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revista AntHropOlógicas

Ano 18, 25(1):195-210, 2014

Ensaio Bibliográfico

Cristianismo e Conversão: uma breve revisão


Cleonardo Mauricio Juniora

(1) ROBBINS, Joel. 2007. “Continuity Thinking and the Prob-


lem of Christian Culture: Belief, Time, and the Anthropology of
Christianity”. Current Anthropology, 48(1):05-381.
(2) ROBERTS, Nathaniel. 2012. “Is conversion a ‘Colonization of
Consciouness’?”. Anthropological Theory, 12(3):271-294.
(3) ENGELKE, Mathew. 2004. “Discontinuity and the Discourse
of Conversion”. Journal of Religion in Africa, 34(1/2):82-119.
(4) COLEMAN, Simon. 2003. “Continuous Conversion? The Re-
thoric, Practice and Rethorical Practice of Charismatic Protestant
Conversion”. In BUCKSER & GLAZIER (eds.). The Anthropology
of Religious Conversion, pp.15-27. Lanham: Rowman & Littlefield
Publishers, inc.

‘Ninguém fala mais de conversão. O assunto do momento é o


trânsito religioso’. A ideia de fazer uma revisão bibliográfica sobre o
tema da conversão surgiu no momento em que tomei conhecimento
desta admoestação, dada por um professor a um estudante que pediu
indicações bibliográficas sobre o assunto. Inspirado na resposta do

a
Doutorando no Programa de Pós-graduação em Antropologia (PPGA) da
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Bolsista do CNPq. E-mail:
cleonardobarros@gmail.com.
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estudante, ‘mas não é o que dizem as pessoas na igreja em que faço


trabalho de campo’, este ensaio bibliográfico (baseado nos quatro arti-
gos apresentados acima) pretende mostrar a importância da categoria
conversão para dar conta do processo vivenciado especificamente por
indivíduos convertidos ao movimento religioso de maior crescimento
no Brasil e que tem se espalhado ao longo do globo: o pentecosta-
lismo. Não se trata, no entanto, de realizar uma revisão exaustiva.
O objetivo aqui é, simplesmente, introduzir o leitor ao debate, apre-
sentar alguns dos principais autores que dominam o tema e apontar
caminhos para quem pretende aprofundar-se no assunto.
O tema da conversão será abordado a partir de um paradigma
específico, a Antropologia do Cristianismo, que aborda o contato de
grupos locais, previamente não cristãos, com os mais variados tipos de
cristianismo. Na maioria das vezes, a variante do cristianismo em ques-
tão é o pentecostalismo. Torna-se também uma das principais metas,
com isso, fornecer uma porta de entrada à Antropologia do Cristia-
nismo para os estudantes de graduação. Uma das grandes dificuldades
em fornecer uma disciplina de Antropologia do Cristianismo para
estes alunos é a grande quantidade de textos na língua inglesa dificul-
tando um primeiro contato adequado com o tema. Espero contribuir
para preencher esta lacuna ao trazer as análises dos autores que apre-
sentarei a seguir.
Escolhi, para tanto, comentar quatro artigos ainda não traduzi-
dos para o português, de autores cujos trabalhos são indispensáveis a
qualquer incursão mais aprofundada à Antropologia do Cristianismo
(principalmente as monografias de três deles: Coleman 2000; Engelke
2007; Robbins 2004), e que deram, além disso, contribuições signifi-
cativas quanto ao tema mais específico da conversão. Os artigos foram
escolhidos também porque cobrem uma extensão etnográfica variada.
Joel Robbins (1), considerado o pai da Antropologia do Cristianismo,
fala dos Urapmin da Papua Nova Guiné e Mathew Engelke (2) dos
Masowe do Zimbabué. Por sua vez, Nathaniel Roberts (3) apresenta
os convertidos ao pentecostalismo nas favelas de Mumbai na Índia,
enquanto Simon Coleman (4) fez seu trabalho de campo na Suécia.
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Antes de passar aos comentários dos artigos, porém, é importante


esclarecer a relação intrínseca entre Antropologia do Cristianismo e o
tema da conversão. Esta se dá pela própria razão de ser deste paradigma,
como nos mostram Mariz & Campos ao definirem a Antropologia do
Cristianismo:
“como uma agenda metodológica que defende a legitimidade do es-
tudo antropológico não apenas das diferentes expressões do cristia-
nismo, como também das rupturas e mudanças culturais que essas
expressões podem ter promovido ou estar promovendo em diferen-
tes contextos sócio-culturais” (Mariz & Campos 2014:193).

