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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 19: 7-10 NOV.

2002

DOSSIÊ “GLOBALIZAÇÃO”

Apresentação
Giovanni Alves e
Francisco Luiz Corsi

A chamada “globalização” da sociedade mações em curso e conformarem-se aos altos


capitalista, até pouco tempo atrás, era vista com custos sociais, inevitáveis, da adaptação das
enorme otimismo. A nova fase do capitalismo economias à nova realidade mundial.
mundial abriria múltiplas perspectivas de
Essa visão otimista da globalização, ideológica,
desenvolvimento econômico, social, cultural e
dissolveu-se no ar. Na última década, a situação
político para a humanidade. Estaríamos no umbral
mundial parece bem distante desse quadro. Mas
de uma nova era da história da sociedade moderna.
não se podem desprezar as mudanças que
Muitos enxergavam a globalização de maneira ocorreram nesse período. Elas foram, sem dúvida,
exageradamente simplificada. Concebiam-na como profundas e contraditórias. Ao mesmo tempo em
a abertura das fronteiras nacionais, o que terminaria que muitos processos se “globalizaram”, outros
na formação de uma sociedade mundial cada vez reforçaram sua dimensão local: veja-se, por
mais integrada e regulada pelo mercado. A queda exemplo, o ressurgimento das tradições regionais
das barreiras comerciais, a livre circulação de e dos nacionalismos.
capitais, a nova onda de inovações tecnológicas,
A esperada prosperidade e integração mundial
a rapidez da circulação das informações etc.,
estão longe de acontecer. Observa-se, hoje, uma
marcariam o início de uma nova etapa civilizatória,
profunda desigualdade entre as várias regiões do
que levaria o capitalismo para um mundo sem
planeta, sendo que muitas delas encontram-se à
fronteiras, auto-regulado pelos mercados, onde os
margem desses processos de globalização. A
Estados nacionais teriam seu papel diminuído e
miséria, o desemprego, a precari-zação dos esta-
tenderiam, quando muito, a transformarem-se em
tutos salariais e a falta de perspectiva abarcam
meros condutores da administração de problemas
grandes parcelas da população mundial, e não só
e interesses locais. As políticas neoliberais, que
na denominada periferia do sistema capitalista, mas
enfatizavam a adoção da estabilidade monetária e
também nos países desenvolvidos, embora em
cambial, a redução do papel do Estado na economia
menores proporções. Os problemas ecológicos
e a liberdade para a circulação de mercadorias e
também se avolumam e denotam os limites do
capital, seriam as mais adequadas para alcançarmos
capital em sua etapa globalizada. A atual fase do
esse novo estágio da economia mundial. Esse
capitalismo mundial caracteriza-se pelo baixo
estágio abarcaria todas as regiões do mundo e
crescimento econômico e pela instabilidade per-
garantiria a prosperidade geral. As inovações
manente que atinge o sistema mundial, não apenas
tecnológicas e organizativas do processo de
em sua dimensão econômico-financeira, mas em
produção, sob a égide da III Revolução Tecnológica
seus aspectos geopolítico-militar.
e do toyotismo, libertariam os trabalhadores do
trabalho alienado, recuperando sua criatividade, Os limites e as inconsistências do conceito
imaginação e iniciativa, abrindo espaço para a auto- “globalização” nos levam, baseados em François
realização e para o ócio. Esse processo, inexorá- Chesnais (1996), a designar esse conjunto de
vel,e representaria o ápice da história da humanida- transformações como correspondendo, num
de. Restaria aos países adequarem se às transfor- sentido mais preciso, à etapa da mundialização do

