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MT'RILO MENDES E A FILOSOFIA

Prof Dr. Wladimir Garcia/ UFSC

Pengar a relagáo que um po€ta como Murilo Mendes mantém com ¿ Filosofia
aponta para eúspas que se desdobram.

¡ ?. Pode-se analisar a quesiio do ponto de vista teorico: tanto por meio de uma teoria que
ernana dos escrftes do po€ta, itrcluindo ai, além d¿ sua poesiq as prosás poeticas e os
textos publicados em periódicos, jomais e catáogos; cpmo r¡rna teoria que vem de fora"
na forma ¿e"tier¡óüa¿e que risca ou borra o dado da obra, como uma sobremarca do
leitor sobre e pensamento do poeta" formando blocos heterogéneos de contágio teórico,
sob as operag6es comparativas de sondagem de hipertextos e quebras conceituais.

l l. Pode-se verifipar as leituras filosoficas do poetq pesqüsando em sua biblioteca pessoal, a


qual, sabe-se, encontra-se dividida entre Roma e Juiz de Fora. Trata-se de uma empresa
evidentemenÍe fadada á incompletude, mas pode-nos dar referéncias, que, de resto, estáo
implicitas e obliteradas nos escritos ficcionais e ensaísticos.

§ eode-se, enfin¡ ler o poeta e interpretáJo sob os influxos das duás possibilidades
anteriores, inclusive. Neste caso, o poeta foi pródigo em compor textos-homenagens, e.
uma poesiq qma presenga humana, ma¡cadas pelo interesse üvido por temas de natureza
ñlosoñca (o tempo, o espaso, o homen¡ os paradoxos existenciais, o objeto est&ico,
Deus, etc.).
Vqiaaos um pouco acerca de cada uma destas possibilidades.

I
Estudar a relagáo entre Poesia e Filosofia implica, antes de tudq revitalizar a
própria idéia de relagfu. Tal idéia constrói-se a partir da presenqa de uma tradigáo, que se
apresenta como um d¿do ou um her-dado com o qual - e Murilo potencializou esta relaqáo ao
máúmo - o poeta se relaciona, como numa contra-assinatura & *ja estamos diante da
possibilidade de nome¿r o já nomeado, de singularizar o singular, introduándo um gesto de
finitude dentro da cadeia infinita da repetigáo da tradiqáo, o que, ao mesmo tempo,
taractciza um trabalho de distanciamento e resist6icia, se.m iqnoráirr:ia da presenqa 1r'.',-:\-'
de uma repetigáo marcada pela incisáo do re: redimensionada, retrabalhadá, renovada,
,

abrindo a fianca possibilidade da instauragáo de uma lógica: o novo, de novo. E neste jogo
relacional que se inscreve o par Filosofia e Literatur4 com aquel4 desde há muito, nomeando
o que é liter¡ário, definindo-se em relagáo ao que lhe é externo, num processo de identificagáo

pela diferenciageo daquilo que nomeia. Tem-sg assim, um processo de retomo e

distanciamento dos termos sobre si mesmos, dinámica esta bloqueada por s&ulos de
metafisica, onde a filosoña se impds como o próprio da relaÉo, car¡cteriz¿ndo, no modelo
kantiano, uma cristalizagáo de uma hierarquia que delega'a arte o papel de um outro /
diminuído, na medida em que náo *ntroUaoffi tOg¡ca propositfu \"-F, - ' I
Trata-se, portanto, de uma leitura politic4 ou seja, ler o q\te a@ntffi entre o
discurso filosoñco e o discurso poáico, com a poesia resistindo a ser um "exemplo" de
posigóes filosoficag contra r¡rna lógica binária excludente e piramidal que evita os náo-
lugares ou entre-lugares. Isto so é possível se admitirmos a hipótese de uma leitura
contaminada desde uma zona de indiscernibilidade que se forma entre Filosofia e Poesia.
Neste sentido, contágio e coexisténcia parecem ser nogóes paradoxalmente mais justas do que

ocorre nestes espagos intervalares.


¡@lgnge de tenta¡mos confundir Filosofia e Arte, procuramos,
justamente, entender as suas diferensas. Tal impossibilidade de fazer das duas disciplinas

uma, seria a única possibilidade de tratálas em conjunto e verificar a presenqa de uma na


outra. Por isso, a nogáo de planos on compos de forga em cada uma parece ser decisiva a

fim de produzir um pensamento - margem que atravessa o dent¡o - que redefine ambas

desde uma concepg6o ndo-hierbquica. O texto que emerge pode parecer estranho a um
campo específico, justamente porque nño parte de uma origem instituid4 nem se formaliza
através de uma lógica de proposigóes, mas articula-se desde aquele meio bifurcante.

