugar


simbólica e materialmente privilegiado

O espaço urbano da cidade de Campos dos Goytacazes, embora se verifique a


existência do processo de fragmentação espacial, caracterizado pela presença nas áreas
periféricas de shopping centers, condomínios residenciais horizontais fechados, ainda é
fortemente marcado pelo modelo dual centro-periferia, onde as áreas centrais,
caracterizadas por um processo desenfreado de verticalização (concentração de
condomínios residenciais e comerciais verticais fechados), são dotadas de todos os
recursos e serviços urbanos, habitadas por uma classe privilegiada e qualificadas como
“nobres”.
Mesmo com a presença de condomínios horizontais de luxo, as áreas periféricas
são preponderantemente caracterizadas pela presença de favelas, loteamentos
irregulares, são carentes de recursos urbanos e habitadas, majoritariamente, pelas
classes pobres e, portanto estigmatizadas. Essa configuração é o resultado de uma
construção social e política ao longo da história. Desde a fundação da cidade, em fins do
século XVII, o seu núcleo original, ou seja, o lugar onde se localiza a Igreja Matriz, a
Casa de Câmara e Cadeia e o Pelourinho e a Praça Principal13 .
As sucessivas intervenções no espaço urbano, por parte do poder público,
sempre priorizando a área central e adjacências, construíram a sua posição e
representações de área privilegiada e hierarquizada com relação às outras áreas da
cidade (Faria, 1998).
A partir do século XIX, com a chegada do capitalismo urbano industrial e com a
implantação do projeto republicano de integração e de modernização do país, a partir de
reformas urbanas e sanitárias e de dotação de infraestrutura para operacionalizar o
funcionamento do complexo agro-exportador, Campos dos Goytacazes vai ser palco de
inúmeras intervenções urbanas. Assiste-se a instalação de meio de transporte
(companhias de navegação, canais de drenagem e navegação, estradas de ferro, em
1872, construção de pontes), instalação de luz elétrica (1883), de esgoto e água corrente

13
Como era chamada a atual Praça São Salvador até meados do século XIX.

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

(1887), reformas do espaço urbano e renovação/modernização das construções


(demolições de prédios considerados “velhos” ou insalubres), alargamento e
pavimentação de ruas sugeridos no Plano de Brito “O saneamento de Campos”, (1902)
e realizadas, em parte, em 1916, na administração do médico Luiz Sobral, além das
inúmeras e sucessivas reformas na Praça São Salvador, chamada nos primórdios da
cidade de Praça Principal.
Paralelamente, inicia-se o processo de exclusão dos pobres das áreas centrais da
cidade, pois as práticas sanitaristas, ao caracterizar a população pobre e seu lugar de
moradia como responsáveis pela transmissão das doenças e pela insalubridade dos
centros urbanos, justificou-se a expulsão desta população perigosa das áreas centrais das
cidades. Estas deveriam, doravante, serem ocupadas pelas elites urbanas (políticos,
industriais, comerciantes, profissionais liberais e intelectuais) em ascensão. O único
caminho deixado para a população pobre foi o das periferias, sem infraestrutura.
O Plano Urbanístico concebido pela empresa Coimbra Bueno, em 1944, no
governo municipal de Salo Brand, que projetou e orientou a expansão da cidade,
consolidou a importância da área central e adjacências, e suas representações de área
privilegiada e hierarquizada definindo-a como o “centro histórico”.
Todas essas ações acabam por configurar e ratificar definitivamente essa área
central, ou seja o núcleo original, como o “centro da cidade”, ou seja, o espaço urbano
por excelência que concentra os serviços urbanos, os negócios, os equipamentos
culturais, gerando a criação das primeiras contradições no espaço urbano e a oposição
centro-periferia.
Nas primeiras décadas do século XX, as principais áreas privilegiadas eram o
centro e as ruas adjacentes, como rua do Ouvidor, rua Aquidaban, Alberto Torres, rua
Treze de Maio, rua Formosa, rua do Barão da Lagoa Dourada, Barão de Miracema. Nos
arrabaldes situavam-se as antigas chácaras – moradias privilegiadas, misto de habitação
rural e urbana.
Os primeiros bairros periféricos começam a surgir, após 1930, tais como Turfe
Clube, Saco e Matadouro, caracterizados por uma ocupação de classes pobres ou menos
abastadas. A área do antigo 6º Distrito de Guarús é um exemplo emblemático de área
periférica e estigmatizada. Separada da cidade pelo rio Paraíba do Sul, apesar da
primeira ponte buscando integrá-la à margem direita ter sido construída, em 1873, esta
só foi incluída no perímetro urbano em 1946.

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

Concomitantemente, as áreas contíguas ao centro vão se consolidando como


bairro das camadas mais alta renda, Alzira Vargas e seu entorno, Beneficência
Portuguesa e arredores e Alto do Liceu.
A partir da separação dos usos do solo urbano, também definida pelo Plano
Urbanístico de 1944, dotando algumas áreas da cidade com infra-estrutura e serviços,
aumenta ainda mais o processo de diferenciação dos espaços. As áreas beneficiadas
passam a ter mais valor, passando a serem ocupadas por indivíduos de mais alta renda.

O processo de expansão urbana em direção às áreas periféricas e periurbanas

Importa lembrar que a principal atividade econômica do Município de Campos


dos Goytacazes, fora, desde meados do século XVIII, a agroindústria canavieira. Essa
atividade teve seu auge entre a segunda metade do século XIX e meados do século XX.
Porém na década de 1980 deu-se início a sua decadência. O município que contava com
mais de 20 usinas, hoje só possui duas em funcionamento, a Canabrava (2011)
produzindo etanol e a Coagro (Cooperativa de produtores de cana, criada em 2000).
Essa atividade econômica eminentemente agrícola configurou os espaços do
município da seguinte maneira: uma zona urbana, onde se instalaram a cidade (distrito
sede) as funções urbanas, circundada de uma zona rural dedicada, em sua maior parte, à
monocultura da cana de açúcar e instalação dos engenhos e usinas para a transformação
industrial desse produto.
Assim, sua expansão urbana ocorreu e ocorre sobre antigas chácaras localizadas
nos interstícios da zona urbana e a partir da ocupação de antigas propriedades rurais.
Essas áreas são expropriadas (por falta de pagamento de impostos, por exemplo) ou
liberadas e colocadas à disposição do mercado imobiliário aos poucos, segundo os
interesses dos proprietários fundiários (Zacchi, 2012).
Com a inserção de leis trabalhistas no campo (fim do regime de colonato) e
erradicação das plantações de café (municípios da região noroeste fluminense), houve
um grande movimento de migrantes destas áreas (principalmente em direção à Campos)
que passaram a ocupar as áreas periféricas ainda não urbanizadas ou de fato rejeitadas
para expansão da cidade por serem inundáveis (margens de rios, brejos e lagoas) ou por
se localizarem à beira de rodovias e ferrovias, constituindo as primeiras favelas e
loteamentos “ilegais” (Póvoa, 2002).

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

A partir da década de 1980, com o declínio do setor agrícola na região, terras de


cultivo de cana-de-açúcar tornam-se “ociosas” favorecendo a expansão urbana em
direção às antigas propriedades rurais localizadas mais próximas ao perímetro urbano
através do parcelamento do solo, na forma de loteamentos originando novos “bairros”14
ou de grandes empreendimentos imobiliários, entre eles os condomínios residenciais
horizontais fechados.
Desta forma, o sentido de periurbano adotado para analisar a estruturação da
expansão urbana de Campos dos Goytacazes sobre áreas rurais, refere-se a grandes
áreas não parceladas para fins urbanos, localizadas muito próximas à centralidade
urbana em termos de fluxos, equipamentos e serviços, com a presença de importantes
vias de acesso a elas. Estas áreas são classificadas, juridicamente, como rurais, ou seja,
nelas incide o tributo ITR (Imposto Territorial Rural), porém as mesmas têm servido
como espaço periurbano de “reserva” para o mercado fundiário e imobiliário local, na
qual tem se configurado um eixo valorizado de crescimento urbano de Campos (Zacchi,
2012).
Após 1960, a aceleração do processo de urbanização e industrialização, atraindo
para a cidade a população do campo, além de outros fatores econômicos e sociais que
precisam ser mais bem estudados, contribui com o surgimento das primeiras favelas.
Estas foram alternativas para a moradia para os indivíduos pobres. O descaso do poder
público com esse fenômeno fez crescer o número de ocupação irregular na cidade, às
margens das vias férreas e lagoas.
Por outro lado, este mesmo processo de urbanização favoreceu a expansão da
cidade em direção a novas áreas, antes menos privilegiadas, porém valorizadas pela
proximidade ao centro, pela dotação de infra-estrutura ou pela presença de algum
elemento de centralidade: Praça da Bandeira, Parque Tamandaré. Note-se que a cidade
dos ricos está bem delimitada/apartada pela Estrada de Ferro Leopoldina, Passeio
Público, e rua do Ouvidor e rio Paraíba do Sul. Tendo, na Lapa, seu bairro Operário.
Para além destes limites estão os bairros das camadas menos abastadas que vão se
consolidando na década de 1970. Além, disso, este é o período de maior investimento
na habitação nas áreas periféricas: Damas Hortis, Condomínio Guadalajara (“Pombal”),
Parque Nova Brasília.

14
É interessante notar que o processo ocorre através de loteamentos legais e ilegais, cujos nomes passam
a ser identificados como bairros. Exemplo Parque Alphaville, Parque da Palmeiras, Jardim Flamboyant,
Novo Joquei.

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

A partir de 1980, assiste-se a consolidação do modelo de expansão urbana


orientada do centro em direção à periferia com tendência à fragmentação coadunando-se
com o modelo discutido por Caldeira (2000), o qual nós observamos ser ocorrente na
maioria das cidades brasileiras.
Porém, em Campos, este processo foi incentivado e abalizado pelo poder público
com a aprovação do PDUC (Plano de Desenvolvimento Físico-Territorial Urbano de
Campos)15, em 1979, na gestão do arquiteto e então prefeito de Campos, Raul David
Linhares Correa. O PDUC definiu, baseado no Plano de 1944, uma proposta de
racionalização da expansão urbana de Campos, normatizando e direcionando o
crescimento urbano de Campos dos Goytacazes (RJ).
O PDUC faz parte do Programa de Cidades de Porte Médio do Estado do Rio de
Janeiro, financiado pelo FNDU (Fundo Nacional de Desenvolvimento Urbano). Esses
programas se inserem no processo de “modernização tecnocrática” difundida pelos
diversos setores do regime militar, após o Golpe de 1964, baseada na elaboração de
planos urbanísticos e diretrizes técnicas para regular as condutas na ocupação do espaço
das cidades brasileiras.
Campos começa a passar, assim, por um processo de verticalização das áreas
centrais, mais valorizadas (Pirovani e Faria, 2011), e a construção de condomínios
horizontais em áreas periféricas (Carvalho, 2003; Zacchi 2012) próximas aos bairros
comumente habitados por camadas populares, dando um outro caráter à segregação
existente e iniciando a fragmentação socioespacial – com a proximidade espacial entre
ricos e pobres e aprofundamento, entretanto, a distância social (Carvalho, 2003).
Paralelamente, vemos que a lógica do mercado imobiliário e das intervenções
urbanas favorece a manutenção de grandes vazios urbanos a favor da especulação, como
galpões, glebas, áreas industriais desativadas nas áreas mais periféricas. Na área central,
estes vazios têm aumentado em consequência de um processo contínuo de demolição de
antigos casarios, afetando prédios de interesse histórico.
Após o ano 2000, esse processo de verticalização das áreas centrais e de
construção de condomínios horizontais fechados nas áreas periféricas se acentuou. Ao
mesmo tempo, o processo de favelização se intensifica demonstrado pelo aumento do
número de habitantes em favelas (Pessanha, 2004)

15
O PDUC se materializou em quatro principais anteprojetos de leis: Lei dos Perímetros Urbanos, Lei de
Zoneamento e Uso do Solo, Lei de Parcelamento do Solo e o Código de Obras, além da própria Lei que
institui o PDUC. Estas, ao serem aprovadas, conferem ao Executivo Municipal orientação técnica e
respaldo legal ao exercício do poder de “polícia urbanística” (PDUC, 1979: 02).

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

O Plano Diretor de 2008, Democrático e Participativo, cujo objetivo era de


construir uma cidade para todos, se por um lado definiu algumas áreas de interesse de
preservação ambiental, Cultural e Áreas de Especial Interesse Social (AEIS), ampliou o
perímetro urbano, definindo áreas prioritárias de expansão urbana e flexibilizou as leis
de zoneamento e uso do solo, favorecendo determinadas áreas para receber altos
investimentos, em detrimento de outras. O que pode provocar o aprofundamento do
processo de segregação no modelo centro periferia e de fragmentação, ampliando as
desigualdades e injustiças socioespaciais.

A promessa de desenvolvimento e a ocupação das áreas adjacentes a estrada do


Contorno (Avenida Dr. Silvio Bastos Tavares)

A descoberta e exploração de petróleo na região – o ouro negro – trouxeram


promessa de desenvolvimento e emprego, atraindo um grande número de migrantes,
principalmente em Macaé, onde todo o parque industrial e administrativo foi instalado,
certamente pela sua condição histórica de ter sido o porto natural da região (a enseada
de Imbitiba). Macaé se transforma no novo “el dourado”, deixando Campos à margem
do processo de industrialização, porém se apresenta como importante fornecedora e de
mão de obra especializada e adquire posição fundamental por abrigar funções
comerciais e de serviços.
Em Macaé, o que se observa é que a maioria dos funcionários da Petrobras e das
outras empresas ligadas às atividades petrolíferas, vem de exterior e de outras regiões, já
que os serviços exigem, preferencialmente, mão de obra qualificada, não beneficiando
os macaenses ou aqueles que se instalaram na cidade atraídos pela promessa de
emprego e desenvolvimento Isso agrava a situação urbana e social: um processo
acelerado de urbanização acompanhado de degradação do meio ambiente e conflitos
sociais (Tougeiro e Faria 2011).
Com a construção do Porto do Açu, na cidade de São da Barra, anunciada em
2006, vemos repetir o mesmo discurso de desenvolvimento e processo ocorrido em
Macaé. A maioria dos funcionários do porto vem do exterior ou de outras regiões do
Brasil (mesmo para as atividades menos qualificadas). Ademais, as obras para a

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

instalação do porto tem provocado degradação do meio ambiente e sérios problemas e


conflitos socioespaciais que ainda não foram completamente estudados16.
Porém, desta vez, a cidade de Campos, por diversos fatores favoráveis, tem se
beneficiado mais diretamente: pela proximidade com São João da Barra, por ser, até o
momento, o único acesso para o referido porto, por possuir, ao contrário da pequena
cidade de São João da Barra, toda infraestrutura urbana e de serviços de educação
básica e superior, de cultura, lazer, de habitação, de comércio.
Com os altos valores de royalties e participação especial recebidos do petróleo17,
esperava-se uma melhor e justa distribuição dos recursos urbanos. Porém os estudos de
Terra (2007) demonstraram que os grupos favorecidos são os de alto status econômico e
as áreas beneficiadas pelos investimentos continuam sendo as áreas centrais, que
historicamente sempre foram o principal alvo das reformas urbanas realizadas em
Campos.
Por outro lado, com a instalação do porto do Açu, há um processo de expansão
em direção às áreas periféricas e periurbanas, ainda desprovidas de recursos urbanos,
portanto baratas e “propícias” à implantação de novos tipos de empreendimentos
imobiliários residenciais e comerciais.
Os empreendimentos residenciais são os condomínios horizontais fechados, que
após serem dotados de todos os serviços urbanos exclusivos pelo setor privado, além de
segurança, lazer, tornam-se caros apenas acessíveis às camadas de alta renda.
Os empreendimentos comerciais são os hiper-mercados, concessionárias de
grandes marcas de veículos, sobretudo importados, hotéis pertencentes a grandes redes
internacionais, shopping center, que também já são construídos com toda infraestrutura
de que necessitam. O acesso e infraestrura básica são garantidos pelos investimentos
públicos.

16
Essas questões são sempre abordadas pelos jornais da cidade como por exemplo Folha da Manhã de
(23/02/2013, p. 09), além de Blogs de jornalistas e pesquisadores reconhecidos. Os problemas ambientais
foram detectados através de pesquisas do Laboratório de Ciências Ambientais da Universidade Estadual
do Norte Fluminense e divulgadas também pela imprensa local (Folha da Manhã 23/02/2013, p. 09)
17
O jornal Folha da Manhã (14/02/2013, p. 09) informa que Campos recebeu R$ 188 milhões em
participação especial da Agência Nacional do Petróleo (ANP), referente ao quarto semestre de 2012;
informa também que em janeiro de 2013 recebeu R$ 53.978.175,38 de royalties, somando
242.700.269,20 de recursos do petróleo em 2013. Segundo informou o secretário de Governo, Suledil
Bernardino de Freitas em entrevista em 13/03/2013, sobre a discussão a redistribuição dos royalties,
Campos recebe, entre participação especial e royalties, uma média de R$ 100 milhões/mês.
http://www.ururau.com.br/cidades28766_Secret%C3%A1rio-de-Governo-lista-perdas-de-Campos-sem-
os-royalties consulta em 15/03/2013.

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

Caracterização da Área de Estudo: áreas adjacentes à Estrada do Contorno


(Avenida Sílvio Bastos Tavares)

Até recentemente, a área adjacente à Estrada do Contorno (Avenida Sílvio


Bastos Tavares), antiga área rural, era caracterizada como espacialmente distante do
centro da cidade, periférica, tendo ausência de instalações urbanas básicas. A qual,
segundo as discussões aqui apresentadas, pode ser identificada como periurbana.
Na década de 1960, ocorreu a instalação de pessoas nas margens da linha
ferroviária da RFFSA Campos-Rio de Janeiro, devido à proximidade com os locais de
trabalho: a Usina do Queimado e Usina Cupim (Pohlmann, 2008) 18.
Atualmente, a área em tela vem recebendo a instalação de empreendimentos e
serviços voltados para diferentes grupos sociais nos quais não incluem a população da
favela Margem da Linha. Os novos empreendimentos recentemente construídos são
apontados por Mothé (2011): Terminal Rodoviário Shopping Estrada (1995),
Condomínio Vertical Recanto das Palmeiras (1995), Condomínio Horizontal Sonho
Dourado (2000), Concessionárias Honda (2005), Condomínio horizontal Nashville
(2007), Hipermercado Super Bom (2007), Condomínio horizontal Athenas Residence
Park (2008), Walmart (2008), Loja de venda ao atacado Atacadão Saara (2008), Makro
(2008); Condomínio Horizontal Fechado da Torre (2009), INTER TV Planície (2009), e
Fiat (2010), o empreendimento mobiliário Fit Vivai (Condomínio Residencial Vertical);
Boulevard Shopping Campos (2011)19.
Definida no atual Plano Diretor (2008) predominantemente como uma Zona de
Expansão Urbana, buscou-se delimitar a área a ser estudada, se baseando na linha
imaginária que demarca o Limite do Perímetro Urbano da Cidade de Campos dos
Goytacazes20, através da Lei nº. 7.973, de 10 de dezembro de 2007, que delimita os
Perímetros Urbanos da cidade.

18
Além dos dados de Pohlmann, durante as saídas de campo, vários moradores relataram o mesmo
motivo que levou ao surgimento da Favela Margem da Linha.
19
Desde abril de 2010, o Jornal O Globo fazia menção ao novo empreendimento que seria instalado na
cidade de Campos dos Goytacazes (Shopping Boulevard Campos - pertencente ao grupo Alliansce, uma
das maiores redes de shoppings centers e empreendimentos do Brasil). Sua inauguração foi realizada no
dia 26 de abril de 2011.
20
Esta delimitação se inicia no encontro do Canal Campos – Macaé com o Canal de Tócos. Segue uma
linha reta até encontrar a BR-101 num ponto que dista 1600m Sudoeste do ponto de encontro desta
Rodovia com o eixo da Avenida Sílvio Bastos Tavares (estrada do contorno). Segue uma linha reta até o
encontro com a paralela do traçado alternativo projetado da BR 101. Deflexiona a direita, seguindo uma
linha reta até o encontro com a paralela da Linha Férrea que acompanha no mesmo sentido a BR 101 e,
deflexiona em sentido sudoeste em direção ao ponto inicial.

