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Folha de Rosto
HISTÓRIA DA FILOSOFIA
Organização e texto final:
Bernadette Siqueira Abrão
Crédito
FUNDADOR
VICTOR CIVITA
(1907-1990)
ISBN: 978-85-13-01452-3
© 2011 Editora Nova Cultural Ltda. Rua Texas, 111 – sala 20ª –
Jd. Rancho Alegre – Santana do Parnaíba – São Paulo – SP — CEP 06515-200
2011
APRESENTAÇÃO
DAS ORIGENS À
IDADE MÉDIA
1. A JORNADA INICIAL
O PENSAMENTO ORIENTAL
A REVOLUÇÃO GREGA
O desenvolvimento da pólis
Muito antes do nascimento da pólis, porém, a Grécia já era marcada por uma
vida cultural intensa, da qual Homero é representante — embora a existência
real desse poeta seja controversa. Os poemas atribuídos a ele narram as últimas
guerras troianas, que, supõe-se, ocorreram entre 1260 e 1250 a.C. Ilíada conta a
fase final dos combates, em que o guerreiro Aquiles envolve-se em uma série de
aventuras contra os troianos. Derrotada Tróia, o herói Ulisses (Odisseu) parte
para Ítaca, sua terra natal, onde a esposa Penélope o espera. Odisséia descreve
essa longa viagem (de dez anos) através dos mares.
Nos dois poemas, história, ficção, lenda e mito se confundem. Os deuses e os
mitos presentes nos relatos, por sinal, não são os dos povos em guerra. São os
dos dórios, que, vindos do norte séculos depois das guerras troianas, instituíram
uma sociedade aristocrática e consolidaram o que seria a civilização grega ou
helênica propriamente dita.
Assim como Homero narra fatos anteriores a seu tempo, a difusão de sua obra
pela Grécia também se faz muito depois da época em que teria vivido. Seus
poemas só chegam a Atenas por volta do século V a.C., em tudo diferente do
período homérico. O modo de vida e a cultura são outros. A sociedade
aristocrática que esbanjava luxo havia cedido à vida comedida do regime
democrático. Os deuses já não bastavam para explicar o mundo.
Essa época consagra Homero como “pai da cultura helênica”. E se assim o faz
é porque herda do poeta uma idéia arraigada nesse novo modo de viver e de
pensar: a idéia de fado, ou fatalidade, o destino implacável que comanda a vida
não só do homem mas também dos próprios deuses. O que é essa força que está
acima dos deuses? Esta pergunta é uma das raízes do pensamento ocidental.
Outra idéia também inspira os gregos a não mais recorrer aos deuses para
entender o mundo: a sensação de que eles abandonaram os homens. Isso aparece
já no final do século VIII a.C., na obra do poeta Hesíodo.
Em Teogonia, ele descreve a criação do mundo e dos deuses a partir de Caos,
Gaia (Terra) e Eros (Amor). Sucedem-se outras divindades, que com caprichos
quase humanos amam, mentem, traem e lutam umas com as outras. Finalmente,
com a vitória de Zeus, os deuses ins-talam-se no Olimpo. Nesse relato, Hesíodo
ordena vários mitos contraditórios, explicando também os fenômenos da
natureza e a história. Mais que isso, mostra que, após a vitória de Zeus, o homem
está livre das cruéis maquinações dos deuses que o antecedem. Zeus, que faz
reinar a justiça, castiga ou premia os mortais de acordo com os atos pelos quais
são responsáveis.
Em Os Trabalhos e os Dias, escrito para pedir a punição de um irmão
desonesto, Hesíodo defende a necessidade do trabalho árduo como condição
humana. O ser humano, segundo narra, teria passado por cinco idades: a de ouro,
a de prata, a de bronze, a dos semideuses e a de ferro. Na primeira, convive com
os deuses, não conhece nem o trabalho nem a morte. Seguem-se fases
intermediárias que terminam com a idade de ferro, a fase atual, em que o
homem, após ter recebido o fogo roubado por Prometeu, foi separado dos deuses
e condenado a trabalhar, a procriar, por conta própria. A procriação é
possibilitada por Pandora, mulher que os deuses enviam aos homens como
vingança pela posse do fogo. Dela — ou da caixa que carrega — nascem todos
os dons e todos os males da Terra. O homem está abandonado, mas já é livre
para fazer valer a sua justiça. E para pensar.
Democracia e filosofia
Heráclito (c. 540-480 a.C.) transforma em solução o que aos outros era
problema. Para ele, o mundo explica-se não apesar das mudanças de seus
aspectos, muitas vezes contraditórios, mas exatamente por causa dessas
mudanças e contradições. Por isso, em um de seus fragmentos, diz: “O combate
é de todas as coisas pai, de todas rei”. Em outras palavras, todas as coisas
opõem-se umas às outras, e dessa tensão resulta a unidade do mundo.
Essa oposição, esse combate, é uma guerra, e não, como pretendia
Anaximandro, o equilíbrio de forças iguais. Tampouco é a harmonia dos
contrários assegurada, como no entender dos pitagóricos, pela justa medida
imposta por um ente supremo. Para Heráclito, a harmonia nasce da própria
oposição: “O divergente consigo mesmo concorda; harmonia de tensões
contrárias, como de arco e lira”.
A divergência e a contradição não só produzem a unidade do mundo mas
também a sua transformação. O mundo é um eterno fluir, como um rio; e é
impossível banhar-se duas vezes na mesma água. Fluxo contínuo de mudanças, o
mundo é como um fogo eterno, sempre vivo, e “nenhum deus, nenhum homem o
fez”.
Mas só se compreende isso quando, ao deixar de lado a “falsa sabedoria”
ditada pelos sentidos e pelas opiniões, chega-se ao logos, isto é, ao pensamento
sensato. É o raciocínio adequado que abre as portas para o entendimento do
princípio de todas as coisas. “Não de mim, mas do logos tendo ouvido é sábio
homologar tudo é um”, diz um de seus aforismos.
Os paradoxos de Zenão
Em busca da essência
A condenação da Ética
As aparências e as Idéias
Por se dedicar ao estudo dos seres vivos e de tudo o que a natureza contém,
Aristóteles não despreza, como seu mestre, a observação das coisas que se
apresentam aos sentidos. Mais do que isso, procura integrar a percepção do
mundo sensível ao conhecimento científico e filosófico.
Isso, porém, não significa que ele tenha sucumbido ao mundo sensível e às
suas variações e incertezas. Se recusa a solução do mestre é porque, no seu
entender, o mundo inteligível concebido por Platão apenas explica a imperfeição
do mundo sensível, mas nada além disso; é incapaz de explicar o universo dos
sentidos, a diversidade e o movimento que nele ocorrem, a não ser pelo recurso
duvidoso de um Demiurgo fabricante do universo.
Se o mundo inteligível é uma ficção desnecessária e inútil, só resta ao
conhecimento tornar-se o conhecimento do mundo sensível, onde existe não a
idéia de Homem ou de Cavalo, como queria Platão, mas homens e cavalos
individuais. Os sentidos que captam as coisas individuais constituem assim o
ponto de partida. A percepção dessas coisas produz, no intelecto, imagens a elas
correspondentes (de diversos cavalos, por exemplo). A atividade do intelecto
consiste em separar dessas imagens os aspectos acidentais, como o tamanho e a
cor, para ficar com o que lhes é comum e essencial. O resultado dessa operação,
que é a abstração, é o conceito de cavalo. A abstração pode avançar mais e,
comparando, por exemplo, cavalos, homens e pássaros, chegar ao conceito
genérico de animal. Para Aristóteles, o conhecimento é esse processo de
abstração pelo qual o intelecto produz conceitos universais que, ao contrário das
idéias de Platão, não existem separadamente das coisas e do intelecto.
A percepção do mundo sensível mostra que tudo se transforma continuamente.
Para dar conta disso, Aristóteles elabora as noções de ato (energeia) e de
potência (dynamis). O ato refere-se ao estado atual do ser, como existe aqui e
agora. A potência, por outro lado, indica aquilo em que este ser se transforma,
sem no entanto deixar de sê-lo. A semente de uma árvore, enquanto ato, é
semente, mas como potência é a árvore que dela vai germinar. As mudanças e o
movimento são o modo como as potencialidades do ser vão se atualizando,
passando da potência ao ato.
Essa passagem, porém, não se dá ao acaso. Ela é causada, é efeito de uma
causa, que pode ser material, formal, motriz ou eficiente, e final. A causa
material indica a matéria de que uma coisa é feita, como, por exemplo, a madeira
com que se fabrica uma mesa. A causa formal dá forma a essa matéria: no
exemplo, a forma mesa torna a matéria reconhecível como objeto mesa. Mas,
para isso, é preciso que algo unifique a matéria e a forma: é a causa motriz ou
eficiente, que, no exemplo, pode ser o artesão que trabalha a madeira, dando-lhe
a forma de mesa. Por fim, a passagem da potência (madeira) ao ato (mesa) fazse
segundo um objetivo, uma finalidade, uma causa final. No caso da mesa, a causa
final pode estar em ser vendida ou usada pelo próprio artesão, e assim por diante.
Dentre esses quatro sentidos da causa, a final é a mais importante: se a potência
atualiza-se em ato, é sempre em vista de alguma finalidade.
A imobilidade da causa primeira
Se tudo tem sua causa, é preciso supor uma causa primeira, que tenha dado
início ao ciclo infindável de potência-ato-potência. Tal causa primeira, por ser a
primeira, não pode ter sido causada por alguma outra. Deve ser imóvel, pois o
movimento supõe uma causa, e nesse caso ela não seria a primeira. Tampouco
possui potencialidades, pois se as tivesse acabaria por se mover, transformando-
se em ato. Não pode ser material: a rigor, a matéria só existe numa forma, o que
significa que uma causa eficiente a uniu; deve ser então forma pura. Imóvel, ato
puro sem potência e pura forma, a causa primeira pôs em movimento o conjunto
do universo. É o motor imóvel.
Da teoria platônica do mundo inteligível, assim, Aristóteles conserva uma
única idéia ou forma separada (ou transcendente), sob o nome de “Deus”. Essa
separação é radical: o Deus de Aristóteles não cria o mundo nem interfere no seu
curso, como o Demiurgo de Platão, pois criar ou interferir implicaria
movimento. Além disso, sendo perfeito, esse Deus deve ser também
conhecimento, inteligência e pensamento, mas não pode conhecer o mundo que
lhe é exterior, pois conhecer algo que está fora significa suprir uma privação,
transformando a potência em ato — o que também é movimento. Nessa medida,
Deus só pode ser pensamento do pensamento, o conhecimento de si mesmo. E só
pensa em si próprio, numa eterna autocontemplação. Por tudo isso, o conceito de
Deus de Aristóteles em quase nada se assemelha ao do cristianismo — e só com
muito custo o pensamento cristão, na Idade Média, iria conseguir adaptar um ao
outro.
Como esse Deus, satisfeito consigo mesmo, tão incomunicável e alheio, pode
constituir-se na suprema finalidade do mundo? Sendo imóvel e bastando-se a si
mesmo, a “iniciativa” de pôr o mundo em movimento não pode, a rigor, ter
partido dele. É antes o mundo que se move pela atração que a sua perfeição
provoca. Tal atração é o amor. Deus, porém, não ama o mundo — ele não é o
Deus dos cristãos. É o mundo que o ama e quer se assemelhar a ele, repetir sua
eterna perfeição.
Assim, o movimento é a passagem da potência ao ato, pois as coisas desejam
assemelhar-se ao ato puro que é Deus. Se elas buscam o seu lugar natural, onde
podem encontrar repouso, é porque Deus é o eterno repouso. As espécies
reproduzem-se e conservam-se como tais porque assim imitam a eternidade de
Deus. Mas, imperfeito, o mundo jamais alcança a perfeição plena e deve
recomeçar seu eterno ciclo de movimento. De modo geral, podese dizer que o
sentido último do movimento é a imobilidade.
As formas (eidos, que em Platão significam “idéias”) não estão separadas das
coisas do mundo sensível. Ao contrário, são exatamente elas que lhes dão
existência efetiva, fazendo com que a matéria — que por si só é indiferente —
seja esta ou aquela coisa. Em outras palavras, a forma é inerente (ou imanente)
às coisas.
As formas podem ser acidentais ou substanciais. Quando se diz, por exemplo,
“Pedro está sentado”, o termo “sentado” indica a forma atual de Pedro, a qual é
apenas acidental — sentado ou não, Pedro é Pedro. Mas, caso se afirme “Pedro é
homem”, a palavra “homem” indica-lhe a forma substancial ou essencial, sem o
que Pedro não poderia ser Pedro. Aristóteles denomina-a “substância segunda”
para distingui-la dos indivíduos particulares (no caso, Pedro), que são as
“substâncias primeiras”. A ciência é assim o conhecimento dessas formas
substanciais que indicam a essência das coisas.
Mais: se as essências não estão separadas num mundo inteligível, imóvel e
eterno, a ciência que as estuda deve levar em conta as mudanças e os
movimentos que ocorrem e que os sentidos registram. A mudança expressa-se
quando se diz, por exemplo: “O homem aprendeu a gramática”. Supõe-se que ele
não a conhecia, mas que pas-sou a conhecer. Estava privado do conhecimento, e
depois o possuiu.
A mudança ou o movimento, assim, é o modo pelo qual uma substância (o
homem) supre uma privação anterior (a ignorância da gramática) para assumir a
forma atual (“aprendeu a gramática”). O antigo problema da existência ou não
do não-ser é, assim, deslocado pela noção de privação: o não-ser propriamente
não existe; o que existe é a substância privada de uma forma, que passa ao ato
pela atualização dessa mesma forma desde que a possua “em potência”.
Substância, forma e privação constituem os três princípios internos do
movimento, isto é, fazem parte da própria coisa que se move. Mas isso não
basta. O movimento requer o espaço para realizar-se. Tal espaço ou lugar é
distinto do vazio dos atomistas; este é apenas a ausência do átomo, isto é, o não-
ser, enquanto o lugar é o que define os sentidos (esquerda, direita, acima, abaixo
etc.) do movimento. Além disso, o movimento supõe a noção de tempo, que o
decompõe em antes e depois, sem o que seria inconcebível a passagem da
potência ao ato. Como diz Aristóteles, é por meio do tempo que se pode definir
“o número do movimento, segundo o antes e o depois”.
Por fim, o movimento também requer algo que o impulsione. Aristóteles
denomina tal força propulsora de physis, restaurando-lhe o significado original:
physis traduz-se por “natureza”, mas é natureza na medida em que significa
“engendrar”, “fazer nascer”, “produzir”. E está presente em cada substância,
fazendo-a mover-se da privação à forma. Nesse sentido, physis é tanto causa
formal como causa eficiente.
Mas a physis é também causa do repouso. Se o movimento é o modo pelo qual
a forma vai se atualizando na matéria, o repouso indica o momento final, quando
a potência se realiza plenamente como ato. E o repouso é a finalidade de todo
movimento. Assim, se uma pedra cai é porque sua natureza, que é a de ser
“pesada”, tem na Terra, o “embaixo”, o seu lugar natural, o lugar do repouso. Da
mesma forma, o corpo leve (como a fumaça) sobe, pois seu lugar natural, sua
finalidade, é o “em cima”.
A forma e a matéria equivalem, no caso dos seres vivos, à alma e ao corpo,
respectivamente. Assim, a alma, segundo Aristóteles, é “a forma de um corpo
natural ten-do a vida em potência”. Significa que a alma atualiza no corpo todo o
movimento da vida, que vai do nascimento à morte e à geração de um novo ser.
Esse movimento, do qual a alma é o princípio, assegura a conservação da
espécie, que, em última instância, é a grande finalidade da vida.
Aristóteles distingue três tipos de alma: a vegetativa, a sensitiva e a racional.
A primeira, comum a todos os se-res animados, é o princípio da nutrição e da
reprodução. Da alma sensitiva só participa o gênero animal: os animais
(inclusive os homens) possuem a sensibilidade pela qual sentem, o que não
acontece com as plantas. Por fim, a alma racional, a razão, é exclusiva da espécie
humana.
Assim, para cada grupo de seres vivos corresponde um tipo de alma ou a
combinação de vários tipos. Isso também se aplica às espécies, na medida em
que a forma (a alma) não existe separada da matéria (o corpo), à qual dá
existência particular. Por isso, não há em Aristóteles a noção de evolução das
espécies. Cada uma persegue a sua finalidade, que é a de conservar-se enquanto
tal. Assim, não pode haver passagem de uma espécie para outra. Além disso, se a
alma só existe no corpo, também se conclui que ela não pode ser imortal, a não
ser como forma comum a uma espécie.
O resultado é a idéia de ser, que engloba todas as coisas existentes. Para
Aristóteles, o conhecimento do ser é imprescindível para fornecer bases sólidas
às ciências (física, astronomia, biologia etc.), que se ocupam de aspectos
particulares da realidade. É por meio desse conhecimento — a metafísica ou
“filosofia primeira”, como ele a denominava — que as ciências se unificam em
um todo coerente, sem o que só haveria explicações particulares de coisas
particulares.
O ser, para Aristóteles, não é uma coisa única e eterna como o ser de
Parmênides. É um “quê” presente em cada coisa que existe, e que faz com que
esta coisa seja precisamente esta e não outra.
O princípio da não-contradição
A importância do silogismo
A política e a poética
Cinismo e ceticismo
A ataraxia é também o objetivo moral de Epicuro (c. 341-270 a.C.), que reunia
seus discípulos numa escola conhecida como Jardim. Para ele, felicidade é
prazer, basicamente satisfação de desejos físicos. Mas, como a um prazer
momentâneo pode-se seguir desprazer ou dor, convém procurar um tipo de
satisfação estável, comedido mas constante — algo como a sensação que
experimenta um homem que não sente sede e, por isso, não bebe. Esse “prazer
em repouso”, como denomina Epicuro, é precisamente a ataraxia, um estado de
desejo sempre saciado e que se consegue pelo perfeito equilíbrio entre as partes
do organismo.