Se quisermos aprofundar tal relagáo entre planos, a obra de Deleuze/ Guanari,


ou a obra que emerge entre dois, da riegociagáo entre as heterogeidades que eles
formul provocar o pensamento

Muito da teoria estética de Murilo Mendes, no nosso caso, vai passar por este
largo movimento de composigáo, que vai da casa ao cosmos, ainda que para retomar. Pa¡a."t"
Deleuze/ Guauari, tal composigáo estáica define e distingue" Arte- Ainda que haja

composigáo do conceito ou.-composigáo em Ciéncia, o que temos aqui é o trabalho da

sensagáo. O plano estetico de composigáo náo é o plano tecnico. A arte n¿o poderia existir
para um ñm tecnicista, ainda que relacione tal plano. Um procedimento tecnico diz respeito

llo tratamento do material da arte, mas urr compósito de sensagóes possui uma existéncia err
SI
3

As interferéncias possíveis entre os planos da Filosofia, cte¡g{u i.t"


"
pas§lm, portanto, pela criagáo ñlosofica de conceitos de sensaqóes, ou quaado e a¡ti-ta c.ia
sensagóes de conceitos or¡+€góes (como na arte abstrata). A singularidade dglada frocesso
passa pela interferéncia do método de cada disciplina. Esas seriar4-iatlrféiéncias extrínsecas

de cada plano e de seus elementos. Interferéncias intrísecas tendern a formar planos mais
complexog dificeis de qualificar. I$o aconlece-quando certos elemeltos deixam o seus

planos e invadem outros (conceitot e Wrsorros conceituais mescladas com sensagóes, por
exemplo). Por ultimo, há uma interferéncia náoJocalizável, quando uma disciplina se
relaciona com o sed-negativo. Tal possibilidade form¿-se desde uma relagiio necessríria de
conño¡J¿gáo com o caos. Neste sentido, a ñlosoña necessita uma compreensáo nño-
móí¿fica, como a arte nec€ssita de um¿ nifo-arte.
Talvez nós estejamos caminhando para a negagáo de uma tese comumente
aceita, r qrál é marda-úelrleitura sup€rficial de certas obras: a idéia de que a Literatura
produz Filosofia ou que a Filosofia possa se apres€ntar ficcionalmente. Contudo, temos visto
que a Literatura náo pode fazer Filosofia porque nño utiliza o mesmo aparato metodológico
da tradigáo filosófica nem intenciona a proposigáo de 'filosofemas' de acordo com as
diferentes correntes de pensamento, ainda que possa ser apreendida como um'filosofema' ela
mesma. Além disto, a Filosofia nño se produz ficcionalmente, pois estaríamos, neste caso,
reduzindo a idéia a uma forma retóric4 além de confi.¡ndir-se Literatura e ficcionalidade. Por
Jtt'J: ''
ot¡tro lado, teoesrri§o que a Literafura produz uma outra forga filosoñca e».paz de zuspender
a\-rbdigño metafisica que a institui como exterioridade. Talvez uma tese possivel, neste
quadro, seja a emergéncia de uma suplementaridade a partir da diferenga na relagáo entre
ambos, sem reduzir um termo ao outro. Neste sentido, temos uma náo-tese, a qual resiste ser
nomeada, fixada. TornáJa'tese', elemento desencadeador Cp ,{isr.'.sÜ logico, resultaria na

perda da sua única possibilidade em relasáo d impossibilidade das teses dif$$. 1- :r,'.'2"'
A poesiq a 'Literatura' , desta forma, situa-se como o outro da Filosofia"
como nño-Filosoñ4 pela zua insistente pluralidade. Ela desestabiliza a idéia de sentido pelo
seu sentido equivoco, deslocando, assim, a base axiomática que caracteriza a Filosofia como

um lugar de signifrcagáo. Pela investigagáo das condigóes de eisténcia de uma pluralidade


semántica, a Filosofia é redescrita, solicitando a inscrigáo de uma outra repetiÉo que
permita a presenga efetiva do já presente 'mais-de-um', ou seja, a presenga da pluralidade do
cvento na sua produtividade. A questác ¡,áo seria adiciorlr pluririida,le, mas inclui-la corrlo
.t