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

É importante notar que inicialmente os empreendimentos construídos no local


abrangiam classes mais diversificadas, proporcionando a heterogeneidade dos espaços e
a possibilidade de troca de experiências. No entanto, nos últimos cinco anos, este
ambiente, que ainda era multifacetado, tem se transformado. Percebe-se que os novos
empreendimentos que estão sendo instalados no local, buscam um público mais
segmentado, com características homogêneas e que buscam o status social.
Os exemplos são os condomínios fechados horizontais (Sonho Dourado,
Condomínio Fechado da Torre, Nashville e Athenas Residence Park), em que a entrada
é restrita, tendo o visitante que se identificar na guarita e aguardar para a permissão de
entrada no local. Já no condomínio vertical Recanto das Palmeiras, não há impedimento
dos vigias ao acesso do visitante.
Exemplos concretos desta segmentação de mercado no local é a instalação de
dois empreendimentos ligados a grandes corporações do país que são: o Fit Vivai e o
Boulevard Shopping Campos. O primeiro foi incorporado pela construtora TENDA
S/A, em outubro de 2008 21 , e o segundo, pertencente ao grupo Aliansce Shopping
Center. Como é possível notar no site do shopping22, a área em que o empreendimento
está instalado é apresentada como de expansão urbana. Nota-se também, que será
integrado ao shopping o renomado hotel Tulip Inn. Esses dados comprovam ainda mais
a segmentação de mercado em que está sujeito o local.
Além do Tulip Inn, outro hotel também será instalado na área de estudo, o
Supreme. Este hotel/apart-hotel possui bandeira internacional, e será construído na
Estrada do Contorno, ao lado do condomínio vertical Recanto das Palmeiras. 23.
Como pode ser observado, os dois empreendimentos acima citados, representam
mais uma ação das grandes empresas em áreas que mostram potencial mercadológico.
Na área que era vista no passado como apenas periférica, agora se encontram instalados
os empreendimentos privados mais importantes neste momento para a cidade de
Campos dos Goytacazes.
Vale ressaltar, que a maioria desses empreendimentos se localiza nas
proximidades da favela Margem da Linha (alguns são praticamente vizinhos). No
entanto, não se nota nenhuma referência à presença da favela nas reportagens, ou

21
Dados retirados de propagandas impressas do empreendimento.
22
Página do site impressa em Anexos.
23
Reportagem no site Folha On Line do jornal Folha da Manhã, http://fmanha.com.br. Consulta
12/08/2011.

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

alguma obra que venha favorecer a população já instalada no local, o que demonstra a
inexistência de interesse em integrar a população mais carente já instalada no local.
Além disso, a população da Margem da Linha não oferece “risco” aos moradores
e comerciantes recentemente instalados no local. Segundo moradores e comerciantes
estabelecidos na região, a população da favela em não oferece “ameaça alguma, até por
que o tráfico de drogas não é tão representativo no local”. Assim, para as pessoas que
vivem ou possuem serviços na área, a favela é “bem tranqüila, justamente por seus
moradores não circularem constantemente pelos empreendimentos”24.
A partir do que foi apresentado até o momento, é possível levantar a discussão
de estar surgindo sintomas de determinados fenômenos nesta área o “emuralhamento da
vida social” e, logo, o crescimento de “ilhas utópicas” conforme definidos por Paulo
César da Costa Gomes, em seu livro A Condição Urbana (2006). Essas “ilhas”
representam uma parte do universo urbano; o que é necessário e o que é de bom grado
aos olhos de seus moradores; mas a realidade externa, o contraste social, e a
problemática urbana, não se encontra presente nesses espaços exclusivos.
Enquanto isso, observamos a ausência na favela dos novos programas urbanos
implementados pela Prefeitura Municipal de Campos dos Goytacazes: o programa
habitacional “Morar Feliz”25 e o programa de urbanização “Bairro Legal”26.
A população da Margem da Linha ainda não foi assistida por nenhum dos
referidos programas, ao passo que a vizinha localidade Tapera foi contemplada com dois
conjuntos habitacionais do Morar Feliz e o núcleo urbano Ururaí pelo “Bairro Legal”.
Esses programas não têm resolvido completamente os problemas sociais e
urbanos porém favorecem a urbanização difusa e fragmentada e aquecem o setores de
construção civil.
O Bairro Legal apresenta-se como um programa interessante, pois se propõe a
redistribuir e estender os recursos urbanos aos bairros periféricos e carentes dos serviços

24
Essas expressões foram usadas pelos próprios comerciantes durante as investigações realizadas nas
saídas de campo.
25
Este programa foi lançado no final de 2010 pela prefeita Rosinha Garotinho e tem como principal
objetivo garantir moradia digna para a população pobre e periférica da cidade de Campos dos Goytacazes,
com promessa de serem construídas 10.000 casas populares. Segundo a Secretaria de Obras e Urbanismo,
foram entregues 5.100 casas na primeira etapa. Reeleita para o quadriênio 2013-2016, a prefeita já
anunciou a construção das casas restantes.
26
É um programa que tem por objetivo promover melhorias na infraestrutura e na acessibilidade. Os
bairros recebem sistema de drenagem e coleta de esgoto sanitário (construção de nova base e sub-base de
tratamento), nova iluminação, construção de passeios públicos e tratamento paisagístico. As obras visam
conter os alagamentos das áreas e garantir saneamento básico e a retificação e pavimentação de todas as
ruas do bairro.

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

de infraestrutura: saneamento básico, iluminação e pavimentação das vias de circulação.


Porém existem problemas como lentidão e qualidade das obras que apresentam
problemas na pavimentação, vazamento de esgotos e de água, gerando conflitos da
população com o poder público.
O Morar Feliz provoca muitas vezes a remoção forçada dos habitantes de certos
assentamentos com a justificativa de estarem em área de rico. Além disso, os conjunto
habitacionais são localizados em áreas periféricas e periurbanas com infraestrutura
precária, longe de amenidades ambientais, dos serviços e principalmente do emprego,
não rompendo com a configuração dual centro-periferia e consolidando a segregação e
fragmentação socioespacial.

O Complexo Logístico e Industrial do Porto do Açu: AXU versus Açu

Essa situação privilegiada – altos valores de royalties 27 e instalação do GPI


Complexo Logístico e Portuário do Açu, ou “Superporto do Açu” ou simplesmente
Porto do Açu, que é anunciado como “o maior empreendimento do interior do Estado
do Rio de Janeiro” – aportando promessa de desenvolvimento – aguçou o interesse da
municipalidade de Campos em auferir benefícios com a instalação do Superporto.
Durante as obras para sua instalação, haverá possibilidades de oferta de serviços de
engenharia e construção pesada, além de máquinas e equipamentos variados. Ainda
nesta fase de construção, o contingente de trabalhadores demandará instalação de
comércio e serviços no entorno do empreendimento e na cidade (Ribeiro, 2011b).
Evidentemente, a demanda por moradia também aumentará, incrementando a
construção civil, o mercado imobiliário e o setor hoteleiro.
Porém, o empreendimento se situa no visinho município de São João da Barra,
mais precisamente no 5º distrito, na localidade de Barra do Açu que deu nome ao
complexo logístico e industrial. O município de São João da Barra foi fundado, em
1676 quando o povoado foi elevado à categoria de vila. Mais tarde, em 1814, foi criado
o município de Macaé (antiga aldeia indígena). A cidade de São João da Barra foi criada
com o objetivo de ser o porto da região (navegação de cabotagem) e juntamente com
Campos, também criada, em1676, e com Macaé formavam uma importante tríade na

27
Campos recebeu no início de fevereiro de 2013 R$ 188 milhões em participação especial da Agência
Nacional do Petróleo (ANP), referente ao quarto semestre de 2012. Macaé recebeu ontem da ANP, R$
14.384.364,60 de Participação Especial; Quissamã, R$ 4.117.389,18; e São João da Barra, R$
33.366.490,67. Estes municípios são também integrantes da Bacia de Campos.

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distribuição de produtos da região para o Rio de Janeiro de onde seguiam para o


exterior, evidentemente, controlados por Portugal (Faria: 1998: 158).
Atualmente o Município de São João da Barra possui 32.767 habitantes28 e se
prepara para receber o futuro prometido pelo Porto do Açu: aprovou Plano de Diretor
(Lei Municipal Nº. 50/2006) e atualmente discute sua atualização, realiza obras de
infraestrutura na cidade e nos distritos29. A vila Barra do Açu, ou apenas Açu, onde o
porto está sendo instalado, é um dos núcleos urbanos do 5º distrito, localizada no litoral,
vive da pesca e de veraneio. Foi construída uma via asfaltada de acesso ao porto, a partir
da BR 316. Porém o acesso à vila permanece sem pavimentação. A mesma não sofreu
nenhum grande investimento direto advindo do empreendimento. Mas por ser o núcleo
urbano mais próximo, poderá sofrer adensamento, pois ficará limitada em seus espaços,
na pequena faixa de terra que lhe sobrou para ocupar entre o mar e três lagoas, a do
Salgado, a do Açu e a Lagoa do Veiga.
O Distrito Industrial do Complexo tem área prevista de 90 km² “maior que a ilha
de Manhattan”, segundo apresentação no próprio site da LLX. O Projeto do porto prevê
também um corredor logístico, um novo núcleo urbano a “Cidade X”, na localidade de
Cajueiro.
Os inúmeros empreendimentos realizados tanto no Município de São João da
Barra como de Campos são motivados pelas rendas petrolíferas e pela instalação do
Complexo do Porto do Açu. Porém os problemas também são inúmeros, sobretudo para
São João da Barra.
As atividades recém chegadas e impostas à população do 5º Distrito de São João
da Barra apresentam um teor tecnológico e de inovação incompatível com as atividades
desenvolvidas localmente, o que pode ser um impedimento para a inserção e
participação da comunidade. Sem contar com o impacto sobre a história, a memória nas
práticas culturais e sociais locais e regionais.
Os problemas ambientais que, evidentemente, tem rebatimento na realidade
social e nas atividades econômicas de base, já começaram a se manifestar: salinização
da água na região do 5º Distrito e risco de desertificação.
Os conflitos sociais provocados principalmente pela remoção forçada dos
pequenos proprietários para instalação do distrito Industrial, violando tanto o art. 6º da

28
Dados do censo do IBGE de 2010. A população urbana é de 25.715 habitantes e a rural é de 7.052
habitantes. O município possui 455,04 km².
29
Folha da Manhã 17/02/2013, p.1 do caderno “Folha Região”.

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

Constituição – que prevê o direito à moradia, que ora é negado pelos processos de
desapropriação em curso – como a Constituição do estado do Rio de Janeiro, com
destaque para o seu artigo 265. Por outro lado há um processo de construção e
participação dos movimentos sociais de resistência, frente aos problemas causados pela
implantação do Porto do Açu, congregando diversas entidades estudantis, profissionais,
religiosas e sindicatos ligados às lutas dos trabalhadores como também pesquisadores
das Instituições de Ensino Superior da região (Conceição e Quinto Jr., 2012).
A competitividade entre os municípios de Campos e São João da Barra se
manifesta nas formas de indução dos governos de investimentos privados decorrentes da
instalação do porto do Açu. A questão dos limites entre os dois municípios é um caso
sui generis: há um pedido da parte da Prefeitura Municipal de Campos dos Goytacazes
em análise no IBGE sobre estes limites. A Alerj (Assembléia Legislativa do Rio de
Janeiro) já tratou deste tema, mas sem os investimentos do Açu, a matéria vem sendo
adiada, mas, tudo leva a crer que o assunto possa voltar à baila de uma forma muito
mais forte num futuro não muito distante.

Considerações finais

Os grandes empreendimentos e investimentos como o Superporto do Açu


provocam efeitos múltiplos sobre a organização do território em diversas escalas. É
dessa forma que assistimos, por exemplo, a construção de novas vias de circulação, a
exemplo do corredor logístico mudando a configuração do espaço regional, e a
implantação dos empreendimentos imobiliários em Campos dos Goytacazes.
As formas de planificação do território impostas por esse processo de
desenvolvimento de novas atividades econômicas e industriais geralmente produzem
uma expansão e urbanização caracterizadas por fenômenos notadamente marcados por
desigualdades socioespaciais que podem ser consideradas como injustas.
A gestão do território diante do porte desta nova organização que está sendo
induzida pelo empreendimento do Açu é complexa e exige, principalmente uma ação
integrada, pois envolve vários municípios e o próprio Estado do Rio de Janeiro,
impondo assim uma governança que tenha o diálogo, a interlocução permanente e a
participação da sociedade, sobretudo das comunidades diretamente afetadas, como
instrumento planejamento e de (re)formulação de políticas públicas e sociais que visem
a abolição ou pelo menos a redução das injustiças socioespaciais.

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

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DIFUSÃO I6TER6ACIO6AL E MODELAGEM DE POLÍTICAS


PÚBLICAS PARA REDUÇÃO DA POBREZA:
reflexões sobre políticas sociais brasileiras30

Samira Kauchakje
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
skauchakje@gmail.com

Resumo

A relação entre as políticas públicas sociais para redução da pobreza e as prescrições de organizações
internacionais como ONU, FMI e Banco Mundial sobre o tema podem explicar as semelhanças de tais
políticas públicas em países que têm diversidades econômicas e culturais significativas. Quer dizer, a
formulação dessas políticas pode estar articulada a fatores do ambiente político e econômico doméstico,
mas, também, ao incentivo institucional e padrão cultural internacional, conforme discussão da literatura
sobre modelagem internacional e as Theories of Policy Diffusion. Este artigo objetiva apresentar
resultados da pesquisa em andamento que investiga políticas sociais para a redução da pobreza dos
governos Cardoso, Lula e Dilma sob a perspectiva destas correntes teóricas. A metodologia está na fase
exploratória e da organização quantitativa dos dados selecionados em sítios do Banco Mundial, do FMI e
da ONU. Na discussão relaciono os dados aos momentos marcantes do sistema de proteção social
brasileiro entre os anos 1995 a 2012. Os resultados sugerem que nos governo Cardoso, Lula e Dilma
predominou a denominada modelagem “positiva” (isomorfismo) tanto pela aderência das políticas
nacionais às diretivas internacionais sobre focalização na população de baixa renda, quanto pelo fato das
políticas brasileiras de transferência monetária serem recentemente consideradas modelo pela
comunidade política internacional. No segundo governo Lula e no governo Dilma há, por um lado, a
modelagem negativa (isto é, políticas que tendo como referência as noções difundidas são formatadas de
modo oposto) identificada na articulação entre políticas de crescimento econômico e o aumento ou a
manutenção dos valores dos gastos públicos sociais. Isto contraria recomendações das instituições
financeiras internacionais que prescrevem austeridade com redução da política pública social. Por outro
lado, permanece a modelagem positiva devido à centralidade que os governos vêm atribuindo às políticas
que priorizam pessoas de baixa renda combinando-as com uma fragilização de políticas universais, ao
invés do fortalecimento da articulação entre priorização e universalidade.

Palavras-chave: política pública social, pobreza, difusão de políticas.

30
Esta pesquisa é financiada pelo CNPq. Uma versão preliminar deste artigo foi publicada nos anais do
VIII Congresso da ABCP- 2012.

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

I. Introdução

As relações entre as políticas públicas sociais voltadas para a redução da pobreza


e as indicações sobre o tema divulgadas por organizações internacionais como ONU,
FMI e Banco Mundial, por exemplo, podem explicar as semelhanças de tais políticas
públicas que se espalham por países, mesmo entre aqueles que têm diversidades
econômicas e culturais. Poderia haver adesão de governantes e pessoal do Estado a um
padrão cultural e institucional difundido entre blocos de países e, também, pelo
incentivo de organizações internacionais como as Nações Unidas, Banco Mundial e
FMI, entre outras. Quer dizer, as modificações e na política social se devem a fatores do
ambiente político e econômico doméstico, mas, também, ao incentivo das instituições e
ao padrão cultural internacional, conforme discutido pela perspectiva teórica para
análise de políticas públicas denominada de modelagem internacional (Skocpol &
Amenta, 1986), assim como, pelas Theories of Policy Diffusion (Weyland, 2004; 2005).
A literatura recente sobre modelagem e também sobre transplante de políticas
públicas cita como referência a atuação recente de entidades internacionais como o FMI
e o Banco Mundial,

principalmente através do que ficou conhecido por Consenso de Washington. De acordo


com a orientação de tais entidades, países em busca de crescimento econômico e
(posteriormente) da redução das desigualdades deveriam reformar suas políticas
macroeconômicas e suas instituições segundo um modelo padrão usado em países
desenvolvidos (Pessali, 2010: 3).

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 representa uma inflexão no campo dos


direitos e políticas sociais, sendo que os governos Cardoso, Lula e Dilma formularam
expressivas políticas públicas para redução da pobreza como, por exemplo, Bolsa
Escola no caso do primeiro e Bolsa Família para os governos petistas31. Estas políticas
públicas se diferenciam das promovidas pelos governos Sarney, Collor e Itamar porque
para estes a política de redução da pobreza estava subordinada a políticas e reformas
econômicas, enquanto que nos governos escolhidos, a despeito das diferenças entre
Cardoso e os subsequentes, a redução da pobreza passa a ser uma política social de
caráter redistributivista e articulada com a política econômica. Dados de institutos

31
O Programa Bolsa Família é parte de políticas “guarda-chuva” abrangentes como Fome Zero e,
também, Brasil sem Miséria.

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oficiais como IPEA32 e de artigos de Fagnani (2011) e Neri (2011) apontam o impacto
positivo destas políticas sobre a redução da desigualdade e, especialmente, da pobreza.
Estou de acordo com a concepção de impacto positivo ao se levar em consideração a
série histórica, particularmente entre os anos 1960 e 2000, que imprimiu a posição
brasileira entre os países mais desiguais do mundo e com um número grande de
população com baixa renda (aspectos que nos anos 2000 melhoraram, mas, não se
reverteu). Posição esta que não estava calcada no tamanho da economia brasileira, mas
sim, em fatores ligados ao predatório padrão de apropriação da riqueza social e de
usufruto privilegiado dos recursos e serviços públicos por parte da elite econômica
brasileira com a anuência do Estado pautado pela ausência ou frágil política social
redistributivista e pela política econômica e fiscal sem palpáveis critérios de justiça
social entendida como promotora de condições de acesso à população, de forma
universal, à riqueza cultural e material da sociedade.
Parto da observação que as políticas de redução da pobreza no Brasil tanto
absorveram quanto geraram concepções difundidas na comunidade internacional. Tal
incorporação de concepções sobre pobreza, cobertura e fontes de financiamento ocorre
seja por uma imposição vertical das Instituições Financeiras internacionais, seja devido
ao contágio horizontal entre países e especialistas governamentais (Weyland, 2004,
2005).
O objetivo deste artigo é apresentar resultados preliminares da pesquisa sobre
políticas públicas sociais para a redução da pobreza dos governos Cardoso, Lula e
Dilma, sob a perspectiva das Theories of Policy Diffusion e da modelagem
internacional, ou seja, apresentar a primeira rodada da revisão da bibliografia e da
exploração de dados quantitativos. A hipótese é que as correntes teóricas em foco
contribuem para compreender estas políticas públicas.
O texto está dividido em dois itens principais: o primeiro aborda a revisão da
bibliografia até o momento e o segundo apresenta o teste preliminar de conhecimento
dos documentos acessíveis nos sites das organizações internacionais selecionadas -
Nações Unidas, Banco Mundial e FMI e a discussão destes resultados.

32
Dados sobre o impacto positivo das políticas sociais podem ser encontrados no documento “A década
inclusiva” disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/comunicado/120925_comunicado0155.pdf

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II – Políticas Públicas e Modelagem Institucional Internacional

O conjunto da política pública social nos séculos XIX e XX, juntamente com o
keynesianismo, foi responsável pela construção da ordem social que configura um
padrão intervencionista do Estado capitalista na proteção social. Estudos como de
Rezende (2008) e Draibe (2003) demonstram que as modificações neste padrão, após os
anos 1980 até início de 2000, significaram menos declínio e mais adaptação. Rezende
(2008: 36) ratifica que “os Estados continuam a exibir fortes padrões de intervenção nas
políticas sociais.” Inclusive para o caso do Brasil, os “gastos sociais representam grande
porção dos gastos governamentais, e [...] observa-se expressiva expansão das políticas
sociais”. Draibe (2003) afirmou serem raros os casos em que as mudanças provocaram
mudanças exteriores aos próprios modelos de Estado de Bem Estar Social aos quais se
referia Esping-Andersen (1991) – liberal, conservador e socialdemocrata – e que podem
ser agrupados em bismarckiano e beveridgeano, Hammoud (2008) concorda ao
constatar que em cada país modificações ocorreram de acordo com os constrangimentos
institucionais próprios a cada modelo historicamente vigente.
Estas constatações estão em sintonia com a linha analítica institucionalista –
como discutido em Perissinoto (2004); March, Olsen (2008) e Souza (2006) –, assim
como com o incrementalismo que salientam a noção de path dependency, isto é, a
importância da trajetória histórica e arranjos institucionais no âmbito da política pública
para a delimitação das possibilidades no presente e encaminhamentos futuros de
alteração a partir do contexto da chamada crise econômica e dos programas de
austeridades propostos nos anos recentes.
Para o caso brasileiro, o padrão institucional configurado como conservador-
meritocrático sofreu uma inflexão significativa. Neste modelo conservador há a
vinculação entre emprego e o acesso aos benefícios, sendo que a premissa é “que as
pessoas devem estar em condições de resolver suas próprias necessidades, com base em
seu trabalho (...). A política social intervém apenas parcialmente, completando e
corrigindo as ações alocativas do mercado...” (DRAIBE, 1993b: 7). As alterações no
padrão ocorreram sob dois direcionamentos em tensão: o da CF88 com princípios
redistributivista, universalista e de prestações sociais público-estatais (Draibe, 1993a,
Arretche, 2000) e o dos princípios liberais voltados para diminuir a carga de
financiamento e de provisão social do Estado, assim como, estabelecer critérios seja de
priorizações (seletividade), seja de focalização nos grupos empobrecidos ou em

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

miserabilidade (Figueiredo, Limongi, 1995; Fagnani, 2005). Esta trajetória incide sobre
a atual formatação do sistema público da política social, incluindo as políticas e
programas de combate à pobreza dos anos 2000.

