Você está na página 1de 3

1. Acorda, Maria Bonita!

Hoje você vai tomar café em Madri

Porto Alegre, 2007, até 28 de dezembro.

Só quem mora ou já morou numa casa que não é sua sabe o que é isso. E não estou falando nem
de aluguel. Falo de uma fronteira da vida, início de casamento, quando nem para aluguel a gente
tem dinheiro. Vive em casa emprestada por parente, num recanto da vida em que o futuro é uma
idéia longínqua, sem rosto; e o presente é uma muralha de incertezas que se vai desdobrando
cruelmente na nossa frente.

Foi nessa fase de extrema insegurança financeira que eu e a Maria decidimos garantir um teto,
fosse qual fosse, desde que nosso fosse cada tijolinho de suas paredes, cada ladrilho do banheiro,
cada maçaneta de cada porta.

Entramos de cabeça num financiamento do SFH. 15 anos pra pagar, prestação que não acaba mais.
Mas aí vai ser nosso, não é mesmo? E fomos viver a vida. Agora mais tranqüilamente, claro, já
teríamos onde recostar os ossos num dia do inverno da nossa existência. E, pensem bem nisso,
nunca esqueçam que há uma verdade superior à nossa teimosia: o tempo passa. Inegociável! Os
anos passam, a vida passa, os filhos nascem, os filhos crescem, os cabelos embranquecem, os
calendários na parede vão sendo trocados. Ano a ano, 15 anos.

Até que chega um dia em que, vejam só, a gente termina de pagar aquele financiamento. E, sorte,
esforço, ajuda de muita gente boa, nunca precisamos recorrer ao JK financiado. Ficou ali, de
ladinho, pronto pra qualquer coisa, atento às tempestades da nossa vida. Nesses anos todos,
alugáramos o JK e com esse dinheirinho completávamos o pagamento da prestação dele mesmo.
Quinze calendários depois, estando perto do fim do financiamento, o pai da Maria ajuda no
pontapé final com cinco mil reais e bucha! Matamos a dívida e ficamos com um ativo considerável
sobrando. Um JK quitado. Quem diria, hein? E agora? Que fazemos? Melhor vender e investir em
algo pra usar agora. Comprar uma casa na praia? Um carro? Novamente meu sogro Zeca matou a
charada.

- Façam uma viagem. Com esse dinheiro, vocês podem fazer uma bela viagem à Europa.

Dito isso por uma pessoa viajada, que conhece o mundo todo, a idéia brotou arrebentando,
esmagando e dissolvendo qualquer outro tipo de projeto em análise. Viajar para a Europa seria
concretizar imagens mágicas de cidades fantásticas, penetrar paisagens extravagantes e visitar
ambientes, ruas e castelos seculares vistos somente em livros, fotos e filmes, encantados e
regurgitados na nossa imaginação. Desde este dia, do big bang da idéia luminosa e continuada em
noites sonâmbulas planando mentalmente sobre pagos europeus, até pisar no 747 da Air Europa
verteu mais um ano.

Mas que ano! Com que deliciada energia nos atiramos às pequenas tarefas e obrigações do nosso
empreendimento transcontinental. Precisa passaporte. Faça-se passaporte. Precisa seguro-saúde.
Faça-se seguro-saúde. Precisa-se de guias e roteiros. Compre-se. Planeje-se. Pesquise. Estude.
Google Maps. Wikipedia. Precisa-se de malas. Compre-se malas. Babá pras crianças: Santa Virgínia,
São Markus! Casacos para o frio: parcas! Botas. Cartão Internacional. VTM. Eurail Pass. Bornal para
passeio. Bolsos nas cuecas. Guia do Viajante Europeu. Santo Zizo. Cadeados para as malas. Tudo foi
providenciado com um brilho inesgotável enfeitando cada um de nossos olhos.