tal e nño somente nos seus efeitos polissémicos. O que resulta éiransformagáo do ñlosófico e
de zua relagáo com o literário. O trabalho da palawa está implícito neste moümento na forma
de um retrabalhar, portanto, onde uma intervengáo ocorre sempre de forma náo-absoluta"
finita. O objeto (a palawa), neste caso, é tanto finitude como infinitude, ao mesmo tempo,
co-presentes. O que torna tal impossibilidade possível é o trabalho da pluralidade. A
possibiüdade de or¡tras repeti@es, marcando a abertr¡ra da Filosofia ao trabalho por vir, dá-
se, neste moümento, pelo retorno i Literatura-

Para um leitor diletante de filosoña, Murilo parece ter lido muito mais do que
um filósofo. Só na zua biblioteca pessoal que se encontra no Centro de Estudos Murilo
Mendeg os volumes chegam a mais de 150. Mesmo assirq na nípida üsita de dois dias que
ñ2, ineütavelmente devo ter deixado de lado alguns autores, tendo em vista que o aoervo
ainda estrí em fase de catalogagáo eletrónic4 e muito da pesquisa foi feita nas próprias
estantes. Not¿-se, de uma maneira geral, que o poeta teve um interesse progressivamente
crescente por filósofos, a comegar pelos anos 30, em torno da produgáo marcada pelo
encontro com Ismael Nery e pela zua conversáo (relatado na série "Recordagóes de Ismael
Nery") mas intensificada nos seus anos italianos, período, tambén¡ marcado pela docéncia na
Universid¿de de Roma, onde quesóes de naturez¿ estétic¿ e ética gerais parecem terem sido
priülegiadas, para além da Literatura brasileira e latino-americana. O que resulta disto, é um
notável caso de um¡ testemunha potencializada, atualizad4 sensível e erudita" do próprio
desdobrar-se do pensamento ñlosofico ocidental do seculo )O( incluindo-se ai seus grandes
debates.

Se, por um lado, temos um conjunto de obras editadas nos anos 30 e 40 - ainda
que nio se tenha certeza absoluta de que o poeta adquiriu-as ou leu-as i época - , marcadas
pelo humanismo cristáo (o que permitirá a um leitor familiarizado com a obra muriliana
realizar infindáveis associagóes com textos escritos na mesma época pelo poeta-critico), por
outro, temos a aquisiqáo de obras nos anos 50 e 60 com a preponderáncia de pensadores que
desconstroem aquela tradigáo, pondo em cheque, tanto a metafisica clássica como a dialaica
hegeiiana envolta em seu materialismo histórico, isto, scja p<;r;neio Ca heranga nietzscheana,
?,a¿3 tthttlz
5

seja através do estruturalismo de fundo imanentista. Aqui, tambér4 o leitor encontrará


respaldo em textos do poeta desde os anos 40, constituindo uma dinámic¿ crítico-teorica, na
qual, náo r¿ramentg o poeta antecipa-se em muitos debates ñlosoñcos.

Entre as mais de 150 obras filosoficas em Juiz de Fora (num universo de 2.864
obras)," que Murilo mais parec€ ter dedicado tempo foram livros de Bergsoq Kark Jaspers,
Bachelard, Freud, Leopardi (enquanto est€ta), Marx, ñetzsche, Oppenheimer, Ortega y
Gasset, Sa¡tre, Theilard de Chardiq Spinoza (o poeta adquiriu a uma edigáo da Ética de 1936

e outra de 1954, ambas com marcas de leitura), Kierlggg!-Hegel, os Pré-Socráticos


(especialmente, Heráclito), Voltaire, Ernst Cassirer, Leibnia (citado numa
crónica do Letras e Arles na decada de 40), Platáo, Pascal, S imone W (numa obra de
esrllo( em agora ú"rilo
30, Mut do Atual e, sobretudo,
g&s trés volumes de Vwiefudes, adquiridos em fy'. I pres€nga de alguns autores, voltados

para a Filosoña da linguagem, apontam a sintonia de Murilo Mendes com o seu tempo, o
poeta contemporáneo de si que pressentiu que um dia seria modemíssimo como o futuro
(num aforisma de O Discípulo de Ema{ts , de 45): refiro-me a um primeiro Foucault, de ls
Palavras e as Coisas, numa ediqño de ó6, obra muito anotada; um primeiro Barthes, do Grau
Zero dn Escritura, na edigdo de 53 e, para *rpl"t- o interesse por uma teoria do texto, que
var permear os poemas de Sintaxe-Con o último livro de poemas de Murilo
(relagño que pude intuir já nos anos 80, na minha dissertagáo de mestrado - O Cometa e o
,' Boil*ino¡, a leitura generos¿mente anotada dos Ensios Críticos barthesianos, na edigáo de