Assim, a crítica feita pelos autores que adotam esta agenda, em


geral, diz respeito à incapacidade dos modelos teóricos atuais em per-
ceber mudanças culturais, sendo a conversão uma destas mudanças -
senão a principal. Sobre a conversão especificamente, o que se aponta,
afirmam ainda as autoras, é uma tendência nos trabalhos de cunho
antropológico em “negar (ou não reconhecer) a conversão ao cristia-
nismo dos povos não-ocidentais”, gerando uma incapacidade de “en-
tender discursos e práticas dos cristãos em geral, especialmente dos
novos adeptos” (Mariz & Campos 2014:193). Ao término do ensaio,
a expectativa é que o leitor se dê conta da importância da conversão
tanto como categoria empírica, quanto como categoria analítica.
Trazer à tona os fatores determinantes para a negligência dada ao
Cristianismo como assunto legítimo, bem como às análises dos proces-
sos de mudanças culturais nos trabalhos antropológicos é justamente
a proposta do artigo de Joel Robbins (1), que passo a comentar nesta
breve revisão. Robbins nos mostra que a ausência de importância atri-
buída ao Cristianismo não é apenas um equívoco, mas se trata de uma
negligência ativamente produzida e, para ilustrar seu ponto de vista,
utiliza como exemplo o trabalho dos Comaroff (1991) que trata do
encontro dos Tswana da África do Sul com missionários evangélicos.
Eis a tese geral dos Comaroff, nos diz Robbins: apesar de terem
falhado em ensinar os preceitos cristãos aos Tswana, os missionários
foram bem sucedidos, ainda que inconscientemente, em transmitir
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muitos dos aspectos do capitalismo. Vários fatores teriam sido res-


ponsáveis para que o cristianismo fosse relegado ao segundo plano
na análise deste encontro colonial, seja porque os próprios Tswana ou
não conseguiam entender a mensagem devido à falta de habilidades
linguísticas dos missionários, ou porque, quando a entendiam, rejeita-
vam-na, por considerarem seu conteúdo fundamentalmente antagôni-
co ao seu modo de existência. Uma preocupação inerente à cultura
Tswana com questões práticas, com as coisas deste mundo, teria gera-
do, dizem ainda os autores, um desinteresse pela preocupação com o
transcendente existente no protestantismo.
Além disso, para os Comaroff, os missionários não eram sequer
preocupados com questões teológicas, mas com questões práticas. E
pelo que chamam de ‘razão prática’, os autores se referem, em suma,
à lógica cultural do capitalismo. Era na verdade o capitalismo que
produzia a visão de mundo dos missionários e, portanto, ainda que
professassem sua fé no Evangelho de Jesus, era o Evangelho de Adam
Smith que transmitiam aos Tswana (1:08), uma vez que estes, como
dito anteriormente, afeitos eles mesmos às razões práticas, ou não
compreenderam ou rejeitaram o primeiro.
Robbins aponta como os Comaroff fizeram o cristianismo desa-
parecer da relação entre os missionários e os Tswana quando, mesmo
deixando escapar nos dois volumes de sua obra que alguns converti-
dos abraçaram o cristianismo de forma “ortodoxa”, estes são invisibi-
lizados (não se fala de sua vivência do cristianismo no trabalho). Os
Tswana são declarados como impossibilitados de abraçar uma forma
ortodoxa do cristianismo sem ‘indigenizá-lo’, ou seja, sem transformá
-lo em algo local, a não ser a partir do que definiram como mímica.
Além disso, a abordagem teórica que utilizam entende o Cristianismo
como ‘conteúdo’, e um conteúdo peremptoriamente rejeitado pelos
Tswana, mas que, acompanhado de uma ‘forma’ subjacente de trans-
missão, via preceitos capitalistas, leva à aceitação – inconsciente e for-
çada pelas vias do poder imperial - no cotidiano Tswana. Os Comaroff,

