Você está na página 1de 6

O VALOR DA GEOGRAFIA NOS ANOS INICIAIS

Roberto Filizola

A presença da Geografia Escolar nos programas de ensino no Brasil remonta à


primeira metade do século XIX. Uma existência tão longa nos sugere alguns
questionamentos: que motivos a mantém, durante tanto tempo, sendo ministrada nos
espaços escolares? Qual a razão de sua presença no currículo? Nos dias de hoje, sua
presença ainda se justifica? Talvez essa última indagação seja um interessante fio
condutor de nossas reflexões.
Nunca é demais recordar que a Geografia Escolar, no Brasil ou noutros países, foi
introduzida no currículo das escolas primária ou secundária para desempenhar um papel
diretamente associado à classe dirigente: incutir nas novas gerações a ideologia do
nacionalismo patriótico. Isso porque, no entender da classe dirigente, era necessária a
construção da nação, ou seja, de um sentimento de pertencimento a um território e um
povo comuns, que compartilhassem de um mesmo passado, de uma história que fosse
reconhecida por todos. Pense no caso do Brasil: quem, de fato, sentia-se brasileiro em
finais do século XIX e princípios do XX? Recorde-se que àquela época, o país começava
a receber imigrantes de um sem-número de nacionalidades. Além disso, residia em solo
brasileiro uma população não desprezível de africanos e afro-descendentes, afora a
população nativa indígena. Insistimos: quem se sentia brasileiro?
Foi no contexto do projeto de construção da nação que a escola desempenhou um
expressivo papel na reprodução da cultura, na difusão da ideia de Pátria. O ensino de
uma língua oficial, bem com de uma história e de uma geografia que espelhassem o
ponto de vista da classe dominante foi uma das formas de o Estado impor valores e
referências para o conjunto da população. A Igreja, e também os meios de comunicação
participavam ativamente dessa empreitada.
É importante assinalar que, nesse contexto, os conteúdos a serem ensinados
tinham por finalidade consolidar a ideia e o sentimento de uma pátria una e indivisível. Daí
que as crianças e os jovens eram praticamente obrigados a lidar tão somente com os
nomes de rios, de montes, de capitais estaduais, além de terem que ter na ponta da
língua informações a exemplo de dados estatísticos dos principais produtores
agropastoris, de matérias-primas, de produtos industrializados, entre outros. Dentre as