2.1 Correntes teóricas explicativas sobre política pública social

As correntes teóricas que explicam a emergência, desenvolvimento e mudanças


da política pública de corte social foram sumarizadas por Skocpol e Amenta (1986) e
Arretche (1995). Com base nestes textos pode-se organizar quatro matrizes teóricas,
com respectivas vertentes, como se segue:
A primeira é a corrente de caráter econômico que enfatiza o processo de
industrialização ou explica o advento de um sistema de política social como dependente
do desenvolvimento do capitalismo. A vertente estrutural-funcionalista destaca a
transição do agrarismo para o industrialismo – o crescimento econômico-industrial e
mudanças especialmente demográficas decorrentes – como causa primordial que explica
o desenvolvimento do welfare state. Entretanto, a forma de sua expansão e modificações
subsequentes, em cada sociedade particular, tem como um dos fatores a cultura política
referente à relação entre necessidades sociais construídas e modos públicos mais ou
menos amplos para seu atendimento. A vertente neomarxista teoriza sobre a política
social como uma variável dependente do desenvolvimento interior do capitalismo, isto
é, a transição do capitalismo competitivo para o capitalismo monopolista. A política
social seria funcional à necessidade de reprodução social, seja nos aspectos da
acumulação, legitimação e manutenção de estabilidade social, seja no da participação da
constituição da classe trabalhadora e de suas formas de consumo.
A segunda corrente explicativa é de caráter político-institucional e focaliza as
instituições democráticas ou a ampliação de direitos. O foco nos direitos aborda os
efeitos do acréscimo do componente social da cidadania às dimensões civil e política
sobre os padrões de desigualdade econômica. O foco nas instituições democráticas, leva
em conta que, por um lado, a distribuição de recursos e resultados é afetada pelos
governos e, por outro, a política social dos estados de bem-estar têm efeitos
redistributivos. Esta abordagem produz vertentes explicativas que irão: a) relacionar as
instituições e procedimentos formais da democracia (especialmente participação
eleitoral, eleições competitivas) ao crescimento de política social, em seus vários
setores; b) destacar o impacto do sistema partidário e a competição entre partidos

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

políticos; c) entender que as demandas e protestos populares influenciam a formulação


de políticas sociais; d) partilhar com os neomarxistas a visão de que a questão de classe
é o eixo fundamental de poder e da política nas democracias capitalistas
industrializadas, com rebatimento na formulação das políticas públicas entre elas a
social.
A terceira é de caráter institucional e histórico centrado no Estado. A política
pública social é moldada pela estrutura organizacional e capacidade dos estados e pelos
efeitos políticos de políticas já estabelecidas. Uma de suas subcorrentes não interpreta
os estados como meros mecanismos administrativos ou arenas instrumentalizadas por
grupos interessados na formatação das políticas, ao contrário, esta subcorrente considera
os estados como atores e estruturas. A atenção recai sobre a sequência histórica de
construção das estruturas institucionais dos estados, a qual afeta a formulação da
política social e, com isso, exerce impacto sobre os partidos políticos, a formação de
classe e a cultura política. Outra subcorrente analisa as consequências políticas das
políticas já instituídas, destacando que as causas que originam políticas públicas não são
necessariamente as mesmas causas de seu subsequente desenvolvimento, em parte,
33
porque as próprias políticas públicas afetam políticas. Políticas públicas são produtos
históricos de ações e decisões passadas, sendo que as instituições, uma vez formadas,
adquirem um desenvolvimento e movimento praticamente autônomos.
A última corrente é a do contexto transnacional. O modo com que a economia, o
contexto geopolítico e a cultura internacional se desenvolveram contribuiu para moldar
políticas sociais nacionais tanto antes, durante como depois do século XX. Nesta
corrente, a análise esta agrupada entre teóricos que a) inserem a política social no
âmbito das estratégias de governo ligadas à economia mundial; b) relacionam a política
social com a geopolítica e entendem sua formulação como um dos recursos mobilizados
no ambiente de competição internacional e; c) observam que um padrão de políticas
sociais se espalhou em países com diferentes níveis de desenvolvimento, em especial
depois de 1920 e a partir das primeiras implantações na Europa e na Américas.
A pesquisa busca operacionalizar a última subcorrente denominada de
modelagem institucional internacional, para a qual as políticas sociais são explicadas
33
“As new research is designed, scholars should presume that the causes of policy origins are not
necessarily the same as the causes of the subsequent development of policies, in part because policies
themselves transform politics. Researchers should likewise be sensitive to precise time periods on
national and world scales and attuned to processes unfolding over time. Analysts of states and social
policies must, in short, become unequivocally historical in their orientation” (Skocpol & Amenta, 1986:
152).

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pela adesão de governantes e pessoal do Estado a um padrão cultural e de características


institucionais e, também, pelo incentivo de organizações intergovernamentais. As
modificações e adaptações na política pública social, portanto, estão relacionadas a
fatores do ambiente político e econômico doméstico, mas, também, ao incentivo das
instituições e ao padrão internacional.
Considero que este último ponto ainda não foi explorado suficientemente nos
estudos sobre política social. Por exemplo, Hammoud (2008) não aprofunda esta linha
analítica ao tratar dos determinantes domésticos das mudanças no modelo do welfare
state em estados europeus, mesmo ao levar em conta tanto as pressões da União
Europeia – UE – para a convergência de políticas, quanto às preferências dos atores
políticos nacionais. Mauriel (2009: 60) não adensa esta perspectiva teórica ao inserir as
reformas da proteção social no Brasil num concerto internacional favorável “ao
crescimento e reforço dos mecanismos de mercado”. O mesmo ocorre em Ugá (2004)
ao tratar da construção da categoria pobreza como parte e expressão de uma ordem
social, política e cultural internacional. Por isso, considero relevante explorar algumas
estratégias para estabelecer relações entre concepções da corrente da modelagem
internacional e a política relativa à pobreza no Brasil.
Para este artigo as estratégias metodológicas foram: buscar documentos sobre o
tema disponíveis nos sítios do Banco Mundial, do FMI e da ONU e; discutir os dados
quantitativos em relação aos momentos apontados pela literatura como marcantes para o
sistema de proteção social brasileiro no período de 1995 a 2012.

III – Pesquisa Documental: Primeiros Resultados

A busca de documentos nos sítios das organizações internacionais selecionadas34


utilizou as palavras-chave poor, poverty e social policy. Foram computados apenas os
textos sobre o Brasil, América ou aqueles de referência mundial, totalizando 598
documentos (tabela 1) 35

34
Estes resultados da busca em sítios das OIs restringem-se a um primeiro teste para observar seu
potencial para a construção de dados. Posteriormente haverá o refinamento metodológico e a busca
intencional de documentos aludidos como relevantes pela literatura e análise de conteúdo.
35
Busca nos sítios do Banco Mundial, ONU, FMI e UE realizada por Juliane Kelm, Daiana Ximendes,
Adriele Cordeiro, Gabriele Cristine e Bernadette Borges, inscritas no PIBIC – PUCPR.

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

Tabela 1. Documentos sobre pobreza e política social, entre 1995 e 2012, encontrados nos sítios de
organizações internacionais

O6U Banco Mundial FMI Total


Ano
nº % nº % nº % nº %
1995 9 1,69 2 7,14 1 2,63 13 2,01
1996 18 3,38 0 0,00 0 0,00 18 3,01
1997 13 2,44 0 0,00 0 0,00 13 2,17
1998 11 2,07 4 14,29 2 5,26 18 2,84
1999 11 2,07 6 21,43 0 0,00 17 2,84
2000 12 2,26 1 3,57 2 5,26 15 2,51
2001 23 4,32 4 14,29 9 23,68 36 6,02
2002 29 5,45 1 3,57 7 18,42 40 6,19
2003 19 3,57 3 10,71 2 5,26 24 4,01
2004 46 8,65 6 21,43 4 10,53 56 9,36
2005 54 10,15 0 0,00 3 7,89 60 9,53
2006 52 9,77 0 0,00 3 7,89 56 9,20
2007 39 7,33 0 0,00 1 2,63 42 6,69
2008 31 5,83 0 0,00 2 5,26 35 5,52
2009 31 5,83 0 0,00 1 2,63 33 5,35
2010 62 11,65 0 0,00 0 0,00 67 10,37
2011 60 11,28 0 0,00 1 2,63 61 10,20
2012 12 2,26 1 3,57 0 0,00 13 2,17
Total 538 100,00 36 100,00 43 100,00 637 100,00

A partir de 1988 a ONU produziu a grande maioria dos documentos encontrados


e nos anos 2000 a distância entre esta organização e as demais aumentou (tabela 1). De
forma geral, é expressivo o aumento do número dos documentos a partir do início do
novo século (tabela 2)36.

36
É preciso considerar que a busca foi em documentos digitalizados em sites, sendo que é possível, em
parte, atribuir o aumento crescente do número de documento devido à difusão do uso de computadores e
internet a partir da segunda metade dos anos 1900

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

Tabela 2. Documentos sobre pobreza e política social, entre os períodos 1995 -2000 e 2001-2012,
encontrados nos sítios de organizações internacionais
O6U Banco Mundial FMI Total
Ano
6º % 6º % 6º % 6º %
1995 a 2000 74 13,91 13 46,43 5 13,16 92 15,38
2001 a 2012 458 86,09 15 53,57 33 86,84 506 84,62
Total 532 100,00 28 100,00 38 100,00 598 100,00

Cabe lembrar que nas últimas décadas do século XX, especialmente entre os
anos 1980 e 90, a perspectiva neoliberal orientou reformas de programas sociais em
países com governos de diferentes orientações ideológicas e com diversas trajetórias de
política social e de Estado de bem estar. A data da maioria dos documentos encontrados
coincide com o “revival” da onda neoliberalizante ou seu novo fôlego advindo da crise
no sistema financeiro dos anos 2000 e agravada a partir de 2006 nos EUA e em grande
parte da Europa. Porém, o padrão das Instituições Financeiras Internacionais (IFI) é
diferente da ONU, pois, enquanto para está o maior número de documentos sobre o
tema concentra-se entre 2006-2012, para as IFI a maioria significativa dos documentos
encontrados estão entre os anos 1995-2005, isto é no final da primeira onda neoliberal e
início da crise do sistema financeiro assumida por estas organizações como crise do
Estado em termos da sua capacidade de implementação de políticas do sistema de
proteção social de cada país (tabela 3).

Tabela 3. Documentos sobre pobreza e política social, entre os anos 1995-2005 e 2006-2012,
encontrados nos sítios de organizações internacionais

O6U Banco Mundial FMI Total


Ano
nº % nº % nº % nº %
1995-2005 245 46,05 27 96,43 30 78,95 302 50,50
2006-2012 287 53,95 1 3,57 8 21,05 296 49,50
Total 532 100,00 28 100,00 38 100,00 598 100,00

Organizações internacionais têm sido difusores de valores e orientações no


sentido da reformatação da oferta pública de bens e serviços sociais com a substituição
de “políticas keynesianas do pós-guerra por políticas restritivas de gastos” (Souza,
2007: 65). A influência e o impacto do sistema internacional sobre as políticas sociais
nacionais se efetivam “mediante processos de difusão e aprendizagem institucional” e,
também, “mediante impulsos, incentivos ou vetos”. Não raro, trata-se de uma

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

“articulação assimétrica da agenda internacional e políticas públicas nacionais” (Draibe,


2007: 36). Em atenção a estas determinações alguns países, entre eles o Brasil,
condicionaram a implementação de políticas públicas ao “cumprimento do ajuste fiscal
e do equilíbrio orçamentário entre receita e despesa, restringindo, de certa forma, a
intervenção do Estado na economia”, priorizando a focalização (Souza, 2007: 65) e
concebendo arranjos legais para parcerias com as organizações da sociedade civil 37
(Bresser-Pereira, 2004). As principais justificativas para orientações de austeridade e
“redução do Estado” são a excessiva centralização e burocratização do Estado (e sua
incompetência na gestão social ou incapacidade de atender as novas demandas
socioeconômicas) e a crise financeiro-fiscal. Porém, outra interpretação pode ser dada
ao desequilíbrio entre receitas e despesas. Isto é, o que se designa como crise ou
falência do Estado providência “é, antes de tudo, o problema do grau de socialização
tolerável de certo número de bens e serviços.” Uma das razões desta deslegitimação do
Estado de bem estar por parte de grupos e organismos internacionais é, de ordem
cultural, ou seja, “a crise é de um modelo de desenvolvimento e crise de um sistema
dado de relações sociais” (Draibe & Henrique, 1988: 67).
Todavia, até início dos anos 2000, estudos demonstraram que as políticas
empreendidas neste sentido conseguiram enfatizar a priorização e focalização em
grupos sociais mais empobrecidos, reduzir universalidade, alterar normas
previdenciárias (Brooks, 2004) e reduzir o gasto social, mas, no geral, não lograram
desmantelar o padrão público protetivo previamente existente, ou seja, o modelo de
Estado de Bem Estar Social anteriormente firmado em cada país. No caso do Brasil, o
gasto social significou menos declínio e mais adaptação às áreas e grupos sociais
focalizados (Rezende, 2008; Draibe, 2003). Segundo Hammoud (2008: 30), dados da
União Europeia demonstraram que na primeira década dos anos 2000, embora tenham
ocorrido mudanças, as grandes tendências permaneceram as mesmas: “os países
nórdicos continuam com o Welfare State mais amplo e mais universal, os países do
continente com um Welfare State mediano, e a Inglaterra com os benefícios sociais mais
módicos e mais ligados ao mercado...”.

37
Organizações com os nomes genéricos de organizações não governamentais – ONGs – e organizações
da sociedade civil de interesse público – OSCIPs . Nestes arranjos estão incluídas as empresas com ações
de responsabilidade social.

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

Uma vez que o contexto atual é diferente daquele presente na emergência dos
sistemas de política pública social 38, a compreensão desta solidez pode ser auxiliada por
noções como autonomia e path dependency39, ou seja, políticas públicas são produtos
históricos de ações e decisões passadas, sendo que as instituições, uma vez formadas,
adquirem um desenvolvimento e movimento praticamente autônomos40 (March, Olsen,
2008; Nascimento, 2009). Os condicionantes institucionais e históricos são observados
em certa rigidez e permanências nos sistemas de política social, mesmo após as últimas
três ou quatro décadas do movimento e das práticas neoliberais para alterar a direção
dos gastos sociais e minar o princípio da universalidade calcada na condição de
cidadania e não no do carecimento 41.
No final da primeira década do século XXI, entretanto, a crise econômica e
fiscal trouxe a oportunidade para que organizações internacionais recuperassem a
concepção de Estado mínimo e passassem a incentivar o aprofundamento e aceleração
de alterações no sistema público de proteção social que tendem a comprometer os
arranjos institucionais de Estado de bem estar que, no século XX, definiram a alargaram
direitos e a cidadania por meio de políticas públicas sociais (Lavalle, 2003). São
incentivos seletivos para implementação de políticas focalizadas em grupos sociais e
necessidades específicas dissociadas ou substitutivas de políticas universais pautadas na
generalidade da cidadania, quer dizer, sem a articulação ou a “mescla virtuosa entre
programas universais e programas focalizados” (Draibe, 2002: 8) que podem vir a

38
Na atualidade a economia funda-se em uma etapa tecnológica com diminuição ou desaparecimento de
postos de trabalho e desemprego de longa duração, acarretando, por um lado, a redução da capacidade do
conjunto dos trabalhadores para a contribuição no sistema público de oferta de bens e serviços sociais –
contribuindo para a chamada crise fiscal do Estado. Além disso, a composição geopolítica internacional
não gira mais em torno do confronto entre bloco capitalista e bloco socialista. Portanto, fatores que
participaram das condições de emergência do sistema público de políticas sociais não estão mais
presentes, conforme discutido por Castel (2001); Draibe (1989, 2002); Rosanvallon (1995); Arretche
(2000) e Laville (2008).
39
“Path dependence não significa apenas que a história e o passado contam, mas sim que [...] quando um
país (ou uma região) adota um determinado caminho, os custos de mudá-lo são muito altos. [...] Portanto,
eventos anteriores influenciam os resultados e a trajetória de certas decisões, mas não levam
necessariamente a movimentos na mesma direção que prevalecia no passado. O conceito de path
dependence é importante exatamente porque pode haver uma reação ao path anterior, levando-o a outra
direção” (Souza, 2003: 138).
40
Outras vertentes de análise relacionam a resiliência do Estado de bem estar a fatores societários e
econômicos (tomando a política pública social como variável dependente), tais como as explicações que
destacam a “necessidade” dos sistemas públicos de proteção social diante da crise econômica do período
que gera o aprofundamento da questão social em países do capitalismo central e; a força de movimentos
sociais contrários à desestruturação do provimento social público e de direitos trabalhistas (Anderson,
1995).
41
Os dados apresentados por Avelino, Brown e Hunter (2007: 235) para a América Latina, no período de
1980-1999, mostram reestruturação dos programas na área social, sendo que “os gastos sociais têm sido
redirecionados”, havendo aumento nos gastos com educação e “o crescimento de programas mais
focalizados”.

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

conjugar a vantagem de garantias universais e a destinação adicional de recursos e


serviços para grupos específicos, tendo em vista a e diminuição da desigualdade social.
Ao contrário, no entendimento de organizações financeiras internacionais a focalização
representa um teto para os gastos sociais dos países do sul e, também, uma “moeda de
troca para a [...] reforma dos regimes de welfare state europeus – medida de austeridade
para fazer frente à crise fiscal” dos anos 2000 (Fagnani, 2011: 12).
No Brasil este foi o período da formatação e consolidação do atual sistema da
política pública social com base na Constituição Federal de 1988 – CF1988 e nas leis
regulamentadoras. Esta norma jurídica determinou a formatação de políticas sociais
orientadas pela solidariedade estatista, ou seja, estabelecimento dos direitos sociais entre
os fundamentais; a provisão pública e universal no âmbito da política pública social; e
formas de transferência monetária, entre outros pontos.
Conforme Fagnani (2011: 12), o processo de formatação do atual sistema
brasileiro da política pública social pode ser de ser dividido em três momentos. No
primeiro, que abrange o final do regime ditatorial e o processo constituinte, o país
caminhou “na contramão do mundo” e seguiu “a rota inversa do neoliberalismo.” Os
movimentos sociais e políticos incitaram a introdução de artigos sobre direitos e
políticas sociais na CF1988- com princípios de universalidade e competência do Estado
como já aludido. O caso brasileiro, portanto, traz uma peculiaridade: a CF1988
“institucionaliza a agenda de universalização e igualdade de acesso na década em que se
fortalecem, no cenário internacional, as estratégias de desmantelamento do Estado de
Bem-Estar Social.” (Franceze & Abrucio, 2009: 12).
No segundo momento, entre 1990 e 2005, é um período caracterizado pela
priorização de público-alvo de menor renda e, também, pela regulamentação da política
social brasileira. Este processo revela as pressões para diminuir o alcance das garantias
constitucionais mediante lei complementar e para a realocação dos gastos sociais42 e os
movimentos e políticas contrários a isto.
A tramitação de leis e emendas após a Constituição demandou “intensas
negociações dentro da coalizão governamental e com a oposição” (Melo, 2005: 860).
Nestas arenas estavam presentes grupos cujos valores políticos eram compatíveis com
os artigos da CF1988 e grupos cujos valores eram incompatíveis. Grosso modo, os

42
A partir dos anos 1980 e durante os anos 1990 Avelino, Brown e Hunter (2007: 235) observam no
Brasil e outros países latino-americanos “mudanças em alocações de recursos para o setor social geradas
pela integração econômica e a democratização”, sendo que o crescimento de programas sociais
focalizados é um exemplo de como “os gastos sociais têm sido redirecionados consideravelmente”.

