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Memórias dos cárceres da ditadura:


o projeto de história oral dos presos políticos no Brasil
Publicado em DELLAMORE, Carolina; AMATO, Gabriel e BATISTA, Natália. (Orgs.). A ditadura
aconteceu aqui: A história oral e as memórias do regime militar brasileiro. 1ed., Belo
Horizonte: Letra e Voz, 2017, v. 1, p.09-29. .

Janaína de Almeida Teles1

Este texto tem por objetivo apresentar o projeto de história oral de presos políticos, o qual
foi elaborado em 2001 com vistas a constituir um amplo acervo audiovisual de testemunhos
sobre a repressão estatal e a ditadura no Brasil. Esta pesquisa, realizada no âmbito do projeto
Intolerância e Resistência: Memória da Repressão política no Brasil (1964-1985) a partir de
uma parceria estabelecida entre o Diversitas-FFLCH (USP) e o Arquivo Edgard Leuenroth
(Unicamp), com o apoio da Fundação Ford do Brasil, foi coordenada por Marcelo Ridenti
(Sociologia/Unicamp) e Zilda M. Grícoli Iokoi (História/USP).
Idealizado como um instrumento de preservação e transmissão da memória, este projeto
dirigiu seu enfoque aos ex-presos políticos, tendo em vista que estes se notabilizaram enquanto
protagonistas das lutas de resistência à ditadura no Brasil ao longo dos anos 1960 e 1970,
sobretudo por sua atuação na sistematização e divulgação de denúncias de violações dos direitos
humanos; aspecto pouco retratado pela historiografia de então. Nesse sentido, eles se tornaram
protagonistas da construção das memórias da ditadura e das disputas em torno dos sentidos do
passado recente no Brasil, transformando-se numa valiosa fonte de pesquisa para a história
contemporânea e de transmissão da experiência desse período.
Este artigo trata da construção desse projeto de história oral desde sua trajetória até a
abordagem metodológica adotada, estabelecendo um panorama reflexivo sobre os testemunhos
compilados pelo mesmo, a fim de caracterizar seus aspectos mais relevantes.

1. Os usos e a crítica da cultura da memória


A memória tem ocupado parte considerável do espaço público graças à proliferação de
museus, comemorações, filmes, programas televisivos e outras manifestações culturais. Durante

1
Pesquisadora do Programa de Pós-Doutorado em História Social da Universidade de São Paulo. Mestre e Doutora
em História Social pela mesma instituição. Autora de Os herdeiros da memória: os testemunhos e as lutas dos
familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil. São Paulo, Alameda, 2017 (no prelo), entre outros.
2

o século XX, presenciou-se uma grande valorização do passado e dos chamados “lugares de
memória” (NORA, 1993, p.21-22). Uma prática recorrente na história denominada por Eric
Hobsbawn de “invenção da tradição” – prática dirigida a reforçar a coesão social de um grupo ou
comunidade para legitimar certas instituições e valores (HOBSBAWN; RANGER, 1984). Nesse
sentido, o século XX caracterizou-se também por um processo de reificação do passado,
fazendo com que a memória fosse, em larga escala, institucionalizada, ordenada, transformada
em espetáculo, ritualizada e se tornasse em objeto de consumo, estetizada, neutralizada e rentável
(TRAVERSO, 2007, p.68).
A I Guerra Mundial representou o ponto culminante do declínio da “experiência
transmitida” (Erfahrung) típica das sociedades tradicionais e perpetuada de uma geração a outra,
que forjava as identidades de grupos por meio da oralidade. O traço distintivo da modernidade e
das sociedades de massas, com seu ritmo veloz e marcado pelo caos do universo mercantil, é o
das “experiências vividas” (Erlebnis), vivências individuais, frágeis, voláteis e ephemeras
(BENJAMIN, 1985). Em contraposição ao tempo mecânico, produtivo e disciplinador da sociedade
industrial, a proliferação da “cultura da memória”2 tornou-se, em muitos casos, o resultado
paradoxal do declínio da transmissão da experiência em um mundo sem referências (TRAVERSO,
2007, p.69).
As tiranias do século XX, sobretudo o nazismo no contexto da II Guerra Mundial,
revelaram formas e proporções inéditas de controle da memória social. A contrapartida foi que o
“boom da memória” figurou-se entre as principais implicações e repercussões culturais da Shoah.
A história do III Reich foi “relida como uma guerra contra a memória, [...] falsificação [...] e
negação da realidade, até o ponto de fuga definitivo da realidade” (LEVI, 1990, p.14).
Inicialmente, os cadáveres dos campos de extermínio nazistas eram exumados para serem
queimados e, assim, para que se desfizessem rapidamente das provas. Em seguida, foi adotada a
“solução final” – eufemismo utilizado para mascarar a queima dos corpos das pessoas
assassinadas nas câmaras de gás em crematórios. O crime seria perfeito, sem rastros, sem corpos,
sem memória da injustiça. Neste sentido, o que se tentou exterminar foi “[…] uma exigência de
justiça, e também nomes: e, primeiramente, a possibilidade de dar, de inscrever, de chamar e de
lembrar o nome (DERRIDA, 2007, p.140)”.

