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Como se vê, tal e qual o Ministério Público, a Defensoria Pública foi considerada como
essencial à função jurisdicional do Estado, atuando na defesa e promoção dos direitos
fundamentais, individuais e coletivos, dos necessitados, de forma integral e gratuita. A
Defensoria Pública é, portanto, a instituição responsável por levar justiça àqueles que mais dela
carecem, representando um compromisso do Estado brasileiro com aqueles que ordinariamente
ficam à margem da sociedade.
Uma análise estritamente teórica e superficial conduziria à ilação de que, se
corretamente instituída, a Defensoria Pública seria a solução para o problema de
universalização do acesso à justiça; contudo, antes de tal salto dedutivo, impende que sejam
lançadas luzes sobre o significado hodierno e no contexto de um Estado Democrático de
Direito, da expressão acesso efetivo à justiça. Para tal, tomar-se-á como base a obra de Mauro
Cappelletti e Bryant Garth, “Acesso à justiça”.
Qual o significado de acesso efetivo à justiça? Cappelletti e Garth lembram que, à época
do Estado Liberal burguês, sua concepção era a de que o direito à proteção judicial se limitava
ao direito formal do indivíduo de propor e contestar uma ação. De caráter essencialmente
individualista, vigorava a teoria de que, embora direito natural do indivíduo, o acesso à justiça
prescindia de qualquer interferência estatal, cuja atuação consistia em não permitir a lesão dos
direitos de uns pelos outros. Quem tivesse meios para reconhecer a exigibilidade de seus
direitos e para defendê-los em juízo, que o fizesse 1.
Por óbvio, a posterior percepção de que a inexistência de uma atuação positiva do Estado
para a garantia dos direitos individuais e sociais é o equivalente ao abandono de significativa
parcela da população à própria sorte, e que de nada vale a positivação e o reconhecimento de
direitos sem a instituição de mecanismos adequados à sua realização prática, trouxe uma
enorme mudança de paradigma. Essa ideia é trazida pelos citados autores:
1
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça: Trad. Ellen Grancie Northfleet. Porto Alegre: Fabris,
1988. p. 4.
2
Idem, p. 4.
3
Idem, p. 5.
porque a Constituição assim determina. Sem medidas concretas, prevalece a isonomia formal
que, como se sabe, é a pior das desigualdades.
A garantia de acesso efetivo e universal à justiça deve ser vista como uma situação em
que todos os cidadãos possuam as mesmas condições de reconhecimento e exigibilidade de seus
direitos subjetivos, nas mais diversas áreas em que atuam os homens no meio social e, portanto,
nas várias facetas que assumem na sociedade moderna – consumidor, trabalhador, eleitor,
motorista, empreendedor, estudante etc. A igualdade deve ser tal que o único fator a influenciar
a probabilidade de vitória num processo seja o mérito da demanda, a veracidade dos fatos e a
existência ou não do direito do jurisdicionado4.
Como bem reconhecem Cappelletti e Garth, a utopia do cenário fica evidente.
Desigualdades sempre existirão. É, porém, papel do Estado mitigá-las tanto quanto possível e
buscar a eliminação dos óbices à igualitária distribuição da justiça na sociedade. O constituinte
originário já havia concentrado a maior parcela dessa responsabilidade na Defensoria Pública,
o que apenas veio a ser reforçado com a Emenda Constitucional nº 80/2014, que deu nova
redação ao art. 134 da Carta Magna e trouxe à tona o relevo e a importância de sua atuação para
a promoção dos direitos humanos e a defesa dos necessitados, tanto judicial como
extrajudicialmente.
Mas como pode a Defensoria Pública atuar para assegurar o acesso efetivo à justiça,
entendido como a “paridade de armas” entre as pessoas no que se refere ao reconhecimento e
exigibilidade dos direitos em juízo? A resposta de tal questão deve ser analisada em etapas,
sendo a primeira delas a identificação das circunstâncias impeditivas da distribuição igualitária
da justiça.
4
Ibidem, p. 6.
5
Ibidem, p. 6-9.
dos necessitados perante a Judiciário, nem sempre possui a estrutura adequada para o
atendimento da população.
A Defensoria Pública do Paraná, por exemplo, é uma das Defensorias Públicas
Estaduais (DPEs) com a maior deficiência de pessoal em todo o país. Segundo um levantamento
realizado e divulgado pelo site “Migalhas” em 2016, no Estado do Paraná, há apenas 1 defensor
para cada 106.603 habitantes. No Estado de Goiás, a razão é ainda menor: 1 para cada 152.178
habitantes6. A publicação noticia que o número de defensores públicos aumentou em mais da
metade dos Estados no último ano, mas, como se percebe, os dados mostram que a quantidade
ainda está longe do ideal. À vista desse fato, difícil afirmar que o direito de acesso à justiça está
sendo realmente assegurado.