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

primeiros viam na Constituição a materialização “das esperanças progressistas que


habitavam as mentes das lideranças e dos militantes políticos situados à esquerda do
espectro ideológico durante esse período” (Perissinotto, 2010: 13); e os segundos
tinham afinidade com o tradicional padrão conservador das políticas sociais ou
alinhavam-se com a perspectiva neoliberal empenhando-se em reformas neste sentido.
Nas negociações e embates travados, algumas das estratégias destes grupos
foram o adiamento da legislação complementar e interpretações restritivas ou de
aprofundamento dos artigos por ocasião da aprovação de leis para sua regulamentação
e, também, as emendas constitucionais 43.
Entre 1992 e janeiro de 2004 foram apresentadas 50 emendas à Constituição. 26
destas emendas tratam de questões institucionais, 22 de federalismo, 22 de controle
fiscal, 11 de política social/direitos sociais e, 11 de economia. Tais áreas organizadas
pelo autor não são excludentes, pois, uma emenda pode abranger mais de uma matéria.
Emendas constitucionais sobre políticas e direitos sociais compõem 22% do total, mas,
esta porcentagem aumenta se considerarmos dois dados: “42% das emendas
constitucionais aprovadas refere-se diretamente a aspectos do federalismo brasileiro” e
do “total de emendas pertinentes ao federalismo, mais da metade (53%) relaciona-se a
políticas e direitos sociais” (Melo, 2005: 860 - 862).
O número proporcionalmente grande das emendas em torno da política social
reflete tanto a sua constitucionalização quanto o programa de reforma na área que foi
empreendido, especialmente, nos anos 1990 e início de 2000. Quer dizer, uma vez que o
texto constitucional abrange questões da política específica, grande parte da reforma e
“iniciativas na política social e redução da pobreza” foi viabilizada via emendas
constitucionais44 (Melo, 2005: 867). Mas, apesar de emendas e regulamentações nem

43
Para as leis regulamentadoras destaco os seguintes exemplos: o artigo 203 (V) da CF88 - que trata da
garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e ao idoso sem meios de
garantir o próprio sustento, nem tê-lo provido por sua família - foi regulamentado no artigo 20 da lei
8.742/1993. Para a elaboração da lei houve debate sobre se a falta de condições de garantir o sustento
seria interpretada com base na renda familiar de um salário mínimo ou não. Venceu a interpretação mais
restritiva que considera a renda mensal per capita inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo; o artigo 3º
da CF88 – que trata da erradicação da pobreza – é referência para a lei nº 10.835/2004 instituindo a renda
básica de cidadania que se constitui no direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros
residentes há pelo menos 5 (cinco) anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica,
receberem, anualmente, um benefício monetário. O artigo 3º é, também, referência para a lei nº
10.836/2004 (Bolsa Família) que prevê transferência monetária para famílias que se encontrem em
situação de extrema pobreza. A implementação de política governamental, até hoje, restringiu-se a esta
segunda lei e a lei 10.835/2004 não foi, até hoje, regulamentada.
44
Um exemplo é a Emenda nº 31/2000 que criou o Fundo de Combate à pobreza aprovado depois de
negociação sobre a origem dos recursos que o manteria. A Comissão estabelecida para este fim e o
governo concordaram com a alternativa de aumentar a alíquota do imposto sobre as transações financeiras

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

sempre alinhadas com o “tom” geral da CF1988, as grandes linhas constitucionais para
a política social promoveram um padrão legal de inspiração social – democrata.
O terceiro momento da formatação do atual sistema da política pública social
seria a partir de 2006 no qual, segundo Fagnani (2011: 13) as políticas sociais estão
articuladas a uma “estratégia macroeconômica, direcionada para o crescimento
econômico com distribuição de renda”.
Esta periodização permite estabelecer relações entre o número de documentos
das organizações internacionais e os momentos de formatação e consolidação do
sistema brasileiro da política pública social atual (SBPPS), momentos estes mais ou
menos coincidentes com períodos de governos (tabelas 4 e 5).

Tabela 4. Documentos sobre pobreza e política social, entre 1995 e 2012, encontrados nos sítios de
organizações internacionais, em relação aos governos e ao sistema brasileiro de política pública
social.

Anos Momentos do SBPPS Governos Doc. internacionais


nº %
1995-2005 2º momento (seletividade -menor renda -
FHC; Lula 302 50,50
e regulamentação da política social)
2006-2012 3º momento (articulação entre
Lula, Dilma 296 49,50
pol.combate à pobreza e pol. econômica)
Total 598 100,00

No 2º momento do SBPPS, especialmente nos governos Cardoso e início do


Lula, a política social está sendo regulamentada. Nestes anos são formuladas e
visibilizadas políticas com foco na pobreza e de transferência monetária no Brasil e
encontra-se metade (50,50%) dos documentos das organizações internacionais sobre o
tema. No 3º momento os documentos correspondem à praticamente metade dos
selecionados (apesar do conjunto de anos do período 2006-2012 ser menor que o 1995-
2005) (tabela 4).

(Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira – CPMF). A Emenda Constitucional nº 29


“estipulou valores mínimos para os investimentos na área de saúde nos três níveis de governo”. A
Emenda Constitucional nº 14, instituiu o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino
Fundamental e Valorização do Magistério - FUNDEF.” (MELO, 2005, p. 859, 866). O “produto final
desse consenso foi o jogo constitucional em torno da vinculação de recursos para as áreas sociais da saúde
e da redução da pobreza [...] O Congresso aceitou a instituição de novos impostos ou alíquotas para os
impostos existentes em troca de mais recursos fiscais, inclusive para os setores sociais que passaram a
absorver uma parcela cada vez mais expressiva do orçamento” (Melo, 2005: 867).

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

Na literatura há um debate sobre a existência de semelhanças ou diferenças, e


em que medida, entre os governos FHC e Lula. Boito Jr. (2007) argumenta que
programas sociais focalizados na população de baixa renda dos governos FHC e Lula,
têm em comum ao fato de negligenciarem políticas sociais universais, o que, nos dois
períodos, incidiu sobre a capacidade e qualidade de atendimento dos serviços
previdenciários, de saúde e educação, por exemplo. Situação que impulsiona parte da
classe média baixa e as classes com rendimento superiores a buscarem tais bens no
mercado, fortalecendo, assim, os setores de prestação e venda de serviços.
Diniz (2007) entende que as diferenças entre os governos FHC e Lula estão
justamente no aspecto da fração do setor empresarial favorecida pelas políticas
governamentais. No período FHC, a Reforma do Estado rompeu com o corporativismo
aos moldes do período do nacional-desenvolvimentista e afrouxou a intervenção do
Estado nas áreas das políticas econômica e social, o que esteve alinhado a medidas de
favorecimento do setor empresarial ligado ao capital financeiro internacional. No
primeiro período do governo Lula, embora sejam mantidas a política macroeconômica e
a hegemonia do capital financeiro, há a implementação de políticas econômicas que
contemplam objetivos de desenvolvimento e o setor do empresariado vinculado ao
capital produtivo nacional.
Boito Jr. (2005: 54) considera, também, que nos dois governos a priorização de
políticas compensatórias por meio de programas de transferência monetária está
alinhada com o “discurso ideológico neoliberal que estigmatiza os direitos sociais como
privilégios.” Fagnani (2005: 551) situa especialmente no governo FHC este alinhamento
entre as políticas e programas sociais brasileiros e as diretrizes neoliberais de
instituições como FMI e BIRD45. No que tange ao governo FHC, Draibe (2003: 11)
diverge desta concepção. Para a autora, os programas de enfrentamento a pobreza
tinham potencial para “reduzir as chances da reprodução da desigualdade sob o manto
de programas universais”, pois, a alocação prioritária de recursos destinados a grupos
selecionados estaria vinculada e não substituiria políticas universais.
Neri (2007, 2011) e dados oficiais (IPEA (2012), como mencionado
anteriormente, constatam que políticas com critérios de seletividade e transferência
monetária, implementadas desde os governos FHC até os de Lula e Dilma, tiveram um
impacto positivo no sentido de redução da desigualdade de renda e diminuição da

45
FMI – Fundo Monetário Internacional, BIRD – Banco Internacional para a Reconstrução e o
Desenvolvimento.

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

pobreza. Entendo que é neste ponto que reside o aspecto de continuidade das políticas
pública de combate a pobreza dos governos FHC, Lula e Dilma, a despeito das posições
partidário-ideológicas destes governantes que têm rebatimentos e imprimem diferenças
de prioridades, opções orçamentárias e na formulação da política pública social em
geral.

Tabela 5. Documentos sobre pobreza e política social, entre 1995 e 2012, encontrados nos sítios de
organizações internacionais em relação aos momentos do sistema brasileiro de política pública
social e governos brasileiros

Anos Governos Momentos do SBPPS Doc. internacionais


nº %
2º momento (seletividade -menor renda e
1995-2002 FHC 165 27,59
legislação sobre política social)
2º momento seletividade -menor renda e
legislação da política social)
2003-2010 Lula 359 60,03
3º momento (articulação entre pol. redução da
pobreza e pol. econômica)
2011-2012 Dilma 3º momento (idem) 74 12,37
Total 598 100,00

Chama a atenção a possível relação nos anos dos governos Lula e Dilma dos
seguintes dados: concentração de mais de 70,0% dos documentos coletados das
instituições internacionais; agravamento da crise econômica mundial e o
recrudescimento das medidas e recomendações das IFI no sentido da austeridade
econômica com encolhimento do sistema universalista de proteção social e priorização
da destinação dos gastos e serviços sociais para os grupos empobrecidos; políticas
sociais brasileiras para redução da pobreza são consideradas modelos pelos organismos
internacionais e; são principalmente nestes anos que os dados sobre o impacto positivo
destas políticas implementadas no Brasil desde o início dos anos 2000 são divulgados
interna e internacionalmente (IPEA, 2012; Neri, 2007; Neri, 2011) (tabela 5).
Os dados do período 1995-2012 e a literatura sugerem ter havido uma adesão
dos governantes brasileiros e formuladores de políticas aos valores e arranjos
institucionais difundidos internacionalmente, assim como, que as políticas públicas
brasileiras participaram como condutoras da difusão e modelagem internacional de
políticas públicas para redução da pobreza.

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

IV - Conclusão

A questão que norteou a discussão é se e de que modo as teorias da modelagem


e da difusão internacional de políticas poderiam contribuir para a compreensão das
políticas públicas sociais para redução da pobreza no Brasil a partir de 1995. Algumas
conclusões parciais podem indicar a resposta, como se segue.
A articulação entre as políticas públicas sociais brasileiras de combate à pobreza
e miséria, o aprendizado e difusão cultural e os incentivos institucionais internacionais
demonstram tanto uma modelagem “positiva” (isomorfismo) como, também, uma
modelagem “negativa” (baseada nas concepções difundidas, mas, numa direção
oposta). No governo Cardoso e primeiro governo Lula haveria maior grau de
incorporação e contágio de prescrições internacionais em comparação com o segundo
governo Lula e Dilma, nos quais as políticas brasileiras de transferência monetária são
difundidas e consideradas modelos exitosos a serem aprendidos.
A modelagem negativa é observada na elaboração da Constituição Federal que,
inversamente ao ambiente neoliberal internacional, consolidou a competência estatal e a
combinação da universalidade e seletividade da cobertura. O isomorfismo é identificado
nos governos Cardoso, Lula e Dilma tanto no sentido da aderência destes às diretivas
internacionais sobre priorização da população de baixa renda como, também, das
políticas brasileiras de transferência monetária serem consideradas modelo pela
comunidade política internacional. Nos últimos dois períodos de governos há
modelagem negativa, observada na articulação entre políticas de crescimento
econômico e gastos públicos sociais (contrariando recomendações de organismos
financeiros internacionais sobre austeridade com redução da política social) e, também,
modelagem positiva devido à centralidade da priorização de grupos sociais e risco de
redução da perspectiva universalista.
Portanto, há indícios na literatura especializada e nos dados explorados da
relação entre cultura e instituições no contexto transnacional e a política social brasileira
relativa à pobreza. Isto é, a hipótese que as correntes teóricas da modelagem e da
difusão internacional contribuem para compreender esta política pública pode vir a ser
confirmada no decorrer do desenvolvimento da pesquisa.

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

Bibliografia

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

EM 6OME DA ORDEM:
política urbana e criminalização da pobreza na Cidade do Rio de Janeiro no limiar
do século XXI

Rosemere Maia
Universidade Federal do Rio de Janeiro / CNPq
rosemaia@terra.com

Resumo

Constatamos, desde o início dos anos 90, que uma nova concepção de cidade e de planejamento urbano
vem se impondo, a cada de dia e de forma mais decisiva, em vários lugares do planeta. O Rio de Janeiro
talvez seja exemplar para o entendimento desta nova dinâmica, num contexto em que as cidades passaram
a se constituir em locais privilegiados de articulação de interesses econômicos, tecnológicos e políticos,
orientadas por uma visão estratégica em relação ao planejamento urbano. Neste sentido, são qualificadas
enquanto mercadorias a partir dos insumos que detêm e que são valorizados pelo capital especulativo
transnacional. Gestores e empreendedores vêm construindo e difundindo uma marca em torno da Cidade
do Rio de Janeiro que remete às suas belezas naturais, à cultura, ao lazer, aos esportes, aos grandes
eventos internacionais, sendo priorizadas como áreas de investimento em termos de políticas públicas
aquelas detentoras de maior visibilidade e capazes de atrair investidores nacionais e internacionais, bem
como um público “qualificado”, principalmente os turistas. Durante anos, a imagem do Rio de Janeiro foi
maculada pelo crescimento da pobreza e pelo avanço da criminalidade e, em nome do restabelecimento
da ordem e da segurança, vem se fortalecendo no contexto carioca o poder punitivo como modo de
administração dos efeitos das políticas neoliberais sobre os segmentos populares, onde usuários de crack,
população em situação de rua, ambulantes, “flanelinhas” tornam-se alvos preferenciais das investidas da
“política de tolerância zero” que grassa, com vários matizes, na Cidade e que tende a qualificar tais
segmentos como “classes perigosas”.

Palavras-chave: Cidade, Política Urbana, Pobreza

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

A título de introdução: Anos 90 – uma guinada no planejamento urbano

Vimos constatando, desde o início dos anos 90, que uma nova concepção de
cidade e de planejamento urbano impõe-se, a cada de dia e de forma mais decisiva, em
vários lugares do planeta. No que se refere à realidade brasileira, o Rio de Janeiro talvez
seja exemplar para o entendimento desta nova dinâmica, num contexto onde as cidades
passaram a se constituir em locais privilegiados de articulação de interesses econômicos
e tecnológicos, orientadas por uma visão estratégica em relação ao planejamento
urbano. Segundo Carvalho (2006, p. 6), evidencia-se, desde então, a conformação de
uma “nova geografia e uma arquitetura produtiva que tece redes e nós e qualifica e
desqualifica espaços em função de fluxos mundializados”, produzindo impactos “sobre
a morfologia territorial e social e sobre a organização e funcionamento dessas cidades,
sobre a qualidade de vida urbana, as desigualdades e as mobilizações políticas e
sociais”.
O que se persegue, nesse sentido, é a inserção de cada cidade no que se
convencionou chamar de mercado mundial de cidades e, para tanto, coloca-se como
fundamental o investimento em atividades vinculadas ao terciário avançado, assim
como a descoberta e/ou reforço de elementos que expressem a vocação de cada uma
delas, a sua marca, seu “diferencial” em relação às demais. (Maia, 2006: 63) A cidade,
nesse sentido, é qualificada enquanto mercadoria a partir dos insumos que detêm e que
são valorizados pelo capital transnacional, a exemplo do sugerido por Borja & Forn
(apud Vainer, 2002: 79). Tais insumos seriam, segundo os mesmos autores, todo um
conjunto de infraestruturas e serviços capazes de atrair “investidores, visitantes e
usuários solventes à cidade e que facilitem suas ‘exportações’ (de bens e serviços, de
seus profissionais, etc.) (Borja & Forn, apud Vainer, 2002: 80).
Gestores e empreendedores têm construído/reforçado e difundido uma marca em
torno da Cidade do Rio de Janeiro que remete às suas belezas naturais, à cultura, ao
lazer, aos esportes, aos grandes eventos internacionais – de caráter esportivo, ecológico
ou cultural. Para tanto, propõem, em parceria, políticas urbanas pautadas em
intervenções excludentes, segregacionistas, claramente comprometidas com as
demandas do capital, sem qualquer compromisso com aquelas colocadas legitimamente
pelos citadinos. Tanto é assim que as áreas priorizadas pelos referidos projetos são
aquelas detentoras de maior visibilidade e as que agregam equipamentos voltados para o
turismo, para a cultura e o lazer, sendo capazes de atrair investidores nacionais e

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

internacionais, bem como um público “qualificado”, principalmente os turistas. Diante


de intervenções como estas, a paisagem da Cidade demonstra, claramente, sua
adequação aos interesses dos grupos dominantes, conforme sugerido por Zukin46:

A paisagem é claramente uma ordem imposta ao ambiente – construído ou natural.


Portanto, ela é sempre socialmente construída: é edificada em torno das instituições
sociais dominantes (a igreja, o latifúndio, a fábrica, a franquia corporativa) e ordenada
pelo poder dessas instituições. […] Desse modo, a paisagem dá forma material a uma
assimetria entre o poder econômico e o cultural. Essa assimetria de poder modela o
sentido dual da paisagem (2000: 84).

Por outro lado, as iniciativas de renovação urbana que marcam a


contemporaneidade trazem subjacente o discurso de “recuperação da história”, do
patrimônio, pautando-se em elementos de ordem simbólica, e não material
exclusivamente. Investe-se, assim, em espaços capazes de se constituírem em centros
culturais e/ou de restabelecerem a vida a locais que, ao longo dos anos, passaram por
processos de deterioração/obsolescência, induzindo a um movimento de “volta à
cidade”, no sentido de requalificação/retorno à sua área central, em parte como
decorrência do reencontro glamouroso entre cultura (urbana ou não) e capital” (Arantes,
2002: 5).
O investimento na “imagem” das cidades também tem sido privilegiado pelos
governos locais, conferindo-lhes não só um caráter de mercadoria, mas, igualmente,
atribuindo um cunho empresarial às ações e programas que nelas desenvolvem. Com
isto, tiram partido da positividade da imagem construída, relacionando-a às suas
próprias ações e traduzindo-a em elementos como “respeitabilidade, qualidade,
prestígio, confiabilidade, inovação” (Harvey, 2001: 260). Assim, ainda segundo o
mesmo autor, a “competição no mercado da construção de imagens passa a ser um
aspecto vital da concorrência entre as empresas (...), [servindo] para estabelecer uma
identidade no mercado” (2001: 260).

46
Zukin, entretanto, considera possível a emergência de construções sociais que, ao contrário de
denominadas paisagens, seriam tratadas como VERNACULARES, chanceladas pelos “sem poder”.
(Zukin, 2000: 84). Reportando-se aos contra-usos passíveis de emergirem em espaços vernaculares,
afirma Leite: as ‘táticas’, quando associadas à dimensão espacial do lugar, que as torna vernaculares, se
constituem em um contra-uso capaz não apenas de subverter os usos esperados de um espaço regulado
como de possibilitar que o espaço que resulta das ‘estratégias’ se cinda, para dar origem a diferentes
lugares, a partir da demarcação socioespacial da diferença e das ressignificações que esses contra-usos
realizam (2004: 215, grifos do autor).

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

Diante disso, a marca estabelece-se como o diferencial de uma cidade, sendo


constituída a partir daquilo que ela apresenta como sua vocação – o turismo, os
negócios, a cultura. Definem-se algumas especializações entre as cidades, ao mesmo
tempo em que são tecidas relações de complementaridade e, paradoxalmente, de
competição (Maia & Icasuriaga, 2012: 06) Em última instância, o que se pretende é
torná-las funcionais ao atual estágio do capitalismo, onde - da mesma maneira que se
evidencia na produção – também o planejamento urbano é marcado pela flexibilidade,
pela orientação pelo/para o mercado. Para Vainer,

O neourbanismo privilegia a negociação e o compromisso em detrimento da aplicação


da regra majoritária, o contrato em detrimento da lei, a solução ad hoc em detrimento da
norma. Mas a flexibilidade não é senão um dos elementos do novo modelo. A
transposição de conceitos e métodos do planejamento estratégico empresarial, nascido
na Harvard Business School, conduziu rapidamente a que as cidades fossem, elas
também, pensadas como empresas, em competição umas com as outras. […] E, já que a
cidade é uma empresa, como tal deve ser conduzida. Por conseguinte, há de ser
entregue, sem hesitação e sem mediações, a quem entende de negócios: os empresários
capitalistas. As parcerias público-privadas são a nova senha também nas cidades (2011:
13).