O autêntico prazer é inseparável da tranqüilidade da alma e da realização
plena da auto-suficiência. Nessa perspectiva, a amizade é, talvez, a mais
importante fonte de satisfação e de compensações. É certo que ela aumenta a
nossa dependência em relação aos amigos, mas, diante da solidão e da
insegurança de nossas vidas, é ainda um remédio mais eficaz do que os vínculos
da vida política.
Se Epicuro considera o prazer uma realidade física é porque para ele, seguidor
da teoria atomista de Demócrito, não existe nada além das coisas físicas e
corpóreas (os átomos) e sua ausência (o vazio). Por isso, o conhecimento
também só pode ser resultado do contato direto entre as coisas e os sentidos. As
coisas, compostas de átomos, emitiriam uma espécie de eflúvio que atingiria os
órgãos dos sentidos, produzindo as sensações. A memória preservaria então as
sensações, que passariam a ser antecipações de uma nova experiência sensível. É
por essas antecipações, que rememoram a sensação anterior, que se pode
reconhecer a identidade (ou não) de coisas percebidas em momentos diferentes.
O conhecimento é, assim, o acúmulo das sensações que vão se classificando
como idênticas ou diferentes, de acordo com as antecipações.
O mundo e o próprio conhecimento do mundo são explicados pelo movimento
dos átomos através do vazio. Mas Epicuro introduz uma modificação na teoria
de Demócrito. Para este, o movimento era inerente aos átomos, sem que
houvesse uma explicação para isso. Epicuro explica esse movimento pelo peso,
uma propriedade do átomo que inexistia em Demócrito e que é responsável pela
queda.
Mas, pela idéia de peso, todos os átomos apenas cairiam paralelamente em
linha reta e jamais se chocariam. Por isso, Epicuro é obrigado a admitir um
segundo tipo de movimento: a inclinação, que faz com que cada átomo se desvie
ligeiramente de sua trajetória retilínea para colidir com outros e, assim, produzir
a diversidade das coisas. Ele não explica, porém, a causa da inclinação. Assim,
ao resolver uma dificuldade presente na teoria de Demócrito, Epicuro acaba por
criar outra. Esse “descuido”, no entanto, tem uma função: a inclinação não se
explica porque é a manifestação da liberdade do átomo. A conseqüência disso é
uma espécie de teoria materialista da liberdade, de difícil interpretação.
A libertação e a cura, para Epicuro e seus seguidores, se dão pela filosofia.
Assim como o médico se ocupa das doenças e dos sofrimentos do corpo, ao
filósofo cabe cuidar das doenças e dos sofrimentos da alma. A filosofia é assim a
terapia das causas da infelicidade humana. Num mundo marcado pela pobreza
material e pela falta de solidariedade, por guerras e perseguições políticas —
freqüentemente interpretadas como castigos dos deuses aos atos humanos —, o
epicurismo defende uma imagem do mundo e do homem na qual os deuses e a
morte deixam de ser ameaçadores.
Tudo na filosofia de Epicuro — sua concepção física do universo, suas idéias
a respeito do conhecimento e da alma, sua visão da sociedade e da religião —
relacionase com esse propósito de libertação. Ele mesmo resume sua doutrina
em quatro máximas, ou medicinas: “Não há que temer a Deus”; “Morte significa
ausência de sensações”; “É fácil procurar o bem”; “É fácil suportar o mal”.
Aquele que alcançou a ataraxia e tornou-se dono de seus atos não tem medo
da morte, que não passa da ausência de sensações. Os átomos que uma vez
compuseram um corpo humano apenas se desagregam. O homem nada sente.
Por isso, escreve Epicuro em sua Carta a Meneceu: “Quem compreendeu que
nada há de temível no fato de estar morto, a nada temerá na vida”.
O pensamento epicurista liberta o homem das imposições da necessidade, do
destino ou dos deuses. Senhor de si, sem nenhuma espécie de constrangimento, o
homem é livre para perseguir seu objetivo: a felicidade.
Euclides e Aristarco
Eratóstenes e Arquimedes
O “erro” de Ptolomeu
O desenvolvimento do Império
A filosofia de Cícero
O surgimento do direito
O ex-escravo e o imperador
Se o Uno não pode ser percebido ou pensado (a não ser por aproximações e
negações), significa que ele não é determinável. Em outras palavras, não possui
limites que o fixem; não é portanto finito, mas infinito. Com esse raciocínio,
Plotino inverte toda uma tradição filosófica que considerava o infinito sinal de
imperfeição, e que, por isso, sempre concebia o divino, o ser perfeito, como
finito, cuja figura era a esfera. A partir de Plotino, a noção de infinito deixa de
repugnar ao pensamento.
Por outro lado, o Uno como transcendente absoluto implica também que ele
não esteja no tempo. Não tem passado, nem presente, nem futuro. Nem está
exatamente na eternidade, se por isso se entender o sentido tradicional de
“sempre presente”, o que é ainda uma forma de tempo. Fora do tempo, o Uno
faz, porém, com que o tempo exista em suas hipóstases: na conversão, a
Inteligência, ao contemplar a perfeição do Uno fora do tempo, faz com que suas
idéias sejam eternas; e a Alma, recordando-se da eternidade da Inteligência, faz
existir o tempo propriamente dito, cuja forma perfeita é o tempo cíclico,
correspondente ao movimento circular e perfeito dos corpos celestes.
Se a processão e a conversão traduzem-se em hipóstases cada vez mais
inferiores, isso não significa que não tenham, cada qual em seu nível, um grau de
perfeição. A perfeição da Alma é a Razão, que contempla as idéias perfeitas da
Inteligência. Mas uma parte menos perfeita da Alma “engendra” nessa
contemplação a natureza (physis), que também é perfeita em seu nível. Só a
maté-ria, inerte e estéril, incapaz de contemplação, é completamente imperfeita:
é o Mal.
Então o Uno é o Bem? Não exatamente, pois ele é indeterminável. Mais do
que isso, o Uno só seria o Bem caso se opusesse a seu Outro, o Mal, mas essa
oposição não existe, pois a matéria é apenas o esgotamento da processão. Por
outro lado, porém, o Bem, sem ser o Uno, é a idéia pela qual a hipóstase inferior
pode se aproximar do Uno. No âmbito moral e humano, a prática do bem unifica
as ações do homem, impondo-lhes uma medida e um limite, e nessa unificação
ele se assemelha ao Uno.
Cabe então ao homem cultivar aquilo que, na alma, o aproxima do Uno: a
unidade da virtude. Deve aproximarse cada vez mais do Uno, buscando se
dissolver nele, na sua perfeição. Esse é o objetivo último da filosofia, que é, em
suma, a contemplação (theoría) do Uno.
ENTRE A FÉ E A RAZÃO
O Verbo em cada um
O nascimento da escolástica
O nome da rosa
Todos esses temas estão presentes no pensamento de Ibn Sina (980-1037), que
no Ocidente ficaria conhecido como Avicena. Nascido nas proximidades de
Bukhara, e morto perto de Hamadã (no atual Irã), ele tem seu nome associado à
medicina, terreno em que exerceria uma notável influência. Descreveu a
anatomia do olho humano e o funcionamento das válvulas do coração; analisou
uma série de doenças, como a varíola, o sarampo e o diabetes; formulou a
hipótese de que certas moléstias eram causadas por pequenos organismos
presentes na água e na atmosfera; elaborou vários procedimentos de diagnóstico.
Sua obra Cânon seria leitura obrigatória em qualquer ensino de medicina na
Europa por muitos séculos. Além disso, Avicena, como outros sábios
muçulmanos de seu tempo, foi também matemático, astrônomo, físico, zoólogo,
geólogo, musicólogo e assim por diante, abarcando todas as áreas do
conhecimento.
No campo filosófico, Avicena, como Al-Farabi, concebe uma série
hierarquizada de Inteligências agentes, das quais a última dá a forma à matéria,
fazendo com que as coisas sejam o que são, e ao intelecto humano, tornando
possível o conhecimento. Também concorda com Al-Farabi quanto à distinção
entre a essência e a existência, mas acrescenta a essa questão algumas precisões.
Segundo Avicena, há dois modos do ser. Em primeiro lugar, há o ser
necessário, isto é, aquele que por sua essência não pode não existir. Nele, a
existência e a essência são idênticas. Há, em segundo lugar, o ser possível, que
se desdobra em dois: o ser possível por essência é aquele que não pode não
existir porque a existência lhe é causada, enquanto o ser puramente possível é o
que pode vir a existir contanto que a existência lhe seja causada. Na linguagem
aristotélica, o ser necessário é o ato puro; o ser possível necessário é a potência
que se torna ato, mediante uma causa; e o ser puramente possível, apenas
potência. Daí se conclui que o ser necessário é o único que existe por si, sem
nenhuma causa, sendo ele próprio a causa de tudo o que existe: é Deus, o único e
eterno criador.
Averróis e o direito à existência
A fé de Scot e Ockham
RENASCIMENTO E
FILOSOFIA MODERNA
1. O MUNDO NOVO DO RENASCIMENTO
MUDANÇAS À VISTA
Corria o século XIV, e na Europa — na Itália, a princípio — começou a tomar
forma aquilo que mais tarde o mundo conheceria como Renascimento. Ávidas,
as pessoas revisitavam os valores da Antiguidade clássica. Vasculhavam velhos
textos e redescobriam o ideal artístico do universo greco-romano. Mas não se
tratava de uma simples volta ao passado remoto. Acreditando-se herdeiras das
antigas tradições, essas pessoas começaram a produzir um mundo diferente.
Beneficiadas pelo desenvolvimento sem precedentes da ciência e da técnica,
lançavamse aos mares, aventuravam-se para além das terras conhecidas e
chegavam ao Novo Mundo — que passaria a integrar, na qualidade de colônia, o
sistema econômico e político da Europa.
Mas o Renascimento não é apenas a retomada da marcha triunfal da razão e
do espírito científico após a “longa noite medieval”, como muitas vezes foi
caracterizada, de modo simplista, a Idade Média. O que se denomina “ciência”
no Renascimento, embora prepare os fundamentos para a arrancada científica do
século XVII, guarda sinais do pensamento medieval, ao qual se somam
elementos do misticismo oriental e judaico. A astronomia e a astrologia, a
química e a alquimia, a investigação da natureza e a magia permanecem juntas e
assim caminham.
Evidentemente, essa concepção abalou ainda mais o cristianismo, que via ruir,
nos novos tempos, seu sonho de unificar o mundo pela fé. “O papa e o
imperador vêem seus direitos ignorados”, lamentava em 1454 o futuro papa Pio
II, referindo-se aos rumos tomados pela Europa cristã. A queda de
Constantinopla, último vestígio do outrora poderoso Império Romano, o fim da
Guerra dos Cem Anos (1337-1453) e a Peste Negra, que na época do conflito
levou à morte um terço da população européia, haviam deixado fortes marcas na
vida social, política e religiosa do velho continente.
Logo depois da guerra, as fronteiras de Inglaterra e França tornaram-se mais
nítidas. A monarquia nacional dos dois países se fortaleceu, assim como
aconteceu com Portugal e Espanha. O poder, antes centrado na figura do papa,
concentrava-se cada vez mais nas mãos dos reis.
O fortalecimento das monarquias nacionais correspondia ao enfraquecimento
da nobreza e da Igreja. Também representava a ascensão de uma nova classe
social, a burguesia, dedicada às finanças, ao comércio e à manufatura, e que
passou a apoiar política e economicamente a coroa em troca de proteção aos seus
negócios, cada vez mais dinâmicos e prósperos.
A classe dos burgueses, como o próprio nome indica, compunha-se
inicialmente dos habitantes dos burgos, isto é, fortificações de que surgiram as
cidades medievais. A partir do século X, muitas delas forma-ram as comunas,
um modo de organização social em que os cidadãos, livres das imposições do
Império, do papado ou da nobreza, estabeleciam seu próprio destino. A principal
atividade era o comércio e a manufatura, organizados em corporações. Voltadas
para gerar riquezas e não somente subsistência, como na vida rural, as comunas
prosperaram e nelas se formaram famílias ricas e influentes — a burguesia
propriamente dita —, que passaram a viver dos serviços prestados pelos
trabalhadores.
O papel da Itália
A valorização da criatividade
O artista, de certo modo, encarna o ideal de homem que o Renascimento
descobre. Desprezado desde a Antiguidade como executor de trabalho braçal —
atividade própria dos escravos e das camadas inferiorizadas —, o artista, no
Renascimento, torna-se modelo da capacidade inventiva do homem de iniciativa.
Audacioso, inconformado com as circunstâncias a que se vê submetido, ele forja
o próprio mundo. Nessa medida, sua figura equivale à do homem de virtù, ativo,
criativo e empreendedor, e contrapõe-se à dos “especulativos” escolásticos, que,
aos olhos do Renascimento, pensam mas nada fazem.
Mais do que isso, o mundo que o artista cria ultrapassa a condição mortal e
efêmera do criador. Suas obras tendem à eternidade. Não é à toa que os artistas
renascentistas tenham preferido materiais menos corrosíveis pela ação do tempo
e, portanto, mais propícios à duração e à fama, como o óleo, na pintura, e o
mármore, na escultura.
Mas o artista não se limita ao ofício que o caracteriza. Se fosse mero “fazedor
de arte”, seria apenas artesão, isto é, trabalhador braçal, que continua
desprezado. Ele não é apenas o executor da obra, mas seu idealizador. Isso
significa que deve dominar, além das técnicas indispensáveis ao ofício, todo um
conjunto de conhecimentos. Deve, por isso, ser um homem universal, que tudo
sabe e que tudo faz.
O retorno às humanidades
Reinventando a Antiguidade
Por trás dessa aparente divergência técnica sobre a tradução há um fosso que
separa o mundo medieval do renascentista e que se manifesta em concepções
conflitantes a respeito da educação, a começar pelo local do ensino. Se a
escolástica tinha como sede a universidade, o núcleo das humanidades são os
colégios.
Destinados inicialmente a fornecer uma instrução preparatória — exatamente
as humanidades — a jovens carentes, os colégios, que proliferam no final da
Idade Média, passam a atrair cada vez mais os estudantes de famílias ricas. A
estes não interessa um conhecimento especializado, como o que as universidades
fornecem. O que se requer é a aquisição de um estilo: saber conversar, ser cortês,
polido e elegante, ter bons modos e, claro, apresentar uma boa formação cultural
— requisitos indispensáveis para que o jovem seja admitido na corte de famílias
ricas e poderosas. Por isso, proliferam os manuais sobre bom comportamento.
Um dos mais adotados é O Cortesão, de Baldassare Castiglione.
Esse tipo de ensino, aparentemente fútil e frívolo, corresponde aos anseios da
burguesia, que, depois de ver consolidado seu domínio econômico, quer ser
admitida nos círculos aristocráticos, mesmo que para isso tenha de comprar
títulos de nobreza. Por isso, opõe-se às universidades, cujos “pedantismo” e
“intelectualismo”, destinados a formar teólogos e outros especialistas, de nada
servem ao desejo de promoção social. “Nem todos são chamados a ser legistas,
físicos ou filósofos (...). Mas todos, tais como somos, fomos criados para viver
em sociedade e para os deveres que esta vida implica”, escreve no século XV o
educador humanista Vittorino da Feltre.
A reinvenção do espaço
Decifrando o mundo
A revolução do heliocentrismo
Mas... se a Terra não é o centro do universo, por que insistir num centro? Se a
hierarquia do mundo se rompe, para que buscar uma hierarquia? Por que não
haveria outros mundos, com outros sóis e outras vidas? Por que considerar o
universo fechado e limitado — ou mesmo “ilimitado”, como timidamente
concebeu Nicolau de Cusa? Por que não afirmar com todas as letras que o
mundo é infinito, positivamente infinito?
As indagações são de Giordano Bruno. Ele, como Copérnico, permanece nos
limites do pensamento renascentista, mas um e outro, por suas descobertas e
indagações, abrem-lhes as brechas. Essa verdadeira revolução não se refere
apenas à astronomia. Abalam-se os valores religiosos, políticos e morais que, de
certo modo, tinham no geocentrismo um símbolo. Giordano Bruno pagaria caro
por tamanha ousadia: em 1600 foi queimado vivo na fogueira da Inquisição.
Considerado o grande mártir da ciência, Bruno não é propriamente um
cientista. Tampouco procura abrir caminho para a ciência, que mais tarde
reconheceria em sua figura um precursor. Ele é, sobretudo, mago e místico,
seguidor da tradição pseudo-egípcia de Hermes Trismegisto e da Cabala judaica.
Deixa-se influenciar pela teoria copernicana por reconhecer nela a inspiração
hermética — Copérnico havia mencionado Hermes para caracterizar o Sol como
“Deus visível” —, e não por causa do rigor das demonstrações matemáticas.
Copérnico, diz Bruno, “sendo mais um estudante de matemática do que da
natureza, não a conseguiu penetrar com suficiente profundidade”. O que faz de
Bruno o mártir da ciência é, paradoxalmente, aquilo que ele desenvolve quase
em oposição aos aspectos propriamente científicos da obra de Copérnico.
Onde existe luz, também existe sombra. Assim, o Renascimento, que com
tanta intensidade acolhe a luz e a alegria da vida, pressente igualmente a
presença perturbadora das trevas.
Nas artes, Da Vinci é mestre na técnica de sfumato, na qual a claridade vai-se
tornando gradativamente obscura. Michelangelo (1475-1564), que segundo
Rafael “estava só como um carrasco”, é autor de Juízo Final, na Cape-la Sistina,
a mais célebre realização sobre o tema, muito comum na época. A busca da
eternidade pela fama convive com o peso do pecado, da morte, e com a sensação
de insignificância da vida. Macbeth, personagem de William Shakespeare (1564-
1616), murmura no famoso monólogo: “A vida é uma sombra errante, um pobre
ator que gesticula em cena por uma hora ou duas e depois não é mais ouvido.