\ oe..Apontanao p¿¡ra a fundageo de uma aporística que alimenta a sua obra (por exemplo: o
iágrado- profano), a presenga de Bataille - hoje musa de alguns pós-graduandos - da

Experiéncia Interior, na edigño da Gallimard de 54, ou de um Erich Fromn¡ relendo Marx


sob a ótica do particular, numa edigáo de 63 de Mon e seu Cotrceito d¿ Homem, ou aind4

uma overdose de Bachelard indagando as fundagóes epistemológicas desde a i¡certeza da


imaginagño, com o O Ar e os Sonhos, na edigáo de 43, A Psicatulise do Fogo, de 49, O
Novo Espírito Científico e A Poénca &t EspaEo, ambos de 58. Algumas outras obras, porérn,
estáo- intactaE -e parecem náo terem sido lidas. Aquelas mencionadas, entretanto, possuem
muitas marcas de percurso. A metodologia de leitura do poeta perrnaneceu largamente
invariável ao longo de sua vida: há poucos sublinhados. mas intensificados em algum
capítulo ou outro em que o poeta demonstra vívido interesse (a questáo da crítica á estupidez
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humana" ao capitalismo, ao materialismo dialético ou á própria reügiáo); muitas vezes,


acompanhando estes sublinhadog há pequenas observag6es ou marcas laterais; contudo, o
legado mais interessante e generoso parecem ser a.r¡ marcas finais, geralmente escritas em
letra maiúscula, quase desenhada - como é característico da caligrafia de Murilo -, sempre na
última pagina do liwo ou no verso da contra-capa, conectando muitos zublinhados e nurcas
laterais.

Trata-se, portanto, de um estudo ainda meramente indicativo e que tem


ñlego para múhiplas to"*Sorplt:jlffi;1s (alguém ousaria duüdar do Valery muriliano,
de que todo o conhecimento X t¡rñ conhecimento comparado?). Tentaremos apontar, para
concluir, uma destas possibilidades, na reconstrugeo que o po€ta faz de Heráclito, e que
' ¿l'?,+(')
parece confirmar ñr*Qs das hipóteses elencad¡q até aqui.

Nota-se, portanto, úravés destes dados, que Murilo assumiu, tamMm no Á

campo filosófico, plenamente suas contradigóes, principio já definido nos anos 30 ("o homem
é um ser de espantosas contradigóes"). De uma maneira geral, seria possível agrupar, para

efeitos de problematizagáo teorica, os filósofos que povoam a biblioteca murilian4 num


grupo de humanist¿s críticos: da metafisica platdnica ao cristianismo cósmico de Teilhard de
\*s Chardin; da religiosidade de compromisso social e da devogáo gmmétrica de um Pascal, ao
idealismo subjetiüsta de Berkeley, pi"r"nr" na biblioteca muriliana pelos lrés Dialogos
entre Hilas e Filonous em Oposigdo aos Cepticos e Ateus, de 48, e destes i solugáo intervalar

entre mente e matéria de Ortega y Gasset; do neokantismo de Karl Jaspers ao materialismo


desesperado, á veia abstrata, de e ao relativismo dilemático, i áica da

escolha" de Kierkgaard, e, destes, ao existencialismo de Sartre, Camus (capítulo a parte, seria

narrar a visita deste ao Brasil em 49, sendo recebido por Murilo e Saudade) e Merleau-Ponty,
lido em torno de 55, daves de As Aventuras do Dialética. Um outro agrupameÍto, uma outra
assembléia heterogénea, poderia ser eventualmente entendida como autores de ruptura
epistémica e de desconstrugáo da tradigáo humanística e metafisica. Este poderia ser o caso

' leitur4
*fi. e, sobretudo, ao hegelianismo conciliador, como prov¿rm as várias marcas de que

