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10. Mídias contemporâneas e democracias

Há uma grande quantidade de escritos sobre o impacto das tecnologias da informação e das
telecomunicações sobre a vida pessoal, política e social nos séculos XX e XXI. Manuel Castells,
por exemplo, considera que essas tecnologias são plataformas para produzir novas formas de
atividade econômica, social e política. Afirmou-se, inclusive, a existência de uma cultura política
relacionada à cibercultura, onde o horizonte do político, as expectativas e relações sociais são
guiadas pelo modo como a informação circula nesses meios. Todavia, a sensação é que essas novas
tecnologias mudaram profundamente a política e, desde então, ela jamais voltará a ser o que foi.
Por exemplo, as transformações introduzidas pelas tecnologias da informação e das
telecomunicações no conceito de cidadania e nas formas de participação política das pessoas e dos
movimentos sociais são tão variadas que seria impossível neste espaço dar conta delas. Contudo, há
que ressaltar que a maior parte desses trabalhos concentra-se sobre a realidade de países centrais
onde o acesso a essas tecnologias é mais disseminado.
Ainda assim, em regiões como a América Latina, segundo María Helena Botero e Luis
Alberto Cardozo Ospina, as tecnologias da informação, mediadas pelo uso do computador e, cada
vez mais, pelo uso de dispositivos móveis, alteraram as formas do exercício da cidadania. Isso
ampliou os espectros de participação política, sobretudo no que diz respeito às associações e
organizações de manifestações sociais. Porém, em questões como a secularização, a legalidade, a
pluralidade e a transparência das autoridades, as tecnologias da informação não tiveram o mesmo
impacto. Devido a isto, entra em jogo a saúde dos sistemas democráticos que dependem mais de
fatores tangíveis e do acesso a direitos econômicos e sociais do que unicamente da mobilização de
pessoas e movimentos sociais.
De um lado, enfatiza-se o discurso democrático e a defesa do que Hannah Arendt, em A
condição humana, chamou de vita activa, principalmente na atividade da ação que acontece sem a
relação das coisas ou matérias. Assim, a tecnologia da informação pareceu universalizar ainda mais
o respeito aos direitos humanos, ao estado democrático de direito e à diversidade cultural,
imprimindo-os num imaginário coletivo e global.
É o caso dos movimentos de caráter global que mobilizam cidadãos em diversos países
igualmente afetados pelo funcionamento da economia globalizada. Um exemplo é o 15M que teve
resposta simultânea na Espanha, nos Estados Unidos, na França e em outros países europeus
afetados pela crise econômica de 2008. Esse movimento que surgiu na Espanha, em meados de
2011, procurou afastar-se do bipartidarismo tradicional e buscar por meio de ações políticas não
violentas transformar o exercício da democracia.
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Esse novo tipo de exercício político, segundo Martín Hopenhayn, redefiniu-se a partir da
descentralização e da autoafirmação diferenciante dos sujeitos. Descentralização porque as políticas
de cidadania não direcionam o Estado ou o sistema político como eixos de luta, mas encontra-se
disseminada por inúmeros campos de atuação, de espaços de negociação de conflito e
interlocutores. Diante da incapacidade do Estado em agir, os cidadãos buscam uma forma de
empoderamento global oferecido pelo “poder eletrônico”. Por exemplo, os índios guarani-kaiowá
que usaram a internet para denunciar seus problemas e que, mediante a petição on-line no avaaz.org
conseguiram pautar suas revindicações.
Todavia, isso revela um paradoxo entre a integração simbólica e desintegração material. Há
um sentimento de pertencimento a uma “comunidade global”, experimentado pelos cidadãos que
podem interagir e integrar-se com outros grupos através das redes e das comunicações mediadas
pelo computador, mas também há uma desintegração material quando outros cidadãos são excluídos
dos benefícios proporcionados pelo crescimento material e da economia globalizada quando são
afetados, por exemplo, pelo desemprego, pela pobreza e pela dificuldade em acessar serviços
básicos. Ou seja, segundo diferentes perspectivas sobre esse assunto, como as de Anthony
Giddens, José Maurício Domingues e Marshall Bermann, era esperado que a modernidade
pudesse associar as integrações simbólicas e materiais, nas quais a educação, a moradia, a saúde e o
emprego digno viriam acompanhados de maior mobilidade social, participação política e
interconexões culturais. Esperava-se, aliás, que o consumo estendesse o acesso da população à
leitura, à escritura e ao uso dos espaços públicos de opinião.