Uma história contada por um idiota, cheia de bulha e fúria, que não significa
nada”.
Na cena política imperam os conflitos. Na Itália, a guerra é uma constante. No
final do século XV, Carlos VIII, rei da França, invade Milão, Parma, Florença,
Roma e avança para Nápoles. É detido por tropas de uma coligação de cidades
italianas. Seu sucessor, Luís XII, segue-lhe os passos, mas perde Nápoles para
Fernando de Aragão, rei da Espanha.
Em outras regiões da Europa a situação não é diferente. Na Inglaterra, os
conflitos entre as dinastias de York e de Lancaster desencadeiam a Guerra das
Duas Rosas (1455-1485). Também no século XV, e estendendo-se até meados do
XVII, eclodem na Alemanha, nos Países Baixos, na França e em outros locais as
guerras religiosas, associando diversos movimentos da Reforma protestante aos
mais variados interesses políticos e econômicos. A Igreja Católica,
desmoralizada, faz recrudescer a Inquisição, condenando aqueles que considera
hereges e suas obras.
Um príncipe maquiavélico
As outras utopias
Mas não é apenas Thomas Morus que se deixa envolver pelo sonho da
sociedade ideal. Outros o fariam, na tentativa de escapar ao menos pela
imaginação de uma realidade política e social opressiva. O dominicano
Tommaso Campanella (1568-1639) escreveu A Cidade do Sol, de inspiração
platônica — a começar pelo título. Nessa cidade feliz, governada pelo sacerdote
Metafísico, também não há a propriedade privada; tudo é de uso comum. O
egoísmo inexiste e, por isso, não há crimes. O trabalho é mínimo — quatro horas
diárias —, mas a sociedade vive com fartura.
Campanella, acusado de heresia, participou de uma conspiração ao lado da
população pobre da Calábria e, condenado à prisão perpétua, só foi libertado
mediante petições ao papa.
A partir do século XVI, principalmente após a descoberta do Novo Mundo, e
dos indígenas que ali viviam, a questão do “estado de natureza” e a do “bom
selvagem” estimulam os debates a respeito da melhor forma de organizar a
sociedade e do que os homens precisam fazer para viver felizes.
O COMPORTAMENTO HUMANO NA BERLINDA
A abadia de Thélème é, no mínimo, diferente. Lá, homens e mulheres dividem o mesmo espaço. E, no
lugar dos votos de castidade, pobreza e obediência, existem outros, opostos: casamento, riqueza e liberdade.
Além disso, nessa curiosa abadia não há regras. Ou melhor, há apenas uma: “Faça o que quiser”.
Não, não se está diante de outra ousada inovação do Renascimento. O mosteiro de Thélème e suas
liberalidades são obra da imaginação de François Rabelais. Um autor que, com seu espírito satírico, chegou
a propor uma filosofia, a “pantagruelista”. Ela consistiria em “uma certa alegria de espírito, temperada no
desprezo pelas coisas fortuitas”.
O humor, como se vê, é fundamental em Rabelais, que, por contraditório que
possa parecer, conheceu bem a vida monástica. Nascido por volta de 1494, foi
franciscano e depois beneditino. Abandonando a ordem, mas não a batina,
estudou medicina e obteve grande prestígio nessa área. Mas a fama maior viria
com a publicação, em 1532, de Pantagruel, que, embora condenado como
obsceno pelos doutores da Universidade de Sorbonne, tornou-se muito popular.
Seguem-se Gargântua, que passou a ser o primeiro da série, depois completada
com o Terceiro Livro e o Quarto Livro. Há também um Quinto Livro, mas de
autoria duvidosa, por ter sido publicado muito após a morte de Rabelais,
ocorrida por volta de 1553.
A obra desse francês, apesar de sua abadia às avessas, não é propriamente
utópica. Em meio à narração de divertidas façanhas dos dois gigantes —
Gargântua e Pantagruel —, Rabelais discorre sobre questões filosóficas;
descreve a paisagem, a vegetação e a anatomia; dis-cute temas científicos,
políticos e religiosos; e demonstra conhecimento de línguas, sem deixar de
empregar expressões populares e palavras consideradas “inferiores”.
Mas não se trata de uma ostentação pedante de erudição: tudo é motivo de riso
e divertimento. Se os fatos narrados ocorrem em locais imaginários, as
paisagens, os personagens, os incidentes e as discussões são muito familiares aos
leitores da época. Com isso, Rabelais traça um amplo painel daqueles tempos.
Padres, juízes, médicos, filósofos, cientistas, ricos, mas também camponeses e
pobres — tudo e todos — são captados por seu olhar clínico, desvendando o
ridículo e o grotesco de suas maneiras, sem contudo menosprezar o que neles
houver de grandioso. Rabelais é “moralista”, aquele que analisa os mores, isto é,
os costumes e as maneiras dos homens.
O INÍCIO DA CONTESTAÇÃO
“Por que o papa não deixa vazio o purgatório num ato de santíssima caridade
(...), se com o funesto dinheiro destinado à construção da Basílica de Roma (...)
redime infinitas almas?”
O violento ataque de Martinho Lutero consta das suas 95 Teses, que afixou à
porta da igreja da cidade alemã de Wittenberg, em 1517. O alvo da crítica é
basicamente a venda de indulgências — que livrariam os fiéis das penas do
purgatório — para arrecadar os fundos da construção da Basílica de São Pedro.
Embora o ponto de partida da Reforma seja a denúncia desses abusos da
Igreja, a divergência é mais profunda, como atestam as palavras de Lutero: “Que
crimes, que escândalos, que fornicações, estas bebedeiras, esta paixão pelo jogo,
todos estes vícios do clero! (...) São escândalos muito graves (...). (...) Mas, ai!,
há outro mal, outra peste, incomparavelmente mais malfazeja e mais cruel: o
silêncio organizado quanto à Palavra da Verdade, ou a sua adulteração (...)”.
Na verdade, ele insiste na questão dos abusos porque esse é o meio mais
eficaz de impressionar o público e conquistar sua adesão. Ganhar adeptos, para
Lutero, é crucial. Não apenas para fortalecer sua posição, mas principalmente
porque levar a “palavra da verdade” a todos é a própria função do padre, como o
é transformar todos os homens em sacerdotes, pois a vida religiosa depende
unicamente da consciência de cada um. Segundo essa concepção de “sacerdócio
universal”, a hierarquia da Igreja deve ser abolida não tanto por cometer abusos,
mas porque não há intermediários entre o homem e Deus.
A Alemanha é um palco propício para a propagação das idéias de Lutero.
Embora pertença formalmente ao Sacro Império Romano-Germânico, ela é um
mosaico de Estados e cidades que buscam afirmar sua soberania. Isso se traduz
também nos anseios de rompimento com o papado, que cobra cada vez mais
tributos desses Estados. Neles, os cavaleiros (representantes da pequena
nobreza) opõem-se aos grandes proprietários, cuja maioria é formada por
membros da Igreja. Por fim, na parte mais baixa da hierarquia social, os
camponeses ainda se encontram submetidos aos laços medievais de servidão,
que lhes impõem pesadas obrigações.
Nesse ambiente, as propostas de Lutero pelo sacerdócio universal dão forma e
expressão aos diversos anseios que se entrecruzam na sociedade alemã. Não que
sua pregação fosse mero disfarce de interesses políticos, sociais e econômicos. A
Reforma é fundamentalmente de natureza religiosa, e o que leva Lutero às suas
obstinadas pregações são as questões da fé e da salvação.
O servo-arbítrio
Da religião ao capitalismo
Pelo calvinismo, cada homem deve executar seus afazeres — não apenas os
religiosos — de modo laborioso, para a glória de Deus, de quem é um
instrumento. Não se trata de buscar a salvação pelo trabalho, nem de realizar
uma “contabilidade” em que um pecado pode ser redimido por um certo número
de boas ações. Tampouco se permite um “relaxamento” para compensar uma
obra bem realizada. A glorificação de Deus deve ser uma atividade permanente,
sistemática e metódica — termo que, por sinal, daria nome à Igreja Metodista,
fundada por John Wesley (1703-1791), na Inglaterra.
Mas há quem trabalhe sistematicamente e seja bemsucedido; outros não. Para
Calvino, isso deve ser sinal de que o bem-sucedido é um dos eleitos, pois é por
intermédio destes que Deus se glorifica melhor. O trabalho não é a causa da
salvação, mas, se um homem se torna rico pelo trabalho, é porque a riqueza
conquistada é um indício — mas não a certeza — da sua salvação. Deve-se
evitar somente o mau uso da riqueza, como o consumo perdulário, que afasta o
homem do trabalho.
Na prática, porém, a doutrina de Calvino seria entendida como permissão para
a busca de riqueza, em nome da glória de Deus. Esse dado, juntamente com a
restrição ao consumo, levaria à acumulação capitalista, como analisa Max Weber
em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. “As restrições impostas ao
uso da riqueza adquirida só poderiam levar a seu uso produtivo como
investimento do capital”, escreve ele. Por outro lado, o “poder da ascese
religiosa (...) punha à sua disposição [do empreendedor burguês] trabalhadores
sóbrios, conscientes e incomparavelmente industriosos, que se aferraram ao
trabalho como a uma finalidade de vida desejada por Deus. Dava-lhe, além dis-
so, a tranqüilizadora garantia de que a desigual distribuição da riqueza deste
mundo era obra especial da Divina Providência, que, com essas diferenças, e
com a graça particular, perseguia seus fins secretos, desconhecidos do homem”.
De um lado, a riqueza acumulada, que só pode ser empregada como capital
produtivo; de outro, o trabalhador dócil e resignado com a sua condição. A união
desses dois elementos, além da exigência da organização metódica e racional do
trabalho, acaba por levar ao capitalismo, que já se insinuava nas entrelinhas do
calvinismo e de outras doutrinas protestantes.
A REAÇÃO CATÓLICA
“Estar pronto para obedecer com mente e coração, deixando de lado todo
julgamento próprio, à verdadeira esposa de Jesus Cristo, nossa santa mãe, nossa
mestra infalível e ortodoxa, a Igreja Católica, cuja autoridade é exercida pela
hierarquia.”
Essa é a regra básica da Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loyola
(c. 1491-1556), e exprime a reação da Igreja Católica aos movimentos
reformadores. Mas a Companhia de Jesus não se limita a declarar a obediência
irrestrita à hierarquia eclesiástica. Também assimila a crítica dos reformadores
quanto ao despreparo do clero para levar a mensagem de Cristo aos fiéis, e passa
a ministrar uma sólida formação religiosa e teológica aos que ingressam na
ordem.
Isso porque a principal missão desses soldados espirituais de Cristo é fazer a
pregação: Francisco Xavier parte para o Oriente, chegando até o Japão; Manuel
da Nóbrega e José de Anchieta vêm à colônia portuguesa do Brasil, enquanto
outros jesuítas fundam várias missões nos domínios espanhóis da América do
Sul para organizar e catequizar os índios. Na Europa, os jesuítas contribuem para
reconduzir várias regiões ao catolicismo.
Além dos jesuítas, outros setores da Igreja também participam desse
movimento de revitalização católica. Des-de os séculos XIV e XV proliferam as
confrarias e as congregações, em que padres se misturam aos leigos para levar
uma vida religiosa em comum. A mais famosa delas se chama, por sinal, Irmãos
da Vida em Comum, e abandona o uso do latim na leitura da Bíblia, bem como
nas pregações.
As próprias ordens religiosas também procuram se reformar, reforçando a
disciplina e voltando-se aos leigos pela prática da caridade e do ensino. Desse
modo, antigas ordens subdividem-se, dando origem a novas: um setor dos
franciscanos adota o nome de capuchinhos; na Espanha, Santa Teresa de Ávila
(1515-1582) e São João da Cruz (1542-1591) empreendem a reforma da ordem a
que pertenciam, fundando a Ordem dos Carmelitas Descalços.
A REORGANIZAÇÃO DA EUROPA
CONFLITOS religiosos, Guerra dos Trinta Anos (16181648), o princípio cuius
regio, eius religio estendido a todos os países. A França reduz o Império quase à
condição de um Estado a mais, entre tantos outros. A Suécia, protestante, surge
como uma nova potência, enquanto a Holanda e a Suíça são reconhecidas como
Estados independentes e soberanos.
Há um novo equilíbrio na Europa. E ele representa, sobretudo, a consolidação
da burguesia. A Holanda tornase uma poderosa república de burgueses
comerciantes e financistas, que organizam sólidas empresas — a Companhia das
Índias Orientais e a Companhia das Índias Ocidentais — que, após a decadência
da Espanha, passam a monopolizar o comércio marítimo.
Contra esse poderio holandês, a Inglaterra, em plena revolução iniciada em
1640, promulga o Ato de Navegação (1651), proibindo o transporte de
importações inglesas em navios que não sejam seus ou de países produtores. É
um indício do capitalismo na Inglaterra: a burguesia lança as bases da indústria
moderna, enquanto setores da nobreza se aburguesam, passando a explorar as
terras de modo capitalista.
Na França, a burguesia associa-se à Coroa, que busca se fortalecer e
concentrar o poder. O rei afasta os nobres de várias funções do governo e recruta
o serviço dos burgueses, promovendo-os à condição de uma nova aristocracia —
a “nobreza de toga”. O resultado dessa aliança entre a burguesia e a monarquia é
o absolutismo, base da política agressiva da França, que no século XVII, sob
Luís XIV, o Rei-Sol, transforma-se na maior potência da Europa.
É em meio a esse quadro que nasce e se desenvolve o pensamento moderno,
marcado pela confiança na razão. Trata-se do “grande racionalismo”, como o
chamaria, no século XX, o filósofo francês Merleau-Ponty. Mas esse é um
racionalismo diferente daquele que vinha caracterizando o pensamento
ocidental.
Desde a Grécia Antiga, a razão pôde pretender abarcar o mundo porque, de
certa forma, o próprio mundo era concebido como racionalmente ordenado e
unificado. Nos tempos modernos, no entanto, essa imagem já não existe. Não há
mais a pólis, o Império ou uma Igreja única; a realidade apresenta-se dispersa,
múltipla e relativa. Cabe à razão a tarefa de reunificar o mundo, reproduzilo,
representá-lo.
O termo representação indica exatamente essa operação da razão:
reapresentar, tornar de novo presente. Mas “tornar de novo presente” a imagem
unificada do mundo é também destruir o que se apresenta como disperso e
desconexo. Por isso, a representação nega e ultrapassa a realidade visível e
sensível, e produz um outro mundo, racionalmente compreensível porque
reordenado pela própria razão.
A importância do método
Johannes Kepler dedica-se exatamente a isso. Seus cálculos têm como base o
heliocentrismo e como instrumento a matemática. O resultado são as “três leis de
Kepler”, das quais a primeira estabelece que o movimento de todos os planetas
descreve uma elipse, tendo o Sol como um de seus focos. A idéia de movimento
circular, perfeito, dos corpos celestes, é quebrada.
Mas se Kepler formula o movimento elíptico dos planetas é para resgatar ao
Universo a ordem e a harmonia, que a trajetória circular já não conseguia
assegurar. Nesse sentido, o pressuposto básico continua sendo a perfeição do
mundo. A diferença é que isso não exige mais a figura do círculo. Agora,
utilizam-se fórmulas matemáticas.
Até esse momento, não se concebia a aplicação da matemática à astronomia,
pois os objetos matemáticos eram considerados essencialmente distintos dos da
natureza. Kepler justifica o emprego da matemática com base na teologia
neoplatônica. Sua solução da causa do movimento dos planetas fundamenta-se
na versão cristã do neoplatonismo: o Sol representa o Pai, que move os astros
por intermédio do Espírito Santo. Para traduzir essa idéia em linguagem
científica, basta substituir essa causa motriz, dotada de vontade e inteligência,
pela noção de força. O resultado é a lei da gravitação dos corpos, que Newton
formularia mais tarde.
Johannes Kepler nasce em 1571, na província austríaca de Württemberg.
Estuda em Tübingen, onde conhece a teoria de Copérnico. Pretende seguir a
carreira religiosa, mas, por causa das dificuldades financeiras, aceita o cargo de
professor de matemática na Universidade de Graz. Em 1600 torna-se assistente
do astrônomo Tycho Brahe (1546-1601), no observatório de Praga. Após a morte
de Brahe, é nomeado matemático oficial da corte, na qual exercia a função de
astrólogo. Em 1612, transfere-se para a cidade de Linz, onde leciona até 1626.
Dois anos depois, torna-se astrólogo da corte do príncipe de Wallentein. Morre
em 1630.
Galileu: nova concepção do mundo
E Deus, existe?
O cogito, definido como uma consciência que, ao pensar sobre si mesma, sabe
que existe, está condenado à certeza solitária de si mesmo. É certo que também
pensa sobre o mundo, o corpo e os enunciados matemáticos, mas sem conseguir
decidir se essas idéias são verdadeiras. Elas podem ser ilusões produzidas pelo
próprio cogito.
Mas, entre as idéias presentes no cogito, uma se destaca: a idéia de Deus. Em
Meditações, Descartes afirma: “Pelo nome de Deus entendo uma substância
infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente e pela qual eu
próprio e todas as coisas que são (se é verdade que há coisas que existem) foram
criadas e produzidas”. De onde vem tal idéia, se tudo o que existe deve ter uma
causa? No caso dessa idéia, a sua causa não pode ser o cogito: “Eu não teria (...)
a idéia de uma substância infinita (...) se ela não tivesse sido colocada em mim
por alguma substância que fosse verdadeiramente infinita”.
