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O papel da Defensoria Pública na garantia de acesso efetivo à justiça

A necessidade de conscientização sobre os direitos

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ao firmar as bases do Estado


Democrático de Direito em nosso país, consagrou uma série de princípios e direitos que
determinava fossem a pedra angular de nossa democracia. A previsão da dignidade da pessoa
humana como um dos fundamentos dessa República, na esteira de outras modernas
constituições, implica na elevação do homem ao centro das preocupações do Estado, dentre as
quais é de grande relevo à garantia de acesso efetivo e universal à justiça.
A solução do constituinte para concretizar tal garantia veio, principalmente, em dois dos
incisos do art. 5º. O primeiro deles, inc. XXXV, assevera que “a lei não excluirá da apreciação
do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, e positiva o princípio da inafastabilidade da
jurisdição; o segundo, inc. LXXIV, afirma que “o Estado prestará assistência jurídica integral
e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”, assegurando aos mais pobres a
possibilidade de ingresso em juízo para a defesa de seus direitos e interesses. De fato, essas
previsões constitucionais são de importância basilar e demonstram a atenção do Direito à
sociedade para a qual se volta, em cujo seio se percebe toda espécie de desigualdade e
fragilidade entre indivíduos, destes perante o grupo, e, em grande parte, em relação ao próprio
Estado. O acesso efetivo e universal à justiça, desta feita, exsurge como premissa lógica da
proteção dos direitos fundamentais individuais e coletivos, especialmente dos menos
favorecidos e mais propensos a sofrer danos.
Nesse sentido, sobreleva o papel desempenhado pela Defensoria Pública. A Emenda
Constitucional nº 80, de 4 de junho de 2014, alterou o art. 134 da Lei Maior, que ficou assim
redigido:

“A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do


Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático,
fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa,
em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma
integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta
Constituição Federal”.

Como se vê, tal e qual o Ministério Público, a Defensoria Pública foi considerada como
essencial à função jurisdicional do Estado, atuando na defesa e promoção dos direitos
fundamentais, individuais e coletivos, dos necessitados, de forma integral e gratuita. A
Defensoria Pública é, portanto, a instituição responsável por levar justiça àqueles que mais dela
carecem, representando um compromisso do Estado brasileiro com aqueles que ordinariamente
ficam à margem da sociedade.
Uma análise estritamente teórica e superficial conduziria à ilação de que, se
corretamente instituída, a Defensoria Pública seria a solução para o problema de
universalização do acesso à justiça; contudo, antes de tal salto dedutivo, impende que sejam
lançadas luzes sobre o significado hodierno e no contexto de um Estado Democrático de
Direito, da expressão acesso efetivo à justiça. Para tal, tomar-se-á como base a obra de Mauro
Cappelletti e Bryant Garth, “Acesso à justiça”.

Acesso efetivo à justiça

Qual o significado de acesso efetivo à justiça? Cappelletti e Garth lembram que, à época
do Estado Liberal burguês, sua concepção era a de que o direito à proteção judicial se limitava
ao direito formal do indivíduo de propor e contestar uma ação. De caráter essencialmente
individualista, vigorava a teoria de que, embora direito natural do indivíduo, o acesso à justiça
prescindia de qualquer interferência estatal, cuja atuação consistia em não permitir a lesão dos
direitos de uns pelos outros. Quem tivesse meios para reconhecer a exigibilidade de seus
direitos e para defendê-los em juízo, que o fizesse 1.
Por óbvio, a posterior percepção de que a inexistência de uma atuação positiva do Estado
para a garantia dos direitos individuais e sociais é o equivalente ao abandono de significativa
parcela da população à própria sorte, e que de nada vale a positivação e o reconhecimento de
direitos sem a instituição de mecanismos adequados à sua realização prática, trouxe uma
enorme mudança de paradigma. Essa ideia é trazida pelos citados autores:

À medida que as sociedades do laissez-faire cresceram em tamanho e complexidade, o


conceito de direitos humanos começou a sofrer uma transformação radical. A partir do
momento em que as ações e relacionamentos assumiram, cada vez mais, caráter mais
coletivo que individual, as sociedades modernas necessariamente deixaram para trás a
visão individualista dos direitos, refletida nas “declarações de direitos”, típicas dos
séculos dezoito e dezenove. O movimento fez-se no sentido de reconhecer os direitos e
deveres sociais dos governos, comunidades, associações e indivíduos. 2