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 19, p. 7-10, nov. 2002


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APRESENTAÇÃO

capital. Trata-se de uma nova fase do processo de econômico-financeira, política e, inclusive, cultural
internacionalização do capital sob a hegemonia —, que desembocaram na mundialização do
do capital financeiro e que tende a abarcar as capital.
regiões do mundo que apresentam abundância de
O dossiê que apresentamos pretende resgatar
recursos, desenvolvimento prévio, amplos merca-
alguns aspectos da “globalização” como
dos, políticas voltadas ao favorecimento de inves-
mundialização do capital. Serão abordadas
tidores externos etc., enfim, todas as facilidades
transformações na esfera da economia política e
para a rentabilidade da massa de capital-dinheiro.
da produção capitalista no Brasil e na América
As demais regiões do globo encontram-se fora
Latina.
desse processo ou apenas marginalmente dele
participam. O que significa que a globalização O artigo de Francisco Corsi procura abordar
como mundialização do capital incorpora, em si, os impasses do desenvolvimento na atual fase da
as próprias características da lógica do capital, chamada globalização do capital.Realiza, nesse
isto é, ela é excludente, desigual e seletiva. momento de desenvolvimento da globalização e
de sua crise sistêmica, uma reflexão sobre os
O baixo dinamismo econômico do atual perío-
impasses do desenvolvimento, principalmente em
do deve-se, sobretudo, à superprodução crônica
países capitalistas subalternos à nova ordem do
que se estende desde a crise de meados da década
capital e que buscaram, nos últimos anos, através
de 1970 e que abriu espaço para o predomínio do
de políticas neoliberais, inserir-se de forma dinâ-
capital financeiro. A lógica desse capital passou a
mica na mundialização do capital. O trabalho
dominar os investimentos aplicados na produção,
baseia-se fundamentalmente no estudo da extensa
levando a um entrelaçamento das várias formas
bibliografia publicada recentemente. Em que
de capital. Do ponto de vista da base material,
medida a retomada do desenvolvimento para
esse parece ser o aspecto chave que caracteriza
diversas áreas estagnadas da periferia coloca-se
essa nova fase do capitalismo.
como uma possibilidade palpável? O que significa
Contudo, a mundialização do capital não se pensar o problema do desenvolvimento nas con-
restringe a esse aspecto único. A mundialização dições da nova etapa do capitalismo denominada
funda-se em processos concomitantes e intima- “globalização”? Essas são questões tanto mais
mente interligados, quais sejam: (i) a formação de estratégicas quando se considera que o momento
oligopólios transnacionais em importantes setores; atual encontra-se sob a hegemonia do capital
(ii) a formação de mercados de capitais, de rentista-parasitário, que está muito pouco preocu-
câmbio e de títulos de caráter global; (iii) a pado com investimentos produtivos. O artigo de
formação de um mercado mundial cada vez mais Corsi pretende mostrar que a estagnação econô-
integrado; e (iv) a instituição de uma divisão mica vivida por inúmeros países não desenvolvidos
internacional do trabalho baseada na relativa decorre, em parte, de uma crise social e econômica
desconcentração industrial. Esses processos são aberta na década de 1970 e que se estende até os
acompanhados por uma onda de inovações dias de hoje, apesar das tentativas de reestruturação
tecnológicas, concentrada na biotecnologia e na da sociedade capitalista. As estratégias e as
informática. É o que se convencionou chamar de políticas de cunho neoliberal também teriam
a III Revolução Tecnológica e que atinge os mais contribuído sobremaneira para essa situação, à
diversos aspectos da vida social. medida que reforçaram as amarras financeiras que
sufocaram boa parte das economias periféricas.
Esses processos são, de um lado, fruto da
Sobrepondo-se a esses problemas, esses países
antiga tendência à internacionalização do
também se defrontariam com os limites ecológicos
capitalismo e, de outro, da crise estrutural do
do capitalismo. O artigo sugere que a retomada
capital aberta no final dos anos 1960, marcada
do desenvolvimento em um novo patamar, que
por intensa luta de classes. A resposta que o capital
requer crescimento econômico, justiça social e
deu ao avanço do socialismo, à crítica da cultura
preservação da natureza, implicaria, na verdade,
burguesa, à redução das taxas de lucro, à crise da
em ruptura com o capitalismo.
hegemonia norte-americana e ao avanço das forças
de esquerda no centro e na periferia do sistema O artigo de Giovanni Alves apresenta um
geraram as condições para um complexo de panorama dos principais contornos do mundo do
reestruturações em várias dimensões — produtiva, trabalho no Brasil nos anos 1990 (o que ele deno-