Professor da Universidade Federal do Paraná, é co-autor da obra Teoria e Prática do Ensino de
Geografia (FTD, 2010).
atividades, predominavam a cópia quase mecânica de mapas e os questionários a serem
memorizados.
Quer nos parecer que essa finalidade do ensino da Geografia foi atendida e com
relativo sucesso. As pessoas em geral reconhecem a importância da disciplina e justificam
sua presença no currículo escolar. Contudo, e diante do fato de todos nos sentirmos
brasileiros, a função patriótica da Geografia Escolar torna-se secundária. Até porque,
outros meios realizam essa função. Basta apontar a maneira como certos comentaristas
de emissoras de rádio e TV narram as vitórias brasileiras e de brasileiros em competições
de futebol, fórmula um, olimpíadas, etc. Assim, diante dessa realidade, qual é a finalidade
de se ensinar Geografia em pleno século XXI? Qual o valor da disciplina na
contemporaneidade?
A Geografia lida com localizações, não resta dúvida. De fato, desde a Antiguidade
Clássica, quando os gregos criaram o termo geografia atribuindo-lhe o sentido de escrita
da terra, a pergunta onde? acompanha as investigações geográficas. Buscando dar
significado às localizações, segue-se à essa uma outra questão: por que aqui e não
noutro lugar? Uma terceira indagação e eis que o olhar geográfico começa a apresentar
contornos mais definitivos: por que as coisas encontram-se distribuídas dessa
maneira sobre a superfície terrestre? Na realidade essas questões fazem parte dos
problemas geográficos, ou melhor, são utilizadas para pensá-los na busca de suas
soluções. Levantar problemas geográficos e analisá-los demanda, portanto, um olhar e,
sobretudo, um raciocínio geográfico.
Portanto, uma função, digamos nobre da Geografia Escolar repousa no
desenvolvimento do raciocínio geográfico e na formação de uma consciência espacial. O
desenvolvimento e a formação de ambos pode se dar concomitantemente, e contribuem
para um pensar o espaço e nele sentir-se bem. Isso significa dizer saber dominar as
direções, localizar-se, deslocar-se com segurança sem se perder, perceber as relações
entre as partes e destas com o todo. É, ainda, saber ler e interpretar o espaço e suas
manifestações: a paisagem, o lugar, o território. Por que existem desertos e áreas
polares? Até onde se estende a Amazônia? O que leva as pessoas a estabelecerem
vínculos afetivos com determinadas parcelas do espaço? Qual a razão de determinados
grupos humanos se apossarem individualmente de espaços que são tidos como públicos?
O mundo em que vivemos pode prescindir das fronteiras?
Ao que tudo indica, a Geografia nos Anos Iniciais possui um valor expressivo na
formação da consciência espacial. Nesse caso, trata-se de assegurar às crianças uma
verdadeira vivência conceitual do lugar, do território e da paisagem, de tal modo que
sejam identificados e reconhecidos, ou seja, apropriados pelos alunos. Vale a pena
destacar que a formação da consciência espacial deita raízes nos primeiros tempos de
existência do indivíduo, e amadurece à medida em que são desenvolvidas as relações
espaciais topológicas, euclidianas e projetivas. Acrescente-se a isso a tomada de
consciência do esquema corporal.
Ora, como bem sabemos, a escola é um espaço onde a criança interage com
outras pessoas e uma enormidade de situações que permitem desenvolver noções
espaciais. Afinal, a criança e seu corpo, ela e o seu movimento pelos quatro cantos do
ambiente escolar, muitas vezes envolvida com a brincadeira e o jogo, com o lúdico e o
aprender, desenvolve tais noções e promove a descentração, superando o egocentrismo,
formando um ponto de vista mais objetivo da realidade. No processo de análise do
espaço consegue, então, individualizar seus elementos, localizando-os e relacionando-os
entre si e com o todo. Noções tais como as de dentro, fora, no interior, no exterior, limite,
periferia, centro, extremidade, dentre outras, são estabelecidas. Além disso, a criança
desenvolve a lateralidade, distinguindo direita e esquerda.
Tomando-se como referência o desenvolvimento do raciocínio geográfico e a
formação de uma consciência espacial, objetivos mais refinados podem ser estabelecidos
para a definição dos conteúdos geográficos. Eis algumas sugestões:
 Preparar para um agir cotidianamente, de forma consciente, relacionado aos
deslocamentos pelo espaço geográfico, ao circular com segurança, ao viajar.
Envolve, também, a compreensão das informações veiculadas pela mídia e
uma demonstração de interesse e preocupação pelo ambiente e pela
alteridade;
 Preparar para o entendimento das localizações, o que implica em saber
situar e situar-se no espaço, seja por meio de mapas ou usando os referenciais
da paisagem e do lugar. É nesse ponto que se evidencia o processo de
alfabetização cartográfica e geográfica;
 Proporcionar a aquisição de conhecimentos básicos seja da superfície
terrestre ou das sociedades humanas. Vale recordar que a Geografia, no
passado remoto, surge como possibilidade de entendimento das
diferenciações de lugares, de paisagens, de áreas...
Enfim a superfície terrestre é marcadamente diversa, tanto nos seus aspectos
humanos como físicos. Cabe à Geografia assegurar conhecimentos mínimos, porém
fundamentais, para sua compreensão. Nessa perspectiva, seu ensino não é apenas útil
para as crianças, como também é capaz de proporcionar emoções, encantamento.
História de viagens e descobertas podem ser contadas, sempre que possível
acompanhadas de boa música e imagens marcantes. Sem sair do lugar, as aulas de
Geografia podem proporcionar viagens fascinantes por meio de vídeos, como através de
narrativas. Afora isso, as aulas de campo podem alavancar a compreensão do lugar e
despertar novos sentimentos e afetos por suas coisas. Embora as grades curriculares
dediquem muito espaço para as aulas de Português e Matemática, há boas saídas para o
ensino de Geografia. Mas isso é conversa para outra hora. A geografia está em todos os
lugares. Viva a Geografia e deixe-a viver na sua sala de aula e pelos seus alunos!