2
Cf. expressão de HUYSSEN (2000).
3

O que se observou em muitos casos, porém, sobretudo após a II Guerra Mundial, é que
mais do que representar uma ruptura com a tradição, os excessos de atrocidades cometidos
implodiram a “capacidade humana de apreender e representar” a história (ASSMANN, 2011,
p.361).
Na América Latina, o desaparecimento forçado foi uma das principais estratégias
utilizadas pelas ditaduras para empreender de maneira sistemática a repressão estatal e o controle
da memória. Na Guatemala, ao menos 60 mil desaparecidos políticos foram enterrados em valas
comuns, dificultando e até impossibilitando a identificação de seus restos mortais. Na Argentina,
centenas de pessoas, ainda vivas, foram atiradas de aviões ao mar nos chamados “voos da morte”
(VERBITSKY, 1995). No Brasil, as Forças Armadas também tentaram eliminar provas de seus
crimes, como o fizeram ao exumarem e queimarem os restos mortais dos militantes do PC do B
assassinados durante a Guerrilha do Araguaia, transformando-os definitivamente em
desaparecidos políticos3.
A era dos genocídios e da memória das ditaduras do século XX, ameaçada pela atuação
estatal que busca apagar seus crimes e reescrever o passado, impôs “uma reconfiguração da
problemática da memória e do recordar em comum”4. O regime de memória social mudou e o
papel da vítima e do testemunho passou a ocupar um espaço relevante. Muitas das formas
instituídas de memórias tomaram como preocupação central o registro e a evocação dos crimes,
dos sobreviventes e das vítimas, não de batalhas, vitórias, combatentes e heróis (TRAVERSO,
2007). Este tipo de registro de memória tende a separar-se da entonação exaltante da nação,
assumindo um caráter reativo contra as ditaduras e suas ameaças de retorno.
Nos anos 1990, por toda a Europa debateu-se de forma ampla e prolongada sobre como
comemorar a Shoah, o que gerou controvérsias e disputas a respeito de enfoques nacionais e
políticos, mas também reflexões sobre a noção de memória e os tipos de memórias que são
desencadeadas pelas comemorações, ligadas ao Estado e a outras expressões sociais e culturais.
Agentes de governos têm um interesse evidente por legitimar narrativas e, frequentemente,
chamam essas comemorações e políticas de identidade nacionais de “memória coletiva”, mas

3
Pedro Cabral, piloto que supostamente trasladou para a Serra das Andorinhas parte dos restos mortais dos
guerrilheiros desaparecidos na Guerrilha do Araguaia, afirma que eles teriam sido queimados nesse local, cf.
CABRAL (1993).
4
VEZZETTI (2009), p.22-3. Tradução livre da autora.
4

este é um termo que não se esgota em um conjunto de histórias formadas pelo ou sobre o Estado
(WINTER, 2006).
Não raro, nas disputas pelas memórias dos períodos pós-ditaduras têm predominado a
busca por reafirmar e reiterar uma suposta identidade nacional, que em geral não respeita a
diferença e o “outro” e pouco questiona as nossas próprias percepções a respeito dessa identidade
(SELIGMANN-SILVA, 2008, p.103). Na “guerra de identidades” instaurada pela nova “virada
memorialista”, muitos dos locais de recordação ou dispositivos de memória continuam a cultuar
espaços e símbolos como representantes de uma imaginada unidade da comunidade política,
repetindo identificações de modo mecânico, avessos à tensão existente entre a memória
institucional e as memórias ativas de sobreviventes e grupos de ação política. As novas práticas e
modalidades de memória que trabalham com a história oral e as imagens são frequentemente
canalizados “por discursos ainda mais rígidos e cegos à outridade, do que o patriotismo que
sustentava a historiografia até há pouco” (IDEM).
Existem, no entanto, outras instâncias de comemoração que expressam a história trágica
de minorias perseguidas, como a que sobreveio com a queda do muro de Berlim e do socialismo.
A criação e disseminação de narrativas sobre o passado surgem e expressam também outras
“políticas de identidade”, redimindo grupos étnicos e minorias desprivilegiadas, exigindo seu
direito à palavra, à ação, sua liberdade e autodeterminação. Nesses casos, as políticas de
memória são “uma contrahistória que desafia a generalização da História5”. Diante da narrativa
oficial transmitida pela educação formal, constroem-se também relatos e sentidos diferentes do
passado, mantidos pela memória e a transmissão oral, práticas de resistência diante do poder,
muitas vezes constituídos nos âmbitos da intimidade ou da clandestinidade (JELIN, 2002, p.39-
42).
Esse debate em torno da atribuição de sentido do passado está profundamente vinculado à
análise dos processos e atores sociais envolvidos na construção das memórias, especialmente
sobre feitos notáveis, cujos efeitos perduram no tempo e no espaço. Nesse sentido, é de se ter em
vista que a denúncia da tortura, dos assassinatos e desaparecimentos políticos durante a ditadura
brasileira foi um importante instrumento da luta de resistência. Os presos políticos foram
determinantes para estabelecer os fatos e as denúncias, testemunhas oculares de assassinatos e
torturas. Eles, ao lado dos familiares, advogados e militantes compreenderam que a preservação

5
Cf. Wernet Sollor, em introdução a Fabre e O‟Meally (1994, p.7), citado por WINTER (2006), p.73.
5

da memória destes crimes e a reconstrução do passado eram fundamentais para por fim à
ditadura (TELES, 2011; 2014).
A importância desse trabalho de denúncia fez com que a repressão estatal tenha,
inclusive, matado mães de militantes assassinados pelo regime, porque elas denunciaram tais
crimes. Infelizmente, o sucesso da campanha e o poder subversivo do testemunho de Zuzu
Angel, por exemplo, levaram o aparato repressivo a assassiná-la, forjando um acidente de carro,
no Rio de Janeiro, em abril de 1976, o qual foi elucidado apenas em 19966.
No Brasil, a recuperação factual sobre a repressão política empreendida durante a
ditadura, assim como a reflexão sobre os sentidos desse passado permanecem inconclusas. A
despeito dos esforços empenhados pela Comissão Nacional da Verdade, que fundamentalmente
sistematizou as informações já existentes sobre o período ditatorial (CNV, 2014), falta-nos um
levantamento exaustivo sobre as pessoas assassinadas ou punidas por razões políticas, as
circunstâncias de tais crimes e seus responsáveis.
A negação do direito à verdade e à justiça, assim como as limitações existentes nas
políticas de reparação relativas ao passado recente, a despeito dos esforços de projetos, tais como
o “Marcas da Memória: História Oral da Anistia no Brasil” (ARAÚJO et al., 2012), entre outros,
têm dificultado ou impedido a articulação e a transmissão das memórias desses anos de
violência, fundamentais para a construção de um referencial crítico sobre o período. Tal
realidade se reflete nos evidentes retrocessos políticos relativos aos direitos humanos a que o país
está assistindo. Nesse contexto, insere-se o debate sobre os legados da ditadura e, mais
especificamente, sobre as memórias dos presos políticos no Brasil.