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mina de “década neoliberal”). Nesse período, os afetaram a área metropolitana de Santiago em


governos Collor de Melo, Itamar Franco e Fernan- função do surgimento, a partir de meados de 1970,
do Henrique Cardoso adotaram uma política de de uma nova estratégia macroeconômica, onde
inserção internacional que contribuíram decisi- tanto a crescente liberalização econômica, como
vamente para o desenvolvimento de um novo a ampla abertura externa, favoreceram a progres-
complexo de reestruturação produtiva, um pro- siva globalização da economia nacional. Cabe
cesso de inovações tecnológica e organizacional salientar que o Chile de Pinochet, na década de
que atingiu os mais diversos setores da indústria, 1970, foi o primeiro experimento na América Latina
comércio e serviços no Brasil. Foi na “década da de políticas de mercado que, mais tarde, sob a
globalização”, com sua ideologia da abertura mundialização do capital, iriam se tornar predomi-
comercial e da desregulação da economia, que nantes sob a denominação de “neoliberalismo”.
surgiu um novo (e precário) mundo do trabalho. Mattos observa que, nesse contexto, junto a im-
Instaurou-se uma crise do sindicalismo no Brasil, portantes modificações na base econômica metro-
considerada expressão contingente da fragmen- politana, começou a processar-se na grande
tação e da precarização da classe trabalhadora Santiago uma radical reestruturação de seu mer-
organizada. O autor conclui que hoje, mais do que cado de trabalho e uma maior dispersão territorial
nunca, o maior desafio do sindicalismo na virada das atividades produtivas e da população. Estamos
para o século XXI é romper com o viés buro- diante de um processo social que iria caracterizar
crático-corporativo, organizar e mobilizar um a maioria das sociedades capitalistas latino-
contingente massivo de jovens operários e operá- americanas sob governos neoliberais na década
rias, empregados e empregadas e, inclusive, passada. Mattos observa, nesse novo cenário,
trabalhadores por conta própria precarizados ou como as transformações que afetaram a cidade
explorados pelo capital. emergente incidiram na afirmação, de um lado, de
uma morfologia social onde persiste a polarização
É possível apreender também os desafios da
social e a segregação residencial e, de outro, de
globalização em análises mais circunscritas, como
uma morfologia territorial onde impera a periurba-
o estudo de Ana Lúcia Guedes e Alexandre Faria
nização e a policentralidade, transformações essas
sobre o investimento estrangeiro direto na indús-
que correspondem às tendências que atualmente
tria automotiva brasileira. Este artigo enfoca ques-
se verificam nas grandes áreas metropolitanas
tões de governança e sustentabilidade ambiental
tanto dos países centrais como das economias
relacionados a inversões feitas na indústria auto-
emergentes.
motiva na Região Metropolitana de Curitiba. A
investigação segue uma perspectiva particular Poderíamos dizer que o dossiê que apresen-
sobre o fenômeno da globalização que contempla tamos é uma tentativa de fornecer novos (e ainda
tanto mecanismos e estruturas globais como tam- preliminares) elementos sobre as implicações con-
bém a esfera decisória dos governos locais. Os cretas de um processo sócio-histórico de amplo
autores concluem que as análises sobre a “globa- espectro que atinge as estruturas societárias de
lização” devem incluir tanto aspectos sociais, quan- vários países capitalistas desenvolvidos e em
to políticos, bem como seguir, em investigações desenvolvimento. Na verdade, o conjunto de en-
envolvendo investimentos, estratégias e operações saios delineiam os principais desafios da globa-
de empresas transnacionais no Brasil, abordagens lização ainda em andamento e que, numa situação
interdisciplinares com a área de economia política de situação de crise sistêmica, tende a colocar
internacional. novas provocações para a razão científica. Antes
de mais nada, exige uma postura interdisciplinar e
Finalmente, o estudo de Carlos A. de Mattos
fundamentalmente crítica, capaz de apreender,
faz uma análise das repercussões da globalização
através de uma análise concreta, as múltiplas
no Chile, procurando identificar e caracterizar a
contradições que perpassam o complexo social.
“outra cidade” resultante das transformações que

Giovanni Alves (giovanni.alves@uol.com.br) é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual


de Campinas (UNICAMP) e Professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade
Estadual Paulista (UNESP), campus de Marília.

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APRESENTAÇÃO

Francisco Luiz Corsi (flcorsi@uol.com.br) é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP) e Professor do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Universidade
Estadual Paulista (UNESP), campus de Marília.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

CHESNAIS, F. 1996. A mundialização do capital.


São Paulo : Xamã.

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