Assim, se a democracia quer concretizar esses elementos e aumentar a pluralidade, é
necessário dar voz a diferentes atores e prescrever normas de reciprocidade que tratem da justiça,
dos serviços sociais e dos meios de comunicação. Contudo, neste início de século XXI, o que
acontece é a dispersão dos atos políticos e das reivindicações por cidadania que andam juntas com
proliferação das demandas. O descontentamento com o sistema político e os partidos fez com que
os cidadãos buscassem meios de deliberar sem necessariamente prescindir das formas tradicionais.
Muda-se o conceito de poliarquia, tal como Robert Dahl formulou ao descrever que as
regras, as práticas e a cultura das formas de ação política desenvolvem-se primeiro entre uma
pequena elite antes de estenderem-se para toda a população. Até então, devido as condições
materiais, era impossível exercer a democracia tal como pensada originalmente. Todavia, por causa
dos avanços nas tecnologias de informação e comunicação, os cidadãos descobriram que não
precisam que seus interesses sejam mediados pela elite. Entretanto, essa descoberta não é equânime,
pois nem todos podem usufruir dessa participação política.
Como aponta Néstor García Canclini, foi o crescimento das tecnologias audiovisuais de
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comunicação que tornaram patentes o modo como, desde o século XX, desenvolveram-se o espaço
público e o exercício da cidadania. Entretanto, esses meios eletrônicos que colocaram as massas na
esfera pública foram movendo o exercício da cidadania para as práticas de consumo.
Estabeleceram-se outros modos de informar-se, de entender a comunidade a que se pertence e de
conceber e exercer os direitos. Desiludidos com as burocracias, os públicos apelaram, primeiro,
para o rádio e para a televisão e, depois, para a internet para conseguir o que as instituições não lhes
oferecem: serviços, justiça ou simplesmente atenção.
Deste modo, se a cidadania é o sustento das democracias contemporâneas, é necessário que
haja um alto grau de homogeneidade jurídica e de afinidade cultural. Está em jogo uma identidade
vinculada à coisa pública, que exige esforço pessoal e disposição para construir uma forma baseada
na dignidade e no direito a todos. A democracia participativa, aliás, depende de cidadãos proativos
que intervenham na esfera pública, sem necessariamente serem políticos profissionais.
Assumindo a importância dessa participação, pode-se defini-la, segundo Fabio Velazquez e
Esperanza Gonzales, como uma forma de participação individual ou coletiva que implica esforço
racional e intencional de um indivíduo ou grupo em busca de objetivos específicos através de uma
conduta cooperativa. Porém, essa definição formal não dá conta de realidades em que a participação
política é limitada.
Por exemplo, numa atmosfera como a criada pelas políticas neoliberais, os trabalhadores e as
classes médias, cada vez mais sentiram-se abandonados e desacreditados. Isso, como mostrou
Tatiana Poggi, em Faces do extremo, abriu precedentes para que, na falta de um horizonte político
comum, esses grupos se unissem através do ódio e do ressentimento. É em cenários como esse,
principalmente nos Estados Unidos dos anos 1980 e 1990, que a ideologia neonazista e reafirmação
da superioridade racial reapareceram com força. Assim, embora a internet tenha ampliado o acesso
à política, também abriu espaço, como salienta Dilton Maynardi, em “Ciberespaço e extremismos
políticos no século XXI”, para o fascismo contemporâneo, isto é, o neofascismo, que se mantém
ativo através de coletivos virtuais que trabalham para divulgar a mensagem e a concepção de
mundo fascistas na internet.
Como mostrou Richard Clarke, em Cyberwar, desde que as primeiras mídias sociais de
maior abrangência apareceram, por volta de 2003, um conjunto de elementos simbólicos e políticos
foi ressignificado. Poderíamos citar os exemplos de presidentes como Barack Obama, Donald
Trump e Hugo Chávez (1954-2013) que usaram redes sociais como Facebook e Twitter para
comunicar-se com o grande público. Não à toa, devido a importância que Internet adquiriu, vários
países criaram “cibercomandos”, verdadeiros centros dedicados ao combate e à defesa contra
ciberguerras e à criação de estratégias para pensar e articular a ação no mundo virtal. Além disso,
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episódios como os da “primavera árabe” evidenciam a importância da rede mundial de


computadores para a circulação de informações e mobilização de pessoas.