O embrião dessa perspectiva “empresarial” e “mercadológica” se apresenta, no


início da década de 90, na cidade catalã de Barcelona (que foi eleita, em 86, para sediar
os Jogos Olímpicos de 1992). Segundo Sanchez, as publicações e documentos que
condensam as principais diretrizes do modelo de planejamento urbano levado a termo
naquela cidade apontam para “um grande comprometimento das agências de
cooperação e instituições multilaterais [como o FMI, a OMC, o Banco Mundial e a
ONU] com a difusão dos chamados “modelos” e seu ideário” (Sanchez, 2001: 32).
A velocidade de propagação do referido modelo de cidade, sobretudo em função
do protagonismo das agências multilaterais de cooperação, associado à influência dos
experts catalães, “permite-nos o entendimento das conexões entre o chamado
“pensamento global” e a ideologia neoliberal”. (Sanchez, 2001: 32). As cidades, ao
assumirem a qualidade de mercadorias, são tornadas fruto de uma estratégia global de
produção do espaço.
Sob essa nova concepção de planejamento, as intervenções urbanas e os
instrumentos elaborados para tal sustentam-se em propostas de “revitalização”,

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

“preservação”, “refuncionalização”, “competitividade”, “marketing urbano” – discursos


e práticas que camuflam e revelam tanto representações, quanto disputas materiais e
simbólicas para sua efetivação, demonstrando pouca atenção/preocupação em relação
aos desejos e demandas legítimos da maioria dos citadinos. Os projetos que se
apresentam – sobretudo aqueles voltados para as artes e a cultura, os esportes e o lazer –,
além de “mega”, possuem um fabuloso apelo simbólico e convocam a população a um
tipo de participação que poderíamos chamar de contemplativa ou, segundo Sanchez, a
um “patriotismo de cidade” (Sanchez, 2001).
Os meios midiáticos47, através da forma espetacular com que tratam o cotidiano
e o processo de produção/renovação do espaço urbano, assumem um papel fundamental
e estratégico no estímulo a essa forma de “participação”, sendo constantes as
campanhas que, de maneira clara ou subliminar, incitam a população a uma adesão às
políticas e aos projetos em curso na cidade, bem como difundem formas e usos
adequados de determinados equipamentos urbanos. Para Sanchez, a “política de
comunicação social, além de instrumento para a renovação urbana, visa a construir
uma ordem urbana sob a qual as formas de viver a cidade que não se adaptem à
cidade-pátria são interpretadas como “ingovernabilidade”, desordem.” (2001: 45).
Nesse novo momento das cidades, os projetos apresentados à população são, em
geral, justificados a partir do legado que deixarão para as cidades: “Em troca do
negócio, nos diz, vamos cuidar do meio ambiente, dos transportes, da questão social.
[…] O legado, já sabemos de antemão: a socialização dos custos e a privatização dos
benefícios. E cidades ainda mais desiguais e injustas” (Vainer, 2011: 14). Em resumo:
dívidas, desperdício de dinheiro público, dentre outros.
A legitimidade das propostas decorre, sobretudo, do recurso ao saber técnico
produzido por “experts”, que são recrutados nas mais distintas áreas de saber:

Publicitários, consultores em marketing, produtores culturais, conselheiros em


comunicação e pesquisadores de mercado são os agentes exemplares que emergem

47
Quando falamos de mídia, referimo-nos às empresas de comunicação de ampla difusão e alcance no
território nacional e que reproduzem a ideologia hegemônica. Segundo Canclini, Uma descoberta que se
confirma em diversas pesquisas dos últimos anos é que a imprensa, o rádio e a televisão contribuem para
reproduzir, mais do que para alterar, a ordem social. Seus discursos têm uma função de mimese, de
cumplicidade com as estruturas sócio-econômicas e com os lugares comuns da cultura política. Mesmo
quando registram manifestações de protesto e testemunham a desigualdade, editam as vozes dissidentes
ou excluídas de maneira a preservar o status quo. (2002: 50)

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

como figuras centrais associadas à gestão empresarial das cidades. Têm como missão
dar forma mercadológica aos projetos políticos das coalizões com interesses localizados
(Sanchez, 2001: 40).

Bem sabemos que a justificativa de determinadas políticas ou intervenções


urbanas a partir do acionamento de um saber técnico-científico não é novo na história da
Cidade. Já na virada do século XIX para o século XX e, principalmente, sob o governo
de Pereira Passos, entre 1902 e 1906 – quando o que se propagava era a necessária
adesão da Cidade a um projeto de modernidade (que podemos traduzir como sua
assunção definitiva de um caráter capitalista) – a associação entre política e saber
técnico-científico já era bastante comum. Segundo Rodrigues, naquele momento

ganham importância os laudos científicos e três instituições funcionam como respaldo


do progresso e avaliadoras do término das reformas: o Clube de Engenharia – que
movimenta a “elite técnica” e se assenta nas figuras de Paulo de Frontin e Francisco
Bicalho, além do apoio de Lauro Muller – institui as leis de desapropriação; a Saúde
Pública, por intermédio de Oswaldo Cruz, que define os critérios de civilidade e atua
como instrumento de controle da vida social, estabelecendo os padrões mínimos de
higiene e saneamento para a cidade e sua população; e a polícia, que cria as condições
de defesa dos padrões burgueses de educação e garante a renovação. Com uma nova
estrutura, amplia suas funções e ganha condições de cobrar as posturas municipais e
cuidar do despejo das áreas desapropriadas (2009: 111).

A intolerância frente à desordem – o receituário da “tolerância zero” se espalha…

Na contemporaneidade, práticas similares tornam-se cada vez mais frequentes,


sobretudo aquelas que, em nome do restabelecimento da ordem e da segurança,
contribuem para o fortalecimento do poder punitivo como modo de administração dos
efeitos das políticas neoliberais sobre os segmentos pobres das sociedades. Wacquant
(2001), embora desenvolva sua análise a partir da observação de sociedades ditas
avançadas, alega que, hoje, a maioria das intervenções urbanas não pode prescindir da
lei e da ordem. Neste sentido, a desregulação social seria compensada pela expansão do
Estado Penal, que pauta sua intervenção em intervenções sustentadas, prioritariamente,
na repressão à criminalidade e no combate à violência, sobretudo nos grandes centros
urbanos onde efeitos das políticas econômica e social em curso se apresentam de forma
mais evidente.

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

Da mesma maneira que o neoliberalismo teve seus ideólogos e o modelo de


planejamento estratégico das cidades foi gestado intelectualmente e difundido por
alguns de seus mentores, a dita “política de tolerância zero” – cuja experiência pioneira
foi levada a cabo por Rudolph Giuliani, prefeito de Nova Iorque entre 1994 e 2001 –
pautou-se em ideias de William Bratton, ex-chefe da polícia Nova Iorquina, além de
Charles Murray, James Q. Wilson e George Kelling. Segundo Wacquant (2001), foram
eles importantes autores de textos que traziam elementos que dariam suporte à referida
política. Em linhas gerais, o que preconizavam é que o mal deveria ser cortado pela raiz
e, neste sentido, mesmo os pequenos delitos, as incivilidades, tudo aquilo que
perturbasse a ordem pública e os direitos do “bom cidadão” precisaria ser reprimido. O
que sustentava tal pressuposto era a tão propalada “teoria da vidraça quebrada”,
formulada por James Wilson em 1982, segundo a qual “lutando passo a passo contra os
pequenos distúrbios cotidianos é que se faz recuar as grandes patologias criminais”
(Wacquant, 2001: 25).
Fato é que grande parte das ações repressivas que foram empreendidas em Nova
Iorque sob tal justificativa passaram a recair sobre a miséria. Ou seja, verificou-se,
progressivamente, a criminalização da pobreza com a montagem de um aparato
repressor policial a partir da liberação de “um cheque em branco para perseguir
agressivamente a pequena delinquência e reprimir os mendigos e os sem-teto nos
bairros deserdados” (Wacquant, 2001: 25); isto sem falar em outras medidas não
menos polêmicas e coercitivas, como a paulatina “mutação do welfare em workfare e a
instituição do trabalho assalariado forçado para as pessoas ‘dependentes’ das ajudas
do Estado” (Wacquant, 2001: 43), disseminando-se, assim, a ideia de que na “excessiva
generosidade” das políticas sociais estaria a origem da violência.
Todas as práticas adotadas em termos de segurança em Nova Iorque visavam o
atendimento a um objetivo principal:

refrear o medo das classes médias e superiores – as que votam – por meio da
perseguição permanente dos pobres nos espaços públicos (ruas, parques, estações
ferroviárias, ônibus e metrô, etc.). Usam, para isso três meios: aumento em 10 vezes dos
efetivos e dos equipamentos das brigadas, restituição das responsabilidades
operacionais aos comissários de bairro com obrigação quantitativa de resultados, e um
sistema de radar informatizado com arquivo central sinalético e cartográfico consultável
em microcomputadores a bordo dos carros de patrulha) que permite a redistribuição
contínua e a intervenção quase instantânea das forças de ordem, desembocando em uma

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

aplicação inflexível da lei sobre delitos menores tais como a embriaguez, a jogatina, a
mendicância, os atentados aos costumes, simples ameaças a ‘outros comportamentos
anti-sociais associados aos sem-teto’ (Wacquant, 2001: 26).

Para Bratton, chefe da polícia nova-iorquina de então, os inimigos a serem


combatidos eram, prioritariamente, aqueles que abordavam os motoristas nos sinais de
trânsito, os “pequenos passadores de drogas”, os vagabundos, os pichadores. Em suma,
todos os que não sabiam se comportar em público. Daí a necessidade de se restabelecer
à maioria dos citadinos a tão desejada “qualidade de vida” – traduzida na política de
“tolerância zero”. Assim, o uso de aparatos repressivos por parte do Estado coloca-se
como fundamental para fazer frente ao aumento da insegurança social, demonstrando
que uma “mudança em curso da assistência social para o tratamento penal da
marginalidade urbana” (Wacquant, 2011: 4).
As práticas levadas a termo em Nova Iorque sob o nome de Política de
Tolerância Zero – ou “Política de Qualidade de Vida” – acabaram por se globalizar,
alcançando rapidamente alguns países europeus e chegando também à América Latina.
No caso brasileiro, foi em Brasília, no governo de Joaquim Roriz, em 1999, que pela
primeira vez se falou em “tolerância zero”, num momento em que a cidade estava sendo
acometida por mais uma “onda” de crimes violentos. Entretanto, é no Rio de Janeiro
que, desde 2009 – já sob a gestão do Prefeito Eduardo Paes e em função,
principalmente, dos grandes eventos que a Cidade tem sediado e de outros que estão por
vir –, que os discursos da segurança e da ordem pública assumem centralidade. O
referido ano, inclusive, foi marcado pela vinda de Rudolph Giuliani à Cidade e pelos
elogios que fez às forças de segurança, durante encontro que teve com autoridades
representantes do Governo do Estado e da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro.
Tal qual ocorrido em Nova Iorque, o que constatamos, desde então – o que
também não é inédito em nossa história -, é a realização, pela burguesia e por seus
representantes políticos, da “contenção da pobreza por meio da criminalização dos
pobres”, conforme nos diria Menegat (2008: 155). Segundo este mesmo autor,

Ao reduzir os conflitos a um problema penal, despolitizando-os, o Estado, como comitê


de organização do domínio do grande capital, seleciona os agentes sociais conforme a
sua irrelevância na reprodução das relações sociais, o que invariavelmente recai sobre as
opressões étnicas (negros, árabes, índios), o local de moradia (pobres da periferia) ou as
formas de atuação (movimentos sociais) (Menegat, 2008: 164).

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

Rio de Janeiro: Cidade Maravilha, da DESORDEM e do caos – a adoção de


medidas repressivas para enfrentamento do caos urbano

Pobres, negros, favelados têm sido, neste sentido, os alvos preferenciais das
investidas dessa “política de tolerância zero” que grassa, com vários matizes, na Cidade
do Rio de Janeiro. Para tanto, governos estadual e municipal (e, quando “convocado”
também o federal), cada vez mais articulados, submetem as políticas sociais
(sobremaneira a de assistência social e a de habitação) à política de segurança pública.
Sendo esta última de competência estadual, não é a toa que, no âmbito municipal, ela
terá uma “versão adaptada” – qual seja, de “ordem pública” – organizada a partir da
SEOP, Secretaria Especial da Ordem Pública, não por acaso criada em 2009, já na
gestão do atual prefeito da Cidade. Tal Secretaria apresenta-se como “um órgão
regulador e fiscalizador da atividade econômica, das posturas municipais e
regulamentador do uso do espaço público”, tendo com missão “ordenar os espaços
públicos do Rio de Janeiro fazendo valer as legislações municipais e o Código de
Postura da cidade”48. Os resultados que busca, a partir das suas ações, são bastante
parecidos com aqueles postulados por Giuliani, durante sua gestão na prefeitura de
Nova Iorque:
! Avançar no restabelecimento da Ordem Pública em caráter permanente e
duradouro
! Contribuir para melhora da conservação dos espaços públicos
! Garantir o uso do espaço público de forma segura
! Pôr um fim à desordem urbana, combater os pequenos delitos nos principais
corredores, contribuir decisivamente para a melhoria da qualidade de vida em
nossa cidade49.
Fica patente, a partir da leitura dos resultados perseguidos e das intervenções
realizadas, que enquanto a Medicina Social, com suas práticas higienistas, dava
sustentação às intervenções urbanas e aos recortes estabelecidos em termos de
prioridades às políticas públicas /sociais na virada do século XIX para o XX, em nome
da modernidade vislumbrada para a Cidade, na contemporaneidade é ele – o discurso da

48
http://www.rio.rj.gov.br/web/seop/exibeconteudo?article-id=94564 . Consultado em 10/09/2012)
49
Tais resultados também se encontram expressos no site da SEOP:
http://www.rio.rj.gov.br/web/seop/exibeconteudo?article-id=94564 Acesso em 10/09/2012.

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

lei e da ordem - quem traça os caminhos, inclusive em termos de política urbana, para a
Cidade do Rio de Janeiro do Século XXI.
Na gestão anterior – do Prefeito César Maia -, algumas das ações já haviam sido
esboçadas. Com sua visão mais “engenheira”, Maia esteve à frente da Prefeitura da
Cidade em meados dos anos 90 e voltou no início dos anos 2000 para cumprir mais dois
mandatos, onde realizou intervenções urbanas centradas em obras voltadas para o
embelezamento, principalmente da Zona Sul, a mais elitizada do Rio, além de “dedicar-
se” ao programa Favela-Bairro, provendo algumas favelas de equipamentos urbanísticos
“básicos”, como ruas e acesso aos morros. A “ordem urbana” também esteve dentre as
suas iniciativas: medidas de segurança, ordenação do comércio ambulante, com a
criação de “camelódromos”, definição de locais próprios para estacionamento, retirada
de população de rua, dentre outras.
O ano de 2009, contudo, foi um marco para a Cidade e Paes inaugurou um
momento singular em se tratando de Política Urbana e, mais que isso: de
“articulação/submissão” de outras políticas públicas/sociais a ela. Esse foi o ano em que
a Cidade do Rio de Janeiro – eleita Cidade Olímpica – deu passos mais largos em
direção à consolidação da reforma urbana em curso, fazendo com que os tão aguardados
investimentos públicos e privados começassem a se efetivar e dando “patriótica”
legitimidade às políticas urbanas em desenvolvimento (Maia & Icasuriaga, 2012: 9).
Desde então, a Cidade foi agraciada com alguns títulos como de “Melhor
Destino Gay do Mundo”, de “Patrimônio Cultural da Humanidade” – na categoria
“Paisagem Cultural”-, títulos estes que só ajudam a ratificar a imagem que já vem sendo
lapidada pelo prefeito no sentido de atrair um público consumidor cada vez mais
qualificado e diversificado para a Cidade. Além disso, também sediou uma série de
eventos de porte, sendo o último deles a Rio +20 - a Conferência das Nações Unidas
sobre Desenvolvimento Sustentável.
Entretanto, apesar de todos os “louros” recebidos pela Cidade na última década,
sua imagem ainda não conseguiu se desvencilhar totalmente da violência que, desde os
anos de 1980, com a escalada do tráfico de drogas, tanto a maculou. Não é a toa que
este primeiro mandato de Paes – que será sucedido por um segundo, já definido pelos
eleitores no processo eleitoral ocorrido em outubro de 2012 – tem sido marcado pelo
discurso da lei e da ordem. Ainda que não seja de sua competência o enfrentamento do
tráfico e das milícias (outro modalidade de criminalidade que se espraia pela cidade),

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

Paes tem concentrado grande parte de seus “esforços” na tentativa de “organização do


espaço público” a partir da adoção de medidas repressivas, de cunho policialesco.
Embora seus alvos preferenciais sejam, como já mencionado anteriormente, as
“classes perigosas” – a população em situação de rua50, os ambulantes, os “flanelinhas”,
os usuários de crack (já vulgarmente qualificados de “cracudos”), algumas ações têm
sido dirigidas a outros segmentos: os motoristas que estacionam seus carros em locais
proibidos; os “mijões” (aqueles que urinam em locais públicos, ainda que a cidade não
disponha de banheiros químicos suficientes, sobretudo durante grandes eventos, como
carnaval ou outros grandes espetáculos). De alguma forma, é como se a ordem
precisasse se impor a todos. A única diferença é que, para os mais pobres, o ônus é
muito maior, já que pode significar cerceamento de direitos.
O “choque de ordem” – marca de seu governo, tem provocado uma série de
situações polêmicas, como a que se refere ao recolhimento dos usuários de drogas
ilícitas (inclusive crianças e adolescentes) e a seu encaminhamento para abrigos. Em
2011, por exemplo, muitas organizações da sociedade civil e entidades profissionais
(incluindo o CRESS – Conselho Regional de Serviço Social) manifestaram-se
totalmente contrários à medida adotada pela SMAS nesse sentido, sobretudo pelo fato
de que ela privilegia a repressão em detrimento da prevenção, negligenciando princípios
que, em se tratando de aplicação de medidas de proteção a crianças e adolescentes,
encontram-se tão claramente expressos no ECA: seu reconhecimento enquanto cidadãos
de direitos; a necessidade de proteção integral e prioritária dos direitos de que são
titulares; o respeito à intimidade e ao seu interesse superior; intervenção mínima das
autoridades e instituições; prevalência da família na promoção de seus direitos e na sua
proteção, dentre outros.
Em torno da internação compulsória de adultos dependentes de crack – projeto
que vem sendo defendido pelo prefeito Eduardo Paes e encampado pelo ministro da
Saúde, Alexandre Padilha – ainda não há consenso, tampouco amparo legal. Segundo
Promotores do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, o recolhimento de

50
A atenção à População em Situação de Rua encontra-se prevista como uma das modalidades de atenção
da Proteção Social Especial, compreendendo um conjunto de serviços/programas contemplados pelo
SUAS. O Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua visa prover condições de acolhida na
rede de serviços da Política de Assistência Social e de inserção nas demais políticas, realizando ações de
reinserção familiar e/ou comunitária e contribuindo para a construção de novos projetos de vida,
respeitando as escolhas dos usuários [...] e para restaurar e preservar a integridade e a autonomia da
população em situação de rua” (Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, p. 30).
http://www.mds.gov.br/assistenciasocial/protecaobasica/cras/documentos/Tipificacao%20Nacional%20de
%20Servicos%20Socioassistenciais.pdf Acesso em 18/08/2012

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

maiores de idade usuários de drogas, feito pela prefeitura do Rio, é inconstitucional,


conforme descrito abaixo:

Para o MP, as medidas de remoção compulsória de adultos atualmente não têm


fundamento legal, e o município reconheceu isso quando assinou um termo de
ajustamento de conduta (TAC), em maio de 2012. Os promotores ressaltam que só é
possível privar de liberdade alguém que seja apanhado em flagrante delito ou se há
laudos técnicos que comprovem a necessidade de internação. O MP também contesta as
averiguações criminais pelas quais o morador de rua passa, o que representa um
constrangimento.
O acolhimento e a internação compulsória de menores de idade, instituída por decreto
pela prefeitura do Rio, foi um processo mais simples. Afinal, o município tem o dever
constitucional de zelar pela infância. E, no caso de menores usuários de crack, é
facilmente comprovada a situação de risco para alguém desassistido, sem responsáveis
identificados ou com graves problemas de saúde. Com os adultos, apesar de o crack
também representar uma ameaça, qualquer ação de restrição de liberdade por parte do
poder público pode ser confundida com desrespeito a uma liberdade individual (Ritto,
2012).

