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O bom samaritano

O início da vida pública de Jesus foi marcado por uma grande e crescente
receptividade ao seu projeto[1] pelo povo empobrecido. A princípio, ele fascinava a
todos — “As multidões acorriam para Jesus” (Lc 6,17-19) —, mas, pouco a pouco,
Jesus foi aprofundando sua postura, foi radicalizando sua opção pelos pequenos,
marginalizados e excluídos da sociedade (Lc 4,18-19). A “lua de mel” com todos, a
era de “paz e amor”, durou pouco. Começaram a surgir conflitos com poderosos
(Lc 13,31), pois sua prática incomodava os interesses dos que viviam explorando o
povo. Jesus descobriu que precisava formar com mais profundidade seus
discípulos e discípulas, pois percebeu que a adesão popular inicial era “fogo de
palha”. Os conflitos com os poderosos da economia, da política e da religião
aumentavam cada vez mais. Em seus últimos dias, os embates[2] de Jesus com
as autoridades judaicas e grupos religiosos e políticos de renome se
intensificaram.
Por razões históricas, reinava entre judeus e samaritanos um grande ódio. Alguns
motivos aparecem nas escrituras. Os samaritanos fizeram resistência à
reconstrução do templo de Jerusalém, após o retorno do exílio babilônico (cf. 2Rs
17,24-41 e Esd 4,1-5). Em Eclo 50,25-26 os samaritanos são considerados “um
povo estúpido”.[3] Uma interpretação rabínica de Ex 21,14 diz expressamente que
os samaritanos não são “próximos”.
Do lado judeu, a hostilidade era tão grande que, nas sinagogas, os samaritanos
eram freqüentemente malditos; os judeus rezavam a Deus para não dar a eles
nenhuma parte na vida eterna, recusavam um testemunho feito por um
samaritano, não aceitavam nenhum serviço deles.[4]
As relações entre os judeus e os mestiços samaritanos, que estiveram submetidas
às mais diversas oscilações, tinham experimentado, nos tempos de Jesus,
especial agravamento, depois que os samaritanos, entre 6 e 9 E.C., durante uma
festa da Páscoa, por volta da meia-noite, tornaram a praça do templo impura,
esparramando aí ossadas humanas; reinava de ambas as partes ódio
irreconciliável. Vê-se, então, claramente que Jesus escolhe exemplos extremos.[5]
Afirma o historiador do século I, Flávio Josefo: “Samaritanos armaram emboscadas
para peregrinos que vinham às festas judaicas e o procurador Cumanus,
subornado pelos samaritanos, não interveio. Assim judeus atacaram vilas
samaritanas e massacraram seus habitantes.”[6]
Muitos acontecimentos contribuíram para piorar as relações entre samaritanos e
judeus, como a construção de um templo samaritano sobre o Monte Garizim
noséculo IV a.E.C., e que foi destruído pelos judeus sob o reinado de João
Hircano, no final do II século a.E.C. O monte Garizim é mais alto, muito mais
imponente do que o monte Sião, onde foi construído o templo de Jerusalém. A
própria questão geográfica pode ter gerado ciúmes e críticas de ambas as partes.
Também azedou as relações entre samaritanos e judeus a finalização do
Pentateuco samaritano na segunda metade do século II a.E.C. O texto sagrado
samaritano é o Pentateuco, os cinco primeiros livros, com algumas diferenças em
relação ao Pentateuco judaico-cristão. Por exemplo, a versão samaritana de Dt
27,4 cita o monte Garizim, enquanto a versão judaica de Dt 27,4 faz referência ao
monte Ebal. Os samaritanos não reconhecem os demais livros da Escritura judaica
como textos sagrados.
Esse “ódio irreconciliável” entre judeus e samaritanos foi cultivado ao longo de
quase mil anos de história. É possível que se tenha iniciado com a separação dos
Reinos do Norte e do Sul, em 931 a.C., quando Roboão ficou como rei em Judá,
no Sul, e Jeroboão se impôs como rei em Israel, nas tribos do Norte. Essa
separação foi forçada e violenta, e certamente deixou muitas feridas (cf. 1Rs
11,26–12,33). Em 722 a.E.C., o povo do Reino do Norte foi exilado para a Assíria.
É provável que os “sulistas” tenham cantado vitória dizendo: “Foram exilados
porque eram infiéis à Aliança e idólatras”. A Assíria “repovoou” o Norte com
pessoas das mais diversas raças e etnias. No coração dos samaritanos do Norte
pode ter ficado um ressentimento. A vez dos “sulistas” chegou entre 597 e 587
a.E.C., quando, após várias deportações, foram também exilados para a Babilônia.
Os judeus do Sul sentiram na pele aquilo que haviam passado os “irmãos” do
Norte. Depois vieram as diversas tentativas de retorno para a terra da promessa. A
volta do exílio e o processo de reconstrução foram muito complicados, pois havia
resistência tanto de judeus como de samaritanos quanto à fixação novamente na
terra. É com base nessa história que se entendem os diversos atritos e agressões
que se sucederam.
Nos tempos de Herodes, houve um grande crescimento econômico, à custa de um
alto preço social. Muitas terras de judeus foram expropriadas no Norte, o que
gerou uma massa de desempregados urbanos no Sul, com conseqüentes
distúrbios sociais inseridos em um contexto propício para a disseminação da
insegurança social.
É nesse contexto de injustiça social, de opressão econômica, política e religiosa
que o episódio-parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37) ganha eloqüência e
precisa ser entendido. Na narrativa do Bom Samaritano vemos a Compaixão-
misericórdia como um princípio básico para o seguimento de Jesus Cristo e do seu
Evangelho, projeto de vida para todos a partir dos oprimidos.

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