E agora estávamos embarcando. Saboreando cada detalhe do início da odisséia. Já no Galeão,


esperando o horário do voo, a Europa insinuava-se quase concreta na nacionalidade de alguns
passageiros na sala de embarque. Um casal lendo o “El País”. Serão mesmo espanhóis? Um
brasileiro paquerava uma italiana. Aquela ali, de batinha, parece uma típica espanhola... só faltam
as castanholas... Sei lá se eram mesmo europeus todos aqueles que imaginávamos ser naquela
sala, talvez a Europa estivesse apenas insatisfeita nos nossos desejos e já começava a transbordar
para os nossos sentidos. O certo é que a gente até perdia a vergonha de parecer piegas e pensava
um com o outro: “isso tudo está sendo muito maravilhoso!”

A nossa primeira mancada de marinheiro de primeira viagem foi acreditar que as regras são
sempre cumpridas pelas companhias de viagem. Lição nº 1: DESCONFIE SEMPRE. Chegamos no
Galeão às três horas da tarde vindos de Porto Alegre, e fomos direto ao balcão da companhia nos
informar sobre horários - nosso voo para Madri sairia às onze da noite. Um cartaz avisava lá:
“Check In para o voo tal (o nosso) às 20h”. Muito bem, fizemos tempo no aeroporto a tarde toda,
olhando vitrines, livrarias, lendo, caminhando. Às 19 horas, fui dar uma olhadinha no balcão. Uma
fila se espichava pelo corredor com umas trinta pessoas já esperando atendimento. E umas trinta
pessoas JÁ TINHAM SIDO ATENDIDAS. Sacanagem! Acabamos pegando os últimos lugares do
avião, duas poltroninhas esmagadas na última fileira, grudadas nos banheiros perto da cauda.
Resultado: Passamos as oito horas do voo ouvindo a descarga do banheiro sendo acionada
ininterruptamente.

Bom, pelo menos tem os filmes que a gente pode ver na telinha nas costas de cada poltrona, não é
mesmo? Outra pegadinha. Você precisa COMPRAR os fones de ouvido. Pois por indignação não
compramos. “Oraondejáseviu?!” Não vamos comprar e pronto! Além de pegar o pior lugar ainda
vamos PAGAR pelos fones de ouvido? Ora essa! Fizemos a coisa mais inteligente a se fazer
naquelas circunstâncias. Passamos as oito horas no pior lugar do avião e TAMBÉM ficamos vendo
os filmes sem fones de ouvidos, ouvindo o barulho da descarga dos banheiros! Tão pensando o
quê? Só porque somos tupiniquins? ...

Mas se tivemos esses pequenos percalços, pelo menos tivemos a sorte de passar a viagem ao lado
de uma pessoa muito bacana. Um rapaz mineiro que estava indo visitar a noiva na França.
Educado, inteligente, gentil. Só tinha o importante defeito de ter levado apenas um fone de ouvido
particular. Será que ele não pensou na possibilidade de encontrar um casal também bacana como
nós e que precisaria desesperadamente de um par de fones de ouvidos durante a viagem para a
Europa? Não sei como existe gente tão despreparada viajando por este mundo afora. Mas então
eis que, depois de muito papo, algumas leituras e outros cochilos, o 747 da Air Europa pousa no
aeroporto Barajas, um dos mais importantes do mundo, em Madri.

Acorda, Maria Bonita! Hoje você vai tomar o café em Madri.

España. Dá pra acreditar? E acorda logo! Temos 30 minutos pra passar pela imigração e pegar a
conexão para Barcelona. Já! Corre! Meu Deus, como é grande este aeroporto! Tem ônibus?
Espera! Tem ônibus! E as malas? Já foram! Qual é o nosso terminal? Pergunta praquele cara ali!
Mas pergunta em espanhol! Passaporte! Ei! Esse cara tá furando a fila! Faltam 15 minutos! Corre!
Tem que tirar as moedinhas do bolso. Bota nesta bandejinha. Passa nessa esteira. Tira o cinto!
Passa pelo detector! Faltam 10 minutos! Deixa as moedinhas! Corre! É naquele portão! Naquela
fila! A passagem! Faltam 5 minutos! Aqui! Pô, mas é nessa fila ou naquela? Ali! Vem! Corre! ... ... ...
Ufa! Conseguimos! Chegamos, Europa!

Você também pode gostar