Você está na página 1de 19

SOBRE PÁSSAROS E LOBOS (Por: Ferréz)

Acordou com muita dor de cabeça. Existe muita propaganda para cerveja, mas nenhuma para
ressaca. Colocou sua calça jeans Levi's, vestiu sua camisa Onbongo, pegou o Motorola na
mesa, sua carteira da Britt, seus óculos Ray-Ban, sua chave com chaveiro do Corinthians, e
finalmente vestiu seu tênis Nike clássico, modelo couro, com sola desenvolvida pela tecnologia
da Nasa e cadarços antideslizantes. Pegou o ônibus da Mercedes e antes de descer no ponto
com propaganda da Riachuelo viu 28 placas dos mais diversos produtos. Ao seu lado, um cara
usando terno Armani, com sapatos Le Blond, e uma pasta de Past-up, e ainda com um MP4
superior. Mas não foi isso que o irritou, foi saber que dentro da pasta havia com certeza um
laptop. Sempre quis ter um, mesmo que não pense em escrever ou nada disso, mas um laptop,
ah! Seria legal ter um. Uma palavra tão bonita, só perdia para palmtop, essa era mais elegante.

Desceu em frente ao America, cruzou a rua e entrou, um hot dog, uma Coca-Cola, 29 reais
depois ele sai. Pensa em ter um carro, apóia o governo, pois ele está ajudando as financeiras
de carro, isso é muito legal, com 48 ou 72 prestações daria pra comprar um, por que não?
Todo mundo tem. Num lugar onde seu sobrenome é o que você possui, nada mais cômodo. O
Gil da 7 galo. O Francisco da Hilux. O Miltinho do Opala. Se tivesse uma Dakota queria ver
quem ia entrar na frente, pedestre nem ouse. Experimenta ter um Uninho pra ver se alguém te
deixa passar. Nem manobrista quer estacionar carro velho, meu filho. Enquanto o mundo gira,
nas Casas Bahia, o segurança desconfiou do menino, porque estava malvestido. Dedicação
total a você. Ele não estava tentando roubar, na verdade estava sendo roubado, pois estava
com uma nota fiscal na mão, pagando juros altíssimos num país congelado. Levou um tiro na
cara, todos correram, limparam o sangue e o atendimento recomeçou.

- Só foi um susto, pessoal!

O rapaz foi retirado, o segurança nem algemado foi pela polícia, a própria polícia que ainda
falou em outros jornais que se tratava de um cidadão de bem. Os mesmos jornais que
abrandaram o caso, afinal se trata de um “incidente” envolvendo um grande anunciante. O
rapaz chamava Alberto, estava sem um Nike, nem Zoomp, nem Adidas, talvez uma bermuda
um pouco surrada demais, e com certeza de Havaianas, as legítimas. Mas era pouco até pra
um comércio em pleno Capão Redondo, onde o cheiro de pólvora se misturou com o
escapamento dos ônibus que passavam ali em frente quando a estupidez efetuou o disparo.

O fato é que esses grandes comércios não somam em nada na quebrada, não têm projeto
social, não se adaptam à cultura local, pelo contrário. Nas periferias eles barbarizam os idosos,
empurrando todo tipo de mercadoria, exploram os desinformados, com uma calculadora rápida
e muitos sorrisos. Prometem relógio de brinde, com a dupla sertaneja de apoio. E o crédito vai
sendo aprovado, afinal nosso povo é honesto, sofre, mas não deixa manchar o nome.
Enquanto empresários abrem outra firma, e fecham a antiga pra não pagar as dívidas. Isso é
capetalismo, baby! Seja bem vindo. A empregada que puxa o celular pra mostrar para a patroa
que agora ela pode. Somos todos iguais, e não tem nada melhor que promover a anti-
revolução, afinal todos têm o que perder, todo mundo tem crédito, pode comprar tudo, até
carro! Pra que ficar revoltado?

Aquele cara embaixo da ponte não sou eu. Aquele pedindo esmola também não. Aquela
senhora desempregada muito menos. Eu não. Eu tenho a oportunidade, se puder comprar um
caminhão passo por cima da Pick-up, se puder comprar uma Pick-up passo por cima do Pálio,
se puder comprar o Palio passo por cima da moto, se puder... Mas não posso.