-+-[--- \\-*o
+{"" ) f---¿f^fc' \ t h6*
"§-1 F
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cagam observag6es críticas a Hegel. Num certo sentido, Murilo adota um estratégia de leitura
contemporánea, que trabalha com os termos do próprio sistema que üsa indagar, numa ag6o,
no caso, triplamente transgressora. x
Com o distanciamento temporal que hoje temos, talvez seja possível,
entender o espago de ruptt¡ra que Murilo sernpre buscou¡+Jbr antiescolástico, fugir dos

dogmas centralizadores, criticar desde cedo - e num tempo de intenso patrulhamento


ideológico - os determinismos sociais impostos d arte. Se fóssemos nomear um regime d
Murilo, este cert¿mente priülegiaria a autonomia nomádica de um regime estético, uma
estéüc¿ do moümento, pensiívamos nos 80, num esforgo para o(press¡r a esséncia do sq¡
pens¿mento, nunca localiável, consciente de que paradoxalmente toda a'verdadeira' arte é

de vanguarda.

Para o historiador esta redg hoje, é nomeável: num exercicio de contar uma
Trans-históri4 envolve a chamada "virada lingüística", explorando sistemas imanentes e
auto-referenciais que se relacionam com as séries sociais de forma multidimensional e
intensiva, que descentram as estruturas que tendem a cristalizar-se em segmentos rígidos,
numa crítica que se apóia na clivagem do sujeito autoconsciente e humanista, mas avangando
no questionamento das lógicas binti¡ias conceituais, pela dardejante critica ao capitalismo
produtor de uma subjetividade condicionada e do marxismo convertido em estado totalitário,
em favor da multiplicidade de micropráticas criativas como solugóes culturais para o plano
político, contra w¡a mítica do homern, da razÁo e da lógica.

Náo por acaso, entre ¿ts marcas da leitura da edigáo it¿liana de Aurora de

Nietzsche, comprado e lido em 74, ano anterior á ñrorte de-IvFrifo, $iu anota, ao final, a

"epoca di transizione" e o "secolo XX", num comovente registro, texto sobre o texto, do
poel¿ tentando marcar o seu tempo, interpretar o mundo que üu, traduzir um¡ üda de busca
etica e civilizacional desde a leitura do outro que lhe provoca a pensar o que resta a ser
pensado.

iT
a,
Em ülagáo a Heráclito, poderíamos lembrar que o efeito multiplicador
desejado na poesia de Murilo Mendcs tlá-se pela via da espacializagáo do tempo, o que
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relaliytza ambos quanto aos seus limites. Para Valéry, o seculo XX implica um
embaralhamento das cartas em todos os assuntos humanos, especialmente em relageo ao
tempo presentq o qual no seculo anterior era aceito, sobretudo, como desenvolvimento dos
acontecimentos produzidos no passadot Ou sejA uma seriagáo que Murilo vai zubstituir por
cGpresenga transistóric4 o que lembra a concepgáo filosoñca deleuze-guattariana do tempo

como o espaso alargado das coexisténcias, onde antes e depois contam apenas como estratos.
Esta hibridizasáo temporal em Murilo coincide com um texto igualmente híbrido. É claro que
tal concepgáo de tempo poderiA tambén¡ facilmente ser relacionada com a imagem do anjo
da história de Walter Benjamir¡ na qual o corpo projetado para o futuro tem os olhos voltados
para o passado com o ser¡ acúmulo de catrístrofes. A¡tes dele, poréÍL Murilo já escrevera em
um poerna de 1933:
Minha boca está no fes€[te,
O meu olhar esrá no Fssado,

Meu venÍe está no futuro [... i\ x

De acordo com esta concepgáo, algo irrealizado está no passado, isto é, o passado virá.
Poshfa-se, portanto, uma origem posterior. Como observou Dela¡ze ao ler Bergsoi:'i o
pres€nte determina c. passado. A
nogáo de história em Murilo sempre foi fragmentiíria e
I ''r
descontinua:"só náo existe o que náo pode ser imaginado\r . 1'

Desta form4 vá,rias idades sáo consideradas contemporaneas, de acordo com


o pressuposto estetico que as vincul4 vale diz-e¡, toms-se possível um diálogo de modemos
[através'\
através das eras,r'nos're dos textos. Dentro desta perspectiv4 Murilo Mendes pode x
considerar Bosch um surrealista do século XV, Arcimboldo como precr¡rsor de Dali, além da
modernidade imanente e¡n El Greco} X