O segundo óbice identificado por Cappelletti e Garth é a forte influência das despesas
processuais nas pequenas causas. Ocorre amiúde que o valor da causa é inferior ao das custas
judiciais. Ora, ninguém deduziria sua causa em juízo com a perspectiva de sair prejudicado em
razão de o dispêndio com o processo ser maior que o benefício a ser possivelmente auferido.
Tal distorção no sistema relegaria o jurisdicionado ao desamparo pelo Estado: é o equivalente
a negar ao cidadão o direito à reparação do dano contra si perpetrado por outrem. No Brasil, o
corretivo veio com a Lei nº 9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e
possibilitou o processamento célere e barato das causas cujo valor não ultrapasse quarenta
salários mínimos. Há, inclusive, a permissão de demandar sem o acompanhamento de
advogado, nas causas cujo valor não ultrapasse o montante de vinte salários mínimos.
No que se refere ao tempo para a resolução dos conflitos submetidos à análise judicial,
verifica-se um problema de solução mais complexa. Em setembro de 2015, o número de
processos em trâmite na Justiça brasileira ultrapassava a barreira dos 100 milhões7. A
morosidade do Judiciário se deve a uma variada gama de fatores, dentre os quais o elevadíssimo
número de processos se sobressai como um dos principais. A demora na apreciação das causas
pode impor pesadas consequências às partes, mesmo psicológicas, devido à insegurança quanto
ao resultado de seu processo.
Por fim, chega-se a um dos principais obstáculos ao efetivo e universal acesso à justiça:
a possibilidade das partes, conforme denominação utilizada por Cappelletti e Garth e de autoria
do Prof. Marc Galanter8. A possibilidade das partes é um conceito amplo, descritivo da
capacidade jurídica geral das partes, enfocada sob todos os aspectos que possam influenciar no
reconhecimento e sucesso na exigibilidade dos direitos no processo. Assim, o primeiro aspecto
que diferencia dois litigantes são os recursos financeiros de cada um. Aquele que possui meios
para litigar e suportar a demora do litígio e tem clara vantagem sobre os demais, o que fica
acentuado não apenas nas relações interindividuais entre pobres e ricos – que podem, por
exemplo, conseguir melhor representação –, mas entre o indivíduo e grupos econômicos e o
Estado. A vulnerabilidade é tão evidente que exigiu a elaboração de diplomas protetivos, que
buscam compensar a desvantagem econômica com a vantagem jurídica dos hipossuficientes,
6
Migalhas. Número de defensores públicos aumentou em mais da metade dos Estados no último ano. Disponível
em:http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI247049,41046-
Defensoria+publica+de+Mato+Grosso+tem+aumento+significativo+em. Acesso em 15 de outubro de 2016.
7
Consultor Jurídico. Brasil atinge a marca de 100 milhões de processos em tramitação na Justiça. Disponível
em:http://www.conjur.com.br/2015-set-15/brasil-atinge-marca-100-milhoes-processos-tramitacao. Acesso em
15 de outubro de 2016.
8
Ibidem, p. 7.
como o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90). Para além da desigualdade
econômica que diferencia as partes, tem-se a que pode ser vista como, ao lado da ausência de
assistência judiciária adequada e de qualidade, a principal dificuldade para o acesso efetivo à
justiça (paridade de armas): a aptidão para reconhecer um direito e propor uma ação ou sua
defesa9.
Esse óbice é de superação especialmente árdua. Os agentes sociais não diferem apenas
no poder econômico, mas também no nível de educação, em relação ao meio social em que
atuam e status social que possuem e na possibilidade de acesso à informação. O resultado da
combinação desses fatores é a criação de um abismo entre a capacidade das pessoas em
reconhecer seus próprios direitos, e a forma correta de exigi-los.
Se o Estado atribuir ao indivíduo a tarefa de reconhecer seus direitos, estar-se-á
regredindo ao estágio em que se encontrava o acesso à justiça nos Estados Liberais burgueses.