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com isso, afirma Robbins, “erigiram um edifício teórico no qual o


Cristianismo nunca poderia ser cultural” (1:09), apenas um veículo
para transmissão da verdadeira mensagem, o capitalismo.
O propósito de Robbins, não obstante, é mostrar que diminuir
a importância do Cristianismo nos trabalhos não é uma prerrogativa
dos Comaroff, sendo comum na antropologia em geral, por conta
do que chama de um problema na “estrutura profunda da teorização
antropológica” (1:09). Alguns pressupostos teóricos centrais da An-
tropologia, diz ele, são antitéticos com relação ao Cristianismo, e o
núcleo deste problema consiste no fato de que nossa disciplina tem se
apresentado ao longo de sua história como uma ‘ciência da continui-
dade’. Com isso, Robbins quer dizer que os antropólogos:
“têm argumentado ou sugerido que as coisas por eles estudadas –
símbolos, significados, lógicas, estruturas, dinâmicas de poder, etc.
– possuem uma qualidade duradoura e não estão prontamente sujei-
tas à mudança” (1:09)2 3.

Esta tendência em perceber as coisas em termos de continuida-


de está presente na própria noção de cultura como tradição herdada,
direcionando-nos a concluir que as pessoas só têm condições de per-
ceber o novo nos termos de suas categorias culturais herdadas: “Nin-
guém jamais percebe algo como realmente novo” (1:10).
A dificuldade em compreender o processo de conversão pelo qual
passam os novos adeptos dos vários tipos de tradições cristãs, vem, ain-
da segundo Robbins (1), das diferentes, e contrastantes, concepções
acerca do tempo sustentadas pelo cristianismo e pela antropologia. A
noção de tempo no Cristianismo permite o aparecimento de rupturas
no seu fluxo. A conversão é a principal destas rupturas: “Os converti-
dos ao cristianismo representam o processo de tornar-se cristão como
uma mudança radical” (1:11)4. Os Urapmin da Papua Nova Guiné,
por exemplo, nos diz Robbins, afirmam terem vivido da mesma forma
que seus ancestrais até o ano de 1977, quando chegou então o aviva-
mento e eles se tornaram pentecostais. A conversão, assim,
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“não importa quanto tempo se leva para chegar lá, é sempre um


acontecimento, uma ruptura na linha do tempo da vida de uma
pessoa, clivando-a em um antes e depois entre os quais existe um
momento de desconexão” (1:11)5.

Por sua vez, a noção de tempo da Antropologia que dá suporte à


sua ênfase na continuidade, entende-o como homogêneo e no qual
só há lugar para mudanças lentas e graduais: Para a Antropologia, o
tempo “é constante e regular e sustenta um modelo do mundo em que
a continuidade é o pressuposto padrão” (1:12)6. Na medida em que
os cristãos convertidos reivindicam uma absoluta novidade de vida,
estabelece-se, então, um tipo de ruptura que os antropólogos acham
difícil de dar crédito. O maior problema, no entanto, é considerar
sua noção de tempo, des-sacralizada e naturalizada, assim diz Fabian
(1983), como superior ao conhecimento acerca do tempo daqueles
que estudamos. Com isso, os antropólogos passam a considerar a
conversão como algo falso, gerando o que Robbins chama de uma
hermenêutica da suspeita, “através da qual as afirmações das pessoas so-
bre descontinuidades são apresentadas como incorretas, mascarando
continuidades mais fundamentais” (1:12)7.
A partir desta suspeita, Robbins continua, as análises dos quan-
to à conversão geralmente se dão em termos de considerar que não
houve uma mudança de fato na visão de mundo dos convertidos. Em
suma, eles não teriam se convertido de verdade. Segue-se daí que a
justificativa para uma mudança de religião ter acontecido recai, na
maioria das vezes, em questões pragmáticas, como dinheiro e poder.
Além disso,
“estes argumentos afirmam que, embora os convertidos possam vestir
seu discurso e comportamento nas roupas da mudança cristã, debaixo
delas são as mesmas pessoas que perseguem objetivos totalmente reco-
nhecíveis a partir de suas culturas tradicionais” (1:12)8.