1. O projeto de história oral dos presos políticos e seu contexto


O projeto de história oral de presos políticos tomou forma em um momento de inflexão
da presença da memória sobre o passado ditatorial no espaço público, colocando os
sobreviventes da violência estatal no centro das demandas por medidas de reparação simbólica e
econômica. Durante os anos 1990, os familiares de mortos e desaparecidos políticos foram o
foco do pagamento de indenizações e os sujeitos das ações e demandas de busca de informações

6
Cf. ALMEIDA (2009), p. 246-48 e 649-51. Outro caso de uma mãe que pode ter sido assassinada porque denunciava
a morte da filha é o de Esmeraldina, mãe de Nilda Carvalho Cunha, encontrada enforcada em casa, em 20/10/72.
Nilda fora presa durante a Operação Pajussara, que resultou na morte de Iara Iavelberg e Carlos Lamarca, e morreu
em consequência das torturas sofridas, em 14/11/71, em Salvador (BA), cf. ALMEIDA (2009), p.291-92 e 382-83.
6

e da recuperação de restos mortais desses militantes. No início dos anos 2000, com a ampliação
da Lei de Anistia, os sobreviventes dos cárceres políticos tornaram-se o ponto de convergência
da adoção de políticas de reparação.
As comemorações dos 20 anos da Anistia, em 1999, levaram o governo de São Paulo a
propor um projeto de lei que previa o pagamento de indenização aos presos torturados em
dependências do Estado e também convênios para a proteção de testemunhas. Ademais, o
governo paulista anunciou que planejava a transformação do antigo prédio da polícia política do
estado, o DEOPS, em um espaço destinado às artes7. Em setembro daquele ano, no prédio do
DEOPS foi montada a peça Lembrar é Resistir, de Izaías Almada e Analy Alvarez, tendo como
cenário as antigas celas destinadas aos presos, gerando comoção nos espectadores pelo realismo
das cenas e a proximidade com os atores. A peça ficou em cartaz por quase um ano, sob a
direção de Silnei Siqueira, e depois foi apresentada durante algumas semanas no prédio do
DOPS/RJ, dirigida por Nelson Xavier.
Em julho de 2002, o prédio do DEOPS/SP foi reaberto passando a sediar o então
denominado Memorial da Liberdade8. A criação de um “lugar de memória”, naquele formato e
local, gerou debates e polêmicas sobre como deveria ser preservado e como reconstruir as
memórias e histórias desse passado. Desde então, o memorial passou por inúmeros processos de
transformação e descaracterização do prédio. Foram destruídas duas celas, localizadas no térreo,
o chamado “Fundão”, formado por celas que funcionavam como solitárias. O espaço recebeu
novas pinturas, quando foram raspadas as inscrições deixadas nas paredes das celas por presos
políticos de diversas gerações. Essa postura institucional gerou diversas críticas, mas não evitou
a destruição de parte significativa desse edifício histórico.
Em 2008, o local foi renomeado como Memorial da Resistência, desde um projeto
coordenado pela Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo e pela Secretaria Especial dos
Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH). A mudança de designação “era
reivindicada por ex-presos e perseguidos políticos”. De acordo com o então secretário de Estado
da Cultura, João Sayad, “[...] chegava a ser uma ironia ser chamado de Memorial da Liberdade.
O novo nome é mais adequado e presta homenagem aos que lutaram aqui9”.

7
Cf. “Comemoração dos 20 anos da lei começa hoje com ato em SP”. Folha de S. Paulo, 23/08/99.
8
Cf. a reportagem “Museu do Imaginário só fica pronto no fim do ano” publicado em O Estado de S. Paulo, de
03/07/2002, a reforma custou R$ 12,5 milhões.
9
Cf. “Memorial da Resistência rebatiza celas do antigo Dops”. Agência Estado, 02/05/2008.
7

Nesse período organizaram-se grupos e entidades de ex-presos políticos. Mobilizados


para debater as propostas de leis estaduais de reparação econômica para os perseguidos políticos
e as demandas de ampliação da lei de anistia. Desse modo, em 2000 foi criado em São Paulo o
Fórum Permanente dos Ex-Presos e Perseguidos Políticos que organizou encontros e debates
sobre essas questões10. Em janeiro de 2001 foi editada a lei de reparação do Estado de São Paulo
(lei 10.726/01) que instaurou uma Comissão de Reparação para avaliar pedidos de indenização
aos que foram presos e torturados por motivos políticos durante a ditadura11. Nesse mesmo ano,
por meio da Medida Provisória 2.151, transformada na Lei 10.559 em 2002, ampliaram-se os
parâmetros e critérios para estabelecer a reparação aos perseguidos políticos, e foi criada a
Comissão de Anistia, no âmbito do Ministério da Justiça, destinada à reparação econômica,
sobretudo, a examinar os pedidos de indenização daqueles que tiveram danos trabalhistas.
Nesse cenário de mobilizações em torno da memória da ditadura e das medidas de
reparação econômica foi elaborado o projeto de história oral dos presos políticos. O projeto
piloto foi desenvolvido em 2002, com o financiamento da USP12. Somente em 2008, contudo,
tornou-se possível o início da sua realização. Das 80 entrevistas do projeto, 17 delas foram
realizadas com ex-presas políticas. Do total, 11 entrevistas ocorreram no Rio de Janeiro e duas
foram gravadas em Recife (PE), com o apoio da Fundação Joaquim Nabuco. As demais foram
realizadas em São Paulo, sendo que dois entrevistados atuaram no Nordeste (no Ceará e na
Bahia). É de se ter em vista que essas entrevistas somam 298 horas gravadas13.
Do total das 80 entrevistas, realizamos 74 delas, sendo que o assistente de pesquisa Júlio
Ramos de Toledo fez as gravações das entrevistas em fitas mini-DV e colaborou na textualização
e edição das transcrições das mesmas. Os depoimentos, as transcrições das entrevistas e o
material audiovisual estão disponíveis ao público no Diversitas – FFLCH/USP e no AEL-