Novamente, conforme a percuciente intelecção de Cappelletti e Garth, se o acesso


efetivo à justiça pode ser visto como requisito fundamental para a concretização de todos os
demais direitos juridicamente exigíveis, então ele pode ser considerado como o mais básico dos
direitos humanos “de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não
apenas proclamar o direito de todos”.3
Embora esclarecedor, elucidar a evolução histórica da garantia nada revela sobre o seu
significado hodierno, senão o sentido que, em decorrência do desenvolvimento da ciência
jurídica e da concepção social e democrática do direito, ela não mais pode possuir. Nessa linha,
é indubitável que o acesso à justiça não há de ser visto como a superada concepção de um direito
formal, cujo conteúdo se circunscreve à propositura de demandas e à sua contestação. Não é
mais dado ao Estado se conduzir como se a igualdade reinasse nas relações sociais apenas

1
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça: Trad. Ellen Grancie Northfleet. Porto Alegre: Fabris,
1988. p. 4.
2
Idem, p. 4.
3
Idem, p. 5.
porque a Constituição assim determina. Sem medidas concretas, prevalece a isonomia formal
que, como se sabe, é a pior das desigualdades.
A garantia de acesso efetivo e universal à justiça deve ser vista como uma situação em
que todos os cidadãos possuam as mesmas condições de reconhecimento e exigibilidade de seus
direitos subjetivos, nas mais diversas áreas em que atuam os homens no meio social e, portanto,
nas várias facetas que assumem na sociedade moderna – consumidor, trabalhador, eleitor,
motorista, empreendedor, estudante etc. A igualdade deve ser tal que o único fator a influenciar
a probabilidade de vitória num processo seja o mérito da demanda, a veracidade dos fatos e a
existência ou não do direito do jurisdicionado4.
Como bem reconhecem Cappelletti e Garth, a utopia do cenário fica evidente.
Desigualdades sempre existirão. É, porém, papel do Estado mitigá-las tanto quanto possível e
buscar a eliminação dos óbices à igualitária distribuição da justiça na sociedade. O constituinte
originário já havia concentrado a maior parcela dessa responsabilidade na Defensoria Pública,
o que apenas veio a ser reforçado com a Emenda Constitucional nº 80/2014, que deu nova
redação ao art. 134 da Carta Magna e trouxe à tona o relevo e a importância de sua atuação para
a promoção dos direitos humanos e a defesa dos necessitados, tanto judicial como
extrajudicialmente.
Mas como pode a Defensoria Pública atuar para assegurar o acesso efetivo à justiça,
entendido como a “paridade de armas” entre as pessoas no que se refere ao reconhecimento e
exigibilidade dos direitos em juízo? A resposta de tal questão deve ser analisada em etapas,
sendo a primeira delas a identificação das circunstâncias impeditivas da distribuição igualitária
da justiça.

Obstáculos ao acesso efetivo à justiça

Cappelletti e Garth reconheceram, em sua obra, vários obstáculos ao acesso efetivo à


justiça, dentre os quais as custas judiciais de modo geral, sua influência particular nas pequenas
causas e o tempo do processo, além das possibilidades das partes5.
As despesas judiciais com que as partes devem arcar possuem um elevado custo no
Brasil. Além das custas com o ajuizamento da ação e as que surgem no curso do procedimento
(como o pagamento do perito, por exemplo), existem os honorários advocatícios, geralmente a
maior despesa da parte no processo, além dos honorários sucumbenciais, risco inerente à toda
pessoa que deduz o direito de que se diz titular à apreciação do Judiciário, e que constitui pesado
encargo imposto à parte vencida no processo. A Defensoria Pública e a concessão do benefício
da assistência judiciária gratuita, ambas previstas constitucionalmente, foram estatuídas tendo
em mente a situação de desvantagem do hipossuficiente que não pode arcar com essas custas.
O que se percebe, porém, é que embora o benefício da gratuidade da justiça seja efetivamente
concedido, no Brasil, a todos que comprovem a falta de condições econômicas de arcar com as
despesas processuais, a Defensoria Pública, responsável pela defesa dos direitos e interesses

