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17/07/2019 Os inassimiláveis – Observador

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POLÉMICA

Os inassimiláveis
Pedro Picoito
15/7/2019, 0:08  298  21 

É quando a “Cristandade” começa a desintegrar-se, acompanhando a


homogeneização cultural imposta por Estados cada vez mais centralizados,
que Portugal e Espanha expulsam as suas populações não cristãs

Chego tarde à polémica provocada pelo já célebre artigo de Maria de Fátima


Bonifácio no Público e não tenho nada de novo a dizer. Além disso, concordo
com a sua oposição às quotas para minorias no mercado de trabalho, na
universidade e no Parlamento, e acredito que a discriminação positiva é uma
entorse aos princípios liberais da meritocracia e da igualdade perante a lei.

https://observador.pt/opiniao/os-inassimilaveis/ 2/6
17/07/2019 Os inassimiláveis – Observador

Mas esta questão torna-se secundária perante dois argumentos falaciosos e


muito pouco liberais.

O primeiro é a generalização sobre os negros e os ciganos, que a leva a cair na


velha armadilha ideológica do determinismo. Dizer que os “ciganos são
inassimiláveis” ou que “os africanos são abertamente racistas” não é apenas
uma caricatura de mau gosto. É condenar à suspeita todos os ciganos que
procuram integrar-se na sociedade portuguesa, apesar dos obstáculos que
enfrentam, e todos os negros que não são racistas, apesar dos preconceitos de
que são alvo. É negar a individualidade a um número vastíssimo de pessoas em
nome da sua origem étnica ou cultural. É, em suma, desprezar a meritocracia e
a igualdade, os tais princípios liberais que as quotas – e, ironia das ironias,
Fátima Bonifácio – põem em causa.

Seria uma grande ingenuidade esquecer o peso da cultura ou da etnia nos


comportamentos, mas seria um cinismo ainda maior decretar que a herança
social os determina sem hipótese de mudança. Um cinismo que se recusa a ver
o elemento da condição humana ao qual os historiadores devem estar mais
atentos: a liberdade individual. Porque em história não há leis, ao contrário
das ciências naturais. Nenhum ser humano está condenado, pela sua origem, a
um destino escrito nas estrelas (ou nas páginas de opinião do Público). É por
isso que a democracia continua a ser o pior dos regimes, exceptuando todos os
outros. Apesar de tudo, é aquele que melhor defende a possibilidade de mudar
as circunstâncias em que vivemos. Apesar de tudo, é aquele em que não há
“inassimiláveis”.

https://observador.pt/opiniao/os-inassimilaveis/ 3/6
17/07/2019 Os inassimiláveis – Observador

O segundo argumento falacioso é a invocação da “entidade civilizacional e


cultural milenária que dá pelo nome de Cristandade”, da qual os negros e os
ciganos estariam excluídos. Convenientemente, Fátima Bonifácio não define
que coisa seja a “Cristandade”. Percebe-se porquê: dá mais jeito brandir
abstracções indefinidas contra outras abstracções indefinidas. Supondo,
porém, que o termo sirva para descrever as sociedades europeias ou ocidentais,
num sentido equivalente ao legado da “Grande Revolução Francesa de 1789”
também não extensível a essas raças “disfuncionais em supermercados”, vale a
pena lembrar alguns pormenores.

Quando a dita “Cristandade” nasce, ali pelo início da Idade Média, é já um


fruto cruzado de culturas muito diferentes: a religião judaica, a filosofia grega,
o direito romano. Cresce depois, no espaço a que hoje chamamos Europa,
assimilando povos germânicos, celtas, eslavos e escandinavos que as
civilizações clássicas tinham por “bárbaros” (ou seja, os negros e ciganos de
então). Opera o milagre de conviver, nem sempre em paz, com judeus e até
com muçulmanos – na Península Ibérica, na Sicília e nos Balcãs. Ao contrário
do que geralmente se pensa, é quando a “Cristandade” começa a desintegrar-
se, acompanhando a homogeneização cultural imposta por Estados cada vez
mais centralizados, que Portugal e Espanha expulsam as suas populações não
cristãs, tal como a Inglaterra fará pouco depois aos católicos e a França aos
protestantes. Mesmo assim, ciganos e negros ficaram e a sua cristianização
será, com maior ou menor sucesso, um dos factores preferenciais de
assimilação. Nos países católicos, por exemplo, os negros formaram confrarias
próprias, com frequência dedicadas a Nossa Senhora do Rosário. Não deixa de
ser uma ironia, mais uma, que Salvini pretenda agora impedir a sua entrada na
Europa sacando do terço em comícios da extrema-direita.

Nenhum destes processos históricos foi fácil, o que talvez explique o recurso a
argumentos cristianíssimos por parte dos nossos contemporâneos mais dados
a abstracções indefinidas e a idênticas dificuldades. Mas nem a “Cristandade”
nos poderá salvar de dois erros simétricos. À esquerda, o de fechar os olhos aos
problemas. À direita, o de fechar os olhos às soluções. Para combater o
primeiro, Fátima Bonifácio cai no segundo. Sem se dar conta de que ambos são
mais iguais do que parecem, na sua igual negação da história. E que, se hoje

https://observador.pt/opiniao/os-inassimilaveis/ 4/6
17/07/2019 Os inassimiláveis – Observador

pode falar em “Cristandade”, é apenas porque a “Cristandade” se deu sempre


ao trabalho de assimilar os “inassimiláveis”.

Investigador do Instituto de Estudos Medievais da Universidade Nova de


Lisboa

Não queremos ser todos iguais, pois não?


Maio de 2014, nasceu o Observador. Junho de 2019, nasceu a Rádio Observador.

Há cinco anos poucos acreditavam que era possível criar um novo jornal de qualidade
em Portugal, ainda por cima só online. Foi possível. Agora chegou a vez da rádio, de
novo construída em moldes que rompem com as rotinas e os hábitos estabelecidos.

https://observador.pt/opiniao/os-inassimilaveis/ 5/6

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