Glossário comentado

 As relações espaciais topológicas dizem respeito às relações espaciais que


se desenrolam nos espaços imediatamente próximos e da vivência da criança,
tais como sua casa, o cômodo em que dorme, mas também os pisos por onde
circula desde a mais tenra idade. No estabelecimento dessas relações são
utilizados referenciais elementares, como dentro e fora, na frente e atrás, perto
e longe, em cima e embaixo, ao lado, entre, etc. O amadurecimento da criança
e a ampliação do horizonte espacial por ela vivenciado e percebido possibilitam
a lida com as relações espaciais projetivas. Nesse caso a criança consegue
conservar a posição dos objetos espaciais, alterando o ponto de vista. É
quando consegue descrever o caminho ou percurso de ida e de volta, ou seja,
é capaz de reconhecer que na ida coisas se encontravam à sua direita e, na
volta, à sua esquerda. Por fim, as relações espaciais euclidianas passam a ser
estabelecidas quando a criança coordena objetos espaciais, uns em relação
aos outros. É o caso de citar a compreensão de ruas paralelas e transversais,
de colunas e filas de carteiras, e de plantas de guias telefônicas. Além disso,
lidam com paralelos e meridianos, bem como com as coordenadas
geográficas, presentes em mapas e plantas.
 Os conceitos centrais da Geografia, isto é, lugar paisagem e território podem
ser entendidos como manifestações das práticas sociais. Mesmo porque, no
processo de produção e organização do espaço geográfico, conflitos de
interesses estão presentes, impactos ambientais podem ser gerados, assim
como transformações culturais podem ser desencadeadas. Isso nos leva a
abordar as chamadas manifestações que estão presentes no espaço e podem
ser comparadas a diversas camadas sobrepostas uma a uma. Assim, educar o
olhar geográfico é instrumentalizar os educandos ao longo de sua escolaridade
para identificar tais “camadas” (o lugar, o território, a paisagem), ou seja,
reconhecê-las, delimitá-las.
 O conceito de lugar diz respeito aos laços afetivos e identitários que unem as
pessoas aos seus espaços de vivência. A casa e a rua, a escola e o local de
trabalho, um templo ou espaço religioso, uma praça, a associação dos
moradores, entre outros, podem ser citados. Como são esses lugares e o que
nos une afetiva e identitariamente a eles são questões que devem mobilizar
seus estudos. Além disso, o lugar encontra-se no mundo, está ligado a ele por
uma série de aspectos, sejam eles econômicos, políticos ou culturais. Isso
reforça a idéia de que os espaços não se encontram isolados e devem ser
percebidos nas suas relações, o que equivale a afirmar que “de meu lugar
compreendo o mundo”.
 O conceito de paisagem está associado a um contemplar, descrever, analisar
aspectos sensoriais e afetivos do espaço. Daí que a paisagem diz respeito
àquilo que os nossos sentidos captam e percebam; é forma e cores, como
também odores, sons e aquilo que sentimos pelo tato. Paisagem é, ainda, e
talvez acima de tudo, emoção, a emoção despertada por aquilo que ela
contém, a emoção que possibilita contemplá-la “através da alma”. Um estudo
mais sistemático da paisagem demanda a compreensão e o entendimento das
razões que levaram determinada paisagem a ser o que é, como se deu sua
construção.
 o conceito de território possibilita o trato com as relações de poder que se
estabelecem no e pelo espaço geográfico. Desde há muito tempo os grupos
humanos necessitam exercer um controle sobre as parcelas do espaço onde
se encontram enraizados. Desde as mais remotas sociedades tribais até o
moderno Estado nacional, o país, as mais variadas formas de gestão e
controle do espaço existem. Em razão desse controle, limites e fronteiras
sempre foram criados. Ultrapassá-los é como se fosse uma transgressão, algo
como "avançar o sinal vermelho". Mas não podemos nos limitar apenas ao
território nacional. Dentro dele existem muitos outros, nas mais variadas
condições, e sendo controlados por diferentes grupos e atores sociais, como
as associações de moradores, os narcotraficantes, os sem-terras, entre muitos
outros.

Proposta de atividades
1) Na página 6 aparecem sugestões de objetivos relativamente gerais para a seleção
e organização de conteúdos para o ensino da Geografia nos Anos Iniciais. A partir
de sua leitura, organize um breve rol de temas passíveis de serem desenvolvidos
junto a crianças desse segmento de ensino.
2) Providencie uma cópia das diretrizes curriculares do município de Curitiba,
referentes à Geografia e traga para a sala de aula.
3) Leia atentamente os “conceitos fundamentais da ciência geográfica” (lugar,
paisagem, território) e relacione-os, associe-os à sua vida, às suas práticas
socioespaciais.

Você também pode gostar