O crack – ou qualquer outra droga ilícita – funciona assim como um pretexto


para legitimar a atuação repressiva do governo municipal através das suas diferentes
secretarias (no caso, SEOP, SMAS), sendo auxiliados, inclusive, por outros órgãos
municipais – inclusive a Companhia de Limpeza Urbana – (que, durante as operações,
responsabiliza-se por coletar os pertences dos usuários recolhidos) – uma verdadeira
“operação de guerra” visando remover toda a sujeira da cidade – ou melhor, das áreas
de maior visibilidade. Para tanto, tais operações costumam contar com o apoio da mídia,
que não se cansa de propagandear os efeitos nocivos do crack – o que seria muito bom,
se fosse só isso – mas que, para além, associa-o quase que diretamente aos segmentos
que maculam a imagem que se pretende atribuir à Cidade, ao mesmo tempo em que
arregimenta “simpatizantes” das medidas higienistas atualizadas na história do Rio de
Janeiro. Assim, legitima-se uma intervenção que encara o problema do crack “como
algo da área da segurança pública, e não da assistência social”, conforme sugerido por
Rogério Pacheco Alves, da Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Defesa da
Cidadania (Ritto, 2012).
O “Choque de Ordem” também tem sido contundente em relação aos
ambulantes. Na Zona Sul e no Centro da Cidade, principalmente, há ações que ocorrem

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

diariamente, em vários momentos do dia. O fato de se exercer tamanha repressão sobre


o comércio ambulante nos leva a concluir que, na atual gestão, não existe qualquer tipo
de preocupação com políticas de geração de emprego e renda numa fase do capitalismo
em que se torna cada vez mais nítido que a questão do desemprego se apresenta com um
caráter estrutural, afligindo, inclusive, os países desenvolvidos. Referindo-se aos novos
modos de ser da informalidade – e caracterizando uma primeira modalidade tradicional,
que remeteria a uma categoria que envolveria os ambulantes, afirma Antunes:

Nesse universo encontramos "os menos 'instáveis', que possuem um mínimo de


conhecimento profissional e os meios de trabalho e, na grande maioria dos casos,
desenvolvem suas atividades no setor de prestação de serviços", de que são exemplos as
costureiras, pedreiros, jardineiros, vendedor ambulante de artigos de consumo mais
imediato, como alimentos, vestuário, calçados e bens de consumo pessoal, camelôs,
empregado doméstico, sapateiros e oficinas de reparos. […] Esses trabalhadores mais
"instáveis" podem inclusive ser subempregados pelos trabalhadores informais mais
"estáveis (2011: 408).

A criminalização dos trabalhadores excluídos do mercado formal de trabalho


não é capaz de, por si, “incentivá-los” ao reingresso à formalidade – até porque isto não
depende de vontade individual. Além disso, significa desconsiderar o paradoxo presente
na própria situação vivida por muitos trabalhadores informais, sobretudo os ambulantes,
conforme nos demonstra Tissi,

O processo e as condições de trabalho no comércio ambulante atestam que inclusão e


exclusão não são pólos antagônicos. Os ambulantes fazem parte de um processo
produtivo e, mais do que isso, de um processo social que se desdobra em múltiplas
relações e dimensões sociais. A inserção no trabalho promove a integração econômica,
permitindo renda e possibilitando a subsistência própria e da família, o acesso ao
consumo e a recursos materiais. À integração econômica imbrincam-se ganhos no plano
simbólico, como são os valores éticos e morais associados à inserção no trabalho e aos
seus resultados materiais […] Neste sentido, os vendedores ambulantes inserem-se
numa extensa trama de trocas sociais de diversos tipos e qualidades, o que não permite
qualificá-lo somente como espaço de exclusão. É buscando integrar-se
economicamente, buscando meios de sobrevivência e reproduzindo-se como
trabalhadores que acessaram o comércio ambulante; constituem-se na identidade de
trabalhadores e provedores da família, o que lhes confere a dignidade e o respeito na
rede de relações pessoais, incluindo familiares, amigos, vizinhos. Ainda que dentro de

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

limites estreitos, a inserção no comércio ambulante é possibilidade de autonomia, de


decisão e gestão das próprias vidas (2000: 78-79).

Quanto às “políticas” empreendidas pelo Estado em relação aos segmentos


sociais aqui referidos, constatamos um enorme retrocesso frente a tudo o que se
conquistou, desde 1988, no que se refere aos direitos sociais. No que tange à assistência
social, o fato dela ter sido reconhecida como direito e afirmada no conjunto das políticas
públicas, a partir da constituição de 1988 e, especialmente, após a promulgação da Lei
Orgânica da Assistência Social, em 1993, deixa claro que ainda permanece um abismo
enorme entre o marco legal e a possibilidade de sua efetivação. Conforme avalia
Yasbek,

na árdua e lenta trajetória rumo à sua efetivação como política de direitos, permanece na
Assistência Social brasileira uma imensa fratura entre o anúncio do direito e sua efetiva
possibilidade de reverter o caráter cumulativo dos riscos e possibilidades que permeiam
a vida de seus usuários (2004: 26).

As questões que vimos problematizando até então têm nos despertado a


atenção para os visíveis impactos das ações intervenções aqui descritas sobre três
bairros contíguos, situados na Cidade do Rio de Janeiro – quais sejam, Lapa, Glória e
Catete:
A Lapa é um bairro da área central da cidade do Rio de Janeiro, cuja condição
oficial de bairro foi estabelecida em 17de maio de 2012, pela Lei Municipal 5.407. Até
então, a Lapa era parte do Centro. É um bairro conhecido como berço da boemia carioca
e, durante anos, sua imagem esteve associada à prostituição, à malandragem. Grande
parte de sua arquitetura, edificada na época do Brasil Colonial, é importante referência
para a área. Seus arcos, que serviram como aquedutos e, até bem pouco tempo, foram
utilizados para o tráfego de bondes que se dirigiam ao morro de Santa Teresa, é o
símbolo mais conhecido do bairro, ainda que outras edificações, como o Circo Voador e
a Fundição Progresso, também sejam importantes referências arquitetônicas e culturais
da área.

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

A partir da década de 90, principalmente, com o movimento de valorização do


Centro, a área passou por um processo de “revitalização” 51 e vem se tornando um
importante espaço cultural da Cidade, apesar de poucos investimentos por parte do
Poder Público em termos infraestruturais. Nos últimos anos, tem havido um crescimento
da população fixa do bairro (novos moradores) além de uma procura cada vez maior por
parte de turistas, que, em busca das diversas expressões musicais/culturais lá presentes
transformam-no numa “Lapa de todas as tribos”. O chamado “Choque do Ordem” lá
sempre se faz presente, seja na abordagem a motoristas que estacionam irregularmente,
seja na “formalização” das atividades informais, através da padronização de barracas,
seja na perseguição aos vendedores ambulantes, seja no recolhimento compulsório de
“crianças e adolescentes” usuários de drogas.
Glória e Catete, por sua vez, são bairros que já tiveram seus dias de glamour,
pois lá residiu, por décadas, a burguesia carioca. O Catete, inclusive, abriga o prédio
que foi, por décadas, residência oficial da Presidência da República, antes da
transferência da Capital para Brasília, e onde ocorreu o suicídio de Getúlio Vargas. Com
casarões imponentes, com hotéis onde se hospedaram visitantes ilustres, tais bairros
amargaram anos de decadência e, hoje, são marcados por uma heterogeneidade de
classes, por favelas recentemente pacificadas, por população em situação de rua, por
ambulantes em suas calçadas, por usuários de drogas nas esquinas e por uma tentativa
ferrenha da Prefeitura, em nome da imagem de Cidade perseguida, de ordenar o espaço
urbano.
Além disso, constata-se um crescente interesse por parte da iniciativa privada –
cujo pontapé inicial foi dado pelo empresário Eike Batista, com a aquisição da
concessão da Marina e da compra do Hotel Glória -, de investir na localidade, o que tem
feito disparar o preço dos imóveis (um aumento de cerca de 200%, segundo estimativas
do Sindicato de Habitação do Rio - SECOVI-Rio), expulsando, direta ou indiretamente,
antigos moradores da localidade. O grupo comandado pelo referido empresário (o EBX)
investe, ainda, no projeto de “Corredor Cultural da Glória, que pretende transformar o
morro da Igreja de Nossa Senhora da Glória numa espécie de Montmartre Carioca”
(Schmidt, 2012, p. 2), que abrigará artistas, floristas e músicos, dando um ar francês ao
51
É importante que se esclareça que a Lapa nunca foi um bairro “sem vida”, o que justificaria, em termos
“conceituais”, revitalizá-la. Entretanto, o sentido de revitalização urbana refere-se à apropriação cultural e
econômica de espaços e imagens das cidades com o objetivo de atribuir novos usos e sentidos a um lugar,
detendo, não raras vezes, um caráter segregador e higienizador. Em geral, as “políticas de revitalização
urbana” induzem à reapropriação desses espaços por outros sujeitos, em geral mais “qualificados” - leia-
se turistas e investidores.

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

bairro. Durante os Jogos Olímpicos de 2016, as competições de vela ocorrerão na Baía


de Guanabara – mais especificamente na Praia do Flamengo/Enseada de Botafogo -,
enquanto as de atletismo, ciclismo, marcha e maratona terão lugar no Aterro do
Flamengo, daí a necessidade de se investir nos bairros em foco para prepará-los para
receberem seu público.

6otas inconclusas, pois espetáculo urbano continua…

Diante do que foi discutido, o que se constata é que o discurso recorrente e


legitimador da política que marca o contexto carioca sustenta-se em
“operações”/intervenções encaminhadas de maneira que a “sujeira” (tudo aquilo
considerado capaz de macular a imagem de cidade perseguida) vai sendo empurrada
para debaixo do tapete. Muitas destas ações são legitimadas pelo potencial que detêm de
atração de investimentos voltados ao terciário avançado, bem como pela possibilidade
de restabelecerem “vida” a locais que, ao longo dos anos, passaram por processos de
deterioração/obsolescência.
A “cultura”, em certa medida, transforma-se em instrumento de seleção
urbanística e de "gentrificação” de espaços urbanos reconvertidos – na verdade, um
instrumento de exclusão e habilitação de determinadas áreas da cidade –, razão pela
qual se investe num alto padrão de vigilância que, para além da função da segurança,
volta-se claramente para a seleção social de usuários ou consumidores (Icasuriaga,
2005: 68). Assim, as reformas urbanas promovem segregação e hierarquização dos
espaços, aprofundando a especulação imobiliária que expulsa antigos moradores – os
mais pobres, obviamente - de determinados bairros. Fica claro, destarte, que o que se
busca é o enobrecimento de áreas de grande interesse para o capital. Não é nada casual
o fato de se constatar um acelerado investimento nestes locais, diante da proximidade
dos megaeventos esportivos que estão por vir. Além disso, ordem, controle e vigilância
dos espaços públicos passam a ser, assim, o mote das ações que evidenciam que o que
se vislumbra é o combate aos pobres, e não à pobreza. Enfim, megaprojetos, cuja
“maravilha” é duvidosa, aprofundam as contradições que teimam em marcar o “cenário”
da Cidade Maravilhosa.

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

MAPEAME6TO DE I6DICADORES HABITACIO6AIS SOCIAIS:


uma contribuição para planejamento de políticas públicas

Deborah Marques Pereira


Universidade Estadual de Montes Claros
deborahmarques.pereira@gmail.com

Anete Marília Pereira


Universidade Estadual de Montes Claros
anetemarilia@gmail.com

Marcos Esdras Leite


Universidade Estadual de Montes Claros
marcosesdras@ig.com.br

Aline Crystiane Carvalho Mendes


Universidade Estadual de Montes Claros
alinecryscmendes@yahoo.com.br

Resumo

As cidades são espaços em constante discussão científica devido a sua dinamicidade e


multifuncionalidade. Dentre as abordagens, destacam as que discorrem sobre as desigualdades sócio-
espaciais. Cabe ao Poder Público o processo de elaboração de estratégias de apropriação dos espaços,
primando por dirimir as disparidades sócio-espaciais e buscando garantir o bem-estar de toda a
população. O presente trabalho busca demonstrar a utilização de Indicadores Sociais combinado com as
Geotecnologias para subsidiar o planejamento urbano de políticas públicas. A perspectiva de análise se
concentrou na análise dos aspectos habitacionais por entender que são determinantes na visualização da
segregação sócio-espacial. Fez-se um vasto levantamento bibliográfico e foram utilizados Indicadores
Sociais de habitação disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e o Sistema de
Informação Geográfica para espacialização dos dados. Como âmbito da pesquisa teve-se a cidade média
de Montes Claros. Observou-se que esta possui expressiva desigualdade sócio-espacial, com a parcela da
população com maior poder aquisitivo localizada na parte centro-oeste.

Palavras-chave: Desigualdade, Habitação, Montes Claros

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

Introdução

As urbes são objetos de constante discussão no meio científico, dada a sua


dinâmica e multifuncionalidade. Como locus social, as cidades se configuram de acordo
com a capacidade de apropriação do espaço, logo, quem possui mais recurso econômico
aloca em locais mais estruturados em detrimento dos menos favorecidos.
Portanto, toda sociedade apresenta alguma forma de segregação entre seus
membros de maneira a permitir a identificação de grupos com as mesmas
características. Entretanto, estas formas de divisão não devem ser baseadas em
caracteres voltados para a exploração e dominação desumana de um grupo sobre o
outro.
Diante desse cenário, a habitação se demonstra como forte aspecto que permite a
identificação e divisão sócio-espacial52 dos grupos. Assim, o presente estudo objetiva
analisar a segregação sócio-espacial a partir das feições da habitação com uso dos
Indicadores Sociais combinado com as Geotecnologias. Para elucidar essa análise e
sistematizar o aspecto teórico com o real tomou-se como referência a cidade de Montes
Claros/MG.
O caminho percorrido foi iniciado com uma revisão bibliográfica de
juristas, urbanistas, geógrafos e sociólogos, que discorrem sobre a temática em
comento. Posteriormente, foi construído um Sistema de Indicadores Sociais de
habitação composto por seis variáveis, disponibilizadas pelo Censo 2010 do Instituto
Brasileiro Geografia e Estatística – IBGE, a saber: a) domicílios particulares
improvisados; b) domicílios particulares permanentes tipo casa; c) domicílios
particulares permanentes sem banheiro ou sanitário; d) domicílios particulares
permanentes com 04 banheiros ou mais; e) domicílios particulares com até 04
moradores; e f) domicílios particulares com mais de 04 moradores. Estas variáveis
possibilitaram a visualização de características habitacionais da cidade.

52
Muito se tem discutido sobre a grafia correta para “sócio-espacial” e “socioespacial”. Nas palavras de
Souza (2009, p. 25) “Existe a possibilidade de dupla grafia − o que constitui, aliás, algo conceitualmente
conveniente e relevante. “Socioespacial”, sem hífen, se refere somente ao espaço social (por exemplo,
tomando-o do ponto de vista do resultado de sua produção em determinado momento histórico, real ou
potencial, como em um plano de remodelação urbanística); de sua parte, “sócio-espacial”, com hífen, diz
respeito às relações sociais e ao espaço, simultaneamente (abrangendo, diretamente, a dinâmica da
produção do próprio espaço, no contexto da sociedade concreta como totalidade)”. Assim no presente
artigo expressão “sócio-espacial” foi considerada mais apropriada, pois quando se faz alusão à segregação
sócio-espacial se tem como correspondência simultânea às relações sociais e o espaço social, que são
distintos e interdependentes.

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

Posteriormente, em ambiente de Sistema de Informação Geográfica (SIG) foi


constituído o banco de dados dos Indicadores Sociais a serem mapeados. Pelo IBGE,
também foram selecionadas representações vetoriais de 361 setores censitários da área
urbana de Montes Claros e em seguida foi realizada a junção das variáveis em formato
de tabela nas representações geográficas em formato shapefile. A organização das
variáveis em ambiente SIG teve como referencia os códigos dos setores utilizando a
ferramenta join.
Nesse contexto, conforme Jannuzzi (2009) e Vieira (2005) foram destacados em
mapas de graduação em cores os melhores indicadores, intermediários melhor,
intermediários pior e os piores indicadores presentes na área urbana de Montes Claros.
Todo o procedimento operacional foi realizado no software ArcGis 10, com licença
disponibilizada pelo Laboratório de Geoprocessamento da Universidade Estadual de
Montes Claros – UNIMONTES.
Para ratificar os resultados obtidos foram visitados os locais díspares e
fotografadas as habitações. Esta etapa foi importante para comprovar a veracidade da
espacialização53 dos Indicadores Sociais de habitação com o aspecto visível na cidade
de Montes Claros.
Logo, o presente estudo demonstra uma nova forma de vislumbrar a
desigualdade sócio-espacial em Montes Claros através da espacialização de Indicadores
Sociais de Habitação. Esta metodologia já se mostrou eficaz em outros estudos como:
Genovez (2002) realizando a análise espacial intraurbana no estudo da dinâmica de
exclusão/inclusão social em São José dos Campos (SP); Nunes (2007) com o estudo da
produção do espaço urbano e exclusão social em Marília (SP); Vieira (2005) avaliando
o uso dos indicadores sociais de desigualdade intraurbana; entre outros.

Da cidade à segregação

Antes de discorremos sobre a cidade e a segregação faz-se mister discorrer sobre


a definição da cidade. Contudo, compreender o que é a cidade é, sobretudo complexo,
pois o seu significado pode ser obtido por distintas formas.
Sobre as várias visões das cidades ressaltam os ensinos de Rolnik (1995: 12)
quando relata que o espaço urbano deixa "de se restringir a um conjunto denso e

53
O autor Souza (2006) esclarece que espacializar refere-se a um tipo de organização espacial e de
processo de produção e apropriação do espaço por uma determinada sociedade.

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

definido de edificações para significar, de maneira mais ampla, a predominância da


cidade sobre o campo". A preponderância da cidade não é mais descrita pela limitação
de um espaço estático, mas sim pela dinamicidade e mutabilidade de suas formas e
significâncias. Assim, a cidade pode apresentar características diversas e Rolnik (1995)
ressalta que dentre as várias formas da cidade, ela pode ser observada como ímã, escrita,
política e mercado.
A cidade descrita como ímã reflete a ideia de um local de atração e concentração
de pessoas, Rolnik (1995) discorre que antes da cidade ser um local de trabalho e
moradia ela é um ímã. Por outro lado, a cidade como escrita demonstra a necessidade de
memorizar, medir e gerir o trabalho coletivo. A cidade política ou “civitas” implica na
busca pela manutenção da vivência coletiva, assim, “da necessidade de organização da
vida pública na cidade, emerge um poder urbano, autoridade político-administrativa
encarregada de sua gestão” (Rolnik, 1995: 19).
Além das características supracitadas, tem-se a cidade como mercado,
demonstrada pela aglomeração num determinado espaço de uma expressiva população
que cria o mercado. O que se tem como evidência na cidade mercado é a divisão do
trabalho entre cidade e campo e a especialização do trabalho no interior da cidade
(Rolnik, 1995).
Na atualidade observa-se a supremacia da cidade do capital, esta nova
conjuntura faz com que haja a intensificação da mercantilização do espaço urbano.
Diante disto, a organização da cidade marcada pela divisão da sociedade em classes
sociais e a instauração de um novo tipo de poder interfere diretamente na condução da
vida dos cidadãos (Rolnik, 1995).
O autor Castells (1983) propõe estudar a cidade como um “espaço de consumo
coletivo” no qual se desenvolvem as relações capitalistas de produção. A partir desta
consideração se estaria diante de uma visão mais ampla da cidade.
Desta feita, considerar a cidade como um “espaço de consumo coletivo” é
reconhecer que o ambiente urbano é determinado pelas forças produtivas e pelas
relações de produção. Logo, a terra urbana é vista como uma mercadoria, e como ensina
Marx (1988: 165) “a mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual
pelas suas propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie” e esta é a
“célula germinativa do modo de produção capitalista”. Logo, a mercadoria é uma
unidade indissolúvel de valor de uso e de valor de troca que se entende a todas as
relações sociais numa sociedade capitalista.

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

Salientam-se também as reflexões de Carlos (2004) sobre os apontamentos


marxistas que diz que o capital é um elemento de produção espacial. Com isto, a cidade
passa é produzida em função do sistema capitalista. Logo, o espaço urbano denota as
contradições da sociedade, em que os seres humanos se diferem pelo que possuem e por
sua condição de proprietários de bens (Carlos, 2004).
A constituição da cidade é dotada por caracteres de dominação e organização da
produção, nos dizeres de Singer (1980: 8) “a cidade é, via de regra, a sede do poder e,
portanto da classe dominante”. Logo, a cidade é um modo de organização espacial que
permite à classe dominante maximizar a transformação do excedente. Neste cenário
destacam-se as relações sociais presentes nas cidades, o que vai de encontro com Carlos
(2004: 15) que diz “a cidade pode ser entendida, dialeticamente, enquanto produto,
condição e meio para a reprodução das relações sociais, enquanto produtoras da vida
humana, no sentido amplo da reprodução da sociedade. Aqui a cidade se reafirma
enquanto espaço social”.
A cidade deve ser compreendida como fruto das relações sociais e isso denota
uma complexidade cada vez mais latente. Diante disso, devem-se considerar as
condutas sócio-espaciais dos sujeitos que produzem as cidades. O autor Carlos (2004:
18) certifica que:

A vida cotidiana [...] se definiria como uma totalidade apreendida em seus momentos
(trabalho, lazer e vida privada) e, nesse sentido guardaria relações profundas com todas
as atividades do humano – em seus conflitos, em suas diferenças. [...]. Nesta direção, o
sentido da cidade é aquele conferido pelo uso, isto é, os modos de apropriação do ser
humano para a produção de sua vida (e no que isto implica).