É certo que a esmagadora maioria das pessoas não possuem o conhecimento necessário para a
defesa de seus direitos, e, sob um ponto de vista lógico, reconhecer, nos fatos cotidianos, a
presença de direitos exigíveis é tão importante quanto ter uma estrutura de assistência jurídica
que possibilite sua reivindicação, como a que é – ou deveria ser – fornecida pela Defensoria
Pública. E mais: à dificuldade imposta pela capacidade jurídica pessoal dos cidadãos pode ainda
somar-se um receio quanto à eficiência do Judiciário brasileiro. A Lei Maior consagrou dentre
os “direitos e deveres individuais e coletivos” do art. 5º, no inc. XXVIII, a garantia de que a
todos, no âmbito judicial e administrativo, serão assegurados a razoável duração do processo e
os meios que garantam a celeridade de sua tramitação; entretanto, como já se discutiu ao
mencionar o obstáculo representado pelo tempo de tramitação de um processo judicial, a
celeridade prometida não é alcançada pelo mero acrescer formal de sua garantia.
Sobre a conscientização dos direitos dos indivíduos pelas Defensorias Públicas da União
e dos Estados, interessante notar o disposto na Lei Complementar nº 80 de 1994: “art. 4º São
funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: III – promover a difusão e a
conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico”. Inobstante o
estilo da redação não mereça encômios, o dispositivo estabelece função de importância basilar
para a garantia de efetivo e universal acesso à justiça.
A atuação da Defensoria Pública nesse sentido é mais restrita, mas é possível encontrar
iniciativas interessantes das instituições, tanto no âmbito estadual como na Defensoria Pública
da União. A DPE-PR, por exemplo, a despeito da parca estrutura e organização e do quadro de
defensores extremamente limitado, criou um programa de rádio denominado “É seu Direito”,
cujo “objetivo é levar informações de utilidade pública aos ouvintes, abordando temas de
interesse da população e visando à educação para o Direito, além de fornecer informações e
orientações sobre serviços prestados pela Defensoria no estado”10. A Defensoria Pública do Rio
Grande do Sul possui programa semelhante, veiculado pela internet11.
9
Ibidem, p. 8.
10
Defensoria Pública do Estado do Paraná. Programa de Rádio - É seu Direito. Disponível em:
http://www.defensoriapublica.pr.def.br/modules/debaser2/index.php?audiovideo=1&genreid=1. Acesso em:
15 de outubro de 2016.
11
Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul. Radioweb. Disponível em:
http://www.defensoria.rs.def.br/lista/690/radioweb. Acesso em: 15 de outubro de 2016.
Além destas tentativas de conscientizar a população, o ato de tornar-se acessível e
oferecer auxílio é outra espécie iniciativa acolhida, por exemplo, pela Defensoria Pública do
Rio Grande do Sul, que possui o chamado “Defensoria Itinerante”, que organiza mutirões de
atendimento e de orientação jurídica em cidades do Estado12.
Conclusão
O acesso efetivo e universal à justiça, tal como se imagina que haveria de ser, é um
projeto quase impossível de ser concretizado na prática, e ainda muito distante da realidade
brasileira. Entretanto, embora a pequenos passos, a evolução no atendimento e na organização
das Defensorias Estaduais e da União denota um avanço e uma maior preocupação do Estado
com os hipossuficientes. Conforme divulgado no site da DPU13, no mês de agosto de 2016 havia
619.911 pessoas sendo assistidas pela instituição, e a análise dos meses anteriores aponta o
crescimento constante da procura pela assistência judiciária e extrajudiciária ao longo do ano.
A massificação do acesso à internet e o crescimento dos meios de acesso às fontes de
informação em geral parecem ter auxiliado na conscientização das pessoas sobre seus direitos
e suprido a deficiência do Estado nesse âmbito.
Embora as dificuldades apontadas ao longo do trabalho tenham sido parcialmente
superadas, como tratado, ainda tem-se muito o que melhorar para que uma das garantias
constitucionais mais básicas – o acesso à justiça – seja efetivamente realizada, o que deverá
envolver maior investimento dos Estados e da União nas respectivas Defensorias, o aumento
do quadro de defensores e estruturas adequadas de trabalho.
12
Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul. Mutirões de atendimento e de orientação jurídica
marcam a semana na Defensoria Pública. Disponível em:
http://www.defensoria.rs.def.br/conteudo/27530/mutiroes-de-atendimento-e-de-orientacao-juridica-
marcam-a-semana-na-defensoria-publica. Acesso em: 15 de outubro de 2016.
13
Defensoria Pública da União. Ações e Programas. Disponível em:
http://www.dpu.def.br/images/stories/transparencia/Acoes_programas/2016/08/indicadores_e_metas_agost
o_2016.pdf. Acesso em: 15 de outubro de 2016.