A idéia que o cogito tem de Deus é, nessa medida, o efeito de uma causa que
lhe é exterior. E, como “deve haver ao menos tanta realidade na causa quanto em
seu efeito”, à existência, no cogito, da idéia de Deus, só pode corresponder a
existência de fato de Deus. Ele é uma substância, mas distinta do cogito; é uma
substância infinita, res infinita. A essa prova da existência de Deus, Descartes
acrescenta outra, muito semelhante à de Santo Anselmo: a existência é uma das
perfeições e, por isso, uma substância perfeita necessariamente deve existir de
fato.
Esse Deus seria o gênio maligno? Impossível. Se a causa da idéia de Deus é o
próprio Deus, essa idéia é como “a marca do operário impressa em sua obra”, ou
seja, guarda uma certa semelhança com a idéia das perfeições que Deus tem em
si mesmo. A causa verdadeira e perfeita não pode produzir um efeito que seja
um engano. O Deus bom e veraz não é o gênio maligno, e, se o cogito se engana,
isso se deve somente às imperfeições do entendimento, que podem ser atenuadas
por meio de um método rigoroso.
Destruído o fantasma do gênio maligno, dissipam-se uma a uma todas as
dúvidas. A certeza da existência do cogito não mais ocorre apenas enquanto “eu
penso”, pois é assegurada por Deus. As idéias claras e distintas, como as da
matemática, revelam-se verdadeiras, pois ilusão de fato era o gênio maligno. Do
mesmo modo, o corpo e o mundo têm direito à existência: foram criados por
Deus. A seu respeito, é possível formular uma idéia clara e distinta, isto é,
verdadeira, ao menos no que se refere a suas propriedades geométricas. Eles se
distinguem do cogito por ser dotados de extensão (largura, comprimento e
altura) e constituem a substância extensa, a res extensa.
Descartes também faz estudos científicos. Viaja pela Europa até se fixar, em
1628, na Holanda. Nesse mesmo ano, escreve Regras para a Direção do
Espírito, seu primeiro tratado sobre o método, inacabado, baseado em seus
estudos matemáticos. Além disso, realiza pesquisas sobre a óptica, investigando
as lentes, o olho humano, a luz e o fenômeno da refração, e sobre a anatomia, em
particular a circulação sangüínea. Desses estudos resulta Tratado do Mundo.
Mas a obra, concluída em 1633, não foi publicada: naquele ano, Galileu havia
sido condenado pelas idéias compartilhadas por Descartes...
Embora decidido a não mais escrever, Descartes, no entanto, publica, em
1637, Meteoros, Dióptrica e Geometria, contendo parte das idéias do livro
autocensurado e precedidos de uma introdução: Discurso do Método. As
concepções metafísicas ali expostas — o cogito como a primeira certeza, e Deus
como a garantia da existência do mundo e da possibilidade de seu conhecimento
— seriam retomadas, com muito mais argumentos, em Meditações sobre a
Filosofia Primeira, de 1641. Três anos depois, Des-cartes publica Princípios da
Filosofia, em que apresenta uma síntese de suas concepções filosóficas e
científicas.
Por fim, também publica As Paixões da Alma, em que reexamina o tema, já
presente em outras obras, da relação entre a alma e o corpo. Estes são distintos
entre si: enquanto a alma é uma coisa que pensa, o corpo é uma coisa extensa,
isto é, matéria dotada de movimento, como uma máquina. Apesar disso, ambos
coexistem no homem, ou melhor, o homem é um composto de alma e corpo.
Trata-se então de verificar não como essa composição é possível — pois foi
criada por Deus todo-poderoso, cujos atos não requerem explicação —, mas
como funciona. Para Descartes, a união entre a alma e o corpo — que possibilita
a relação do cogito com o mundo — é dada por um órgão situado na parte
inferior do cérebro: a glândula pineal.
“Não posso perdoar Descartes; bem quisera ele, em toda a sua filosofia, passar
sem Deus, mas não pôde evitar de fazê-lo dar um piparote para pôr o mundo em
movimento; depois do que, não precisa mais de Deus.”
Esse violento ataque é de Blaise Pascal e consta de sua obra póstuma,
Pensamentos. É quase como afirmar que Descartes é trapaceiro: Deus só foi
invocado para servir de avalista de uma concepção do mundo que o cogito,
abandonado a si mesmo, era incapaz de sustentar. Matemático e físico, mas
também fervoroso cristão que segue o jansenismo — um movimento católico
fundado pelo holandês Cornélio Jansênio, suspeito de heresia —, Pascal baseia-
se em suas práticas científicas e religiosas para criticar as pretensões do
racionalismo cartesiano.
Filho de um alto magistrado e encarregado dos impostos, Blaise Pascal nasce
em 1623 em Clermont-Ferrand, França. Segundo sua irmã, Gilberte, aos 12 anos
ele consegue deduzir sozinho, sem nenhum conhecimento prévio, as 32
proposições geométricas de Euclides. A afirmação é duvidosa, mas o talento
científico precoce de Pascal é inegável. Aos 16 anos, escreve Ensaio sobre as
Cônicas; aos 19, projeta a “máquina aritmética” (a primeira calculadora
mecânica); aos 23, passa a investigar o fenômeno da pressão atmosférica e
interessa-se pelo jansenismo.
A doutrina formulada por Jansênio (1585-1638) retoma com rigidez o
pensamento de Santo Agostinho, segundo o qual a salvação depende unicamente
da graça divina, concedida apenas aos eleitos. Na França, os jansenistas, sob a
direção de Saint-Cyran (1581-1643), sediam-se na abadia de Port-Royal, nas
proximidades de Paris, onde se consagram ao retiro espiritual e ao ensino. Seu
principal adversário são os jesuítas e sua doutrina do livre-arbítrio, adotada
oficialmente pela Igreja. Por isso, vários papas condenam sucessivamente o
jansenismo, vendo nele uma perigosa heresia, comparável ao protestantismo.
Além dis-so, a atitude jansenista de indiferença frente ao mundo — decorrente
de sua teologia da graça — faz com que a monarquia francesa veja nesse
movimento um germe de insubordinação. Em 1637 o abade Saint-Cyran é preso.
Diante dessas perseguições, Port-Royal passa à ofensiva, contando para isso com
um polemista implacável: Pascal.
Publicada entre 1656 e 1657, a série de Cartas Provinciais, de Pascal, é uma
contundente defesa do jansenismo. Mais do que isso, ele ataca violentamente os
jesuítas, ridicularizando-lhes os costumes e os malabarismos retóricos para
justificar qualquer situação. Mas a condenação definitiva do jansenismo pelo
papa Alexandre VII obriga-o a se calar. Dedica-se então a escrever Apologia da
Religião Cristã, cujos fragmentos seriam publicados postumamente sob o título
Pensamentos.
Da física à metafísica
“Suponhamos, por exemplo, que alguém lance ao acaso muitos pontos sobre o
papel (...). Digo que é possível encontrar uma linha geométrica cuja noção seja
uniforme e constante segundo uma certa regra, de maneira a passar esta linha por
todos estes pontos e na mesma ordem em que a mão os marcara.”
Palavras de Leibniz, para quem o método consiste não tanto em raciocinar
ordenadamente, mas em buscar a ordem inscrita nas coisas. Isso, porém, é feito
como no cálculo infinitesimal (ou diferencial e integral), de que Leibniz foi um
dos formuladores: dada uma curva, é possível calcular a sua direção a partir de
qualquer um de seus pontos, pois estes exprimem, cada um em si, o conjunto.
A rigor, não é o ponto que exprime o todo de uma curva, mas a tangente, que é
uma linha. Para Leibniz, a linha não se define como o conjunto de infinitos
pontos; é formada de linhas infinitamente pequenas, isto é, linhas infinitesimais.
Isso significa que na geometria não há grandeza última, indivisível. Do mesmo
modo, a natureza: “Cada porção da matéria”, escreve Leibniz, “pode ser
concebida como um jardim cheio de plantas e como um lago cheio de peixes.
Mas cada ramo de planta, cada membro de animal, cada gota de seus humores é
ainda um jardim ou um lago”.
A realidade é, então, um todo contínuo, sem interrupções, que não se esgota
em alguma de suas partes, por ínfimas que sejam. Não há, portanto, o vazio, e
Leibniz, que nisso segue Descartes, não admite a existência do vácuo. Mas,
exatamente porque esse todo pode ser subdividido em partes, Leibniz, ao
contrário de Descartes, não considera a extensão como substância. Esta, por
definição, deve ser simples, isto é, sem partes, enquanto a extensão sempre pode
ser concebida como formada de partes, que, por sua vez, contêm partes ainda
menores e assim indefinidamente.
A extensão também não pode ser substância, pois, se assim fosse, ficaria
inexplicável o próprio objeto da física: o movimento. Este havia sido deduzido,
por Descartes, como um dos atributos da res extensa, e equivaleria ao
deslocamento de um corpo que, chocando-se com outro, o substitui. A direção
do movimento seria definida instantaneamente no momento desse choque e,
neste, a quantidade do movimento — que Descartes identificou com a noção de
força — seria sempre constante.
Para Leibniz, porém, essa concepção é inaceitável. Isso porque, segundo o
princípio da continuidade da realidade, não pode haver uma alteração
instantânea do movimento. Num choque, cada ínfima parte do corpo deve perder
gradativa e sucessivamente o movimento até readquiri-lo em sentido oposto.
Além disso, Descartes confunde a quantidade do movimento com a força — o
que Leibniz mostra indicando a diferença entre os movimentos de dois corpos
em queda livre (calculados de acordo com a lei de Galileu) e sua força. A
constância não está na quantidade de movimento (que se expressa na fórmula
mv, sendo m a massa, e v a velocidade), mas na força.
A distinção entre força e movimento é fundamental, mesmo porque, a rigor,
“o movimento (...) não é coisa inteiramente real, e, quando vários corpos mudam
de situação entre si, é impossível determinar (...) a qual dentre eles se deve
atribuir o movimento ou o repouso”. A força, ao contrário, é “mais real”: atributo
do corpo, é ela a causa interna do movimento. O corpo, por isso, não se define
apenas como extensão e seus atributos — tamanho, figura e movimento. É
também dotado, interiormente, de uma força dinâmica.
Com essas considerações, Leibniz passa da física à metafísica. Para ele, a
força, na medida em que se distingue dos atributos corpóreos e geométricos, é
um princípio metafísico sobre o qual se apóia a própria física. A força é a
“primeira enteléquia” — termo empregado por Aristóteles para designar a
perfeição de uma coisa, atualizada por uma atividade que lhe é intrínseca e
própria.
Mas atividade própria exatamente a quê, se os corpos podem ser subdivididos
em partes? É preciso, então, supor a substância, a unidade sem partes e
indivisível, de que tudo é composto e agregado. E, como “na Natureza nunca há
dois seres perfeitamente idênticos”, é também preciso conceber uma
multiplicidade de substâncias, cada qual com qualidades distintas, de modo que
a agregação delas resulte em seres individuais também distintos. Enquanto
Espinosa supunha apenas uma substância (Deus) e Descartes, três (Deus, res
cogitans e res extensa), Leibniz propõe um número infinito de substâncias, a que
dá o nome de mônadas (do grego monas, isto é, “unidade”).
Indivisíveis, sem partes, as mônadas não podem ser materiais. São, então, da
ordem espiritual; são idéias e expressam (ou representam — Leibniz não
distingue a expressão da representação). Mas expressam o quê? Leibniz
responde: “E, assim como a mesma cidade parece outra e se multiplica
perspectivamente sendo observada de diversos lados, o mesmo sucede quando,
pela infinita quantidade das substâncias simples, parece haver outros tantos
universos diferentes, que, no entanto, são apenas as perspectivas de um só,
segundo os diferentes pontos de vista de cada mônada”. Desse modo, cada
mônada expressa a totalidade das coisas segundo os pontos de vista; é, portanto,
“um espelho vivo e perpétuo do universo”. O mundo físico e corporal é, então,
composto de representações das mônadas.
O ato pelo qual as mônadas representam o universo chama-se percepção. Esta,
porém, não é fixa: cada mônada ten-de para representações perfeitas, e o
princípio interno (a força) que provoca tal tendência recebe o nome de apetência.
As mônadas distinguem-se entre si por graus diferentes de perfeição da
percepção, que as distribuem em uma série hierarquizada, desde as “mônadas
nuas”, em que as representações são confusas, até as “superiores”, em que a
percepção é acompanhada de apercepção, isto é, de auto-representação ou
consciência.
Cada mônada é “como um mundo completo” e, além disso, dotada de uma
força dinâmica que a faz tender para a perfeição da representação. Isso significa
que as mônadas são propriamente enteléquias, “pois contêm em si uma certa
perfeição, e têm uma suficiência a torná-las fontes de suas ações internas”. Em
outras palavras, as mônadas são independentes entre si, isto é, cada uma delas
não sofre nenhuma ação exterior da outra. Por isso, diz Leibniz numa célebre
frase: “As mônadas não têm janelas por onde qualquer coisa possa entrar ou
sair”.
Fechadas em si mesmas, incomunicáveis entre si e incapazes de agir uma
sobre a outra, as infinitas mônadas, porém, constituem uma série ordenada de
graus de perfeição. Cada mônada, segundo a famosa imagem usada por Leibniz,
é como um relógio que marca a mesma hora que os demais, mesmo funcionando
independentemente. Ou então é como a linha infinitesimal que exprime a linha
de uma curva em sua totalidade, embora esta não possa ser conhecida por
estender-se até o infinito.
Mas a idéia de relógios que marcam a mesma hora ou de linhas que exprimem
o todo impossível de conhecer requer que algo tenha ajustado os relógios ou que
possua o conhecimento da linha como um todo. Esse algo não pode ser uma
substância entre outras mônadas, pois estas representam o universo de um ponto
de vista particular e, por isso, finito. Cada uma delas também ten-de ao máximo
grau de perfeição que lhe é possível, mas isso também significa que são
imperfeitas. E seres finitos e imperfeitos não são capazes de ordenar as infinitas
mônadas.
Essa ordenação, que se faz segundo o que Leibniz denomina harmonia
preestabelecida, só pode ser criada por uma substância infinita e perfeita, que
contenha como infinitas representações as percepções de todas as mônadas. Essa
substância deve estar separada das outras. Mais do que isso, deve ser a criadora
das mônadas, que dela dependem. Deus é o nome dado a essa substância infinita,
perfeita, criadora de todas as coisas e da harmonia preestabelecida.
HOBBES, O HOMEM SEM ILUSÕES
Mas essa paz, ditada apenas pelo medo da morte, é instável, pois sempre corre
o risco de se desfazer, uma vez dissipado o medo. É preciso então um poder e
uma vontade mais fortes do que os homens para obrigá-los à paz. De quem seria
tamanho poder, se todos são iguais por natureza? A solução é sair da natureza,
instituindo um homem artificial.
Isso se faz por um novo pacto, dessa vez definitivo, “de um modo que é como
se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu direito de
governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com
a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante
todas as tuas decisões”. Nesse pacto, a renúncia é total a favor desse homem
artificial, que passa a concentrar todas as forças, todas as vontades e todos os
poderes de cada homem, transformando-os em uma só força, uma só vontade,
um só poder, que são de um único corpo, artificial: o corpo político, isto é, o
Estado.
Hobbes sabe que esse Estado é monstruoso. Comparao ao monstro bíblico
Leviatã — nome que dá título à sua principal obra. Mas o Estado é um monstro
não tanto pelo poder absoluto que detém sobre os homens — aspecto do
pensamento de Hobbes que, segundo muitos intérpretes, justificaria o
absolutismo. O que há de monstruoso no Estado é seu caráter artificial: quem o
ocupa pode ser um homem ou vários deles, mas não na qualidade de indivíduos
naturais, pois são antes de mais nada representantes de uma única vontade
consolidada pelo pacto entre todos. O Estado está acima dos indivíduos, mas
como criação destes e como sua representação.
É certo que o Estado detém o poder ilimitado, monopolizando o recurso à
violência. Mas a violência do Estado é distinta da situação de guerra no estado
de natureza, pois seu objetivo é evitar a guerra, garantindo paz e segurança. O
Estado representa, nessa medida, o fim do estado de natureza e a inauguração da
sociedade civil.
É também certo que, nessa passagem, o homem perde a liberdade natural de
que dispunha. Mas esta era fonte de guerra e do medo da morte. A instituição do
Estado é então a superação do medo pela esperança, a garantia da segurança e do
direito à vida. E o que se encontra na base disso tudo senão a idéia de soberania?
LOCKE: CRIME E CASTIGO
A análise que John Locke faz do homem é bem mais condescendente do que a
de Hobbes. Na verdade, Locke está para a chamada Revolução Gloriosa de
1688, assim como Hobbes está para a guerra civil e a efêmera República inglesa.
Para Hobbes, o que importa é a soberania indivisível que garanta a paz, e não se
ela é representada por Carlos I, com pretensões absolutistas, ou por Cromwell,
com poderes quase ditatoriais. Mas Locke é testemunha de acontecimentos
posteriores.
A restauração da monarquia como solução de compromisso entre a Coroa e o
Parlamento não eliminou o conflito entre ambos; Jaime II, irmão e sucessor de
Carlos II, é deposto em 1688. O trono é entregue a Guilherme de Orange e à sua
esposa Maria, mas sob a condição de que se submetam ao Parlamento. Era o
início da monarquia constitucional, tal como existe até hoje, consagrando a
divisão de poderes e a supremacia do Parlamento. O pensamento político de
Locke é quase como o programa dessa “Revolução Gloriosa” — “gloriosa”
porque vitoriosa sem que o país tivesse de passar por uma nova guerra civil.