10
Cf. http://www.oamigoescolar.com.br/site/jornais/edi100_not_1.htm.
11
Nesse período, diversos estados promulgaram leis de reparação econômica: no Rio Grande do Sul e Paraná, em
1997; Santa Catarina, em 1998; Minas Gerais, em 1999; Pernambuco, em 2000; São Paulo e Ceará, em 2001; Rio
Grande do Norte, em 2003, Rio de Janeiro e Bahia, em 2004.
12
Em 2002 foram realizadas cinco entrevistas, em colaboração com o cineasta Claudio Kahns. Cf. as entrevistas de
Alberto Becker, César Augusto Teles, Raphael Martinelli, Murilo Melo e Sara Becker realizadas por Janaína de
Almeida Teles, Zilda M. Grícoli Iokoi e Claudio Kahns. Ver a lista completa dos entrevistados em TELES (2011),
disponível em <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-31012017-140247/pt-br.php>.
13
O projeto realizou ainda o Seminário Internacional 30 anos de Anistia no Brasil: o direito à memória, à verdade e
à justiça, de 25 a 28/08/2009, na Faculdade de Direito da USP, em parceria com a Fundação Heinrich Boll e o
Instituto Goethe; uma Mostra de Cinema: Espectros em retrospectos: O Cinema como Memória de Regimes
Autoritários, realizada entre 03 e 09/08/2009, em parceria com o NEV/USP e Instituto Goethe; e uma viagem à
Argentina para visitar a Memoria Abierta e os locais de recordação da ditadura mais significativos de Buenos Aires.
8

Unicamp. Um banco de dados contendo informações sobre o perfil dos entrevistados, tais como
partido, profissão, idade, presídio em que ficaram detidos e quais foram seus advogados facilita o
acesso às suas entrevistas14.
2. Documentando a memória: limites e desafios
Inspirado na experiência da entidade argentina Memoria Abierta, que organizou seu
Arquivo de História Oral contendo mais de 800 entrevistas de sobreviventes, militantes e
familiares de desaparecidos políticos registradas em vídeo15, o objetivo do projeto de história
oral dos presos políticos era trabalhar o depoimento enquanto processo de documentação,
garantindo a transparência de seu método e procedimentos, de maneira a assegurar seu caráter
público (MEIHY, 2000).
É de se ressaltar que o testemunho sobre o passado é sempre datado, um exercício de
memória que traz a marca do momento em que é pronunciado. Impressões e avaliações narradas
sobre uma mesma experiência podem ser recontadas de uma maneira bastante diferente anos
depois do primeiro relato. O ato de lembrar sempre se produz quando já transcorreu algum
tempo. Essa marca implica na distinção que ela estabelece entre o antes e o depois. A memória é
a guardiã da profundeza do tempo e da distância temporal. “E é esse intervalo de tempo, entre a
impressão original e seu retorno, que a recordação percorre” (RICOEUR, 2007, p.35-7, 72).
A memória tem outra característica, é algo que chega a nós espontaneamente, mas
também é objeto de busca, ela é “exercitada”. “Lembrar-se é ter uma lembrança ou ir em busca
de uma lembrança” (RICOEUR, 2007, p.24). A lembrança é alternadamente encontrada e buscada.
A memória é a conjunção da evocação simples e do esforço de recordação, da estimulação
externa e da leitura interna de imagens, que busca semelhanças e realiza associações (IDEM, p.37-
8). Os gregos antigos tinham dois termos para designar a lembrança e compreender o ato de
lembrar. De um lado, a mnémé designava a lembrança ou imagem do passado que aparece,
acolhe-se ou recebe-se passivamente, no limite. Ela foi caracterizada como afecção – pathos
(paixão). De outro lado, a anamnésis indicava a lembrança considerada objeto de busca,
geralmente, denominada recordação. A memória é associada à representação, imagem, imitação,

14
Do total das entrevistas realizadas, 15 foram publicadas no livro TELES (2010). Doravante, o Acervo Audiovisual
de ex-Presos Políticos, constituído no âmbito mais amplo do projeto, será citado como AAPP/AEL-Diversitas.
15
Memoria Abierta é uma ONG formada no ano 2000 por cinco organismos de direitos humanos. Seu arquivo oral
foi coordenado ao longo dos anos por Alejandra Oberti, hoje presidente da entidade. Essas entrevistas somam,
aproximadamente, 2.500 horas e estão organizadas em uma base de dados, abertas à consulta pública, cf. o site
www.memoriabierta.org.ar, consultado em 05/02/2017.
9