Enfim, é possível que os nativos ‘indigenizem’ aspectos de uma


cultura estrangeira, sincretizem, criem híbridos, tão somente partici-
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pem de um trânsito religioso (e de entidades religiosas), mas não que


se convertam.
A crítica aos Comaroff continua sendo um mote no artigo de
Nathaniel Roberts (2). O termo ‘colonização da consciência’ no título
de seu trabalho, que a partir de agora comento, é retirado da mesma
obra dos Comaroff debatida por Robbins em seu artigo (1). Enquanto
Robbins encontra a causa da negligência do tema da descontinuidade
nos trabalhos antropológicos, e consequentemente da conversão, nos
próprios pressupostos teóricos da Antropologia (na ‘estrutura profun-
da da teorização antropológica’), Roberts aponta questões ideológi-
cas para o mesmo problema. Seu objetivo neste trabalho é revelar o
que chama de uma “psicologia moral implicada na ideia de conversão
como colonização da consciência” (2:272). Uma ideia, diz ele ainda,
“enraizada no modelo liberal secular do self e da religião” (2:272)9.
Um dos principais motivos para se igualar o cristianismo a uma
colonização da consciência, continua Roberts, é a intrínseca relação
entre o imperialismo e as missões cristãs. Roberts não nega esta rela-
ção. Seu argumento, no entanto, é que existe uma diferença entre o
fato de que as missões cristãs contribuíram para a colonização e a ideia
de que a conversão em si mesma significa uma forma de colonização,
mesmo quando caminha separadamente de instituições e objetivos
deliberadamente colonizadores.
O modelo de conversão como colonização da consciência enten-
de que converter-se é ceder no que diz respeito aos seus próprios de-
sejos em favor dos desejos de outrem. Ou seja, tal modelo opera nos
termos da perda de autonomia do sujeito convertido. Enfim, afirma
Roberts, tem-se uma concepção de poder como uma força que opera
de fora e subjuga sujeitos anteriormente autônomos. A questão para
este autor não é negar a presença do poder na conversão. Pelo contrá-
rio, Roberts amplia esta concepção. Sendo as subjetividades sempre
formadas por um ou outro regime de relações de poder, a situação pré-
conversão não estaria livre disto, portanto. Com isso, deixa-se de ver
a conversão como uma subordinação de sujeitos previamente autôno-
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mos e passa-se a entendê-la simplesmente como o movimento de um


regime de subjetivação em direção a outro. A concepção de conversão
de Roberts elimina, assim, a existência de um self (pré-converso) de-
tentor de interesses auto-evidentes. Não existe tal coisa, continua o
autor. Interesses só existem em relação a um esquema sócio-cultural
mais amplo e não em si mesmos, ou seja, não são auto-evidentes. Os
interesses de uma pessoa só podem ser determinados pelos valores
organicamente inculcados a partir de seu meio cultural.
A pergunta a ser feita, então, é: “Por que os interesses subjetivos
de uma pessoa em um momento no tempo, no ponto A, são verda-
deiramente dela, enquanto que aqueles concebidos no ponto B não
o são?” (2:276) 10. Tratar valores inculcados no convertido a partir de
seu meio cultural como autenticamente seus, e aqueles que aceita
como resultado de evangelização como ilegítimos simplesmente não
faz sentido. A própria noção de autenticidade cultural precisa ser
questionada aqui (como o é em outras áreas da Antropologia - por
que não quando se trata de conversão?). A questão é que os relatos
sobre conversão como uma forma de conquista estão enraizados em
um universo político moral no qual a autonomia é um valor soberano:
o liberalismo secular. No entanto, a própria produção deste ‘sujeito
autônomo’ nos Estados modernos liberais não deixa de se submeter a
mecanismos de poder; e o Estado, em nome desta autonomia, se utili-
za de formas de poder opressivo, mais ou menos sutis (ver Asad 2003).
O liberalismo secular moderno, paradoxalmente, cria ainda a
concepção de que uma religião, ou crença, é definidora do self mais
profundo de um sujeito. Em outras palavras, lança-se mão de uma
hierarquia de autenticidade no qual o sujeito, ou sua mente, é alte-
rado quando são modificados alguns conteúdos mentais (neste caso,
as crenças), ao passo que a modificação de outros conteúdos não gera
mudanças. Quando esta concepção se une a uma relação intrínseca
entre uma religião majoritária e uma identidade nacional, tem-se que
o indivíduo se afasta da identidade atrelada ao estado-nação quando
se converte e muda de religião. No caso de Roberts, facilmente trans-
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ponível para o caso brasileiro (ver Campos & Mariz 2014; e Motta
2010), movimentos intelectuais hindus esforçam-se em ‘proteger’ os
‘incautos’ convertidos ao pentecostalismo de perderem sua identidade
indiana. Roberts no mostra, no entanto, como os convertidos ao pen-
tecostalismo não se acham menos indianos por conta de sua conver-
são. Não se consideram ocidentalizados. Mohan, um de seus infor-
mantes, lhe diz em uma de suas entrevistas:
“As pessoas que dizem rejeitar o Cristianismo por ser estrangeiro
também rejeitam lâmpadas fluorescentes porque elas vêm do Oci-
dente? Rejeitam andar de avião? Não. Estas coisas pertencem a todo
mundo” (2:278)11.