Tais concepgóes de tempo interferem no texto, nó numa rede, onde cruzam-se


linhas heterogéneas. Abole-se a idéia de um centro que.irradia conhecimento, enquanto os
ecos e fragmentos do passado ganham voz. Com isso, iluminam-se elementos marginalizados

e despercebidos da história, os suicidas, os amantes, os doidos bem doidos, os derrotados e


transfigurados, ñguras pelas quais Murilo foi tanto atraído. Neste sentido, a Literatura para o
poeta é menos um sistema do que uma rede de relagóes onde o velho pode estar próximo e o
novo distante. Vale dizer com Murilo que'só náo é modemo quem nño e antigd\ ><

I-iiera.riarnente, I"'lrrriil rcorganiza a sua t',ii;,lioteca: urna espécie <ie cspelho

em que o distante reflete o próxiino. Neste reajuste, efetua uma agáo poética seletiva e
9

presentificador¿. O processo de investimento em combinagóes de linguagem poderia ser

expresso, portanto, como transposigáo de formas, uma trans-forma. A linguagem é construída

com a linguagem.

"Murilograma a Heráclito de Éfeso" está em Sintaxe-Convergéncia e retoma o


aforisma 53 de Heraclito,\ afirmd no seu final:
Hqáclito de Éfeso:
Tudo flui
Trmsfqn¿
Se uaos-füEa
De ti H€ráclito
Pai antigo desceodem

o nrۤm

o elécton
o góton

Heráclito de Éf€so
T¡¡do flui
Deflui
No devt
Tudo devirá devém
üss
devisa H€Íiclito de Éfeso
move menl,e
pai movime o

Huma¡os todos nós

deseamo.s

desaguamos
de$eramos
desfoganos

Ar tefo
ágrua texto
terra texto
fogo texto
com texto
no
tmiverso
cootex:lo
l0

O instinto de liberdade que Murilo Mendes nos fala nas prosas poáicas
de A ldde do Serrott o¡de ele revela a zua obsessáo em abrir gaiolas, leva-o, neste x
'Murilograma a Heráclito ¿e Efeso\ a soltar o pássaro da história. Ao tomar um filósofo pré-
socrático e fazer seus pensamentos presentes, Murilo estabelece, deste modo, um canal
comunicativo, um¿ estrutura dialógica entre seu próprio texto e o texto de Heráclito, de-+soo-
an o. Ao pernar um ('universo atravessado por >r
múltiplas linhas de cultura\ o po€Í¿ brasileiro converge dentro do puro tempo de seu texto,
tanto'passado *rno'futuro. Isto é possível ( po idade, t¿lvez ssesse

=DEniÚ¿) desde o porto de vist¿ que c¿raaeriza ¡&l modernidade complexa e particularda-
qgal-falavasos (e nós podemos pensar t¿mEm em Eliot, Pound Mário de Andradg etc.), a
qual entende que alguma coisa no passado náo está dita e pode emergir, nova, no presente.
Em outras palavras, desta inversAo critica e criativa, o passado náo é aindq mas virri abrindo
a perspectiva do poeta contar uma história aberta do futuro.
O conhecimento produzido pela linguagem é tributá,rio de uma operagáo
det'reuniño1 Conhecer é retrabalhar fragmentog fazendo-os ressoar, criando um ritmo capaz x
de colocáJos em dependéncia. Eles debatem-s€ com a perspectiva de uma unidade (esta é
uma indecibilidade vital do pensamento muriliano). Este escritorleitor devora o que ele

deseja: ele destrói e constrói textos incessantemente. Ele toma-se texto, ou entra numa zona

Poderíamos pensar numa desterritorializagño que promove um novo composto,


facultando uma nova possibilidade de v6o. Um continuado processo de leitugé eavolvido
aqui, o qual lé um pelo outro. Hiá, de fato, uma potencializageg de¿¡m- modo de constituigáo
de um corpo que nos mnduz á hibrida conllgag do texto. Trata-se de fato da convergéncia de

várias vozes para criar a ilusáo !e uma §ó. O efeito so poderia ser transitivo, contingente e
instável. 'De quang» üdí fazemos parfe...'22, insistia o poeta, quas€ citando Heráclito.
Entretanlg, o fieta transcri4 náo transcreve. A combinaqáo do texto é única: ela é baseada na

suáúnica possibilidade, isto é, a sua diferenga.