sensação, mas também à busca, ao aprender, à disciplina, à ascese – o “exercício”, o que exige
um penoso treinamento tendo como base a repetição, utilizado nas escolas, nas artes ou na vida
cotidiana (IDEM, p.36,71-4).
Esse duplo sentido da memória transporta-se para o domínio da história. A historiografia
cada vez mais se fundamenta na busca dessa “memória exercitada” como fonte de investigação e
interpretação. Nesse sentido, o projeto de história oral dos ex-presos políticos tem o sentido de
busca pelo testemunho dos protagonistas da história daqueles que viveram nos cárceres da
ditadura, uma forma de convidá-los a buscar dentro de si suas memórias e rastros do passado.
Colocando o historiador, o entrevistador, no papel ativo de quem busca, mas também daquele
que ouve e recebe estímulos, alternando esses papéis com os entrevistados.
Desde essa perspectiva, o historiador converte-se numa espécie de testemunha
secundária, tendo em vista que tem acesso a um relato direto do passado (LACAPRA, 2005,
p.126) que somente pode ser conhecido por meio desse testemunho, sobretudo se considerarmos
que parte considerável dos relatos aqui registrados foram concedidos pela primeira vez ao longo
do projeto.
Tal papel deve ser concebido à luz de outra dicotomia, dessa vez estabelecida pelas
dimensões epistemológicas a serem conferidas ao discurso oral e por sua articulação com os
diferentes níveis de interpretação do dito e, doravante, com a construção de consensos (senão
verdades) históricos.
Tornar-se-á claro pela leitura das entrevistas que o relato oral simultaneamente coloca-se
no âmbito e distancia-se da facticidade (respeitados determinados limites naturais para tanto,
entre os quais destaca-se o tempo transcorrido em relação aos conteúdos da experiência
relatados) e que esta dinâmica articula ao menos dois planos relativamente independentes de
desenvolvimento discursivo. Um desses planos poderia ser sumariamente denominado o plano da
“memória episódica”, ao passo que o outro, sob a mesma inspiração, denominar-se-ia plano da
“memória semântica” (ADES, 1993, p.9-24).
O primeiro plano versa sobre uma forma de resgate memorialístico que urge pela
recriação da experiência de realidade naquilo que ela possui de imparcial (sob a extensão e os
limites em que isto se faz possível) e fidedigno à facticidade material dos acontecimentos (por
exemplo, em que dia aconteceu algo, como estavam as pessoas, qual a ordem dos eventos, que
consequências objetivas sucederam-se); o segundo plano inclui o resgate do sentido da
10

experiência e, portanto, dos efeitos que esta atualiza no momento em que a pessoa é interpelada
(por exemplo, como ela se sentiu ou se sente em relação a algo; qual era o “clima” em
determinada situação aconteceu).
O plano da “memória semântica” é mais afeito a variações interindividuais (dadas duas
ou mais pessoas que tenham participado de um mesmo evento) do que o plano da “memória
episódica”. Nesse mesmo sentido, trata-se de um plano em relação ao qual o conteúdo relatado
pode modificar-se mais substancialmente em função da história de vida subsequente aos eventos
e da atmosfera política em determinada atualidade. Por exemplo, o relato acerca de como alguém
viveu o “clima” de determinado acontecimento histórico é, obviamente, muito dependente de
como a sociedade, no momento em que este se faz interpelado, considera e respalda aqueles que
tomaram parte em tal acontecimento – não sendo de se desconsiderar que o descaso oficial e a
falta de suporte e compensação por determinada atuação política em prol de objetivos comuns
dirima a importância atribuída aos mesmos.
Desta referência decorre a proposição de que este projeto seja compreendido como
articulador de dois planos de memória: um cujo objetivo é contribuir à caracterização de um
momento histórico fundamental e suscitar discussões; e outro que versa sobre os próprios
sujeitos e sobre o “sentido” daquilo que dizem, o qual pode parecer enviesado (como quando
uma experiência francamente negativa é caracterizada como neutra), conforme revela a maneira
como essa experiência constitui a atualidade desse sujeito, enquanto alguém que fala do ponto de
vista do presente.
A memória, em seu caráter semântico e, portanto, enquanto intimamente dependente da
articulação estabelecida com um determinado momento presente em que se faz resgatada,
emerge do compartilhamento de um ethos. Nesse sentido, a construção do testemunho de
sobreviventes só é possível por seu caráter dialógico; sendo pois mediada pela capacidade de
escuta ativa e pela vontade e experiência afetiva resultante do ato de contar.
O testemunho pode assumir diversas formas que combinam diferentes estratégias de
enunciação e diversas modalidades de expressão da subjetividade. Conforme assinalou Jelin,
essas formas de solicitar e produzir o testemunho não são alheios ao resultado que se obtém:

“[...] os testemunhos judiciais e, em menor grau, os realizados frente a comissões de investigação


histórica [as Comissões de Verdade] estão claramente determinados pelo destinatário. A
entrevista de história oral também implica que o testemunho é solicitado por alguém, mas se dá
em torno de uma negociação e relação pessoal entre entrevistador e entrevistado. Finalmente, a
11

escritura autobiográfica reflete uma decisão pessoal de falar publicamente por parte de quem o
faz. Cada uma destas ou outras modalidades de expressão indicam diferentes graus de
espontaneidade, diferentes relações da pessoa com sua própria identidade e diferentes funções do
„tomar a palavra‟16”.

O testemunho produzido pela história oral estabelece uma relação com “um/a outro/a”
que, através do diálogo com alguém que pergunta, edita, ordena e pede, constrói uma narrativa
social com sentido. Esse testemunho exige necessariamente a presença de um outro que escute
ativamente e torne-se um participante, ainda que diferenciado e com distintas reações. O que se
espera nesse diálogo não é identidade, mas o reconhecimento da alteridade. Esse processo
empático pode afirmar e ser veículo de reconhecimento do sobrevivente e suas histórias. Nesse
contexto, o testemunho pode ir além da reatualização da situação traumática e contribuir para
que o sobrevivente assuma suas perdas, nomeie e atribua sentido a essas experiências (JELIN,
2002, p.84-5, 89, 92-5).
A proposta de registrar os testemunhos dos presos políticos no Brasil surgiu como uma
forma de captar as mudanças e permanências existentes na percepção dos protagonistas diretos
desses acontecimentos e experiências. O lapso de tempo de uma geração, pouco mais de 20 anos
depois do surgimento dos primeiros testemunhos de sobreviventes, configurava-se um momento
privilegiado para registrar suas memórias. Esses novos testemunhos compõem um instrumento
fundamental para “historicizar as memórias” sobre a ditadura (JELIN, 2002, p.69).
Essa multiplicação de narrativas testemunhais sobre o passado recente constitui um
elemento indispensável na reconstrução crítica desses acontecimentos e experiências. Nesse
sentido, o registro de diversas vozes torna-se um ponto de partida do qual podem surgir outras
vozes – no âmbito analítico, crítico e artístico – que as tomam como interlocutoras e fazem mais
rico o campo de memórias em conflito (OBERTI, 2009a, p.71).