Aqui está mais uma questão que pode ser colocada na conta de
uma ideologia baseada no secularismo, o status de crença dada à reli-
gião, ao invés do status de conhecimento. Para Mohan, diz Roberts,
“o cristianismo não poderia ser ocidental... porque era verdade – e,
portanto, nunca poderia ser propriedade de alguém ou de algum lu-
gar” (2:278)12. A relação dos convertidos com os ensinamentos cris-
tãos, segundo os próprios convertidos informantes de Roberts, é enca-
rada “não como uma aprovação de um sistema de valor culturamente
específico, mas como o reconhecimento de uma verdade verificável”
(2: 278)13. Em outras palavras, entender o processo de conversão como
conhecimento (e, portanto, como verdade) guia o pesquisador, ao in-
vés de lançar um olhar de suspeição à fala do sujeito de pesquisa,
levá-lo a sério, e ir atrás do processo pelo qual o fiel adquiriu o co-
nhecimento, analisando-o: a frequência aos cultos, os rituais de cura,
as escolas bíblicas, os treinamentos de liderança, o aprendizado das
músicas, entre outros processos entendidos como disciplinas do self
adquiridas pelo convertido.
Compreender a conversão como o alistamento em um regime de
subjetivação em andamento, entrega à noção de conversão uma ideia
de processo. Vê-se aí uma diferença em relação à noção de conver-
são apresentada por Robbins (1). Este último nos apresenta uma rup-
tura imediata e definitiva com o passado apresentada nas narrativas
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dos convertidos na forma de eventos singulares significativos. Quero