John Locke nasce em Wrington, perto de Bristol (Somerset), em 1632. Estuda
em Oxford, preparando-se para a carreira religiosa, mas seus interesses logo se
voltam para a medicina e ele passa a colaborar com as pesquisas do médico
Thomas Sydenham (1624-1689). Em Oxford, conhece o químico Robert Boyle
(1627-1691), precursor da teoria de elementos químicos. Em 1667, tornase
médico particular e conselheiro político de lorde Ashley, futuro conde de
Shaftesbury, que se destacaria no Parlamento como líder da oposição ao rei
Carlos II. O conde, por causa das acusações de traição, refugia-se na Holanda,
destino que Locke, também perseguido, seguiria em 1683. Em 1689, após a
“Revolução Gloriosa”, Locke retorna à Inglaterra.
As novas condições políticas permitem-lhe publicar, em 1690, duas de suas
principais obras: Dois Tratados sobre o Governo Civil e Ensaio acerca do
Entendimento Humano. Também escreve Alguns Pensamentos Referentes à
Educação (1693) e Racionalidade do Cristianismo (1695). Enquanto cuida da
publicação dessas obras, Locke assume cargos públicos, como o de comissário
da Câmara de Comércio. Também é convidado a servir como embaixador em
Brandenburgo, mas recusa o posto. Morre em 1704.
Para ele, os homens, por natureza, são livres, iguais e independentes. Mas
liberdade não é licenciosidade, pois todos estão sujeitos à lei de natureza, isto é,
à razão: cada um é livre para dispor de seu corpo, mas ninguém deve abusar
dessa liberdade para prejudicar os demais. Nem há por que atentar contra a
liberdade dos outros, pois, no estado de natureza, a terra e seus frutos são
abundantes e suficientes para a sobrevivência de cada um. Se a todos está
assegurada a preservação, como alguém pode cobiçar o que é dos outros?
Locke afirma que a lei de natureza autoriza a matar um agressor, do mesmo
modo como se mata um lobo ou um leão. Para ele, a agressão tem um caráter
insensato e irracional. Quem a pratica são homens que, abandonando os
“princípios da natureza humana” e renunciando à razão, tornam-se
“depravados”. Por causa desses homens contrários à razão e à natureza — e não
por influência destas últimas — inicia-se o estado de guerra.
Por isso, Locke, ao examinar o estado de natureza, não se detém na descrição
de uma eventual vida paradisíaca e feliz. O que lhe importa nesse estado é o
direito que cada um tem de fazer valer a lei de natureza: quem prejudica o outro
é transgressor dessa lei, um criminoso, e todos os homens têm o direito de
castigá-lo, isto é, de condená-lo à morte e a outras penas menores.
De um lado, o transgressor da lei que se declara em estado de guerra. De
outro, o guardião e executor da lei, que, por isso, tem o direito de guerra de
castigar o malfeitor. O criminoso e a vítima inocente: não se trata de “guerra de
todos contra todos”, mas de alguns (contrários à razão) contra os demais
(dotados de razão). No estado de guerra assim descrito, a paz não pode ser
alcançada por um acordo, mas pela rendição do criminoso e, mais do que isso,
pela reparação dos danos causados. Se é o transgressor que inicia a guerra, esta,
no entanto, só termina quando o último dos criminosos for castigado.
Na prática, isso perpetua o estado de guerra. A evidência da lei de natureza
não previne que ela seja ignorada ou desprezada, e o criminoso sempre pode
prosseguir. O castigo tampouco impede a reincidência do criminoso. Além disso,
num estado em que todos são juízes e executores da lei em causa própria, como
evitar o julgamento parcial, a sentença injusta e o castigo excessivo?
Tantos são os inconvenientes desse estado que os homens decidiram renunciar
à sua liberdade natural, principalmente ao direito de executar a lei de natureza
com as próprias mãos, entregando-o ao corpo político forma-do nesse mesmo ato
de renúncia. Esse é o pacto que dá origem à sociedade ou política (que Locke
também denomina comunidade), isto é, um único corpo, político, representado
pelo governo.
De acordo com o pacto firmado, o governo pode ser de um só indivíduo ou de
vários. O que importa é sua finalidade: a de concentrar o direito de julgar e de
castigar os criminosos, de modo a assegurar, a toda a comunidade e a cada um de
seus membros, a segurança, o conforto e a paz.
Para isso, o governo desdobra-se em vários poderes. O principal é o Poder
Legislativo, isto é, o de estabelecer leis fixas para que todos possam conhecê-las.
Mas tais leis não podem ser mais do que especificações da lei de natureza, pois
foi para seu melhor cumprimento que os homens decidiram, pelo pacto, unir-se
em comunidade.
O legislativo não deve aplicar e executar as leis, para não legislar em causa
própria. Em princípio, portanto, o Poder Legislativo deve ser distinto do Poder
Executivo.
Outro é o Poder Federativo, pelo qual a sociedade, na condição de um único
corpo, relaciona-se com outras comunidades ou homens que não aderiram ao
pacto, declarando-lhes guerra ou paz e estabelecendo alianças e intercâmbios de
todo tipo. Esse poder, embora teoricamente distinto do executivo, não é, na
prática, separado deste, pois não convém que essas duas forças estejam sob
comandos diferentes. Isso pode gerar desordem e ruína.
Esses poderes não são ilimitados. Os poderes executivo e federativo
subordinam-se ao legislativo, que também tem seu poder limitado pela lei de
natureza. Além disso, o legislativo deve sua origem ao pacto entre os homens,
que, por maioria, consentiram em atribuir-lhe o poder de estabelecer leis. Sem
esse consentimento da maioria não há lei, legítima e válida, mas apenas
arbitrariedade.
Por isso, Locke é adversário ferrenho do absolutismo. Para ele, o monarca
absoluto, cujo poder não tem limites nem se baseia no consentimento, não
participa da sociedade: encontra-se fora dela, no estado de natureza, e, pior, com
os recursos de que dispõe, declara guerra aos homens. Em tal situação, não há lei
a não ser a de natureza, que autoriza a castigar o agressor. A rebelião contra o
absolutismo é legítima, e isso abre a possibilidade do pacto para inaugurar a
verdadeira sociedade.
Para Hobbes, o estado de natureza, em que a liberdade de cada um não tem
limites, era sinônimo de guerra. Por isso, os homens, pelo medo da morte e em
busca da paz, selavam o pacto e instituíam um poder ilimitado, que ao menos
lhes assegurasse o direito à vida. O que estava em jogo era guerra e paz, sendo a
paz preferível à liberdade. Mas, para Locke, a questão é a de crime e castigo.
O estado de natureza, em que a liberdade de um indivíduo não pode, pela
razão, prejudicar o outro, significaria paz, não fossem os “depravados”. Estes
devem ser castigados, e somente pela renúncia à liberdade natural — por um
pacto, que concentre em um só corpo político o direito de estabelecer leis e
penas, e, também, o de punir — é que se pode, contra os criminosos, assegurar a
paz e o gozo da liberdade.
PARTE III
DO ILUMINISMO
AO LIBERALISMO
ECONÔMICO
1. O SÉCULO DAS LUZES
Para Hume não há, na mente humana, nada que não tenha se originado na
percepção. Esta se subdivide em duas espécies. As mais vivas são impressões,
que aparecem na mente “quando ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos,
desejamos ou queremos”. As mais fracas são idéias (ou pensamentos), que são
cópias das impressões e, por isso, menos vivas. Por exemplo, é fácil
compreender muito bem o que significa dizer que uma pessoa está amando, mas
“nunca posso confundir esta idéia com as desordens e as agitações reais da
paixão”.
As idéias abstratas, como a de substância, são as mais pálidas cópias das
impressões, confundem-se com outras idéias e, freqüentemente, as palavras que
as designam não significam nada. Elas não podem jamais servir de ponto de
partida para o conhecimento e a certeza.
Para Hume, o conhecimento só pode ser resultado da associação de idéias, isto
é, da conexão de várias impressões por meio de suas cópias, formando idéias
complexas. Essa associação não se faz a esmo. Até mesmo no maior dos
devaneios, uma idéia se liga a outra obedecendo a alguns princípios.
Por exemplo, vemos um retrato e logo pensamos no retrato, pois as idéias se
associam por semelhança. A idéia de ouro evoca a de amarelo (e outras), pois
elas estão próximas (ou contíguas) e entram em conexão por contigüidade. Uma
menção a um ferimento é seguida de idéia de dor, e estas idéias se relacionam
como causa (ferimento) e efeito (dor) pelo princípio de causalidade. De acordo
com Hume, todos os casos de associações de idéias reduzem-se a esses três
princípios.
Como objetos da razão, isto é, da investigação humana, as associações de
idéias classificam-se em relações de idéias e relações de fato. As primeiras
correspondem às ciências matemáticas, cujas idéias, imediatamente perceptíveis,
são claras e distintas. Suas proposições, por isso, são demonstradas pela “simples
operação do pensamento e não dependem de algo existente em alguma parte do
universo”.
Outro é o caso da relação de fatos, a que correspondem todas as associações
de idéias por causalidade. Aqui, o que conta não é o encadeamento lógico das
idéias, mas a experiência: quem nunca tenha sofrido um ferimento não poderá
jamais lhe associar a idéia de dor, pois na idéia de ferimento não há nada que
conduza racional e necessariamente à de dor. Causa e efeito são eventos distintos
e não há nenhum termo intermediário que os una em uma relação necessária;
cada vez que algo nos feriu tivemos também a impressão de dor. No entanto,
temos certeza dessa relação de causa e efeito, e, mais do que isso, também
prevemos que o ferimento sempre será — como sempre foi — a causa da dor. O
que autoriza essa previsão?
Mais: como sempre, o Sol nasceu hoje; amanhã também nascerá. Para Hume,
essa certeza não se fundamenta em nenhum raciocínio ou demonstração,
tampouco em intuição — isto é, em todas as operações mentais tradicionalmente
admitidas como as únicas válidas para o verdadeiro conhecimento racional. E o
que dizer então dessa certeza sobre o futuro, se dele nem sequer podemos ter
experiência?
A certeza só pode ser uma crença. Vimos o Sol nascer ontem e hoje, e disso
formamos a crença de que nascerá amanhã e sempre. Mas em que se baseia a
crença? Para Hume, a resposta é apenas uma: na repetição de experiências
semelhantes, isto é, no hábito (ou costume). Habituamo-nos a sentir dor quando
nos ferimos e acreditamos que a mesma experiência se repita em todas as
ocasiões semelhantes. O mesmo ocorre com todas as afirmações sobre relações
de fato, que constituem as ciências da natureza.
O ceticismo torna-se inevitável: o conhecimento científico, que sempre
pretendeu guiar-se pela razão e pela evidência da intuição e da demonstração
para estabelecer relações de causa e efeito, tem bases não-racionais, como a
crença e o hábito.
Mas, para Hume, isso não altera as coisas. A certeza persiste, mesmo que
agora se saiba que ela não tem bases racionais. “Não temos necessidade de
recear que esta filosofia (...) solape os raciocínios da vida diária e estenda suas
dúvidas até o ponto de destruir toda ação como também toda especulação. A
natureza manterá eternamente seus direitos e prevalecerá sobre todos os
raciocínios abstratos”, afirma o filósofo.
VICO E AS IDADES DO HOMEM
Salve o prazer!
A ousadia do conhecimento
Por esses caminhos diversos, cada um a seu modo, les philosophes redefinem
o homem. Ele faz parte da natureza, mas a observação mostra que é um ser
capaz de modificar o seu curso; é fruto do meio e, no entanto, pode ser
transformado pela educação, pelas Luzes, e capaz de reformar a própria
sociedade. Sem providência divina, sem causa final sobrenatural, ele é senhor de
seu destino.
Ao interpretar esse período, Kant, que representaria o auge e a superação do
Iluminismo alemão, dirá, no final do século, respondendo à pergunta formulada
no título de uma de suas obras — O que é o Iluminismo?: “A saída do homem de
sua minoridade, pela qual ele próprio é responsável. Minoridade, isto é,
incapacidade de se servir de seu entendimento sem a direção de outrem,
minoridade pela qual ele é responsável, uma vez que a causa reside não em um
defeito do entendimento, mas numa falta de decisão e coragem em se servir dele
sem a direção de outrem. Sapere aude! [Ousai saber!] Tem a coragem de te
servir de teu próprio entendimento. Eis a divisa das Luzes”.
VOLTAIRE, O PANFLETÁRIO
“Para conhecer os homens, é preciso vê-los agir. No mundo dos salões nós os
ouvimos falar, eles mostram seus discursos e escondem suas ações; mas na
história elas são desmascaradas e nós os julgamos a partir dos fatos.” O
mascaramento do ser pelo parecer, manifesto nos salões do século XVIII, choca
profundamente o jovem Rousseau, que chega a Paris em 1741, oriundo da
província de Genebra. E a aversão pela hipocrisia reinante na vida social da
época é tamanha que irá marcar toda a sua obra. Talvez não tenha sido só por
esse motivo, mas o fato é que Rousseau usará sempre, em todas as suas obras,
um único título: cidadão de Genebra.
Jean-Jacques Rousseau nasce em Genebra, na Suíça, em 1712. Perde a mãe ao
nascer e é criado pelo pai, Isaac Rousseau, homem um tanto excêntrico,
descendente de uma família calvinista de relojoeiros, de origem francesa. Aos 7
anos, Rousseau lia com o pai romances deixados por sua mãe e obras como
Vidas Paralelas, de Plutarco, que desde o século XVI era tido como um manual
de civismo pelos republicanos. Mais tarde, Rousseau diria que Plutarco foi um
dos poucos autores que realmente estimou.
Aos 10 anos, é confiado ao pastor Lambercier, com quem permanece durante
dois anos e tem suas primeiras noções de latim. Depois disso, torna-se aprendiz
de um gravador, que o maltrata. Aos 16 anos, foge e leva uma vida errante,
passando por muitas privações.
Para tentar escapar à fome, procura o auxílio da Senhora Warens, em Annecy.
Converte-se ao catolicismo e tor-na-se amante da protetora. Depois, para ganhar
a vida, trabalha como gravador, secretário, lacaio. Resolvido a adquirir uma
sólida cultura, começa a ler metodicamente. Estuda música, e, após uma
temporada na casa do Senhor Le Maître, no inverno de 1729-30, passa a se
apresentar como professor de música. Em 1740, encontra-se em Lyon como
preceptor dos filhos do Senhor de Mably, irmão dos filósofos Gabriel Mably e
Condillac. No ano seguinte, vai para Paris, onde pretende fazer fortuna com um
método de notação musical que inventou e deseja registrar na Academia das
Ciências. Seus planos falham: o método é considerado complicado demais.
Rousseau, no entanto, descobre um amigo: Denis Diderot, então um jovem
escritor, tão desconhecido como ele. Em pouco tempo, começa a freqüentar os
salões. Escreve uma ópera, As Musas Galantes, que consegue fazer representar
na Ópera de Paris. O amigo Diderot encomenda-lhe artigos sobre música para a
Enciclopédia e seu relacionamento com os filósofos enciclopedistas amplia-se.
Em 1745, liga-se a Thérèse Levasseur, uma criada. O casal tem cinco filhos,
todos entregues, logo após o nascimento, a orfanatos. (No fim da vida,
Rousseau, que se casa com Thérèse, justifica-se alegando que não pôde assumir
os filhos por ser pobre e doentio.)
Durante o verão de 1749, quando se dirigia ao castelo de Vincennes para
visitar o amigo Diderot, que havia sido encarcerado depois da publicação de
Carta sobre os Cegos, acusado de ateísmo, Rousseau toma conhecimento de
uma questão proposta pela Academia de Dijon e resolve concorrer ao prêmio.
Vence o concurso e publica seu primeiro texto filosófico, Discurso sobre as
Ciências e as Artes (1750). A repercussão da obra obriga Rousseau a polemizar
com adversários de suas teses. Torna-se, com isso, célebre. Pouco depois,
escreve a ópera O Adivinho da Aldeia e Carta sobre a Música Francesa. Recusa,
orgulhosamente, uma pensão real. Durante uma curta viagem a Genebra, volta à
fé protestante, que havia abjurado na juventude.
A pedido de Diderot, escreve em 1755 um importante trabalho para a
Enciclopédia, o Discurso sobre a Economia Política, no qual aprofunda suas
teses, passando do plano moral para o político. No mesmo ano, publica o célebre
Discurso sobre a Origem e Fundamentos da Desigualdade entre os Homens,
também apresentado à Academia de Dijon, mas que, ao contrário do primeiro
Discurso, não foi premiado, apesar de sua maior importância. Em 1756,
Rousseau passa a morar no Ermitage, uma enorme casa em Montmorency,
colocada à sua disposição pela Senhora d’Épinay.
Nesse retiro, começa a escrever o romance epistolar A Nova Heloísa, com o
qual iria obter enorme prestígio. Na primeira parte do livro, desenvolve o tema
da paixão, que, se faz sofrer, também enriquece; e recrimina as convenções
sociais que impedem Julie, a heroína, de se casar com Saint-Preux por causa da
condição social do amante. Vai além: denuncia a posição humilhante da mulher
na sociedade de seu tempo. Na segunda parte, opõe à corrupção da aristocracia
das cidades a vida simples do campo. A natureza, vista pelo autor como viva e
rica, é tomada como confidente, como fonte de inspiração.
Em 1757 Rousseau deixa o Ermitage e instala-se em Montlouis, onde
permanece durante cinco anos. Vive, então, o período mais fértil de sua carreira:
termina A Nova Heloísa, escreve a Carta a D’Alembert sobre os Espetáculos
(1758), publica Emílio e Do Contrato Social, ambos em 1762. Consideradas
ofensivas às autoridades, essas obras são incineradas e ordena-se a prisão do
escritor. Rousseau tem de sair às pressas de Paris, refugiando-se em Neuchâtel,
então sob o domínio de Frederico II da Prússia.