Do mesmo modo que ampliou o acesso à participação política, a internet também abriu espaço
para a extrema-direita que soube usar o ativismo de modo pioneiro. Ainda nos primeiros anos da
Internet comercial, em 1996, o “Times” já noticiava as páginas do ódio em ascensão. Com a
ocupação do ciberespaço, era possível evitar o muitas vezes perigoso contato frente-a-frente. James
Ridgeway, em Blood in the face, mostra que na era da comunicação eletrônica o contato físico tem
pouca importância, inclusive, para formação de alianças internacionais, pois como grupos
domésticos, elas usam a internet como espaço de discussão e divulgação de suas ideias.
David Talbot, em “Terror’s server”, também salienta a importância da internet para os
atentados de 11 de Setembro de 2001, que inauguraram uma nova face do terrorismo, antes
conhecida apenas pelas agências de espionagem. Organizações não-lineares, com ativistas atuando
em um modelo de dispersão, dentro da concepção de “lobos solitários”, dificultavam o rastreamento
das parcerias e a identificação da hierarquia em grupos como a Al Qaeda. Os sequestradores dos
aviões da American Air Lines e da United Airlines utilizaram recursos como e-mails e salas de
chats para articularem o atentado, bem como pesquisaram na internet sobre os alvos a serem
atingidos. Como observou o autor, a internet não é apenas uma ferramenta usada pelas organizações
terroristas, ela é fundamental para suas operações.
Contudo, considerando que a internet não tem uma ideologia particular, nota-se que ela é
apropriada de acordo com os interesses de cada grupo. Desse modo, se no início dos anos 1990
havia um otimismo em relação a ela e seu potencial democratizador, no século XXI as questões
inverteram-se, pois há um pessimismo e a sensação de que as redes sociais destroem a democracia
tal como a entendemos.
Yuval Noah Arari, em 21 lições para o século XXI, tenta oferecer algumas respostas para
eventos como a ascensão de Donald Trump, a epidemia de fake news e para a crise da democracia
liberal e outros elementos citados acima. Assim, segundo o autor, parecia que no final do século XX
valores como democracia, direitos humanos e capitalismo de livre mercado estavam destinados a
triunfar, mas essa segunda década do século XXI prova que eles estão, no mínimo, emperrados.
Tais valores não apenas perderam credibilidade, mas estão em risco devido aos impactos
causados pelas revoluções gêmeas da tecnologia da informação e da biogenética que podem, ao
mesmo tempo, expulsar milhares de humanos do mercado de trabalho e destruir a liberdade e a
igualdade. Isso ocorreria, segundo o autor, porque os algorítimos de Big Data, além de manipular
grandes quantidades de informação de uma única vez, poderiam criar ditaduras digitais onde o
poder estaria concentrado nas mãos de uma pequena elite enquanto a maior parte das pessoas
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sofreria não em virtude da exploração, mas da irrelevância.


Em 2016, por exemplo, com a subida de Trump ao poder e com o triunfo do Brexit, a
democracia tal como entendemos pareceu entrar em crise e estar mais próxima do autoritarismo.
Devido ao modo como a informação tem circulado, principalmente através de redes sociais, esses
eventos ganharam proporções gigantescas e puseram fim àquela ideia dos anos 1990, em que
pensadores como Francis Fukuyama anunciavam não apenas o fim da história, mas o triunfo do
estado liberal como única solução política disponível. Isso coloca a questão de que a tecnologia
poderia estabelecer um regime baseado na manipulação de informações pelo Big Data e solapar as
liberdades individuais.
Nesse sentido, Steve Levitsky e Daniel Ziblatt, em Como morrem as democracias,
estudaram os processos de subversão das democracias no mundo, mas enfatizando esse processo a
partir das eleições de Donald Trump. Segundo os autores, o retrocesso democrático hoje começaria
pelas urnas e não mais nos moldes clássicos, como o golpe que derrubou Allende no Chile em 1973.
Deste modo, o que eles evidenciam é uma crise do sistema político em conter candidatos que
subvertem as regras do jogo democrático. No caso de Trump, sua vitória foi viabilizada não apenas
pela insatisfação das pessoas, mas porque o Partido Republicano não impediu que alguém como ele,
que distorce a realidade e os fatos, fosse indicado.
Nesse sentido, a internet, assim como outras tecnologias, tem criado desafios para a história e
outras ciências humanas que, agora, devem familiarizar-se com o universo digital. Políticos da extrema-
direita, por exemplo, decidiram travar uma guerra contra a história e a memória, pois para eles
normalizarem o perigo político que representam é necessário neutralizar o perigo político do passado.