apontar que entendo esta diferença – ruptura imediata de um lado,
processo do outro - como sendo entre a conversão como categoria em-
pírica e como categoria analítica. Quando Robbins cita a narrativa de
conversão dos Urapmin a partir da chegada de um avivamento, é da
primeira categoria que ele faz uso. Quando Roberts cita a necessidade
do aprendizado de um ‘domínio corporal’ (bodily mastery) no processo
de conversão, dizendo que tornar-se cristão também exige “desapren-
der todas as formas de hábitos seculares e empreender várias austeri-
dades fisicamente difíceis tais como jejuns regulares e longas sessões
de oração” (2:285)14, requerendo, além disso, uma disciplina mental
rigorosa, refere-se aí a uma categoria analítica. Enfim, Roberts fala
da conversão no sentido de “um compromisso que exige mais com-
promissos” (2:285), como um processo de incorporação (embodiment),
disciplina mental e modelagem de subjetividades.
As noções de conversão como conhecimento, e como processo,
podem ser melhor ilustradas a partir do trabalho de Mathew Engelke
(3). Na igreja Masowe (ou apostólica) weChishanu do Zimbabué, o
processo de conversão tem a ver com a aquisição do que este grupo
chama de mutemo, uma palavra do idioma Shona que, segundo En-
gelke, pode ser traduzido como ‘lei’, mas que os apostólicos (outro
nome para os crentes weChishanu) usam para se referirem ao “co-
nhecimento” (3:85). Mutemo seria, então, uma espécie de critério de
medição da conversão do fiel, um padrão de medida do nível de rom-
pimento com o passado e com a tradição de seus ancestrais (custom),
sendo adquirido a partir da intensidade do envolvimento do crente
nos cultos apostólicos. Ainda que dentre os objetivos deste artigo,
um dos primeiros a serem abordados pelo autor é mostrar como a
conversão se configura nos moldes de uma ruptura com o custom, ou
seja, com a cultura africana tradicional (3:88), pretendo enfatizar sua
ideia de conversão como conhecimento e como um ‘processo do vir-a-
ser’ (process of becoming). Isto por entender que o artigo de Robbins já
nos dá argumentos suficientes sobre a querela da continuidade versus
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descontinuidade. Digno de nota, no entanto, é o fato de Engelke re-


conhecer a possibilidade do que chama de uma dialética entre ques-
tões de continuidade e descontinuidade na narrativa de conversão,
ressaltando somente a importância de lançar luz sobre as questões de
descontinuidade, negligenciada na maioria dos trabalhos. Algo que
Robbins também já havia mencionado em outro trabalho (Bialecki,
Haynes & Robbins 2008).
A conversão entre os weChishanu, assim, nos é apresentada por
Engelke através do acompanhamento da narrativa de Gaylord, um
dos informantes do autor. No caso de Gaylord, a conversão fez com
que ele se livrasse dos espíritos ancestrais que provocaram problemas
no seu trabalho e que impediam a realização de seu casamento (para
os weChishanu, segundo Engelke, uma das principais consequências
da ação dos espíritos ancestrais na vida das pessoas são os problemas
no casamento). Mas até que Gaylord fosse considerado um crente
apostólico pela comunidade, um longo caminho se deu. A igreja we-
Chishanu é relutante em incentivar conversões rápidas, segundo En-
gelke (e Gaylord), as pessoas vão primeiro em busca da resolução de
problemas, principalmente de cura (muteuro). No entanto, para que
os problemas não retornem, é necessário frequentar a igreja de forma
regular. É aí que se inicia a aquisição de mutemo: ouvir e memorizar a
Palavra, aprender como se deve orar e compreender as regras doutriná-
rias a serem seguidas. O suficiente para se tornar ‘como um membro’.
Neste ponto haverá, ainda assim, uma clara diferenciação entre os que
apenas frequentam a igreja, apesar de já saberem se comportar como
membros, e os que se tornaram membros oficiais, principalmente por-
que estes últimos usam vestes brancas para ir ao culto, além de terem
passado pelo ritual da confissão pública de pecados.
Com Gaylord, após um ano frequentando os cultos, é que veio
o convite para que fizesse parte oficialmente da igreja. Enquanto ain-
da era ‘como um membro’, aprendeu, como todos neste estágio, que
“conhecer as regras não é o mesmo que ser Masowe” (3:100). Além
de conversão como conhecimento, Engelke passa a falar, assim, de
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conversão como rito de passagem (valendo-se da obra de Victor Tur-