Salienta-se que os modos de apropriação e produção não são igualitários no


contexto capitalista da cidade. Os economicamente favorecidos possuem mais acesso,
apropriação e domínio ao espaço urbano 54 em detrimento dos menos favorecidos.
Corrêa (1995) descreve com propriedade quem são os produtores do espaço urbano: a)
proprietários fundiários e dos meios de produção; b) promotores imobiliários; c) Estado
e d) grupos sociais excluídos.

54
No presente trabalho considerou-se cidade como sinônimo de espaço urbano, pois conforme Corrêa
(1995, p. 5) “o geógrafo considera a cidade, de um lado, como um ou vários núcleos localizados em um
região ou país; [...] de outro, a cidade é considerada como espaço urbano, sendo analisada a partir de
mapas de grande escala. Estas duas abordagens não são mutuamente excludentes. Nem do âmbito
exclusivo dos geógrafos, apesar das diferenças de abordagem em relação aos demais estudiosos”.

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

Desse modo, os sujeitos produtores da cidade são responsáveis pela


fragmentação contida no mesmo espaço. Como assevera Corrêa (1995: 62) a
fragmentação “verifica-se basicamente devido ao diferencial da capacidade de cada
grupo social tem de pagar pela residência que ocupa, a qual apresenta características
diferentes no que se refere ao tipo e à localização”.
Contudo, a segregação não se refere somente à dimensão residencial, pois ela é
muito mais ampla, sendo percebida como a fragmentação não só dos espaços urbanos,
mas como a fragmentação e a restrição dos diferentes usos que podem fazer da cidade.
Nas palavras de Corrêa (1995: 65-66):

A segregação residencial pode ser vista como um meio de reprodução social, e neste
sentido o social age como um elemento condicionador sobre a sociedade. Neste sentido,
enquanto o lugar de trabalho, fábrica e escritórios, constitui-se no local de reprodução,
as residências e os bairros, definidos como unidades territoriais e sociais, constituem-se
no local de reprodução. Assim, a segregação residencial significa não apenas um meio
de privilégio para a classe dominante, mas também um meio de controle e de
reprodução social para o futuro.

Desse modo, observa-se que a segregação residencial não se limita a casa e/ou
moradia, ela estende ao aspecto sócio-espacial, político-administrativo e econômico,
fazendo com que as relações estabeleçam um elo "no plano do morar e de tudo que essa
expressão significa enquanto realização da vida humana." (Carlos, 2004: 47).
Nesse ambiente urbano, complexo e fragmentado a segregação se demonstra
como um “processo segundo o qual diferentes classes ou camadas sociais tendem a se
concentrar cada vez mais em diferentes regiões gerais ou conjuntos de bairros” (Villaça,
2001: 142). Avançando no conceito, Castells (1983: 203) afirma que se entende por
segregação a “tendência à organização do espaço em zonas de forte homogeneidade
social interna e com intensa disparidade social entre elas, sendo esta disparidade
compreendida não só em termos de diferença, como também de hierarquia”.
Souza aponta dois aspectos que permeiam a segregação, o primeiro refere-se à
segregação atrelada as disparidades estruturais na distribuição da riqueza socialmente
gerada e do poder. Já no segundo “a segregação deriva de desigualdades e, ao mesmo
tempo, retroalimenta desigualdades, ao condicionar a perpetuação de preconceitos e a
existência de intolerância e conflitos” (Souza, 2008: 84).

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

Diante desses aspectos tem-se a segregação imposta e a auto segregação. A


primeira forma refere-se a grupos sociais que possuem oportunidades restritas e nulas de
onde morar, já a segunda traduz a faculdade da classe dominante de escolher onde e
quando segregar (Corrêa, 1995). Logo, quando o grupo dominante decide onde será
estabelecida a sua residência, acaba por determinar também a do outro grupo,
repercutindo diretamente na formação do espaço urbano e de seus serviços.
Em suma, definir a cidade não é tarefa fácil, porém deve-se admitir que ela
possui diversos conceitos e distintas formas de análises que irão depender da dimensão
do estudo de cada trabalho. Nos dizeres de Braz (2006: 285) “a cidade não é apenas um
aglomerado de construções ou de sistemas viários, ela deve ser vista em seu sentido
humano e desenvolvidas para atender à coletividade das pessoas que nela vivem”.
Logo, a presente pesquisa não possui como objetivo a definição acabada da cidade, mas
sim suscitar que a cidade possui múltiplos olhares e que nele está presente a
desigualdades de apropriação e de usos do espaço. No próximo tópico deste artigo serão
discutidas as principais nuances do planejamento urbano no Brasil.

Considerações sobre o planejamento urbano no Brasil

A origem do pensamento urbanístico no contexto brasileiro é recente e conforme


os apontamentos apresentados por Villaça (1999) as atividades urbanísticas datam
pouco mais de um século.
Destarte, Villaça (1999) adverte que a reconstituição histórica do planejamento
urbano no Brasil se apresenta como um tema difícil face à sua formação, pois o discurso
e a prática se misturam de forma complexa dificultando sua separação. Outra
dificuldade apresentada pelo autor é a exposição de várias formas possíveis de
planejamento urbano, como o zoneamento, planos setoriais, planos diretores, projeto de
cidades novas e outras.
Assim, muitas vezes o plano se confunde com o projeto, porém quando se trata
de pratica e discurso do Estado sobre o espaço urbano estar-se diante de plano, pois: a)
há a abrangência de todo o espaço urbano e desse espaço com vários elementos
constitutivos no tocante aos objetivos; b) continuidade de execução, necessidade de
revisões e atualizações; c) Intervenção da ação sobre grande parte da população; e d)
tomada de decisões políticas com maior participação municipal (Villaça, 1999). Diante

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

as características que englobam os planos, Villaça (1999) apresenta cinco tipos de


planejamento lato sensu, descritos pela figura 01:

Figura01 – O Planejamento urbano lato sensu

Fonte: Villaça, 1999


Org.: PEREIRA, Deborah Marques, 2012

Assim, para Villaça (1999) o Planejamento lato sensu engloba o planejamento


stricto sensu (plano diretor), o Zoneamento, o planejamento para novas cidades, o
urbanismo sanitarista e os projetos (planos de infraestrutura).
No Brasil, Villaça (1999) relata que o planejamento pode ser dividido em três
períodos distintos: 1875 a 1930; 1930 a 1990; e de 1990 em diante. No quadro 01 estão
expostos os períodos e os principais eventos descritos por Villaça (1999):

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Quadro 01 – Evolução do planejamento urbano no Brasil


Período Características
" Influência francesa;
" Enfatiza a beleza monumental e higienista;
" 1875 - 1º plano de conjunto do Rio de Janeiro - 1º Relatório da
De 1875 a 1930: Plano de Comissão de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro;
Melhoramentos e " 1875 a 1906 – ascensão dos planos de melhoramentos e
Embelezamento embelezamento;
" 1906 a 1930 – declínio dos planos de melhoramentos e
embelezamento;
" Plano de Pereira Passos – ápice desse período;
" Planos elaborados por funcionários municipais;
" Fim do período - Plano Agache no Rio e o Plano de Avenidas de
Prestes Maia em São Paulo.
" De 1930 a 1940 – Planos de remodelações dos centros do Rio, de
São Paulo, de Porto Alegre ou do Recife;
" Em 1950 – necessidade de integração entre os vários objetivos e
ações dos planos urbanos. Surge o plano diretor;
" De 1960 a 1970 – desenvolve o planejamento urbano ou
De 1930 a 1990: planejamento local integrado;
Ideologia do " Em 1970 – os planos passam da complexidade, do rebuscamento
planejamento enquanto técnico e da sofisticação intelectual para o plano simplório.
técnica de base cientifica Fortalecimento dos movimentos populares – nova etapa na
consciência popular urbana;
" Década de 80 – retomada das demandas populares iniciadas no 1º
Seminário de Habitação e Reforma Urbana (1963);
" No final da década de 80 o termo plano diretor é ressuscitado pela
Constituição Federal.
" As cidades brasileiras novamente elaboram novos planos diretores;
" O conteúdo dos planos abarcam preceitos da reforma urbana e
dispositivos dos princípios de justiça social no âmbito urbano;
" Fim de um período na história do planejamento urbano que marca o
A partir de 1990: reação início do processo de politização, fruto do avanço da consciência e
ao período anterior organização populares;
" Recusa ao diagnóstico técnico como mecanismo de revelar os
problemas políticos;
" Destacam os aspectos de competência municipal, particularmente os
atinentes à produção imobiliária – ou do espaço urbano.
Fonte: Villaça, 1999
Org.: PEREIRA, Deborah Marques, 2012

Na atualidade, há esforços dos gestores municipais para organizar o espaço


urbano. Assim, eles têm procurado adotar várias condutas para melhor planejar as
urbes. Dentre as ações, os recursos geotecnológicos se manifestam como ferramenta de
auxílio para o planejamento urbano. No próximo tópico será discutido sobre a
importância das Geotecnologias no estudo do ambiente urbano.

As geotecnologias e o espaço urbano

Nas últimas décadas os estudos foram se aprimorando e sofisticando no afã de


responder os novos questionamentos científicos. Deste modo, as Geotecnologias têm

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

ganhado lugar de destaque, proporcionando maior dinâmica às análises geográficas. O


autor Fitiz (2008) relata que a tecnologia espacial teve sua base teórica no pragmatismo
da chamada Geografia Quantitativa, ou Geografia Teorética, tendo como cenário a II
Guerra Mundial.
Os autores Leite e Rosa (2002: 185) definem as Geotecnologias como: A técnica
que engloba o Geoprocessamento (GIS – Sistema de Informação Geográfica,
Cartografia Digital, processamento digital de imagem), além do Sensoriamento
Remoto, do Sistema de Posicionamento Global-GPS, da Aerofotogrametria, da
Geodésica e da Topografia Clássica, dentre outros.
Assim, as Geotecnologias têm auxiliado variados ramos da ciência e tecnologia
a dinamizar as análises do espaço geográfico. A capacidade em obter, cruzar e
armazenar dados georreferenciado tem proporcionado à produção de diversas
informações que auxiliam as tomadas de decisões.
Assim, as Geotecnologias não estão limitadas somente ao contexto geográfico,
pelo contrário a interdisciplinaridade maximiza os seus efeitos. O uso mais evidente
para os estudos urbanos é a o recurso Geotecnológico conhecido como SIG, pois
contribui para a tomada de decisão do poder público municipal. Leite (2011: 69) explica
que:

Através do processamento e cruzamento de dados, as informações podem, também, ser


espacializadas, contribuindo eficientemente para o planejamento das ações do poder
público na cidade. Além das vantagens técnicas, alguns softwares de SIG apresentam
linguagem fácil e prática, tornando o processo de aprendizagem de operação dessa
tecnologia mais rápido”.

Logo, as Geotecnologias podem contribuir expressivamente para o planejamento


urbano, orientando as condutas a serem adotadas pelo poder gestor municipal. Seguindo
ainda o raciocínio de Leite (2011: 70):

“Estudar e planejar o espaço urbano requer bastante conhecimento em várias áreas, o


que dificulta o sucesso dessa atividade; além dessa complexidade que envolve o espaço
urbano, a visualização das diferenças socioeconômicas encontradas torna o
planejamento falho. Sendo assim, conhecer a configuração espacial de uma cidade é
requisito fundamental para o sucesso do planejamento”.

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

Compreender o espaço urbano e suas complexidades requer uma análise


interdisciplinar, em que a configuração espacial é fundamental. Contudo, os usos das
Geotecnologias só tendem a contribuir para a análise das urbes, auxiliando no
planejamento urbano e nas tomadas de decisões para amenizar as desigualdades sócio-
espaciais.

Indicadores sociais e espacialização

O uso de Indicadores Sociais no meio científico é recente, porém vem ganhando


abrangência e credibilidade no meio científico e nas condutas dos planejadores públicos.
Para a Jannuzzi (2009: 15) na pesquisa acadêmica, o Indicador Social é “uma medida
em geral quantitativa dotada de significado social substantivo, usado para substituir,
quantificar ou operacionalizar um conceito social abstrato, de interesse teórico (para
pesquisa acadêmica) ou programático (para formulação de políticas)”. Assim, os
Indicadores Sociais podem contribuir significativamente para os estudos de cunho
teórico e ainda subsidiar atividades de planejamento público.
Além disso, Jannuzzi (2009: 16) assevera que os Indicadores Sociais
representam o elo entre “modelos explicativos da Teoria Social e a evidência empírica
dos fenômenos sociais observados. Em uma perspectiva programática, o Indicador
Social é um instrumento operacional pra monitoramento da realidade social, para fins de
formulação e reformulação de políticas públicas”.
Diante do exposto, observa-se que uso dos Indicadores Sociais tem ganhado
cada vez mais espaço nas discussões dos pesquisadores, cientistas sociais e gestores
públicos. Porém, Jannuzzi (2009: 11) assevera que “uma cifra estatística isolada é como
poste com luz queimada: Pode servir como apoio, mas sozinha não ilumina nada”.
Logo, os Indicadores devem ser analisados dentro de um contexto específico, com
dimensões e objetivos previamente traçados. Na presente pesquisa os Indicadores
Sociais de Habitação combinados com espacialização permitem vislumbrar as
desigualdades sócio-espaciais.

O espaço urbano de Montes Claros

O município de Montes Claros está localizado entre as coordenadas geográficas


16º 04' 57" e 17º 08' 41" de Latitude sul e Longitudes 43º 41’ 56" e 44º 13’ 1" oeste de

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

Greenwich. Possui uma população de 361.915 habitantes (IBGE/2010), com grau de


urbanização de aproximadamente 95% e é a única cidade do norte de Minas Gerais que
apresenta mais de 100.000 habitantes. A área territorial é de 3.568,941 Km² e sua
densidade demográfica é de 101,41 hab/Km² (IBGE, 2010). A figura 02 apresenta a
localização da cidade de Montes Claros no norte de Minas Gerais.
Os municípios limítrofes a Montes Claros são: São João da Ponte ao norte;
Capitão Enéias sentido nordeste; Francisco Sá ao Leste; Juramento e Glaucilândia na
direção sudeste; São João da Lagoa e Coração de Jesus ao oeste; e Mirabela e Patis para
Noroeste.

Figura 02 – Localização da cidade de Montes Claros no norte de Minas Gerais.

Org.: PEREIRA, Deborah Marques, 2012

Desde 1970, Montes Claros é um município de população predominantemente


urbana, característica que vem sendo ratificada nas últimas décadas, com o aumento do
seu grau de urbanização. O gráfico 01 apresenta o crescimento da população urbana de
Montes Claros conforme dados do IBGE nos anos de 1960, 1970, 1980, 1991, 2000 e
2010.

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Gráfico 01 – Evolução populacional de Montes Claros (1960, 1970, 1980, 1990, 2000 e 2010)

Fonte: IBGE, 2010


Org.: PEREIRA, Deborah Marques, 2012

Analisando o contexto mineiro, Montes Claros é a sexta cidade mais populosa de Minas
Gerais, possuindo população inferior da capital mineira Belo Horizonte, Uberlândia,
Contagem, Juiz de Fora e Betim, conforme evidencia o gráfico 02 (IBGE, 2010). Essa
cidade se destaca no contexto regional, como principal pólo, e sua área de influência
ultrapassam os limites da mesorregião Norte de Minas Gerais (Pereira, 2007).

Gráfico 02 – Municípios mais populosos de Minas Gerais (2010)

Fonte: IBGE, 2010


Org.: PEREIRA, Deborah Marques, 2012

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

Diante do exposto, observa-se que recentes estudos científicos apontam Montes


Claros como uma cidade média55, não só por possuir mais que 100.00 habitantes, mas
também por sua importância e destaque regional. Os autores França (2007; 2012), Leite
(2006; 2012), Pereira (2007), apresentam nos seus estudos a importância de Montes
Claros no contexto local e regional e a sua sistematização como cidade média.
Deve-se salientar que nas cidades médias há a intensificação dos processos
sociais, econômicos e políticos, pois as dinâmicas ocorridas nestas cidades são mais
aceleradas e latentes. Além disto, ressalta-se que Montes Claros possui uma forte
atração de migrantes, pois é uma característica comum das cidades médias brasileiras,
como destaca Maricato (2001) esse tipo de cidades apresenta desde a década de 1990
um crescimento demográfico acima da média nacional.

Indicadores sociais de habitação de Montes Claros

Os dados habitacionais são de extrema importância para a análise da segregação


sócio-espacial, porém, classificá-los como adequados ou não é uma tarefa difícil e
requer articulação de variados atributos. Como o objetivo desta pesquisa é apresentar as
disparidades habitacionais visíveis no contexto urbano de Montes Claros a partir do
Censo de 2010, foram selecionadas seis variáveis que contribuíssem para qualificar a
cidade em áreas de melhores indicadores habitacionais, intermediários melhor,
intermediários pior e piores indicadores habitacionais.
As variáveis habitacionais utilizadas foram: a) domicílios particulares
improvisados 56 ; b) domicílios particulares permanentes tipo casa 57 ; c) domicílios
particulares permanentes sem banheiro ou sanitário; d) domicílios particulares
permanentes com 04 banheiros ou mais; e) domicílios particulares com até 04
moradores; e f) domicílios particulares com mais de 04 moradores.

55
No contexto atual o estudo das cidades médias encontra-se sistematizado e em constante evolução no
cenário científico. Dentre os vários estudos já realizados sobre as cidades médias destacam os publicados
por Spósito (2002) para Presidente Prudente; Whitacker (2003) e Vieira (2005) para São José do Rio
Preto; Soares (1995) e Bessa (2007) para Uberlândia; entre outros.
56
O domicílio particular permanente é a unidade não residencial ou com dependências não destinadas
exclusivamente à moradia, mas que na data de referência estava ocupado por morador. Exemplos: prédios
em construção, vagões de trem, carroças, tendas, barracas, grutas etc. que estavam servindo de moradia na
data de referência foram considerados domicílios particulares improvisados (IBGE, 2010).
57 O domicílio particular permanente tipo casa trata-se de uma edificação com acesso direto a um
logradouro (arruamento, vila, avenida, caminho etc.), legalizado ou não, independentemente do material
usado em sua construção, estado de conservação ou número de pavimentos (IBGE, 2010).

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A análise espacial desses Indicadores possibilita a identificação das diferentes


classes sociais no espaço urbano da cidade de Montes Claros e as principais
características dos locais de moradia. Diante disto observa-se que na cidade de Montes
Claros os domicílios particulares improvisados estão espraiados pela cidade, tendo
como pior qualificação a parte norte e nordeste abarcando principalmente a área do
Jaraguá e Cidade Industrial e na parte sul pelo loteamento do Santo Amaro.
Os domicílios particulares permanentes tipo casa apresentam os piores
indicadores na parte leste abrangendo as áreas do Jaraguá, Jardim Primavera, JK,
Planalto e outras. Ao sul abarca o loteamento da Alterosa, Conjunto José Corrêa
Machado, Maracanã, Sion e arredores. Os melhores indicadores se encontram na área
do Ibituruna, Jardim Parque Morada do Sol, Morada do Parque, Jardim São Luís e
adjacências.
A presença de domicílios particulares permanentes sem banheiro ou sanitário é
mais visível na parte norte de Montes Claros, abarcando a área do Castelo Branco, Nova
América e São Lucas, também ao sul em Santo Amaro, Alterosa e arredores. Em
contrapartida, os melhores indicadores encontram na parte central, centro-oeste e leste
da cidade.
Na cidade de Montes Claros há poucas localidades que apresentam domicílios
particulares permanentes com 04 banheiros ou mais. Assim, elas estão concentradas na
área centro-oeste nos espaços do Ibituruna, Jardim Parque Morada do Sol, Morada do
Parque, Jardim São Luís, Melo e entorno.
Os domicílios particulares com até 04 moradores se agrupam na parte centro-
oeste da cidade e nas áreas centrais, já na parte leste e sul grande parte dos domicílios
possuem mais de 04 moradores.
Através da análise dessas variáveis é possível individualizar os domicílios que
apresentam alto padrão. Assim, a parte centro-oeste de Montes Claros se destaca como a
área que possui um maior padrão habitacional, apresentando domicílios permanentes
com 04 banheiros ou mais, sem a presença de domicílios tipo casa e domicílios
improvisados e geralmente com até 04 moradores. A figura 03 apresenta a
espacialmente das considerações apresentadas.

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

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Visando comprovar os dados obtidos pelo Censo do IBGE de 2010 com a parte
visível da cidade foi organizado um trabalho de campo, tendo como foco retratar os
indicadores sociais de habitação mais díspares na cidade de Montes Claros. As figuras
04 e 05 retratam localidades com indicadores considerados piores na área de estudo,
confirmando os resultados encontrados. Assim, ficou evidente a falta de infraestrutura
de moradia e o precário acesso.