Do exílio, escreve Carta a Cristophe de Beaumont, defendendo Emílio, e
Cartas Escritas da Montanha. Em 1764, a pedido de Matteo Bottafuoco, prepara
o Projeto de Constituição para a Córsega. Pouco depois, começa a escrever
Confissões, em que procura explicar, em mais de mil páginas, aspectos de sua
vida e de sua obra.
Depois que sua casa em Neuchâtel é atacada por fanáticos, dirige-se para a
ilha de Saint-Pierre, onde também não pode permanecer. Sabendo de sua difícil
situação, o filósofo David Hume oferece-lhe refúgio na Inglaterra. Os delírios
persecutórios de que sofria Rousseau, no entanto, logo o fazem desentender-se
com o anfitrião.
Ele volta à França, onde passa a viver isolado. Casa-se, em 1767, com Thérèse
Levasseur, com quem vivera praticamente toda a vida. A pedido do conde
Wielhorski, que pretendia incrementar reformas políticas em seu país, escreve
Considerações sobre o Governo da Polônia (1771).
Em 1776, sua saúde, que andara abalada, melhora e ele começa a escrever,
com mais tranqüilidade, Os Devaneios do Caminhante Solitário. A convite do
marquês de Girardin, muda-se para o castelo de Ermenonville, ao norte de Paris,
em maio de 1778. Passa os dias perambulando pelo par-que do castelo,
estudando e catalogando plantas. Na manhã de 2 de julho, sente-se mal e, em
seguida, falece.
“O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a ferros. O que se crê
senhor dos demais não deixa de ser mais escravo do que eles. Como adveio tal
mudança? Ignoro-o. Que poderá legitimá-la? Creio poder resolver esta questão.”
Ao colocar em pauta a questão da legitimidade do pacto que os homens
fizeram para sair do estado de natureza e inaugurar o estado civil, Rousseau
adota, já neste primeiro parágrafo do capítulo I de sua principal obra, Do
Contrato Social, uma postura polêmica em relação aos pensadores políticos que
o precederam, especialmente Hobbes e Locke.
Os filósofos do século XVII, preocupados em combater a origem divina dos
reis, elegeram a passagem do estado de natureza para a sociedade civil como
uma questão nuclear. Para Rousseau, no século seguinte, ela é decisiva e
minuciosamente desenvolvida no Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da
Desigualdade entre os Homens. Permanece como pressuposto em Do Contrato
Social. Teria sido graças a uma sucessão de acasos que o homem saiu do estado
de natureza, no qual era livre e vivia muito bem, para se tornar escravo.
O contrato que teria possibilitado a saída do homem do estado de natureza, tal
qual imaginaram Hobbes ou Locke, não é legítimo; constitui uma burla na qual
os homens nunca deveriam ter consentido: “(...) os pobres só tendo a perder a
liberdade cometeram uma grande loucura ao conceder, voluntariamente, o único
bem que lhes restava, para nada ganhar em troca”. Rousseau não aceita a tese de
Hobbes de que o contrato põe fim ao estado de guerra e garante a segurança,
nem a de Locke, que atribui ao contra-to a garantia do usufruto da propriedade
privada. Será de um contrato legítimo que Rousseau irá tratar em Do Contrato
Social, ou seja, um contrato em que a vontade geral se apresente como soberana
e no qual a liberdade, entendida como o dom mais precioso do homem, seja
preservada.
Para fundamentar sua crítica à sociedade, Rousseau irá se inspirar na natureza,
como outros já haviam feito. Na interpretação que faz de seus antecessores,
percebe o mesmo deslize que identificara nos salões: o falar serve muito mais
para esconder do que para revelar a verdade. Os juristas e até mesmo os filósofos
que trataram do estado de natureza transportaram para lá o homem civilizado
com suas paixões degeneradas, com seus vícios. Rousseau fará uma crítica
radical a essas interpretações e, a partir do homem natural, desenvolverá,
hipoteticamente, sua história, para poder compreender como o homem chegou ao
estado atual de corrupção.
O “despotismo da liberdade”
As teorias, na prática
A AUFKLÄRUNG
O racionalismo de Wolff
Pioneiro nesse sentido, Christian Thomasius (16551728) escreve em alemão
um programa de curso para a Universidade de Leipzig. As universidades, por
sinal, tornam-se o principal centro da Aufklärung. Para isso, contribui a ação
pedagógica de Christian Wolff (16791754), professor de Halle e autor de obras
em alemão, que seriam adotadas no ensino de filosofia. Ele também fixa a
linguagem filosófica em alemão e propõe uma classificação dos diversos ramos
que compõem a filosofia.
Wolff define a filosofia como “ciência de todas as coisas possíveis”, isto é, de
tudo o que não for contraditório. Por isso, ela é em primeiro lugar ontologia, o
estudo do ser e das proposições que se possam formular a seu respeito,
obedecendo ao princípio lógico de não-contradição. Segue-se a cosmologia, o
estudo do mundo, que seria, na opinião de Wolff, formado de substâncias
simples, dotadas intrinsecamente de forças dinâmicas.
Essas idéias, que retomam o pensamento de Leibniz, são formuladas por uma
cadeia de demonstrações. Nesse sentido, Wolff e a Aufklärung que o seguiu
aproximam-se mais do racionalismo do século XVII do que do empirismo que
animou as Luzes da França. De fato, para Wolff, o conhecimento empírico,
apesar de indispensável, ocupa um lugar inferior ao conhecimento teórico puro,
uma vez que a verdade dos dados empíricos é apenas provável.
O surgimento da estética
Da intuição ao conceito
Kant desenvolve essas questões em Crítica da Razão Pura, sua obra mais
célebre — escrita, como as demais, na cidade prussiana de Königsberg, onde ele
nasceu, em 1724, e onde veio a falecer, em 1804. Nesses oitenta anos, Kant
jamais saiu da terra natal. Estudou na universidade local e ali lecionou, chegando
a assumir o cargo de reitor. Conta-se que foi excelente professor.
A evolução do pensamento kantiano até sua forma acabada foi lenta. A Crítica
da Razão Pura, escrita após vários textos considerados “pré-críticos”, só
apareceu em 1781, e sua versão definitiva em 1787. Nesta obra decisiva, Kant já
anuncia que seu propósito é “não a ampliação dos próprios conhecimentos, mas
apenas sua retificação (...)”. Esse objetivo também aparece em Prolegômenos a
Qualquer Metafísica Futura que Possa Vir a Ser Considerada como Ciência, de
1783, em que ele retoma os principais aspectos da obra anterior, mas dando-lhes
uma nova forma de exposição.
Segue-se a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de 1785, em que
Kant não aborda de imediato a filosofia moral (a “metafísica dos costumes”),
mas sua fundamentação. No caso, essas bases, consolidadas, destinam-se à
Crítica da Razão Prática, de 1788, que também não estabelece a classificação
dos deveres (morais) do homem, mas antes os “princípios de sua possibilidade,
de sua extensão e limites”. Finalmente, a Crítica do Juízo, de 1790, busca a
unidade entre as duas Críticas anteriores, isto é, entre a teoria e a prática, o
universal e o particular, a necessidade e a liberdade. A chamada “filosofia
crítica” de Kant tem como alicerce estas três Críticas, sobre as quais se erguem
várias outras obras, como partes de um único edifício que permaneceria
inacabado.
Na primeira das Críticas, Kant afirma que o conhecimento só pode provir da
intuição, que representa o objeto de modo imediato, e dos conceitos, com os
quais as representações são pensadas. No conhecimento empírico, as intuições
empíricas representam objetos, e os conceitos a que correspondem são
unificados em juízos sintéticos a posteriori. Mas de onde provêm os conceitos
na matemática dita “pura”, que prescinde da intuição empírica?
A resposta só pode ser uma: mediante a construção de conceitos. “Construir
um conceito”, diz Kant, “significa apresentar a priori a intuição que lhe
corresponde.” Tal intuição pura é possível, como prova a intuição pura do espaço
e do tempo. É também possível intuir partes do espaço, sem que para isso seja
necessário “preenchê-lo” com sensações. A partir dessa intuição, que é a priori,
pode-se construir, por exemplo, o conceito de triângulo e, de intuição em
intuição, proceder à síntese dos vários conceitos construídos, acrescentando
novos conhecimentos sobre o triângulo.
Se, desse modo, os conceitos da geometria são construídos a partir da intuição
do espaço, a “aritmética constrói seus conceitos de número através da adição
sucessiva de unidades no tempo (...)”. Ambas as ciências, portanto, são
constituídas de juízos sintéticos a priori, o que possibilita tanto o acréscimo de
conhecimento quanto a universalidade e a necessidade de suas proposições.
Do conceito à experiência
A doutrina-da-ciência
A Alemanha, que nessa época ainda não passa de uma idéia, constitui tal
“atmosfera”. Goethe diz “nós, os alemães”, “nossa maneira de sentir”, “nossa
natureza própria”, e com isso faz eco, por exemplo, a Lessing, que havia
reafirmado a “força do nosso sentimento” — no caso, contra a influência da
dramaturgia francesa. “Se considerarmos atentamente o que faltava à poesia
alemã”, diz também Goethe, “reconheceremos que era um fun-do, e um fundo
nacional.”
Buscar o que pode ser considerado peculiar aos alemães, um “fundo nacional”
para transformar esse povo em nação é o propósito do Sturm und Drang. Um dos
principais precursores dessa busca é Friedrich Gottlieb Klopstock (1724-1803),
autor de A Messíada e Odes, e que descreve em A Batalha de Armínio a luta
desse antigo guerreiro germânico contra os invasores romanos. Do mesmo
modo, muitos outros procuram na tradição popular da Alemanha, com seus
deuses, mitos e heróis lendários, o “fundo nacional” para suas obras.
A inspiração na tradição popular tem também uma justificação estética,
formulada por Johann Georg Hamann (1730-1788), conhecido como “o Mago do
Norte”. Para ele, “a poesia é a língua materna do gênero humano”, o que
significa que a linguagem primitiva — da qual a tradição popular é
reminiscência — expressava a livre comunhão do homem com as forças vivas e
mágicas da natureza, e era, por isso, bela e autenticamente poética.
A partir dessas considerações, os poetas do Sturm und Drang lêem
apaixonadamente Rousseau — não o teórico do Contrato Social, mas o do “bom
selvagem” ainda não corrompido por convenções da sociedade, livre na sua
rudeza de sentimentos robustos e viris. Também traduzem, adaptam e imitam
Shakespeare, cujas obras lhes parecem um antídoto contra as sufocantes regras
das academias. Mas o grande modelo, revelado principalmente por
Winckelmann, é a Grécia Antiga, identificada com a “infância da humanidade”
e, portanto, com a época poética por excelência. Para a geração Sturm und
Drang, Roma Antiga apenas imita os gregos, que — estes sim — realizaram
obras plenas de vigor e frescor, livres e sinceras.
Assim como a Grécia clássica correspondeu à juventude da humanidade, a
Alemanha é uma nação jovem, a ser formada, rebelde e até mesmo rude, mas
pura, autêntica. Numa época em que ela era considerada “bárbara”, sem o
“refinamento”, o “bom gosto” e a “elegância” da França, esses poetas ostentam
orgulhosamente a sua própria “barbárie”.
Mas o que fazer com essa rebelde irreverência? A Alemanha é apenas uma
região dividida em vários Estados, muitos dos quais governados despoticamente,
sem liberdade de ação. Se houvesse guerras — como iria acontecer com as
invasões napoleônicas —, seria possível despertar o guerreiro germânico cantado
por Klopstock, mas na falta delas só resta esse cantar. “Essa atividade”,
declararia Goethe, “que não sabia onde se aplicar, precipitou-se como uma
torrente na literatura. Já que não se podia agir, escreveu-se, lutou-se
violentamente nos romances e nos dramas.”
HERDER, À PROCURA DA ALMA ALEMÃ
Natureza e liberdade
Construindo a liberdade
A realização do espírito
O aumento da produtividade
Adam Smith consegue mostrar, entre outras coisas, que a divisão do trabalho,
por si só, é capaz de estimular o crescimento das “forças produtivas do
trabalho”. A descrição que ele faz do funcionamento de uma fábrica de alfinetes
indica que as máquinas na verdade consolidam, num plano muito superior, o que
a divisão do trabalho já havia realizado. Smith explica que, enquanto um
operário não seria capaz de fabricar uma única peça em um dia, “dez pessoas
conseguiam produzir entre elas mais do que 48 mil alfinetes por dia”.
“Tomemos, pois, um exemplo, tirado de uma manufatura muito pequena, mas
na qual a divisão do trabalho muitas vezes tem sido notada: a fabricação de
alfinetes. Um operário não treinado para essa atividade (...) dificilmente poderia
talvez fabricar um único alfinete em um dia (...). Entretanto, da forma como essa
atividade é hoje executada, não somente o trabalho todo constitui uma indústria
específica, mas ele está dividido em uma série de setores (...). Um operário
desenrola o arame, um outro o endireita, um terceiro o corta, um quarto faz as
pontas, um quinto o afia nas pontas para a colocação da cabeça do alfinete (...).
Assim, a importante atividade de fabricar um alfinete está dividida em
aproximadamente dezoito operações distintas (...). (...) A divisão do trabalho, na
medida em que pode ser introduzida, gera, em cada ofício, um aumento
proporcional das forças produtivas do trabalho”, escreve ele.
“Dividir o trabalho”, assim, implica uma nova organização da atividade
produtiva: basicamente, a substituição do sistema doméstico, em que cada
artesão (e seus familiares) executava um trabalho inteiro, pela reunião de
trabalhadores em um só local e pela distribuição, entre eles, de partes desse
trabalho. Além de aumentar a produtividade, essa nova organização possibilita
um maior controle, pelo empregador, do tempo de trabalho, impondo aos
operários um ritmo mais intenso — o que seria conseguido com maior eficiência
com a introdução das máquinas.
Estas, porém, neutralizam o saber do trabalhador. O trabalho deixa de ser a
arte de um ofício — de que só o homem dispõe, e por isso pode negociar melhor
remuneração — para se tornar um mistério reservado à máquina (e ao patrão), a
cujos movimentos o empregado deve obedecer, mesmo que não os compreenda.
Ao tornar inútil o conhecimento do artesão, a indústria moderna também
transforma a população tradicionalmente não-trabalhadora — mulheres e
crianças — em mão-deobra, possibilitando a redução dos salários. Não por
acaso, a Revolução Industrial, ao concentrar os operários em grandes unidades
de produção, ao retirar-lhes o controle que detinham sobre seu trabalho e ao
remunerá-los com baixos salários, também significaria o surgimento de uma
nova força social: o movimento organizado dos trabalhadores por uma sociedade
mais justa.
O valor do trabalho
O PENSAMENTO
CONTEMPORÂNEO
1. TRANSFORMAR O MUNDO
A FILOSOFIA DO FUTURO
Um novo racionalismo
A realidade da ilusão
Mas por que os dominados também são envolvidos nessa ilusão ideológica? A
resposta encontra-se novamente na divisão do trabalho. Na forma de então, essa
divisão se dá fundamentalmente entre os proprietários dos meios de produção
(os capitalistas) e os trabalhadores, possuidores apenas da capacidade de
trabalhar, a qual vendem aos capitalistas em troca do salário. Nessas condições,
o que o trabalhador produz não lhe pertence e aparece como um objeto que lhe é
exterior, alheio e estranho. Tal estranhamento é o que Marx, retomando a
linguagem hegeliana, denomina alienação, isto é, a exteriorização do sujeito, na
qual o próprio sujeito não se reconhece mais.
“A alienação do trabalhador em seu produto”, escreve por isso Marx em
Manuscritos Econômico-Filosóficos, “significa não apenas que seu trabalho se
converte em um objeto, em uma existência exterior, mas que existe fora dele,
independente, estranho, que se converte em um poder independente diante dele
(...) hostil.” Na sociedade capitalista, o trabalho, que deveria ser a atividade pela
qual o homem afirma sua humanidade, passa a determinar a desumanização. No
trabalho alienado, o trabalhador é reificado, isto é, torna-se coisa, enquanto as
coisas propriamente ditas que ele cria aparecem como dotadas de vida e
autonomia próprias.
O segredo desse verdadeiro mundo de ponta-cabeça — tema retomado por
Marx em O Capital, sua principal obra da chamada “fase madura” — é a forma
que o produto do trabalho assume no capitalismo: a forma mercadoria. “Como
os produtores”, afirma Marx, “somente entram em contato social mediante a
troca de seus produtos de trabalho, as características especificamente sociais de
seus trabalhos privados só aparecem dentro dessa troca. Em outras palavras, os
trabalhos privados só atuam, de fato, como membros do trabalho social total por
meio das relações que a troca estabelece entre os produtos do trabalho e, por
meio dos mesmos, entre os produtores. Por isso, aos últimos aparecem as
relações sociais entre seus trabalhos privados como o que são, isto é, não como
relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, senão
como relações reificadas entre as pessoas e relações sociais entre as coisas.”
Esse mundo fantasmagórico, em que os homens aparecem como coisas — e,
efetivamente, o trabalhador tor-na-se mercadoria, cujo preço é o salário —
enquanto as coisas estabelecem relações sociais, é um mundo de abstração: nele,
o que conta não são as utilidades concretas das mercadorias, mas a igualdade
abstrata entre elas, e que as torna equivalentes e intercambiáveis; do mesmo
modo, as particularidades dos homens e de suas atividades são relegadas para
ressaltar o trabalho abstratamente considerado. Isso faz com que os homens
apareçam como abstratamente iguais — condição reconhecida pelo sistema
jurídico e que se manifesta de fato no mercado de trabalho, no qual o capitalista
e o trabalhador se relacionam como igualmente proprietários, seja dos meios de
produção, seja da força de trabalho. Em outras palavras, a sociedade capitalista,
mesmo dividida, aparece aos homens, inclusive aos trabalhadores, como
realização da igualdade.