ner) para nos apresentá-la como transformação, mais próximo do que
Roberts (2) chamou de regime de subjetivação. Assim, apesar de o
processo de conversão Masowe parecer completo a partir do momento
que as vestes brancas passam a ser utilizadas, ser um Masowe e seguir
o mutemo, diz Engelke, é sempre um projeto incompleto, um processo
do vir-a-ser (3:104).
É o mesmo a que se refere Simon Coleman (4) com sua ideia de
‘conversão corntínua’. Significa que “o movimento do self em direção
à convicção carismática é um processo contínuo, embora seja descrito
por uma retórica de transformação espontânea” (4:17)15. Em outras
palavras, esta disjunção entre a experiência da conversão e o processo
de conversão (ao que já me referi como a diferença entre a conversão
como categoria empírica e como categoria analítica) implica que a “efi-
cácia transformativa da conversão” não está confinada ao evento origi-
nal, mas “consiste em uma socialização muito mais gradual e ambígua
em práticas rituais e linguísticas” (4:16).
Já vimos como Roberts (2) fala acerca da conversão como regime
de subjetivação, enquanto Engelke (3) cita os marcos rituais presentes
na conversão Masowe, como a confissão pública de pecados e, marcan-
do a culminância das narrativas, o uso das vestes brancas, formando,
assim, a noção de conversão como um processo do vir-a-ser. Mas como
os fieis internalizam as práticas rituais e linguísticas do pentecosta-
lismo? O trabalho de Coleman entre os crentes da Word of Life em
Uppsala, na Suécia, ajuda a esclarecer. Em sua etnografia sobre a Word
of Life, Coleman (2000) apresenta o que chama de habitus carismático
como sendo formado por quatro práticas: internalização, externaliza-
ção, dramatização e acomodação narrativa. A internalização refere-se ao
fato de que “os fiéis não consideram estar interpretando a Bíblia ou os
sermões inspirados, mas que os estão recebendo” (Coleman 2000:127).
Neste sentido “o texto é incorporado (embodied) na pessoa, transfor-
mando-a numa representação, que anda e fala, deste poder” (Coleman
2000:128). Daí, seguem a dramatização e a acomodação narrativa que
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consistem na representação dramática dos textos bíblicos na vida coti-


diana do fiel, utilizando-se da Bíblia como um script, tentando, assim,
acomodar sua vida nas narrativas contidas nas Escrituras. Por fim, a
externalização é o momento em que “pode se dar vida à Palavra, na
medida em que a linguagem é externalizada do falante e se transforma
em sinais físicos da presença do poder sagrado” (Coleman 2000:131).
Esta última prática que compõe o habitus carismático ganha des-
taque no processo de conversão relatado por Coleman neste trabalho
(4). Ele nos mostra que estender seu self no mundo (reaching out into
the world) é uma ação auto-constitutiva do crente carismático. Exten-
der-se em direção ao outro, geralmente no ato de “dar uma palavra”,
seja no proselitismo que visa alcançar os não-crentes, seja nas palavras
proféticas direcionadas aos irmãos de fé, portanto, é um ato primor-
dial no processo de modelagem das subjetividades dos fieis. Enfim, o
crente pentecostal entende-se e é entendido como pessoa pentecostal
na medida em que se engaja nestas ações16. A evangelização, assim,
não se trata apenas de tentar trazer pessoas para a igreja, “mas também
– e talvez principalmente – consiste em recriar e re-converter o self
carismático” (4:17) 17 e, também, de prestar contas desta conversão à
comunidade pentecostal na qual se está engajado. Sendo assim, as prá-
ticas e rituais pentecostais tem um aspecto conversionista, no sentido
de que continuamente operam no sentido de modelar as subjetivida-
des dos fieis de acordo com a representação ideal do crente virtuoso.

Considerações finais
Ao longo deste trabalho, comecei mostrando como Robbins (1)
apresenta os motivos pelos quais o conceito de conversão tem sido ne-
gligenciado: principalmente devido a uma hermenêutica da suspeita
levada a cabo pela maioria dos pesquisadores, e pelo foco da teoria
antropológica na continuidade em detrimento das mudanças cultu-
rais. Depois, mostrei como os autores escolhidos para compor este
ensaio bibliográfico entendem a noção de conversão. Como categoria
empírica, então, a conversão se apresenta nas narrativas dos fieis como
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uma ruptura imediata e definitiva com uma vida anterior, geralmente


na forma de uma experiência transcendental ocorrida em um evento
específico e singular (1). Já como categoria analítica, conversão pode
ser considerada como um processo baseado em um vir-a-ser contínuo
(3, 4), um regime de subjetivação (2) que resulta na constituição do
self carismático pentecostal. Assim, a partir dos trabalhos escolhidos,
espero ter realçado a importância da categoria conversão para analisar-
mos as descontinuidades ressaltadas pelos pentecostais em suas expe-
riências de adesão e vivência neste movimento religioso de crescimen-
to sem precedentes ao longo globo. Espero, por fim, ter contribuído
com os interessados no tema da conversão que, como o aluno citado
no início deste ensaio, decidiram ir além do ‘assunto do momento’ na
antropologia brasileira quando se trata da adesão ao pentecostalismo.
Se a conversão não é importante para analisarmos este fenômeno, não
é isto o que dizem nossos informantes, nem os autores aqui apresen-
tados.