3. A seleção da amostragem
Diante das dimensões do universo a ser pesquisado e visando garantir maior
representatividade e proporcionalidade à amostragem, partimos das categorias e dados
percentuais compilados pelo Projeto Brasil: Nunca Mais (BNM) para estabelecer os critérios de
seleção da amostragem de ex-presos políticos a serem entrevistados. Essa seleção foi organizada
em conformidade com os dados relativos a sexo, idade, partido político a que pertencia,

16
Cf. observações de POLLACK (1990) citadas em JELIN (2002), p 85. Tradução livre da autora.
12

ocupação profissional, nível de instrução, origem e tipo de acusação que motivou o indiciamento
e a condenação do prisioneiro17, sem deixar de lado a perspectiva de que houve uma extensa
repressão política extrajudicial no Brasil.
É de se ter em vista que não há no país um levantamento exaustivo sobre o número de
pessoas punidas por razões políticas durante a ditadura, mas foi bastante expressivo, ainda que
não existam informações precisas e definitivas. A “Operação Limpeza” desencadeada nos
primeiros meses após o golpe de 1964 resultou na prisão de cerca de 50 mil pessoas (ALVES,
2005, p.72), atingindo, sobretudo, comunistas, sindicalistas, militares e lideranças ligadas ao
governo deposto. Encerrado este período, o aparato repressivo evoluiu gradativamente para uma
atuação mais violenta e centralizada através da reorganização do aparato repressivo do Estado
(TELES, 2005).
As perseguições no Brasil incluíram, em grande quantidade também, a suspensão dos
direitos políticos, a perda de mandato político ou de cargo público, a demissão ou perda de
mandato sindical, a perda de vaga em escola pública ou a expulsão de escola particular, além de
prisão e exílio – por banimento, asilo ou refúgio. A inclusão dos nomes de opositores do regime
nos arquivos do aparato repressivo causava inúmeras dificuldades, sobretudo no mercado de
trabalho. A publicação de sucessivos atos institucionais e as disseminadas perseguições levaram
Roberto Ribeiro Martins a calcular em mais de 1 milhão o número de brasileiros que
necessitavam diretamente de anistia18.
Não obstante, de acordo com os dados do BNM, os atingidos pela Justiça Militar por
motivos políticos durante a ditadura somam 17.420 pessoas, das quais 7.367 (42,3%) foram
acusadas judicialmente e 10.034 foram atingidas na fase de inquérito. Esses números foram
obtidos de 707 processos da Justiça Militar transcorridos entre 1964 e 1979. Dos 7.367,
aproximadamente 88% eram do sexo masculino e 12% do feminino. Ademais, entre os réus,
1.517 (20,5%) moravam no estado de São Paulo19.
Os processos judiciais voltados à repressão dos crimes políticos concentraram-se em duas
fases. Na primeira, que se estendeu até março de 1967, iniciaram-se ações penais contra 2.127
17
Cf. tabela com as quantidades e porcentagens de processos por partidos ou organizações políticas na Justiça
Militar; e a tabela relacionando quantia de entrevistados com partido, sexo, idade, ocupação etc, no anexo da nossa
tese, em TELES (2011), p.510.
18
Cf. MARTINS (1978), p.152 e MEZAROBBA (2007).
19
Cf. ARQUIDIOCESE (1987), p.9-14; RIDENTI (1993), p.68-72, p.122-3; e WESCHLER (1990), p.23, 51-2 e 60-1.
Note-se que nos processos judiciais há nomes repetidos, pois há pessoas que aparecem em mais de um processo, cf.
RIDENTI (1993), p.122.
13

perseguidos políticos (28,8%); enquanto na segunda fase, 4.460 pessoas (60,5%) foram
denunciadas entre novembro de 1969 e novembro de 1974.
Em decorrência de sua relevância numérica e qualitativa, a maioria dos entrevistados
selecionados foi afetada na segunda fase da repressão. Os presos políticos desta fase foram
condenados a penas maiores e permaneceram períodos mais longos nos cárceres. Não obstante,
registramos também alguns testemunhos de presos políticos do primeiro ciclo repressivo, assim
como daqueles que foram presos entre os anos de 1975 e 1979.
É de se considerar ainda que a maioria dos perseguidos políticos processados pela Justiça
Militar foi acusada de participação em organizações partidárias clandestinas, somando 4.935
(66,9%) pessoas, sendo que do total de denunciados, 5.104 (69,2%) pessoas foram formalmente
presas e apenas 2.828 (38,3%) condenadas, indicando a seletividade da repressão judicial. Do
total de réus, 1.843 (25%) pessoas denunciaram as torturas sofridas20, mas testemunhos relatam
que, em diversas ocasiões, as denúncias feitas em juízo não foram registradas. É digno de nota
que esses números não são exatos, pois muitos perseguidos, embora tenham sido presos e
torturados, não foram alvo de qualquer espécie de registro ou indiciamento na justiça.
A maioria dos presos entrevistados, contudo, foi processada e condenada, pois eles foram
os que permaneceram mais tempo nas prisões, o que era especialmente relevante para o enfoque
estabelecido pelo projeto. Não deixamos, porém, de registrar depoimentos emblemáticos como
os de dois militantes do PC do B que atuaram na Guerrilha do Araguaia, foram sequestrados e
torturados por meses, sem serem submetidos a nenhum processo judicial21.
A partir desses critérios, entre 2008 e 2010, foram coletadas e transcritas 75 entrevistas
com ex-presos políticos nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Recife. A amostragem de
entrevistas recolhidas é bastante abrangente. No total foram entrevistadas pessoas de diferentes
ocupações e faixas etárias que militaram em 14 organizações de esquerda existentes durante a
ditadura, além de marinheiros e sargentos envolvidos nos conflitos do período do golpe de 1964.
De acordo com o BNM, chega a 15 o número das organizações mais afetadas pela repressão
estatal durante a ditadura.
Com esta abrangência conseguimos dar voz a alguns dos principais protagonistas dessa
comunidade localizados, principalmente, em São Paulo. Desse modo, entrevistamos 17 mulheres