A televisão me disse que vou poder, com apenas uma moeda eu tiro um carro, um lindo carro,
só 72 prestações.Todos nos agarramos em alguma vaidade, casa, carro, construir, luxo, piso
de primeira, forro, gesso, móveis de marca, ah! Uma linda piscina, hein? Pra todo mundo pagar
um pau mesmo. Mas terminamos e depois temos que sair de lá, tudo nos sufoca, é melhor ir
para um sítio, pra casa de praia. Vinte dias por ano de férias e mantendo o ano todo caseiro,
conta de água, luz, telefone, IPTU, tratamento da piscina. Mas não importa, sabe por quê?
Pros meus amigos eu conto que tenho. Pros meus parentes eu mostro que tenho. Pra minha
esposa eu provo que tenho, e daí por diante. A antiga mansão hoje é depósito de lixo. Não tem
mais o glamour, elogios, festas, não se escuta a música clássica, talvez um rap ou um funk
bem alto do catador de lixo que é novo morador. Os óculos escuros na Paulista espantam o
sorriso, afugentam a humildade e destroem a chance de o menino receber a moeda. Já passei
natal mais feliz em barraco, comendo coxa de frango assado, comprada na padaria com
vaquinha. Já passei natal em casa de amigo, que só tinha pra oferecer um prato com arroz e
feijão, e a gente ria muito, estávamos tão felizes.

O que viraram as festas e seus símbolos? Papai Noel virou uma foto 3x4 de um comerciante
capitalista, distribuidor de brinquedos e doces, ou o pai fantasiado para enganar o filho e
encher o bolso da Ri Happy. O coelho da páscoa virou mascote da Garoto, que a cada ano
empurra ovos maiores e mais caros nas crianças de assalariados. Pra periferia? Algum
pequeno comerciante de coração mole que compra ovos promocionais, um pequeno
empresário que dá brinquedos baratos, ou o traficante da quebrada que dá tudo isso hoje pra
colher viciados amanhã.

Tem uma pequena árvore no quintal de casa, esses dias vi um tufo de mato no chão, era um
ninho, olhei dentro, talvez encontrasse ovos, mas me surpreendi e vi pequenos pássaros.
Chamei um amigo, mostrei e ele se encantou, resolvemos colocar o ninho na árvore. No outro
dia fui ver o ninho, e estava no chão, tinha outro buraco do lado, chamei minha mãe.

- Veja, mãe, nem só de rato vive a favela.

Ela olhou e gostou. Lhe mostrei dois pássaros filhotes que estavam no muro, peguei o ninho e
vi um lá dentro, de repente o ninho balançou e um saiu voando, e depois saiu outro, ela correu
e conseguiu pegar um e colocamos dentro do ninho, os bichos estavam olhando o mundo pela
primeira vez. Um deles fugiu, mas vi outro pássaro o seguindo, talvez fosse a mãe, pegamos a
escada e colocamos o ninho na árvore de novo. No outro dia encontrei o ninho no chão
novamente, estava todo aberto, como algo que já foi usado o suficiente, no mesmo dia vi a
mãe dos pequenos pássaros, pousou no portão durante alguns segundos, olhou em direção ao
ninho e saiu, fiquei com os meus botões, será que avisaram onde foram? Fui para o jardim,
sentei no banco branco que o ex-dono da casa me deixou e li Hesse novamente, como fazia
aos meus 15 anos, não era novo, nem encadernado, mas pra mim é meu maior bem. A
sensação veio, nada de desgosto e frustração, e apesar de toda a batalha da vida, eu lia sobre
o sol, sobre o céu que não é mais tão sinistro, sobre histórias contadas como devem ser,
calmamente, levemente, como uma caminhada em boa companhia.

O sol bateu de um lado do banco, recuei para o outro, e de repente voltei para onde estava,
senti o calor, o livro também, as páginas se iluminaram, a história continuou, um vento veio ao
meu encontro e me fez o favor de aliviar uma mente às vezes tão cansada. Crianças passavam
na rua, minhas mãos de datilógrafo não doíam mais, segurava o livro e olhava para as árvores,
suas raízes e seus detalhes que vistos com atenção deixam à mostra a diferença que todos
nós temos. Voltei pra dentro de casa, pensei em alguns discos, e me desculpe o Zeca Baleiro e
o Chico César, mas nesse dia nenhum som casava com aquilo. Vieram-me frases, pedaços de
vidas, restos de fotos, mas após pegar um simples copo de café, e ver ainda sobre o sofá
discos de Paulo Sérgio, eu fui para o banco branco e esperei somente pelos pássaros, os
pequenos pássaros que por muita sorte segurei ainda dentro do ninho.

Isso eu não comprei, isso eu não paguei, nem parcelei, muito menos achei num shopping, nem
tive que roubar, isso veio de graça, e acho que isso que é a vida.

(Ferrez é rapper e escritor em São Paulo).


Fonte: Revista Le Monde Diplomatique Brasil,
n° 17 / dez. 2008.