Por tudo isso, a realização da filosofia não pode ser uma tarefa teórica.
“Interpretar o mundo” é uma atividade intrinsecamente prisioneira da ilusão
ideológica, e esta só pode ser dissipada efetivamente na medida em que a sua
base real, que a produz, for transformada. Mas, com isso, a própria filosofia, que
se constrói a partir dessa ilusão, perde a sua razão de ser: ela se abole.
Mas é possível a transformação da base real da ideologia? É possível abolir a
divisão social, que na sociedade capitalista se manifesta na propriedade privada,
realizando a igualdade e a universalidade efetivas e reais? Essa é a meta do
comunismo, que na época de Marx empolga muitos teóricos. O próprio Marx, no
entanto, diz: “Para superar o pensamento da propriedade privada, basta o
comunismo pensado. Para suprimir a propriedade privada efetiva, é necessária
uma ação comunista efetiva”. O comunismo, então, não pode ser apenas uma
fórmula teórica — uma forma da ideologia —, mas deve ser uma prática.
Que prática, e de quem? Não evidentemente a do Homem abstrato dos
filósofos, já que ele não existe numa sociedade dividida. Muito menos a prática
dos proprietários capitalistas, pois estes como um todo — a burguesia — têm
interesses particulares a defender. A prática comunista efetiva deve ser então
realizada por aquela parcela da sociedade que, não possuindo nada, só pode ter
como interesse a abolição da divisão social e da propriedade privada: a classe
operária, o proletariado, isto é, “uma classe da sociedade burguesa que não é
uma classe da sociedade burguesa”, pois não usufrui em nada dessa organização
social. O interesse do proletariado como classe — e não deste ou daquele
operário individual — é o de abolir as condições que o alienam para realizar a
sua humanidade. Ao fazê-lo, realiza também a humanidade de todos os homens.
A emancipação da classe operária é, então, segundo Marx, a emancipação de
toda a sociedade.
Essas considerações não constituem, para Marx, mera formulação teórica. A
classe operária existe efetivamente, e essa existência se universaliza na medida
em que as relações capitalistas se tornam mais e mais predominantes. Mais do
que isso, o movimento dos trabalhadores assalariados — o movimento operário
— é também real e crescente. Mesmo que alienados e coisificados — ou
exatamente por isso —, os operários organizam-se em associações de defesa
mútua, que já configuram a sociedade realmente fraterna, igualitária, humana,
isto é, comunista. “Pode-se observar”, diz Marx, “este movimento prático em
seus resultados mais brilhantes, quando se vêem reunidos os operários socialistas
franceses. Já não necessitam de pretextos para reunir-se (...). A vida em
sociedade, a associação, a conversa, que por sua vez têm a sociedade como fim,
lhes bastam. Entre eles, a fraternidade dos homens não é nenhuma fraseologia,
mas sim uma verdade, e a nobreza da humanidade brilha nessas figuras
endurecidas pelo trabalho.”
Para Marx, o crescimento da classe operária faz parte do dinamismo do
capitalismo, que requer a ampliação incessante da produção de riqueza e,
portanto, do capital.
“A condição essencial da existência e da supremacia da classe burguesa”,
dizem ele e Engels em Manifesto do Partido Comunista, “é a acumulação da
riqueza nas mãos dos particulares, a formação e o crescimento do capital; a
condição de existência do capital é o trabalho assalariado. (...) O progresso da
indústria (...) substitui o isolamento dos operários (...) por sua união
revolucionária mediante a associação. Assim, o desenvolvimento da grande
indústria socava o terreno em que a burguesia assentou o seu regime de produção
e de apropriação dos produtos. A burguesia produz, sobretudo, seus próprios
coveiros. Sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis.”
A vitória do proletariado é, inicialmente, a conquista do poder político, que até
então se encontrava nas mãos da classe dominante. Essa é, segundo Marx, a
única maneira de assegurar a transformação radical da sociedade pela abolição
da propriedade privada. Isso não significa, no entanto, que não possa mais haver
propriedades pessoais: “O comunismo”, diz Marx, “não retira a ninguém o poder
de apropriar-se de sua parte dos produtos sociais, apenas suprime o poder de
escravizar o trabalho de outrem por meio dessa apropriação”.
Essa revolução, pelas próprias condições em que se dá, não pode se restringir
aos limites de um país. O capitalismo universalizou-se, estendendo suas formas
de dominação a todo o mundo; do mesmo modo, a revolução operária só pode se
realizar por inteiro na medida em que abolir universalmente a dominação
burguesa. A revolução deve ter um caráter internacional. Por isso, conclama
Marx nas últimas frases do Manifesto do Partido Comunista: “Os proletários
nada têm a perder (...) a não ser suas cadeias. Têm um mundo a ganhar.
Proletários de todos os países, uni-vos!”.
A REVOLUÇÃO DE MARX E ENGELS
“Nos anos de 1842-43, como redator da Gazeta Renana, vi-me pela primeira
vez em apuros por ter que tomar parte na discussão sobre os chamados interesses
materiais.” Assim Marx narra, no “Prefácio” de Para a Crítica da Economia
Política (1859), como passou a estudar as questões econômicas, que até então
desconhecia. Filho de um advogado, Karl Heinrich Marx, nascido em Trier, na
Renânia, em 1818, foi encaminhado à carreira jurídica, ingressando em 1836 na
Universidade de Bonn e, depois, na de Berlim. Ali, ligou-se ao grupo dos jovens
hegelianos e desistiu de ser advogado. Em 1841, doutorou-se pela Universidade
de Iena, decidido a seguir a carreira universitária. Mas a destituição de Bruno
Bauer, que o apoiava, eliminou essa possibilidade.
Em 1842, tornou-se redator-chefe da Gazeta Renana, jornal liberal e
oposicionista de Colônia, mas teve de abandonar o cargo pelas pressões da
censura. Emigrou para Paris em 1843, e ali entrou em contato com grupos
comunistas e organizações operárias. Também editou, com Arnold Ruge, o único
número de Anais Franco-Alemães — título que expressa a orientação jovem
hegeliana, segundo a qual a teoria (identificada com a Alemanha) deveria
contagiar a prática das massas (França). Publicada em 1844, a revista contou
com a colaboração, entre outros, de Mikhail Bakunin (1814-1876), que seria
uma das principais figuras do movimento anarquista, e Friedrich Engels.
Inseparável amigo de Marx, Engels nasceu em Barmen, na Renânia, em 1820.
Convocado para o serviço militar em Berlim, conheceu então o círculo dos
jovens hegelianos. Em 1842, transferiu-se para Manchester, Inglaterra, para
ajudar a administrar uma fábrica da qual seu pai, um industrial, era um dos co-
proprietários. Aproveitou a ocasião e colheu material para A Situação das
Classes Trabalhadoras na Inglaterra, publicada em 1845, em que analisou
minuciosamente as condições de vida e de trabalho dos operários ingleses e seus
movimentos reivindicatórios.
Em 1844, já em Paris, encontrou-se com Marx: iniciava-se a estreita
colaboração intelectual e política entre os dois. Juntos escreveram A Sagrada
Família (1845) — cujo subtítulo, Crítica de uma Crítica Crítica, já ridiculariza a
pretensão dos jovens hegelianos — e A Ideologia Alemã (publicada
postumamente, em 1932), em que esboçaram pela primeira vez sua concepção
de história.
Marx e Engels participavam da formação do Comitê de Correspondência
Comunista para troca de idéias e experiências entre associações operárias e
comunistas que proliferavam por toda parte. Em 1847, ambos ingressaram na
Liga dos Justos, organização sediada na França mas com ramificações
internacionais, e que mudaria o nome para Liga Comunista. Foram encarregados
de escrever o manifesto da Liga — precisamente o Manifesto do Partido
Comunista, publicado no início de 1848.
As frases iniciais do Manifesto — “Um espectro ronda a Europa: o espectro
do comunismo” — foram quase uma antecipação. Em fevereiro de 1848, na
França, a monarquia de Luís Filipe caía e era proclamada a República. Para isso
contribuíram as agitações do movimento operário e de grupos socialistas, que,
em junho de 1848, organizariam uma insurreição por uma “república social”,
mas sem sucesso. Toda a Europa se levantou. Os objetivos dessa onda
revolucionária eram os mais variados — reformas liberais e democráticas, fim da
servidão dos camponeses, autonomia das minorias nacionais etc. —, mas sempre
com a insinuação de que havia mesmo um “espectro”.
Em meio à revolução generalizada, Marx e Engels retornam à Alemanha para
fundar, em Colônia, a Nova Gazeta Renana. Passam também a participar da ala
esquerda de grupos democráticos alemães, com os quais logo romperiam,
denunciando-os como “traidores” da revolução. Mas esta já perdia o fôlego,
dando lugar, em qua-se toda a Europa, à restauração da antiga ordem.
Expulso da Alemanha em 1849, Marx transfere-se para a França. Novamente
expulso, estabelece-se em Londres, onde Engels chegaria meses depois. Ali,
Marx passa a freqüentar o Museu Britânico, realizando estudos sistemáticos de
economia política. Em 1852, publica O 18 Brumário de Luís Bonaparte, em que
analisa os acontecimentos na França entre 1848 e 1851, e que culminariam com
o golpe de Estado de Luís Bonaparte, sobrinho e “caricatura do velho
Napoleão”, como afirma Marx.
O primeiro volume de O Capital foi concluído em 1866 e publicado no ano
seguinte. Enquanto se dedicava à obra, Marx manteve-se afastado da atividade
política direta, limitando-se praticamente a polemizar com correntes adversárias
do movimento socialista. Mas, em 1864, participou da fundação, em Londres, da
Associação Internacional dos Trabalhadores, que seria conhecida como Primeira
Internacional. Tendo como lema a frase “a emancipação da classe operária deve
ser obra dos próprios operários”, a associação buscava, segundo Marx,
“substituir as seitas socialistas ou semi-socialistas por uma organização real das
classes operárias com vistas à luta”. Nesse sentido, também congregava diversas
correntes do movimento operário, entre elas as ligadas a Pierre Joseph Proudhon
(1809-1865) — cuja obra Filosofia da Miséria havia sido criticada por Marx em
Miséria da Filosofia, de 1847 — e a de Bakunin.
A grande prova de fogo da Internacional ocorreu no final de 1870, quando as
tropas de Luís Bonaparte foram derrotadas por forças prussianas. Paris foi
sitiada. Diante dessa situação, a população da cidade proclamou a República e
declarou-se em Comuna, isto é, em governo autônomo, contando com a
participação dos operários internacionalistas. Para Marx, que escreveu as
“Declarações” da Internacional sobre esses acontecimentos (que seriam reunidas
em A Guerra Civil na França), a Comuna era a “forma política finalmente
encontrada”do governo revolucionário dos trabalhadores. Mais do que as
medidas sociais que ela decretou, Marx ressaltava a destruição, pela Comuna, da
máquina burocrática e militar do Estado, o que a seu ver eliminava as condições
de opressão e dominação de uma classe sobre outra.
Mas a Comuna foi esmagada em maio de 1871 por outro governo —
“burguês”, como seria considerado —, organizado em Versalhes e que negociava
com os prussianos. Na própria Internacional, as posições de Marx geraram várias
controvérsias que degeneraram em lutas de facções. Em 1876, a Internacional
dissolveu-se oficialmente.
Marx e Engels ainda participaram, embora de modo esporádico, do Partido
Social-Democrata Alemão, fundado em 1875. Marx morreu em 1883; Engels,
em 1895, deixando várias obras polêmicas, entre elas A Origem da Família, da
Propriedade Privada e do Estado (1884), além de publicar, a partir de notas
deixadas por Marx, o segundo e o terceiro volumes de O Capital.
O sentido da história
A libertação do homem
Nem sempre essas propostas representaram uma reação contra o rumo das
coisas. Claude Henri Rouvroy, con-de de Saint-Simon (1760-1825), considerava
o advento da era industrial a última e definitiva derrota do sistema feudal e a
redenção do gênero humano. Para ele, a Revolução Francesa e o incremento da
civilização tecnológica convergiam como dois fatores de libertação do homem.
Para que essa libertação se consolide, é necessário que a organização da
sociedade e a estrutura do poder político acompanhem o progresso que cria o
novo homem. Este é principalmente o produtor, e a sociedade é antes de mais
nada a organização dos que trabalham, pois são estes que sustentam a
civilização. Os grandes proprietários, os altos funcionários, o clero, os chefes de
governo e mesmo os reis representam a sobrevivência de um estado de coisas
que a sociedade de fato já superou: são dispensáveis, não têm lugar numa
organização social concebida em torno do trabalho concreto.
Essa sociedade, constituída pelo conjunto dos que produzem (o que para
Saint-Simon congrega pequenos proprietários, operários, sábios, artistas e
banqueiros), deve reger-se a si própria e não subordinar-se aos que apenas
consomem. Para que esse sistema se instale e triunfe é necessário que a classe
produtora assuma, política e moralmente, sua tarefa civilizatória.
A amplitude e a diversidade do que Saint-Simon chama a classe dos
“produtores” fazem supor uma convergência de interesses em que outros
poderiam observar, ao contrário, a ocasião de conflitos. Por isso, Fourier dirá que
Saint-Simon teria falhado na concepção de uma sociedade realmente igualitária.
A “filosofia sintética”
Existe, como não poderia deixar de ser, uma profunda influência de Kant no
pensamento de Schopenhauer. Essa influência se manifesta principalmente no
entendimento que Schopenhauer tem do significado da representação. Kant
havia estabelecido que nossos mecanismos de conhecimento apenas
proporcionam acesso a fenômenos, ou seja, ao mundo estruturado conforme
nossas maneiras de percebê-lo e de sintetizá-lo intelectualmente. Em
Schopenhauer, as formas de percepção — espaço e tempo — assumem uma
importância decisiva, pois, como formas subjetivas de representação, fazem com
que o mundo seja minha representação. Não existe objeto a não ser para o
sujeito.
Não vai muito longe, porém, a fidelidade de Schopenhauer à doutrina kantiana
das instituições puras de espaço e tempo. Kant preocupou-se principalmente com
o método, isto é, com a explicação das situações em que se dá o juízo de
experiência, único relevante para a ciência. A estrutura da percepção
propriamente dita não lhe interessava. Mas Schopenhauer entende a função das
formas a priori sobretudo como mecanismos de percepção, até no sentido
fisiológico. Por isso, nele fica bem mais caracterizado do que em Kant que o
espaço e o tempo atuam como órgãos de percepção, analogamente aos órgãos
fisiológicos. A partir daí, Schopenhauer pode afirmar, o que Kant não faria, que
tais órgãos constituem condições e obstáculos ao contato com o mundo que
estaria “por trás” da aparência ou do fenômeno. Assim, ele faz avançar o
idealismo metódico de Kant para um dualismo que o kantismo dificilmente
poderia legitimar.
A preocupação em dar outro significado à noção de aparência explica a
admiração de Schopenhauer por Berkeley e a aproximação que ele procura fazer
— contra todas as evidências — entre este filósofo e Kant. Isso também permite
que Schopenhauer possa delimitar a representação e, então, buscar algo que
estaria aquém dessa aparência.
Essa dualidade é comprovada pelo corpo. Este é, primeiramente, um objeto
entre outros, submetido a todas as regras da representação. Mas, na qualidade de
meu corpo, ele possui uma atividade pela qual eu também me sinto sujeito —
sujeito de minhas vontades. Nesse nível de ações e reações afetivas, meu corpo
aparece como vontade objetivada e me mostra, por uma extensão indutiva
considerada legítima por Schopenhauer, que todos os seres, da pedra ao homem,
passando pelo animal, são graus de objetivação da vontade, o outro lado, em
outras palavras, o em-si da representação.
Para Schopenhauer, a evidência com que essa verdade se apresenta é de
natureza completamente distinta da certeza racional. É uma evidência que não
pode ser em si mesma explicitada ou submetida diretamente ao trabalho da
reflexão. Não se trata propriamente de uma intuição intelectual do gênero
daquelas que outros pós-kantianos conceberam. É antes de mais nada uma
evidência afetiva.
Por isso, não se pode submeter a vontade ao princípio de razão, vigente no
universo da representação. A vontade é fundamento, mas ela própria não
apresenta fundamento. A metafísica, no seu nível mais profundo, escapa à razão.
Mas esta, ao nos tornar conscientes da vontade como princípio, também nos
ensina a não ser apenas seu prisioneiro.
SOLIDÃO E ANGÚSTIA EM KIERKEGAARD
Filósofo ou religioso?
O salto da fé
Abraão não está na situação do herói trágico que deve escolher entre valores
subjetivos (individuais e familiares) e valores objetivos (a cidade, a
comunidade), como no caso da tragédia grega. Nada está em jogo, a não ser ele
mesmo e a sua fé. Deus não está testando a sabedoria de Abraão, da mesma
forma como os deuses testavam a sabedoria de Édipo ou de Agamenon. A força
de sua fé fez com que Abraão optasse pelo infinito.
Mas, caso o sacrifício se tivesse consumado, Abraão ainda assim não teria
como justificá-lo à luz de uma ética humana. Continuaria sendo o assassino de
seu filho. Poderia permanecer durante toda a vida indagando acerca das razões
do sacrifício e não obteria resposta. Do ponto de vista humano, a dúvida
permaneceria para sempre. No entanto Abraão não hesitou: a fé fez com que ele
saltasse imediatamente da razão e da ética para o plano do absoluto, âmbito em
que o entendimento é cego. Abraão ilustra na sua radicalidade a situação de
homem religioso. A fé representa um salto, a ausência de mediação humana,
precisamente porque não pode haver transição racional entre o finito e o infinito.
A crença é inseparável da angústia, o temor de Deus é inseparável do tremor.