20
Desse universo de denúncias foram identificados 283 tipos de tortura, sendo que 1.461 homens e 382 mulheres
foram torturados; sendo que 444 torturadores foram indicados, cf. WESCHLER, (1990), p.23, 51-2 e 60-1.
21
Cf. ALMEIDA (2008) e CARNEIRO (2010).
14

e 63 homens, obtendo também uma visão de gênero da experiência de prisão no Brasil, naquele
período. Esta diversidade acarretou maior dificuldade para encontrar as pessoas representativas
dessas organizações, abrangendo dirigentes e militantes de base, e pessoas que tivessem
permanecido maior tempo na prisão etc22. Não obstante, fomos bem sucedidos nessa tarefa.

4. O roteiro e o tratamento dispensado às entrevistas


Devido às características do grupo estudado, o tipo de testemunho que registramos está a
meio caminho entre a História Oral de Vida e o que se costuma chamar de entrevista Temática
(MEIHY, 2000). A história de vida cuida mais livremente de impressões, subjetividades, sem
questionários ou perguntas diretamente indutivas. Respeitando o testemunho dos ex-presos como
produtores e narradores de sua história, o roteiro de perguntas do projeto buscou deixar o
entrevistado o mais livre possível para contar sua vida marcada pela vivência política dos anos
de ditadura, pela clandestinidade, prisão e tortura e os traumas decorrentes dessas experiências-
limite.
Por um lado, estávamos atentos para que cada testemunho refletisse a experiência pessoal
e tomasse o ritmo e o tempo de cada um, e, por outro, o roteiro das entrevistas buscou direcionar
as perguntas para as questões específicas dessa experiência singular, a da vivência nos cárceres
políticos da ditadura (OBERTI, 2009). A maioria das entrevistas teve duração média de 5 horas.
Algumas delas, porém, duraram de 8 a 11 horas e requereram que se retornasse duas ou três
vezes à casa ou local de trabalho do entrevistado(a). Procurou-se respeitar o tempo de cada um(a)
na medida em que ele(a) não se repetisse. Nesses casos, a narrativa era interrompida, quando
solicitava-se que o entrevistado respondesse às questões com mais objetividade23.
O questionário utilizado como guia nas entrevistas foi pensado de maneira abrangente, de
forma que contextualizasse a vida dos ex-presos políticos. Convidamos os entrevistados a falar
sobre a família, a presença da política e da religião nos diferentes momentos de suas vidas, a
formação educacional, o trabalho, os afetos, a militância, os diferentes posicionamentos políticos
antes e depois da prisão, mas também sobre assuntos delicados como a tortura, suas sequelas e

22
Os dados disponíveis sobre o nível de escolaridade dos perseguidos políticos pela Justiça Militar indicam que de
4.476 pessoas, das quais foi possível obter dados sobre grau de instrução, 2.491 possuíam grau universitário
completo ou incompleto, cf. ARQUIDIOCESE (1987), p.9-14.
23
Esse é o procedimento utilizado por Memoria Abierta, cf. relatou-nos Alejandra Oberti em entrevista de 2009.
15

repercussões. O objetivo era o de registrar a avaliação de cada um sobre suas histórias e seu
legado.
Esses testemunhos assinalam não somente fatos e subjetividades relacionados à ditadura,
mas também ao processo sociopolítico das décadas anteriores e posteriores ao período do
terrorismo de Estado. Voltada para a atualidade dessas histórias e memórias, as entrevistas
registraram também os diversos enfoques e avaliações a respeito do debate político travado no
presente em torno das reparações aos anistiados, da punição aos torturadores e de outras
reivindicações e tipos de justiça retrospectiva. A abrangência e a duração das entrevistas
permitem uma aproximação da gravitação que o passado recente teve na vida dessas pessoas e do
país em seus diversos matizes e complexidades, produzindo narrativas que apresentam uma
ampla diversidade.
A utilização do recurso visual, registrando as entrevistas em vídeo, pretendeu ser mais
uma forma de captar e apresentar, com mais possibilidades técnicas, as emoções e singularidades
de cada entrevistado, oferecendo assim um contexto mais amplo, o que dá lugar a uma resposta
crítica mais informada sobre os temas abordados nas entrevistas e sobre as possibilidades e
impossibilidades de realizar e arquivar testemunhos orais.
Os entrevistados em geral colaboraram e se sentiram menos intimidados com a presença
da câmera de vídeo do que o esperado, gerando entrevistas mais longas. Poucos convidados
recusaram-se a participar do projeto, os que o fizeram, alegaram não querer tocar em temas tão
delicados em público. Entre eles, um propôs-se a conceder a entrevista, desde que não fosse
gravada em vídeo. Para uma parcela considerável das pessoas, era a primeira vez que
testemunhavam ou participavam de uma entrevista desse tipo, produzindo depoimentos
eventualmente mais espontâneos e tensos.
O fato de o trabalho ter sido registrado em vídeo exigiu que as conversas feitas
previamente tivessem que ser mais detalhadas e longas para que o entrevistado conhecesse
melhor o projeto e se sentisse seguro para ceder a entrevista. Os momentos de “negociação” com
o entrevistado sobre quais os conteúdos e períodos de sua história poderiam ser narrados durante
a entrevista aconteceram em maior quantidade. Por diversas vezes, vários dos entrevistados
pediram para fazer pausas durante a entrevista para conversar sobre como falariam de assuntos
difíceis, geralmente relacionados à tortura, mas também sobre tarefas exercidas na
clandestinidade ou disputas e divergências políticas vividas na clandestinidade ou nas prisões.
16