Acesse o blog do Ferréz:


www.ferrez.blogspot.com
Consumismo infantil
Em nossa sociedade há um verdadeiro exército publicitário trabalhando ininterruptamente para
convencer as crianças a comprar toda sorte de produtos, em especial durante o Natal. Com fotos
bem produzidas e indicações de artistas renomados, a propaganda adentra suas defesas
psíquicas ainda frágeis e promove ilusões

por Yves de La Taille

Enquanto milhares de pais e mães vão freneticamente às compras para adquirir os


presentes “encomendados” pelos filhos – talvez menos freneticamente neste final de ano
em razão da chamada “crise financeira” –, poucos deles sabem que está em discussão,
no Brasil e no mundo, a problemática relação infância-consumo e a questão da
publicidade dirigida ao público infantil. Quanto a este último tema, aliás, existe um
projeto de lei em Brasília que visa coibir esse tipo de publicidade, cuja existência parece
ser “natural” para muitos e até desejada por aqueles que, no lugar de pais, exultam com
a simples perspectiva de seus filhos aparecerem como garotos propaganda ou que, no
lugar de empresários, antevêem gordos lucros graças a esse amplo espectro de jovens
consumidores.

À guisa de fio condutor do presente artigo, tomemos a questão da publicidade dirigida


ao público infantil, pois ele nos levará necessariamente à questão da relação
infância/consumo.

São dois os objetivos básicos da publicidade: 1) informar que tal produto ou serviço
existe com tais e tais qualidades, e 2) convencer o virtual consumidor a adquiri-lo. Dos
dois objetivos, o segundo é o mais importante e é em torno dele que inúmeros
especialistas de marketing queimam as pestanas. Mas vale notar que o primeiro, não
raramente, limita-se à mera informação de que um produto existe, pois nada se diz a
respeito de suas qualidades. Acontece, por exemplo, em várias propagandas de carro,
nas quais o veículo é mostrado em cenas idílicas, sem que nada de objetivo se fale
sobre suas virtudes. Se nada falam do automóvel, em compensação sugerem que seu
virtual comprador tem ou terá determinado tipo de identidade, em geral associada ao
status de pessoa feliz, pois “vencedora”. Mas tal associação já é a tradução do segundo
objetivo: seduzir o consumidor.

Isto posto, espera-se de um adulto que tenha recursos intelectuais e afetivos para
resistir à sedução publicitária, notadamente quando essas fogem totalmente a qualquer
verossimilhança com a vida real. Mas qual será o poder de resistência de uma criança?

Ele é naturalmente menor. A criança carece, em parte, de critérios para avaliar se os


brinquedos que ela vê, sabiamente fotografados ou filmados terão, na prática, as
qualidades lúdicas apresentadas. Com freqüência, uma vez que tem o brinquedo nas
mãos, ela fica desapontada e o abandona no baú dos objetos rejeitados ou esquecidos.

A criança também carece de critérios próprios para avaliar se cada objeto corresponde
ao que ela realmente desejaria: suas vontades ainda costumam ser fugazes e, logo,
facilmente dirigidas por especialistas em sedução. Outra vez aquilo que é intensamente
querido num dado momento, logo cai no esquecimento, trocado por outra coisa eleita
como alvo prioritário do desejo momentâneo. Finalmente, também devemos lembrar que
a criança ainda é muito suscetível à influência de “celebridades”. Não é por acaso que
se contratam “ídolos” para cantar as vantagens de variados produtos e se estampa seu
rosto e nome nas embalagens ou até nos próprios produtos.
Em suma, existe um verdadeiro “exército simbólico” que adentra as defesas psíquicas
ainda frágeis das crianças, para convencê-las a comprar isto e aquilo. Portanto, têm toda
a razão as pessoas que querem, no limite do possível, protegê-las. E têm toda a razão,
também, as pessoas que lamentam que, em tempos de Natal, o simpático Papai Noel
tenha se transformado, de portador de esperanças e surpresas, em mero entregador de
encomendas.

Sigamos adiante em nossas observações e notemos que, para além dos problemas que
a suspeita sedução publicitária dirigida a crianças levanta, sua própria existência
equivale a um forte incentivo ao consumo.

Vivemos numa sociedade que se convencionou chamar de sociedade de consumo, e, é


claro, dela participam as crianças. Não poderia ser diferente e não se trata, portanto, de
isolá-las do mundo, como o fez hipoteticamente Rousseau com Emile. Todavia, trata-se
de prepará-las para serem consumidores conscientes. Mas, o que significa isso?