Por tudo o que a existência envolve de afirmação de fé, ela não pode ser
elucidada pelo conceito. Este jamais daria conta das tensões e contradições que
marcam a vida individual. Existir é existir diante de Deus, e a
incompreensibilidade da infinitude divina faz com que a consciência vacile
como diante de um abismo. Não se pode apreender racionalmente a
contemporaneidade do Cristo, que faz com que a existência cristã se consuma
num instante e ao mesmo tempo se estenda pela eternidade. A fé reúne a reflexão
e o êxtase, a procura infindável e a visão instantânea da Verdade; o paradoxo de
ser o pecado ao mesmo tempo a condição de salvação, já que foi por causa do
pecado original que Cristo veio ao mundo. Qualquer filosofia que não leve em
conta essas tensões, que afinal são derivadas de estar o finito e o infinito em
presença um do outro, não constituirá fundamento adequado da vida e da ação. A
filosofia deve ser imanente à vida. A especulação desgarrada da realidade
concreta não orientará a ação, muito simplesmente porque as decisões humanas
não se ordenam por conceitos, mas por alternativas e saltos.
NIETZSCHE: A VONTADE COMO POTÊNCIA
A morte de Deus
A necessidade do conflito
Para analisar o valor de nossa moral, Nietzsche vai opor dois universos
espirituais: o dos senhores e o dos escravos. Esta oposição designa ao mesmo
tempo um contraste entre ideais e entre modos de existência. Nossa moral é de
escravos, e seus valores vão se tecendo em torno de um certo ideal de
convivência. Nosso imaginário social desenha como ponto ótimo uma
convivência isenta de conflitos, em que se pensa que viveremos nossa
“felicidade”. Nada como o século XIX para procurar este estado idílico no qual
os conflitos desapareceriam, as “contradições” estariam enfim “superadas” e o
rebanho humano poderia viver a paz, o seu sábado dos sábados. Esse ideal de
convivência supõe, tacitamente, uma determinada antropologia. Se esses
indivíduos não entram em conflito, é porque não aspiram a mais nada, suas
vontades estão paralisadas, e por isso mesmo vivem a felicidade espinosana,
definida como repouso.
Assim, nossa moral vai pregar, no “tu deves”, as qualidades que adocicam a
vida, como o altruísmo, a piedade, o desinteresse, todo um ideário de
“esgotados”, que apenas exprime uma vontade anêmica. E é essa mesma vontade
anêmica que está na origem de nosso desejo de crenças e convicções, nossa
perpétua necessidade de apoio em uma verdade, uma religião ou uma
consciência de partido. Por isso, nossa civilização enaltece a obediência e coloca
o comando ao lado da má-consciência, promovendo como figura do homem
alguém preparado apenas para obedecer, um escravo, um ser domesticado, o
“animal do rebanho”.
Ao lado de nossa moral e de nosso ideal de convivência, que se pensam
únicos, existiu, segundo Nietzsche, outra moral e outro modo de encarar a
existência. É o universo dos senhores, que ele acredita redescobrir analisando a
vida grega antes da “decadência” platônica. Desde a juventude, quando
pesquisava a vida grega no mundo homérico, Nietzsche discernira ali um ideal
de convivência exatamente oposto ao nosso: uma vida construída a partir de um
elogio do conflito, não de sua supressão.
É o que se depreende, por exemplo, daquilo que seria o “verdadeiro
significado” do ostracismo como instituição na Grécia Antiga. Se os gregos
expulsavam da cidade alguém que se sobrepunha aos demais, isso não
significava um freio, mas um estímulo. Expulsava-se o grande, aquele que
sobressaía excessivamente, para que os mecanismos da luta se restabelecessem,
para que a disputa entre todos voltasse. É que um grego do bom período, garante
Nietzsche, não conhecia felicidade sem luta nem vitória sem disputa ulterior. Sua
vida, em suma, era a expressão mesma da vontade de potência. E foi este mundo
do conflito permanente que encontrou sua expressão filosófica no vir-a-ser de
Heráclito, como representação de um universo onde as tensões e os conflitos
perdu-ram pela eternidade. O homem da luta homérica será o indivíduo sujeito à
moral dos senhores, na qual a afirmação de si substitui as virtudes cristãs.
O mundo do escravo será agora aquele onde o indivíduo sofre com o mundo,
se ressente dele. E o ressentimento será a mola propulsora desse sofredor, que
desejará vingar-se do senhor e negar seu mundo. O escravo, o filósofo e o
sacerdote serão os personagens de um en-redo através do qual se negará o
mundo do vir-a-ser, graças à hipóstase de três mundos fictícios: o mundo moral,
o mundo divino e o mundo-verdade. Através deles, o escravo quer não abolir a
dor, mas encontrar um sentido para o sofrimento. É o que Nietzsche nos ensina
ao final da Genealogia da Moral: não foi a dor, mas a falta de sentido da dor que
atormentou os fracos, e para encontrar esse sentido eles inventaram seus ideais.
Assim, toda a civilização cristã será um anestésico ideológico para uma
existência sofredora.
O CRIVO DA LINGUAGEM
A lógica do pensamento
Na trilha aberta pelos grandes empiristas ingleses dos séculos XVII e XVIII,
Russell começou rejeitando o monismo idealista de fundo hegeliano professado
em Cambridge na virada do século, concebendo o mundo com uma pluralidade
de elementos ordenados em indivíduos, classes, relações e possibilidades, todos
podendo ser expressos em palavras que significam algo e que, portanto, remetem
a alguma coisa. Mais tarde ele corrigiu essa concepção (que durante algum
tempo compartilhara com Meinong), introduzindo uma diferença em relação à
denotação, ou seja, ao fato de as palavras (nomes ou descrições) remeterem a
coisas ou fatos. Assim, as expressões “A rainha da Inglaterra” e “O atual rei da
França” são ambas frases denotativas, mas não remetem da mesma maneira
àquilo que descrevem. Para que esse problema possa receber uma solução formal
— através da análise lógica da proposição — Russell considera que os nomes de
pessoas e objetos, bem como descrições como os exemplos dados acima, são
construções lógicas, isto é, entidades complexas que devem ser reduzidas a seus
componentes elementares.
No universo de Russell não existem verdadeiramente objetos tais como livros
ou casas, nem pessoas como Churchill ou Marx, mas apenas dados sensoriais,
que são os elementos dessas construções simbólicas ou lógicas. Se digo, por
exemplo, “O autor de Waverley era escocês”, devo traduzir a frase numa
seqüência de sentenças logicamente depuradas, o que resultaria em: 1. “X
escreveu Waverley” não é sempre falsa; 2. Se X e Y escreveram Waverley, X e Y
são idênticos; 3. “Se X escreveu Waverley, X era escocês” é sempre verdadeira.
Isso, em linguagem ordinária, significa que ao menos uma pessoa escreveu
Waverley; que no máximo uma pessoa escreveu Waverley e que quem quer que
tenha escrito Waverley era escocês. Essas proposições atômicas esclarecem o
sentido da frase original, que é de uma complexidade lógica que só se revela na
análise.
É a esse atomismo proposicional que corresponde o atomismo dos sense-data,
dados dos sentidos que são os átomos do mundo factual. Pode-se substituir os
nomes e as descrições pelos dados elementares que eles encobrem sem que a
proposição se modifique. Ao contrário, ela ganhará um rigor lógico que a
linguagem ordinária não pode conter. A linguagem deve fazer justiça à
fugacidade do real.
A ciência, através de observações e inferências, agrupa fatos e estabelece leis.
A linguagem deve corresponder ao conhecimento assim adquirido, fazendo jus à
sua complexidade. Orações e sentenças devem expressar o mundo ordenando a
multiplicidade de fatos observados e inferidos. Somente os resultados científicos
são referenciais semânticos confiáveis.
O CÍRCULO DE VIENA
A epistemologia biológica
Filho de pai polonês e mãe inglesa, ambos de origem judaica, Henri Bergson
nasceu em Paris, em 1859. Cresceu numa França que via, maravilhada, o
desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Nessa segunda metade do século
XIX, os intelectuais franceses deixavam-se envolver pelo pensamento
cientificista. Na filosofia, nomes como Jules Lachelier, Charles Renouvier,
Émile Boutroux e André Lalande procuravam adaptar a filosofia kantiana às
novas perspectivas científicas abertas pela psicologia, pelas ciências humanas
(então nascentes), pela biologia, pela física — num movimento que ficou
conhecido como neokantismo francês.
Eles, no entanto, não mergulharam na ideologia cientificista “tanto quanto
alguns contemporâneos, como Spencer e Taine, que, como Stuart Mill,
buscavam reduzir a vida espiritual a jogos de associações de idéias ou de
imagens sensíveis, que se atraíam como, pensava-se, os átomos físicos se atraem
nas suas diferentes combinatórias”, analisa Franklin Leopoldo e Silva, professor
de filosofia da Universidade de São Paulo. “O jovem Bergson não ficará infenso
a esse ideal delirante de positividade total.”
Seu talento para as ciências exatas levaram-no a publicar, em 1878, uma
demonstração nos Annales Mathématiques. Mas, no momento de optar por um
campo do conhecimento, ele preferiu as ciências humanas — para a qual, num
primeiro momento, levou a exatidão e
o rigor exigidos para as exatas. Chegou mesmo a pretender pensar o universo
a partir da explicação mecanicista de Spencer. Essa pretensão o levou, porém, a
afastar-se da idéia: ao aprofundar seus estudos nessa área, percebeu que Spencer
falseava o desenrolar do tempo, e sem um conceito temporal rigoroso a
concepção evolucionista spenceriana não se sustentava.
“Na verdade, o que Bergson vê como insuficiente em Spencer, assim como na
maioria dos outros filósofos, é a concepção do movimento”, aponta Leopoldo e
Silva. “A explicação do tempo e do movimento, numa palavra, da mudança, será
a grande tarefa a que dedicará todo o esforço de sua reflexão. Explicar o papel
do tempo e do movimento em todos os aspectos da realidade é uma ambição que
coloca Bergson na linhagem dos grandes filósofos, de Parmênides, Heráclito e
Aristóteles a Kant e Hegel. Mas o que vai diferenciar Bergson de todos eles é o
projeto de abordar, por assim dizer internamente, o fluxo temporal: intuí-lo na
sua duração.”
A experiência como construção
A formação da experiência
O SENTIDO DA EXISTÊNCIA
O existencialismo concebe que há pelo menos um ser que existe para si, que
não foi criado ou produzido a partir de uma essência preexistente: o homem. No
homem a existência vem antes da essência. Isso significa que não há uma
predefinição do homem, como existe uma predefinição de um objeto fabricado.
Não se pode saber o que o homem é antes de ele existir. Não se pode falar, por
isso, em natureza humana: esta seria uma noção que predefiniria o homem antes
de ele existir. Não há uma natureza humana. Há uma condição humana, e esta
passa a haver desde que o homem surge no mundo. Então, à pergunta “o que é o
homem?”, se formulada em caráter geral, somente se pode responder: nada. O
homem nada é enquanto não fizer de si alguma coisa. Exatamente por isso ele é
para si, no sentido de ser aquilo que fizer de si. Neste ponto o existencialismo
sartreano retoma a idéia heideggeriana de projeto: a existência é um projetar-se
no sentido de impulsionar-se para o futuro. O projeto existencial não implica a
subjetividade no sentido tradicional, pois nem mesmo se pode dizer que o Ego
seja a essência predefinida do homem. O homem tem, isso sim, uma dimensão
subjetiva que é a própria projeção de si, e pode ter plena e autêntica consciência
disso. Nisso ele se distingue das coisas, e, segundo Sartre, alcança maior
dignidade, na medida em que responde pelo seu próprio ser.
A consciência e o outro
Morte e transcendência
Há uma razão pela qual o homem se sente atraído pela inautenticidade. Dentre
as inúmeras possibilidades abertas para ele, uma se destaca como certamente
realizável, independentemente de seu projeto de vida: a morte, a maior das
certezas humanas e, paradoxalmente, a única cuja experiência direta nos é
vedada por princípio, pois só temos experiência da morte do outro. A morte
portanto é vivida como possibilidade existencial, como algo que cresce e
amadurece em nós à medida que vivemos. A morte é uma revelação
fundamental, apesar de termos dela uma consciência indeterminada. Com isso
acrescenta-se uma característica singular ao nosso modo de existir: o homem não
apenas é um ente que está-aí, lançado no mundo, mas sobretudo está no mundo
para a morte. Na medida em que a análise fenomenológica da existência, por
abordar apenas a estrutura do nosso existir, não comporta uma esperança de vida
futura, ser para a morte significa ser para o nada. O nada apresenta-se assim
como possibilidade definidora da existência. Por mais absurdo que possa parecer
— e o absurdo não é de forma alguma alheio à existência humana —, o nada é
uma presença forte na estrutura existencial. A consciência autêntica enfrenta a
morte não como uma eventualidade empírica, mas como algo pelo qual a nossa
existência se define antes de tudo.
A lucidez frente à possibilidade da morte é própria da consciência resoluta. A
resolução como característica existencial se expressa no modo como
posicionamos nossas possibilidades, superando o presente imediato. Essa espécie
de superação de nós mesmos em nosso estado presente é a preocupação, ou o
cuidado, como atitude fundamental diante do mundo. Pela preocupação
antecipamos nossos encontros com os diversos entes que nos rodeiam. Essa
também não é uma característica acidental, mas algo que define intrinsecamente
nossa situação no mundo. O homem é um ente cujo modo de ser fundamental é
ser por antecipação. Ocupamo-nos previamente de tudo o que nos ocorre, ou
seja, preocupamo-nos com tudo o que nos acontece. A preocupação é parte
integrante do projeto pelo qual procuramos definir e escolher nossas
possibilidades. Isso significa que nos projetamos para além do que somos e isso
vem a ser o mesmo que transcendermos o que somos a cada momento. Por isso,
a transcendência é ainda uma característica definidora da existência. Como a
existência se define pelo projeto, existir é sobretudo construir o futuro e este é o
significado básico do modo de ser por antecipação que distingue o homem dos
entes que são prisioneiros do presente. Mas isso significa que a existência
relacionase fundamentalmente com o tempo.
Existência e temporalidade
Além dos três períodos em que se pode dividir a evolução da teoria crítica, é
necessário acrescentar um quarto, que já não diz respeito apenas ao pensamento
do grupo a que se convencionou chamar Escola de Frankfurt, mas a certos
prolongamentos que, sem desfigurar o perfil teórico da teoria crítica, procura, de
modo original, resolver e superar algumas dificuldades deixadas pelos
fundadores.
Nesse sentido vai o trabalho de Jürgen Habermas, que tenta retomar o debate
presente na obra de Benjamin, Horkheimer, Adorno e Marcuse. A principal
preocupação de Habermas é superar os impasses através de uma reformulação da
teoria crítica. Para tanto experimenta o potencial teórico da teoria crítica em
reflexões acerca da legitimação do Estado moderno e numa tentativa de elaborar
uma teoria da ação comunicativa.
A FILOSOFIA NO BRASIL
“Convém que o Governo ao menos uma vez lance os olhos sobre a mocidade,
que faça ensinar nas escolas uma Moral pura, uma filosofia sã, e nutra o
sentimento do amor divino.” Estas palavras do célebre poeta romântico
Gonçalves de Magalhães (1811-1882) são quase um programa de filosofia para o
Brasil. Adepto do chamado ecletismo, proposto na França por Victor Cousin
(17921867), que procurava conciliar o que houvesse de “razoável” e “sem
excessos” em todos os sistemas filosóficos, Magalhães busca desse modo
associar a filosofia a um projeto global de construção, pela educação, do homem
moral e cívico, perfeitamente integrado ao regime monárquico então existente no
Brasil. Não por acaso, ele iria proferir, na presença do próprio imperador, a aula
inaugural do primeiro curso oficial de filosofia no Brasil, instituído no Colégio
Pedro II.
Não que antes não tivessem existido reflexões filosóficas no Brasil — e houve
até quem as encontrasse nos primeiros escritos registrados ainda nos tempos da
Colônia, por exemplo, pelo padre Antônio Vieira. Filósofos também teriam sido
alguns escritores que participaram da Inconfidência Mineira, no final do século
XVIII, de nítidas influências, segundo muitos, do Iluminismo francês. Mas, na
falta de melhores critérios para decidir o que é ou não “filosófico”, talvez seja
mais prudente considerar como o início da filosofia no Brasil o momento em que
ela se oficializou como tal em uma instituição de ensino.
Isso, no entanto, não significa que essa doutrina filosófica oficial possa ser
caracterizada como uma “grande filosofia”. Como o próprio nome “ecletismo”
indica, ela não passa de uma mescla de idéias justapostas sem muito rigor, em
que se destaca seu aspecto moralizante. “E notese”, escreve Gonçalves de
Magalhães, “que as idéias, e só as idéias, podem moralizar ou desmoralizar os
povos.”
Um positivismo político
Segundo uma teoria recente, todas essas idéias estariam “fora de lugar”.
Formulada por Roberto Schwartz em um artigo intitulado precisamente “As
Idéias Fora de Lugar”, essa teoria, no entanto, retoma as análises que já estavam
implícitas em análises pioneiras de João Cruz Costa (1904-1978) ou de Sérgio
Buarque de Holanda (1902-1982): as idéias no Brasil, copiadas de modelos
estrangeiros e portanto sem as bases econômicas, sociais e políticas que as
produziram na origem, estariam como que soltas ou, pelo menos, em uma
relação muito peculiar com a realidade brasileira — o que explicaria tanto a sua
pobreza e falta de originalidade quanto, ao contrário, a sua riqueza.
Essa hipótese suscita até hoje intensas polêmicas. O que não se notou na
época, porém, é que essas discussões se davam em um ambiente relativamente
restrito, isto é, o das universidades e, mais precisamente, de seus institutos e
faculdades de filosofia.