4
Ibidem, p. 6.
5
Ibidem, p. 6-9.
dos necessitados perante a Judiciário, nem sempre possui a estrutura adequada para o
atendimento da população.
A Defensoria Pública do Paraná, por exemplo, é uma das Defensorias Públicas
Estaduais (DPEs) com a maior deficiência de pessoal em todo o país. Segundo um levantamento
realizado e divulgado pelo site “Migalhas” em 2016, no Estado do Paraná, há apenas 1 defensor
para cada 106.603 habitantes. No Estado de Goiás, a razão é ainda menor: 1 para cada 152.178
habitantes6. A publicação noticia que o número de defensores públicos aumentou em mais da
metade dos Estados no último ano, mas, como se percebe, os dados mostram que a quantidade
ainda está longe do ideal. À vista desse fato, difícil afirmar que o direito de acesso à justiça está
sendo realmente assegurado.
O segundo óbice identificado por Cappelletti e Garth é a forte influência das despesas
processuais nas pequenas causas. Ocorre amiúde que o valor da causa é inferior ao das custas
judiciais. Ora, ninguém deduziria sua causa em juízo com a perspectiva de sair prejudicado em
razão de o dispêndio com o processo ser maior que o benefício a ser possivelmente auferido.
Tal distorção no sistema relegaria o jurisdicionado ao desamparo pelo Estado: é o equivalente
a negar ao cidadão o direito à reparação do dano contra si perpetrado por outrem. No Brasil, o
corretivo veio com a Lei nº 9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e
possibilitou o processamento célere e barato das causas cujo valor não ultrapasse quarenta
salários mínimos. Há, inclusive, a permissão de demandar sem o acompanhamento de
advogado, nas causas cujo valor não ultrapasse o montante de vinte salários mínimos.
No que se refere ao tempo para a resolução dos conflitos submetidos à análise judicial,
verifica-se um problema de solução mais complexa. Em setembro de 2015, o número de
processos em trâmite na Justiça brasileira ultrapassava a barreira dos 100 milhões7. A
morosidade do Judiciário se deve a uma variada gama de fatores, dentre os quais o elevadíssimo
número de processos se sobressai como um dos principais. A demora na apreciação das causas
pode impor pesadas consequências às partes, mesmo psicológicas, devido à insegurança quanto
ao resultado de seu processo.
Por fim, chega-se a um dos principais obstáculos ao efetivo e universal acesso à justiça:
a possibilidade das partes, conforme denominação utilizada por Cappelletti e Garth e de autoria
do Prof. Marc Galanter8. A possibilidade das partes é um conceito amplo, descritivo da
capacidade jurídica geral das partes, enfocada sob todos os aspectos que possam influenciar no
reconhecimento e sucesso na exigibilidade dos direitos no processo. Assim, o primeiro aspecto
que diferencia dois litigantes são os recursos financeiros de cada um. Aquele que possui meios
para litigar e suportar a demora do litígio e tem clara vantagem sobre os demais, o que fica
acentuado não apenas nas relações interindividuais entre pobres e ricos – que podem, por
exemplo, conseguir melhor representação –, mas entre o indivíduo e grupos econômicos e o
Estado. A vulnerabilidade é tão evidente que exigiu a elaboração de diplomas protetivos, que
buscam compensar a desvantagem econômica com a vantagem jurídica dos hipossuficientes,