Por exemplo, quando o presidente Jair Bolsonaro afirma a falsa ideia de que o partido nazista foi
de esquerda e que as pessoas podem perdoar os nazistas pelos seus atos não está apenas entrando no
campo do historiador, que estuda o passado, mas está modulando uma visão de futuro. Ele, na verdade,
é só mais um exemplo de como os novos líderes populistas têm brincado com a memória para dizimar
as experiências das vítimas e os registros históricos a fim de obter capital político. Outro exemplo é que
ao conversar Viktor Orban, líder autocrático e racista da Hungria, disse que o povo brasileiro não sabe o
que é uma ditadura, sugerindo que durante 1964 e 1985 o país não viveu sob um regime desse tipo.
Bolsonaro, talvez, almeje vincular seu governo às ditaduras latino-americanas e criar um mito, uma era
de ouro, das ditaduras na América Latina. Porém, para que isso seja feito, é necessário inverter o regime
de verdade estabelecido.
É nesse aspecto que Matthew D’ancona, em Pós-verdade: a nova guerra contra os fatos em
tempos de fake news, alega que agora não é mais a desonestidade dos políticos que abala o sistema, mas
a resposta que o público dá em relação a isso. Numa época onde a mentira suplanta facilmente a
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verdade, as fundações da democracia e do mundo como conhecemos estão comprometidas. Assim, o


conceito de pós-verdade está vinculado ao fenômeno que as novas mídias e tecnologias têm de
manipular, polarizar e se enraizar uma opinião que não é necessariamente real. Ou seja, crenças e
ideologias parecem ter mais efeito do que fatos objetivos. É assim que o autor convoca ao contra-ataque,
em vez da resignação.
David Van Reybrouck, também é outro autor que sustenta a hipótese de que a democracia
está mal. Descreve, inclusive, quase os mesmos sintomas que D’ancona: surgimento de líderes
populistas, desconfiança generalizada no establishment, disputas de personalidade e “curtidas” no
lugar de debates ponderados, slogans em vez de análises. Assim, em Against elections, o autor
estabelece um novo diagnóstico e sugere um antigo remédio. Relembrando que no passado o
propósito original das eleições era excluir o povo do poder e nomear uma elite para governá-lo, o
autor demonstra que, com o tempo, seu efeito reduziu a participação popular nos governos a um
mínimo absoluto, garantindo que o poder permanecesse nas mãos daqueles que já o exerciam e
forçando políticos a tomar decisões não pelo mérito, mas pela probabilidade de vencer ou perder
votos. Por esse caminho, as eleições vão bem. Contudo, ao estudar 3000 anos de história da
democracia, o autor demonstra que a maior parte dos governos não foram escolhidos pelo voto e
pela eleição: eles foram nomeados, assim como o sistema de júri, formado a partir da combinação
de voluntariado e loteria. Com base nesse estudo, um conjunto internacional de evidências e um
número crescente de testes bem-sucedidos, sugere e demonstra como uma versão sofisticada e
prática desse antigo sistema funcionaria hoje e, assim, eliminaria a causa subjacente da doença da
democracia causada, sobretudo, pelo advento dos meios de comunicação eletrônico e digital.
O último ponto que gostaria de elencar, mas não menos importante, é que atualmente o Estado
nacional, que durante os séculos XIX e XX foi a unidade política mais importante, necessita se
reinventar devido a essas novas tecnologias. Mais uma vez, como mostrou Manuel Castells, a
sociedade formada pelas redes é uma sociedade global porque as redes não têm fronteiras. Devido a
essa a transformação, o espaço torna-se uma dimensão fundamental dessas novas estruturas. O
processo global de urbanização nesse início do século XXI é caracterizado pela formação de uma
nova arquitetura espacial composta, sobretudo, de redes globais que conectam as principais regiões
metropolitanas e suas áreas de influência. Uma vez que a forma de articulação dos arranjos
territoriais também se estende à estrutura intrametropolitana, nossa compreensão da urbanização
contemporânea deve começar com o estudo dessas dinâmicas de redes tanto nos territórios que
estão incluídos nas redes quanto nas localidades excluídas da lógica de integração dominante do
espaço global.
Assim, como mostraram Thiago Lima Nicodemo e Oldimar Pontes Cardoso, em Meta-história
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para robôs, desde a década de 1950 a cibernética tem sido uma ameaça para o trabalho, a ética humana e
a inteligência. Contudo, nem a internet, nem os robôs, criaram a civilização ou tentaram destruí-la,
como foi feito tantas vezes na ficção e até mesmo na realidade. De fato, o uso da inteligência artificial
coloca tudo numa escala ainda pouco conhecida para nós, incluindo a desigualdade, a concentração de
renda e outros monopólios. Todavia, o que dirá se as redes sociais e outras mídias são boas ou ruins é a
maneira como as utilizamos.

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