Notas
1
Os artigos a serem comentados neste ensaio bibliográfico estão aqui dispostos na
ordem em que aparecerão ao longo do texto e serão citados conforme a numeração
aqui atribuída. Outros trabalhos serão citados como apoio aos argumentos levan-
tados ao longo do texto, mas suas referências serão apresentadas nas referências
bibliográficas.
2
“…cultural anthropologists have for the most part either argued or implied that
the things they study—symbols, meanings, logics, structures, power dynamics, etc.—
have an enduring quality and are not readily subject to change” (1:09).
3
Todas as traduções de trechos dos artigos foram feitas pelo ensaísta.
4
“Christian converts tend to represent the process of becoming Christian as one
of radical change” (1:11).
5
“… however long it takes to get there, is always an event, a rupture in the time
line of a person’s life that cleaves it into a before and after between which there is a
moment of disconnection” (1:12).
6
“It is steady and regular and supports a model of the world in which continuity
is the default assumption” (1:12).

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Ensaio Bibliográfico

7
“… by means of which people’s claims to discontinuity are shown to be incorrect
and to mask more fundamental continuities” (1:12).
8
“these arguments assert that, while converts may dress up their speech and behav-
ior in the clothes of Christian change, underneath them they are the same people
pursuing goals fully recognizable from within their traditional cultures” (1:12).
9
“... unpack the moral psychology implied in the idea that conversion is a ‘colo-
nization of consciousness’, an idea I argue is rooted in a secular liberal model of the
self and of religion” (2:272).
10
“why her subjective interests at one moment in time, point A, are truly ‘her own’
whereas those she conceives at point B are not” (2:276).
11
“‘Do [people who reject Christianity as foreign] also reject tube lights because
they come from the West?’ he laughed, ‘do they refuse to believe in airplanes? No!
These things belong to everyone’. Christianity could not be western, according to
Mohan, because it was true – and therefore could never be the property of any one
people or place” (2:278).
12
“Christianity could not be western, according to Mohan, because it was true –
and therefore could never be the property of any one people or place” (2:278)
13
“Like other Pentecostals I interacted with Mohan understood his relationship to
Christian teachings not as the assent to a culturally-specific value system, but as the
recognition of verifiable truth” (2:278).
14
“Being a Christian in this context also entailed unlearning all manner of worldly
habits and undertaking various physically difficult austerities such as regular fasting
and lengthy prayer sessions.” (2:285)
15
“It can imply that movement of the self toward charismatic conviction is an
ongoing process, albeit one described by a rhetoric of spontaneous transformation”
(4:17).
16
Ver Campos & Mauricio Junior (2012, 2013) para um detalhamento do processo
de modelagem de subjetividades dos crentes da Assembleia de Deus. Para uma etno-
grafia do processo de constituição do líder carismático, ver Mauricio Junior (2014)
17
“Missionization is not merely a matter of attempting to transform the potential
convert, but also-perhaps even primarily means of recreating or reconverting the
charismatic self” (4:17).

Referências

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BIALECKI, John, HAYNES, Naomy & ROBBINS, Joel. 2008. “The Anthropology
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sais da Palavra: Emoções e corpo na trajetória espiritual dos crentes da Assem-
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MAURICIO JUNIOR, Cleonardo. 2014. “Vasos nas mãos do Oleiro: A constitui-
ção do pastor pentecostal”. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Gradua-
ção em Antropologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife.
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e Ressignificação da Religião Afro-Brasileira pela Ciência Social”. In PASSOS,
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sity of California Press.

Recebido em dezembro de 2014.


Aprovado em dezembro de 2014.

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