Quanto ao processo de preparação das entrevistas, depois de sua realização, o qual se


iniciava com a leitura e revisão por parte da entrevistadora(res) e, a seguir, pelo momento de
enviá-las ao entrevistado para revisão, mostrou-se muito trabalhoso. Foi preciso migrar as
imagens das entrevistas do vídeo para os DVDs e a posterior realização da transcrição e edição
de cada uma delas, quando excluímos as repetições comuns à fala e corrigimos os principais
erros ortográficos e de concordância verbal. Além disso, a espera de retorno da revisão das
transcrições das entrevistas por parte dos entrevistados desencadeou um processo ainda mais
demorado. Não obstante, foi possível obter as correções das entrevistas, que se transformaram
em fontes relevantes para o estudo da história do Brasil contemporâneo.
É de se registrar que os valiosos testemunhos recolhidos neste projeto são fontes
documentais e epistemologias históricas ricas e importantes, porque são relatos únicos sem outro
registro que permita a recuperação da história das lutas de resistência e das instituições da
repressão estatal, além de serem úteis para complementar outras fontes e fazer inferências sobre
acontecimentos históricos. Mas, em especial, eles contribuem para compreender a experiência de
prisão durante a ditadura, suas consequências e o papel da memória e dos esquecimentos em que
esses sujeitos incorreram “a fim de acomodar-se ao passado, negá-lo ou reprimi-lo” (LACAPRA,
2005, p.105).
Vários depoimentos registrados pelo projeto surgiram com uma surpreendente
intensidade e paixão. Estão impregnados de emoção e são significativos para a avaliação de um
período histórico. Durante a realização das entrevistas, impuseram-se, constantemente, questões
a respeito das possibilidades de conciliar os afetos com os procedimentos da reconstrução
objetiva do passado. Os testemunhos exigiram da audiência um enorme esforço para gerar uma
resposta empática e, ao mesmo tempo, a objetividade para continuar a ouvir e perguntar. Eles
cobraram disposição e coragem de muitos dos entrevistados, que, de certa maneira, “voltaram a
viver fatos” dolorosos e difíceis do passado.
Esses testemunhos dos ex-presos políticos formam um conjunto documental que
contribui para nos aproximar do debate político e jurídico de então, como se formaram suas redes
de solidariedade e as relações estabelecidas entre o que era vivido nas prisões e fora delas.

Considerações finais
17

Neste estudo procuramos revelar o processo de realização do projeto de história oral dos
presos políticos (sobretudo os de São Paulo) e sua relevância para a pesquisa sobre o período
ditatorial, as lutas de resistência ao regime e a sistematização e divulgação de denúncias de
violações dos direitos humanos no Brasil.
O resgate da experiência dos sobreviventes produz condições oportunas para a
compreensão de fatos de alta relevância histórica. Conforme este estudo busca caracterizar, tal
resgate é inexoravelmente dependente do contexto em que se produzem as experiências e do
contexto em que se atualiza, sobretudo se envolve um projeto de história oral com sobreviventes
de situações-limite. A maneira como se resgatam as experiências traumáticas e a apropriação que
delas se fazem tecem os contornos dos fenômenos em questão. Ademais, sutil é a fronteira entre
o resgate que representa reapropriação da experiência e a reificação pura e simples da memória.
É de se em vista que desde o período final da ditadura, vivenciamos no país uma
“transição política” estabelecida sem rupturas significativas, na qual foram engendrados
processos políticos, instituições e normas que ainda hoje se interpõem para bloquear ou postergar
a reflexão e elaboração social sobre o passado recente, o que se reflete nos testemunhos
compilados neste projeto. Entrelaçando o público e o privado, os relatos dos presos políticos aqui
registrados nos oferecem pistas para interpretar a cultura e a política nacionais.
Este projeto de testemunhos dos ex- presos políticos favorece a constituição de uma
consciência coletiva acerca da repressão ditatorial e do status de suas vítimas e sobreviventes.
Ele representa uma janela de oportunidades para a construção de uma contramemória sobre a
ditadura, lançando luz sobre aqueles que permaneceram anos nos cárceres brasileiros, sobre as
redes de solidariedades aos perseguidos políticos e seus vínculos com vozes atuantes que se
mostraram fundamentais para dar visibilidade ao que acontecia no país e para impor desgaste à
ditadura.
Pautado pelo registro das memórias, sua abrangência e transparência metodológica
permite-nos traçar um quadro a respeito tanto de questões factuais quanto das experiências e
subjetividades relativas ao passado recente, contribuindo para reconstruir e problematizar a
história e a memória desse período.
As modificações das representações do passado, das normas e práticas institucionais
relacionadas à memória dos crimes de Estado colocaram em discussão diversas questões, tais
como a da representação objetificadora da história e seus limites, a da responsabilidade, da culpa
18

individual e coletiva, das manipulações da “memória obrigada” e das comemorações na sua


relação ideológica com o discurso do poder, entre outras. Este projeto se insere nesse ponto de
atrito particularmente carregado de ambiguidades, desde a perspectiva de resistir à pretensão de
reduzir a memória a um simples objeto da história, desponjando-a de sua função matricial, bem
como de recusar a deixar que a memória se imponha à história (RICOEUR, 2007, p.41).

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Entrevistas:
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