Figura 04 – São Geraldo, sul de Montes Claros Figura 05 – Clarice Ataíde, norte de Montes
Claros

Autor: PEREIRA, Deborah Marques, 2012

Em contrapartida, as localidades que apresentam bons indicadores se


concentram na parte centro-oeste da cidade. As figuras 06 e 07 demonstram os locais
com melhores atributos de habitação.

Figura 06 – São Luís, centro-oeste de Montes Figura 07 – Ibituruna, oeste de Montes Claros
Claros

Autor: PEREIRA, Deborah Marques, 2012


POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

Pela análise das figuras 04, 05, 06 e 07 observam-se as disparidades


habitacionais existentes entre os locais com piores e melhores indicadores, ratificando a
espacialização apresentada. Nos estudos de Leite (2011) ele relata que a partir da década
de 1980 houve incentivo municipal para a ocupação da área centro-oeste da cidade pelas
camadas de alta renda, principalmente com a criação do loteamento do Ibituruna na
parte oeste. O Ibituruna apresenta belezas naturais diversas como a Serra do Ibituruna e
a reserva ecológica do Sapucaia que valorizam a área. Movida pelos incentivos
municipais, belezas naturais e valorização imobiliária, a população de alta renda se
concentrou na parte oeste e arredores, fazendo da região centro-oeste a mais estimada da
cidade.
Não obstante, o baixo custo do solo urbano de áreas distantes ao centro-oeste
acolheu a população de menor renda, sobretudo na área leste e norte de Montes Claros.
A atuação municipal foi conivente com o distanciamento dos menos favorecidos,
contribuindo com a doação de lotes e a manutenção das áreas nobres.
Diante do exposto, pode-se concluir que a cidade de Montes Claros apresenta
fortes disparidades habitacionais, oscilando desde a presença de domicílios particulares
improvisados e sem banheiros ou sanitários até domicílios com infraestrutura dotada de
mais de 04 banheiros e com até 04 moradores. Deste modo, a parte centro-oeste da
cidade apresentou melhores indicadores e intermediários melhor nas seis variáveis
pesquisadas, enquanto as demais áreas, especialmente a leste a norte, expuseram
indicadores piores e intermediários pior.

Palavras finais

Consoante ao exposto observa-se que no decorrer dos anos as cidades têm se


tornado cada vez mais complexa e desigual, necessitando condutas veementes do poder
público que abarquem no planejamento ações de repelem as desigualdades sócio-
espaciais e priorizem o bem-estar da população. Não obstante, a análise dos Indicadores
Sociais e as Geotecnologias são ferramentas que podem contribuir para o planejamento
urbano de forma eficaz.
No presente trabalho foi analisado abordado os Indicadores Sociais de Habitação
na cidade de Montes Claros, para tanto foram selecionadas 06 variáveis: a) domicílios
particulares improvisados; b) domicílios particulares permanentes tipo casa; c)
domicílios particulares permanentes sem banheiro ou sanitário; d) domicílios

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particulares permanentes com 04 banheiros ou mais; e) domicílios particulares com até


04 moradores; e f) domicílios particulares com mais de 04 moradores.
As análises dos Indicadores de habitação somadas à espacialização permitiram a
identificação de áreas com melhores, intermediários melhor, intermediários pior e pior
atributos habitacionais.
Assim, restou evidente que Montes Claros possui expressiva desigualdade sócio-
espacial, com a parcela da população com maior poder aquisitivo localizada na parte
centro-oeste. Em contrapartida, a população com poucos recursos encontra-se espraiada
pela cidade, destacando as áreas mais distantes da área central.
O uso de Sistema de Indicadores Sociais de habitação conjugados com as
geotecnologias possibilitam a melhor compreensão da realidade das cidades,
contribuindo veementemente para o planejamento de políticas públicas. Logo, o
Mapeamento dos indicadores habitacionais sociais torna-se uma veemente contribuição
para planejamento de políticas públicas. Contudo, compreender os aspectos sociais e
espaciais da área urbana é um grande desafio, requerendo, cada vez mais, estudos
aprofundados e sistematizados.

Bibliografia

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

AS POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCATIVAS E OS CURSOS


PROFISSIO6AIS.
Um caso de parceria entre uma Escola Secundária e uma Empresa do ramo da
Indústria numa Cidade Intermediária

Zulmira de J. C. da Silva Rodrigues


F.C.T. - U.N.L. (Uied)
rodrigues.zulmira@gmail.com

Resumo

O presente artigo expressa algumas reflexões sobre o estabelecimento e funcionamento de parcerias entre
Escolas e Empresas e do modo como se articula a formação entre ambas. Em simultâneo, discutimos o
papel das Políticas Públicas Educativas no âmbito dos Cursos Profissionais de nível secundário. O estado
da arte que temos vindo a desenvolver, bem como o estudo empírico, permitiu-nos selecionar um caso de
interesse científico. O modelo de parceria que apresentamos emergiu do nosso estudo exploratório e tem
como núcleo central uma turma de um Curso Profissional, numa Escola Pública, que trabalha em
parceria, no âmbito da formação, com uma Empresa Privada, do setor da indústria da aeronáutica. Os
procedimentos que seguimos ao longo da presente investigação centraram-se nos objetivos e questões do
estudo, numa perspetiva de responder à nossa problemática, articulando o estudo empírico com o nosso
quadro teórico. Os instrumentos utilizados na recolha de dados foram as entrevistas semiestruturadas,
tendo as mesmas sido administradas aos atores do estudo num total de nove. Para além das entrevistas
recorremos à consulta de legislação que regulamenta os Cursos Profissionais e a outros documentos
fornecidos pelos Responsáveis da Escola. A estratégia de análise utilizada será a análise de conteúdo,
através de uma abordagem qualitativa, para que possamos ter uma visão holística do fenómeno em
estudo.

Palavras-chave: Parcerias, Formação (qualificação), Cursos Profissionais

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

Introdução

O presente artigo foi elaborado com base em contributos teóricos e em alguns


dados empíricos que constam da tese de doutoramento da autora, ainda em
desenvolvimento. Este facto, conduz-nos a uma atitude de precaução no sentido de
evitar conclusões superficiais e menos elaboradas.
O interesse em trazer para o debate público, no momento presente, temas como a
formação (qualificação), as parcerias e os cursos profissionais, surge-nos como uma
oportunidade de enriquecimento e de complementaridade de conhecimentos que
poderão vir a tornar-se uma mais-valia no nosso desenvolvimento pessoal, social e
profissional, face ao estatuto de investigadores que usufruimos. Para além disso,
deparamo-nos com a oportunidade de transmitir alguma visibilidade à nossa
investigação, contribuindo para aquilo que Coutinho (2009) apelida de consistência do
estudo.

Âmbito do artigo

O presente artigo decorre no prosseguimento do Colóquio da Ação Pública e


Problemas Sociais em Cidades Intermediárias que teve lugar de 23 a 25 de Janeiro de
2013 na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
O artigo é fruto de um estudo mais abrangente, como já referimos na introdução,
que se desenvolve no âmbito das Ciências da Educação – Educação e Formação de
Adultos, tendo como suporte a Aprendizagem ao Longo da Vida58 (ALV), encarada pela
União Europeia como uma prioridade política, por considerar que é a partir dela que se
determinam estratégias, meios e modelos de monitorização 59 . Também a Unesco
adverte para uma das suas grandes intenções, no âmbito da educação do novo milénio, –
a universalização das condições de aprendizagem ao longo da vida inserindo-se nos
desejos e valores de uma sociedade democrática, em suma, de uma sociedade mais justa
e inclusiva. No que diz respeito a declarações internacionais, bem como a estudos
realizados no campo do desenvolvimento social, os mesmos direcionam-se no sentido
preconizado pelos propósitos da Unesco e da União Europeia, dando ainda especial

58
Doravante, em vez de Aprendizagem ao Longo da Vida, utilizaremos ALV, por uma questão de
economia.
59
Comissão Europeia (1995). Livro Branco sobre a educação e a formação.

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

relevo ao poder que os sujeitos devem usufruir de autonomia para se questionarem


sobre o modo de como desenvolverem um aperfeiçoamento permanente e de
envolvimento do outro, contribuindo positivamente para a esfera da vida em sociedade.
Em prosseguimento da referida linha de políticas, e, porque somos defensores da
ALV, do seu alargamento a todos os cidadãos e respeito pelas decisões e opções quanto
ao contributo para uma melhor vida em sociedade, surge o nosso artigo em jeito de mera
reflexão.

Objetivos do artigo e levantamento de algumas questões

Como realçamos na introdução, o objetivo principal do presente artigo prende-


se com o interesse em colocar à discussão temas que, para além se serem da atualidade e
de interesse público, face à ação pública que desenvolvem, também nos permite uma
refleção mais aprofundada sobre o estudo em que nos encontramos envolvidos no
âmbito da investigação. Para além disso, também esperamos encontrar algumas
sugestões por parte dos pares que incluem o nosso grupo de trabalho, que poderão
constituir um valioso contributo para a investigação.
De salientar o facto de a participação em eventos desta natureza se revelarem de
interesse e motivação, uma vez que, para além de podermos alargar o nosso debate
teórico, temos igualmente a oportunidade de o melhorar, no que concerne aos contornos
dos conteúdos da pesquisa.
A acrescentar aos objetivos apontados, é nossa intenção saber se as parcerias, no
âmbito da formação, podem, ou não, ser um processo de combate ao insucesso, ao
abandono precoce escolar, à redução de desigualdades sociais e à criação de soluções de
emprego que satisfaçam as empresas e os Formandos.
As preocupações aqui esboçadas serviram de mote para a construção do nosso
objeto de estudo e desenvolvimento da problemática. Deste modo, e, como guia do
presente artigo arquitetamos a seguinte questão de partida:
– Quais as vantagens, ou não, que as parcerias, no âmbito da formação, entre a
Escola e as Empresas veiculam…
1. Para a Escola?
2. Para a Empresa?
3. Para os Formandos?

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

Uma vez que nos encontramos numa fase de análise de informação preliminar60,
as referidas questões serão abordadas apenas com base no quadro teórico que fomos
construindo ao longo da nossa pesquisa.

Descrição sumária do tipo de investigação

O presente artigo aborda apenas uma parte da investigação que estamos a


desenvolver, como já referimos. Trata-se de um estudo de caso entre a escola ESCVF61
e a Empresa REMA62, que trabalham em parceria, no âmbito da formação. O facto de o
estudo abordar a referida parceria prende-se com uma nova forma de agir e de
organização da sociedade portuguesa, ou seja, de uma aproximação dos universos de
educação (formação) e de emprego. A referida aproximação insere-se na linha das
políticas públicas de educação que apontam para novos processos de reconfiguração da
sociedade.
O século XXI conduziu a uma série de alterações e de mudanças nos cidadãos,
nas comunidades (escolares, locais, nacionais, europeias e internacionais) e na
sociedade em geral. Tal tendo originado uma abertura ao mundo, talvez a maior dos
últimos tempos. Contudo, esta abertura de horizontes esboça um quadro, que aos olhos
de alguns observadores, sejam eles académicos, cientistas, educadores, formadores, ou
outros atores sociais, parece apresentar as suas controvérsias e refletir-se na educação,
nas empresas, na formação e na qualificação dos respetivos atores. Este facto, associado
às exigências dos tempos atuais, parece exigir novas formas de desenvolvimento social,
de organização de trabalho nas instituições, nos próprios atores e à “reorganização
produtiva” Castillo, J. (1998: 25).
Os novos desafios vinculados às economias locais, fruto do novo enquadramento
económico, resultante da crise iniciada nos anos setenta, denominada de crise do
modelo fordista, fizeram com que as sociedades modernas se vissem obrigadas a
discutir as bases dos modelos de desenvolvimento, a fim de encontrar soluções para
enfrentar os novos problemas. De entre os vários problemas do século, o problema do
desemprego, é digno de alguma reflexão e discussão, não só pelo efeito que cria nos

60
Como informamos no início, trata-se de um estudo ainda em desenvolvimento e em fase de análise de
informação, pelo que, as informações aqui transmitidas são baseadas no quadro teórico que fomos
construindo.
61
Nome que atribuímos à Escola para manter o seu anonimato.
62
Nome que atribuímos à Empresa para manter o seu anonimato.

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AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I?TERMEDIÁRIAS

próprios indivíduos, mas também, pelo facto de ao desemprego estarem ligadas


temáticas como – emprego precário e, consequentemente, o de exclusão social e de
pobreza. O facto de se ter, ou não, emprego, ou de preservação do mesmo, surgem, na
atualidade, como opções a ter em conta pelos próprios indivíduos.
O panorama de incertezas e de obscuridades que ressalta do quadro aqui
esboçado em poucas linhas, justificam que se indague sobre o papel da Escola e se
reflita sobre o modo de colmatar problemas que afetam os indivíduos e as instituições.
Na nossa perspetiva, a Escola poderá decidir em muitas situações, falta saber como e de
que modo o deverá fazer. Daí o questionarmos:
Serão as parcerias, de facto, a estratégia encontrada pela escola e empresas que melhor
se ajusta à resolução dos problemas do desemprego, de desigualdades sociais, de
insucesso escolar?
Esta e outras questões ficam em aberto …

Delimitação teórica: Definição de conceitos chave

O estado da arte centrou-se nos conceitos chave do presente artigo – Parcerias,


Formação (qualificação) e Cursos Profissionais bem como nos autores defensores da
ALV, o que nos permite uma melhor compreensão do objeto em estudo.
A pesquisa de estudos sobre parcerias teve eco em autores como Estivil et al.,
(1994), Carrilho (1998), Rodrigues e Stoer (1998), entre outros, os quais nos revelam
experiências de parcerias em contexto de trabalho, que apresentam indicadores positivos
em relação à diminuição de desemprego, de abandono escolar e de exclusão.
Carrilho (2008) interpreta o conceito de parceria “como o processo através do
qual dois ou mais atores se relacionam na base de pressupostos-chave que têm tradução
na dinâmica subjacente a determinado projeto”. O conceito de parceria de Carrrilho é
semelhante ao descrito por Estivil et al., (1994), bem como ao de outros autores.
A formação (qualificação), a que nos referimos no presente artigo, versa a
formação em contexto de trabalho e é dirigida aos jovens (Formandos), que estão
implicados no processo de parceria entre a escola e a empresa e que se movimentam
nestes dois espaços. Os referidos Formandos encontram-se a frequentar um curso
profissional, onde combinam as vertentes escolar e profissional. A conclusão do curso
permite-lhes a obtenção de uma dupla certificação – escolar e profissional, podendo
optar, findo o curso, pelo prosseguimento de estudos, quer na Faculdade, quer num

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

curso tecnológico. A opção de seguirem apenas a vertente profissional é pessoal,


permitindo-lhes um ingresso mais rápido no mercado de trabalho.
Hoje assiste-se a um grande investimento na qualificação, facto que não terá a
ver com um simples modismo, mas sim com uma das exigências do mercado de
trabalho. O mercado de trabalho, cada vez mais competitivo e rigoroso, proporciona a
disputa entre as empresas e os profissionais que se querem afirmar e ocupar o mercado.
Kovács (1998) argumenta este facto com o elevado número de recursos humanos e à
grande competitividade existente entre eles na procura de emprego e na obtenção de
formação.
A falta de trabalhadores qualificados, parece ser um problema transversal a
outros países e refletir-se em áreas diferentes, como seja a área de Serviços, da Indústria
da Construção, do Turismo, entre outras.
Desde Países da União Europeia, incluindo Portugal, aos Estados Unidos da
América, Canadá e Países da América Latina, a falta de qualificação básica ou
qualificada, por parte dos trabalhadores profissionais, parece estar nas preocupações das
Políticas Públicas nacionais, europeias e internacionais e de algumas instituições, como
a UNESCO e a ONU. A título de exemplo, numa mera leitura transversal efetuada num
dos momentos em que procedíamos à revisão da literatura, sobre o que se passa noutros
países, no âmbito da qualificação, fomos confrontados com informação sobre o caso do
Brasil, país no qual, a falta de qualificação básica ou qualificada, por parte dos
trabalhadores profissionais, é bastante notória. Esta informação surgiu de estudos já
efetuados na área das empresas ligadas à construção civil 63 . Tal facto, segundo o
referido levantamento, teve origem na grande rotatividade dos trabalhadores, na má
qualidade de educação básica e no facto das empresas revelarem alguma apreensão de
que a formação poderá facultar a perda dos seus trabalhadores. Com o intuito de
colmatar os referidos problemas, e, para melhorar a qualificação profissional, muitas
empresas (64% das 385, já referidas), optam por planos de formação adequados à
própria empresa e por reforçar os laços entre a empresa e o trabalhador, através de
benefícios e incentivos salariais.
O estudo acima referido faz saber que, também há outros países da zona euro,
incluindo Portugal, em que a falta de qualificação de trabalhadores profissionais tem

63
O levantamento efetuado em 385 empresas do ramo da construção civil, pela Confederação Nacional
da Indústria (CNI) e pela Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC) indica uma grande
carência de trabalhadores profissionais com qualificação básica que respondam às categorias de pedreiros
e serventes e de trabalhadores qualificados.

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efeitos negativos no aumento da produtividade e na qualidade dos mesmos, no


cumprimento de prazos de entrega, seja de empreendimentos, como no caso apontado,
seja na área de outros bens e produtos, e, ou serviços. Contudo, não será apenas o fator
ligado à qualificação (formação) o único responsável pelo desemprego, mas também o
fator trabalho, que, na ótica de alguns sociólogos atuais, consideram que o conceito de
trabalho está ultrapassado, como é o caso de Marcuse. Se é bem verdade que o trabalho
foi considerado o principal fator de organização da sociedade, hoje assiste-se a outros
fatores de organização, como a família, o racismo, o corpo, entre outros.

Síntese conclusiva

A concluir este artigo, gostaríamos de deixar alguns pontos em aberto, fruto de


alguma reflexão.
Será que uma maior procura de qualificação por parte dos formandos contribuiu
para reduzir o desemprego? Será que o investimento que se fez sentir na educação nos
últimos anos, por parte das instituições – escola, autarquias, empresas, entre outros,
contribuiu para uma redução substancial do insucesso e do abandono escolar? E o que
se fez para reduzir as desigualdades sociais? Não será que o caminho é sempre o mesmo
e as ações políticas se vão repetindo? E a aposta nas parcerias, será para continuar? O
que se pode melhorar?
O olhar crítico que aqui espelhamos é na tentativa de que as questões que
deixámos em aberto possam contribuir para que se reflita sobre o momento presente e
para que desigualdades sociais não se multipliquem.
Contudo, resta-nos um ar de confiança em relação à educação e ao futuro de
jovens e adultos.
A aprendizagem ao longo da vida e a procura de uma qualificação baseada em
competências, sejam elas adquiridas através do percurso individual, profissional, ou
adquiridas num processo de ligação escola e trabalho poderá ser uma ferramenta
essencial e estimulante para os indivíduos.
O programa preconizado pela Iniciativa Novas Oportunidades contribuiu para
que decrescesse o número de indivíduos com a escolaridade mínima e,
consequentemente, com um nível escasso de formação (qualificação), primeiro, através
do Reconhecimento, Validação de Competências Chave (RVCC), como é o caso de
Adultos até aqui pouco escolarizados, depois, e, mais recentemente, através do ensino

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POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES

dual (profissional) e destinado aos mais Jovens, que procuram uma dupla certificação e
uma maior ligação ao trabalho, através de cursos profissionalizantes.
Na nossa perspetiva, esta estratégia gerada de consensos entre Políticas Públicas
nacionais, europeias e internacionais, tem, em nosso entender, uma face positiva nos
atores sociais, na escola e nos centros de formação, ou onde o acesso à formação seja
facultado. Contudo, falta a outra face, pelo que, ainda há muito para fazer, apesar de se
verificarem algumas melhorias no âmbito da formação (qualificação). Programas como
o PISA e a divulgação de dados estatísticos referentes a rankings nacionais e europeus,
apontam para a ainda existência em Portugal de abandono escolar, desigualdades
sociais, exclusão social e, para um grande aumento de desemprego, aliás, o flagelo do
século. Há que ter isso em conta.
Da nossa parte, confiamos que os desafios aplicados às economias locais,
possibilitem o estudo de formas de crescimento e se insista em arranjar soluções para os
problemas atuais. Como já foi referido, um dos problemas emergentes prende-se com a
propagação e generalização do desemprego, com incidência do aumento dos índices de
pobreza e de exclusão social. Na nossa perspetiva, com base em dados teóricos, as
parcerias constituídas por entidades públicas e privadas, como é o caso que
apresentamos, poderão trazer uma nova dinâmica de intervenção, contendo respostas
inovadoras, muitas delas experimentadas por diferentes atores sociais.

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