6
Migalhas. Número de defensores públicos aumentou em mais da metade dos Estados no último ano. Disponível
em:http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI247049,41046-
Defensoria+publica+de+Mato+Grosso+tem+aumento+significativo+em. Acesso em 15 de outubro de 2016.
7
Consultor Jurídico. Brasil atinge a marca de 100 milhões de processos em tramitação na Justiça. Disponível
em:http://www.conjur.com.br/2015-set-15/brasil-atinge-marca-100-milhoes-processos-tramitacao. Acesso em
15 de outubro de 2016.
8
Ibidem, p. 7.
como o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90). Para além da desigualdade
econômica que diferencia as partes, tem-se a que pode ser vista como, ao lado da ausência de
assistência judiciária adequada e de qualidade, a principal dificuldade para o acesso efetivo à
justiça (paridade de armas): a aptidão para reconhecer um direito e propor uma ação ou sua
defesa9.
Esse óbice é de superação especialmente árdua. Os agentes sociais não diferem apenas
no poder econômico, mas também no nível de educação, em relação ao meio social em que
atuam e status social que possuem e na possibilidade de acesso à informação. O resultado da
combinação desses fatores é a criação de um abismo entre a capacidade das pessoas em
reconhecer seus próprios direitos, e a forma correta de exigi-los.
Se o Estado atribuir ao indivíduo a tarefa de reconhecer seus direitos, estar-se-á
regredindo ao estágio em que se encontrava o acesso à justiça nos Estados Liberais burgueses.
É certo que a esmagadora maioria das pessoas não possuem o conhecimento necessário para a
defesa de seus direitos, e, sob um ponto de vista lógico, reconhecer, nos fatos cotidianos, a
presença de direitos exigíveis é tão importante quanto ter uma estrutura de assistência jurídica
que possibilite sua reivindicação, como a que é – ou deveria ser – fornecida pela Defensoria
Pública. E mais: à dificuldade imposta pela capacidade jurídica pessoal dos cidadãos pode ainda
somar-se um receio quanto à eficiência do Judiciário brasileiro. A Lei Maior consagrou dentre
os “direitos e deveres individuais e coletivos” do art. 5º, no inc. XXVIII, a garantia de que a
todos, no âmbito judicial e administrativo, serão assegurados a razoável duração do processo e
os meios que garantam a celeridade de sua tramitação; entretanto, como já se discutiu ao
mencionar o obstáculo representado pelo tempo de tramitação de um processo judicial, a
celeridade prometida não é alcançada pelo mero acrescer formal de sua garantia.
Sobre a conscientização dos direitos dos indivíduos pelas Defensorias Públicas da União
e dos Estados, interessante notar o disposto na Lei Complementar nº 80 de 1994: “art. 4º São
funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: III – promover a difusão e a
conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico”. Inobstante o
estilo da redação não mereça encômios, o dispositivo estabelece função de importância basilar
para a garantia de efetivo e universal acesso à justiça.
A atuação da Defensoria Pública nesse sentido é mais restrita, mas é possível encontrar
iniciativas interessantes das instituições, tanto no âmbito estadual como na Defensoria Pública
da União. A DPE-PR, por exemplo, a despeito da parca estrutura e organização e do quadro de
defensores extremamente limitado, criou um programa de rádio denominado “É seu Direito”,
cujo “objetivo é levar informações de utilidade pública aos ouvintes, abordando temas de
interesse da população e visando à educação para o Direito, além de fornecer informações e
orientações sobre serviços prestados pela Defensoria no estado”10. A Defensoria Pública do Rio
Grande do Sul possui programa semelhante, veiculado pela internet11.

9
Ibidem, p. 8.
10
Defensoria Pública do Estado do Paraná. Programa de Rádio - É seu Direito. Disponível em:
http://www.defensoriapublica.pr.def.br/modules/debaser2/index.php?audiovideo=1&genreid=1. Acesso em:
15 de outubro de 2016.
11
Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul. Radioweb. Disponível em:
http://www.defensoria.rs.def.br/lista/690/radioweb. Acesso em: 15 de outubro de 2016.
Além destas tentativas de conscientizar a população, o ato de tornar-se acessível e
oferecer auxílio é outra espécie iniciativa acolhida, por exemplo, pela Defensoria Pública do
Rio Grande do Sul, que possui o chamado “Defensoria Itinerante”, que organiza mutirões de
atendimento e de orientação jurídica em cidades do Estado12.

Conclusão

O acesso efetivo e universal à justiça, tal como se imagina que haveria de ser, é um
projeto quase impossível de ser concretizado na prática, e ainda muito distante da realidade
brasileira. Entretanto, embora a pequenos passos, a evolução no atendimento e na organização
das Defensorias Estaduais e da União denota um avanço e uma maior preocupação do Estado
com os hipossuficientes. Conforme divulgado no site da DPU13, no mês de agosto de 2016 havia
619.911 pessoas sendo assistidas pela instituição, e a análise dos meses anteriores aponta o
crescimento constante da procura pela assistência judiciária e extrajudiciária ao longo do ano.
A massificação do acesso à internet e o crescimento dos meios de acesso às fontes de
informação em geral parecem ter auxiliado na conscientização das pessoas sobre seus direitos
e suprido a deficiência do Estado nesse âmbito.
Embora as dificuldades apontadas ao longo do trabalho tenham sido parcialmente
superadas, como tratado, ainda tem-se muito o que melhorar para que uma das garantias
constitucionais mais básicas – o acesso à justiça – seja efetivamente realizada, o que deverá
envolver maior investimento dos Estados e da União nas respectivas Defensorias, o aumento
do quadro de defensores e estruturas adequadas de trabalho.

12
Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul. Mutirões de atendimento e de orientação jurídica
marcam a semana na Defensoria Pública. Disponível em:
http://www.defensoria.rs.def.br/conteudo/27530/mutiroes-de-atendimento-e-de-orientacao-juridica-
marcam-a-semana-na-defensoria-publica. Acesso em: 15 de outubro de 2016.
13
Defensoria Pública da União. Ações e Programas. Disponível em:
http://www.dpu.def.br/images/stories/transparencia/Acoes_programas/2016/08/indicadores_e_metas_agost
o_2016.pdf. Acesso em: 15 de outubro de 2016.

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