Esta máquina de diferenciagáo ou máquina de' 'agregamento', a qual implica
sempre uma territorializageo !e elementos hete¡ggéneos, é conectada com o.ffagemento 10 :.
'r" ?"
de Heráclito: 'Things grasped together; things whole, things not whole; something being "..,., . ' I ;

dissonant'23. '
' ¿""'
brought toeether, something being separated; something coosonant, something
Em outras palawas, nós temos endcregada aqui a Sintaxe-Convergéncia que Murilo lv{endes
ll
articula em seu último liwo de poemas. Mas Herá,clito estabelece ainda alguma tensáo,
configurando uma cosmologia: lde todas as coisas vem uma, e de uma, todas as coisas!. É
claro, que neste caso, nós náo temos propriamente opostoq mas um processo onde qualquer
objeto será um todo num pleno Todo, o Universo ele mesmo. ft *jC atrat4-+h,ment-F nós
podemos alcanqar ambos a unidade na diversidade e a diversidade na unidade des coisas,
como uma üsii,o microscópica relacionada com r¡m r¡u¡crocosmo. Esta questii,o torna-se
import¿ e ao longo da teoria poáica muriliana: a idéia de ob,ter-se o miíximo desde um
minimo. Nós náo poderíamos, entr€tanto, falar facilmente acerca de siftese neste processo,
uma vez que o que nos porece scr conñgurado aqui, seguindo a performance da lirq é um
estado de tensáo momentiine4 gerando (dede um sentido elétrico) uma certa energia
renovada e ütal desde a mistura e do conflito de elementos simbólicos diversos. Est¿

momentánea de opostos pode significar para Heráclito 'Justig', no sentido que o


fendmeno é relacionado com a üsño sinótica daquilo que é sábio, ch is wise'
(fragmento 2)2s, a qral involve todas as coisas (e slas oposigd x))&-ando a um balango
universal. O meio é o conflito ou continuado estado de Heráclito, de fato, diz no
fragmento 103 que 'no caso de um cí¡culo, o início e o sáo comuns'. Esta no§6o de círculo

expressa o compromi sso básico de Heráclito: o objeto como um ponto num círculo
aparecerá formado por propriedades opostiur, dependendo da perspectiva em que é visto. Em

algum sentido este princípio eterno (o um que é sárbio) é incorporado por qualquer fen6meno
transitório. A mesma nogño pode ser vista na escritura de He/aclito, onde náo é táo óbvio
onde cada parte comegg- íesultando numa estrutura afror¡xada. Mas nós devemos insistir que
o que temos aqui nlo é uma idéia de unidade como identidade, mas de uma unidade inspirada
por um moümento contínuo de mmplementaridade e reciprocidade. De acordo com as

palryras de Murilo, nós deveriamos acha¡ a inercia do moümento e o moümemo, dg


''."-¡
inercil7. j'--'
-r.,- F,
O po€ta brasileiro entendeu consistentemente esta üsáo cósmica e selecionou
na filosofia de Heráclito neo somente a diversidade de uma unidade mas reescreveu o rio
como exemplo daquele processo. Em seu poema" Murilo Mendes também transportou
aqueles pensamentos para uma linguagem poética que instaura um conflito ou estado de
grrerra nela mesma. Dentro do texto muriliano lutam entre si a t¡iunfante linguagem da doxa,

e a armada, fora do sistema de certezas, para-doxal, quebrada linguagem da zua poes'ia. A


.o

t2

frase organizada hierarquicamente, enfrenta a frase enigmática, obsessivq incompleta de seu


poema.

Desde uma percepgáo cosmicq portanto, Murilo Mendes dissolve a noqáo de


autor oudetm4qgo rienfuEico. Os fragmentos sáo arranjados em constelag6es. O texto é
ele próprio transitório. Como um bloco de sersagóes ele atravess¿ os extratos náo-humanos
do homem. Nós poderíamos dizer que o texto migra para oúros textos e, ¿o mesmo ternpo, é

atravessado por linguagens. Ao mnstituir-se como passagem (ou rio, ou estrada, para lembrar

Heníclito) ele distribui, entrega, linguagem. Desta indecibilidade Murilo pode apontar para a
cosmicidade do texto.
O que nós encontramos aqui é um itinerário para a criagáo: um Logos posto em
moümento, deslocado pela teruiúo e transversabilidade da rota. Um trabalho com palavras
carregando tudo para um Plano de Composigáo. Espago liso em constante d"
!,y
desaparecer. Linhas em movimento: o cósmico texto de Murilo Mendes, Éo¡ fatias
ryf*
do caos.

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