Significa, por exemplo, fazê-las paulatinamente compreender as relações entre


consumo, trabalho e economia, para terem consciência do real valor das mercadorias e
não pagarem, como o fazem tantos adultos de conta bancária abastada, preços
claramente abusivos somente porque determinados produtos são vendidos em tal lugar
ou produzidos por tal marca. E também para terem consciência dos graves problemas
de distribuição de renda, que dão o luxo a poucos e o lixo a muitos. Há, no Brasil, uma
proposta de Parâmetros Curriculares Nacionais que propõe trabalhar, desde o ensino
fundamental, o tema “Trabalho e Consumo”. Trata-se de excelente iniciativa,
infelizmente pouco conhecida.

Significado psicológico

Como é impossível desvincular o consumo da saúde ambiental de nosso planeta, ser


consumidor consciente significa também avaliar as conseqüências de seus atos de
compra e usufruto. Dizem os especialistas que se todos tivessem o modo de vida dos
habitantes dos Estados Unidos, seriam necessários quatro ou mais planetas Terra para
contemplar a demanda.

E ser consumidor consciente é também avaliar o significado psicológico do ato de


consumir, ato esse que, sabe-se, é para muitos, na contemporaneidade, um ato
frequentemente desvinculado de necessidades concretas, materiais. E aqui o tema se
torna complexo e delicado.

Muitos já estudaram e analisaram os motivos que levam as pessoas a se entregarem a


uma verdadeira bulimia de consumo. Há várias teorias, todas certamente com sua parte
de verdade. Pessoalmente, me inclino a ver no afã de consumir um traço do que chamei
de “cultura da vaidade”1, pois faz todo sentido o seguinte diagnóstico de Jurandir Freire
Costa: “O objeto (que é consumido) deve ‘agregar’ valor social – e não sentimental – a
seu portador, ou seja, deve ser um crachá, um passaporte que identifica o turista
vencedor em qualquer lugar, situação ou momento da vida”2. Consome-se, entre outros
motivos, para poder dar um “espetáculo de si”, para demarcar-se, para parecer (ou
mimar) os “vencedores” e as “celebridades”. E isso não vale apenas para as classes
sociais financeiramente abastadas, pois, como escrevem os autores do livro Cabeça de
porco: “O dinheiro obtido no assalto troca-se pelo tênis de marca, pela camisa de marca.
Essa frivolidade é uma pista. A camisa com nome e sobrenome e o tênis notabilizado
pelopedigree apontam numa direção: a grana vai para a marca, não para o calçado ou a
camisa, não para o atendimento a necessidades físicas, como a simples proteção do
corpo e dos pés. No caso, o que está em jogo é a busca de reconhecimento e
valorização, a marca é o que importa, é a marca o objeto cobiçado, é ela que atende à
necessidade. O vestuário (na moda) cumpre essa função: quem o consome deseja
diferenciar-se para se destacar”3.

Um desenho humorístico, assinado por Voutch e publicado na revista francesa Le Point,


ilustra bem, a meu ver, um aspecto essencial do consumismo atual. Nele vê-se um
homem com certo ar de dúvida contemplando, numa revendedora, um desses carros
altos e poderosos, 4x4, que têm circulado muito pelas ruas e estradas, atualmente. O
vendedor lhe apresenta um argumento “definitivo”: “a relação preço/arrogância é muito
vantajosa!”.

Esperemos que nossos filhos, quando forem adultos, exijam ouvir argumentos mais
decentes dos vendedores! Isso depende muito de nossas atitudes educativas. Mas
quando vejo garotos e garotas, vestidos com roupa de grife, com tênis importado, celular
de última geração na mão – como o iPhone –, câmera digital pendurada no pescoço
etc., temo não estarmos na direção pedagógica correta.

E de pouco adiantarão leis que coíbam a publicidade dirigida ao público infantil, se os


próprios adultos, entregues ao consumismo e à cultura da vaidade, forem às compras,
motivados e seduzidos pela imagem que seus filhos, destinatários dos presentes
natalinos, terão diante de outras crianças.

Yves de La Taille é professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).

1 Yves de La Taille, Formação ética: do tédio ao respeito de si, Porto Alegre, Artmed, 2009.
2 Jurandir Freire Costa, O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo, Rio de Janeiro,
Garamond, 2004. O autor emprega o termo “turista” no sentido metafórico que lhe deu Bauman: a do homem pós-
moderno, que deambula pelo planeta sem amarras e nem projetos de médio e longo prazo.
3 Luiz Eduardo Soares, MV Bill e Celos Athayde, Cabeça de porco, Rio de Janeiro, Objetiva, 2005.

04 de Dezembro de 2008

Palavras chave: Consumismo, Crianças, Publicidade


Sobre pássaros e lobos
O fato é que os grandes comércios não somam em nada na quebrada, não se adaptam à cultura
local, pelo contrário. Nas periferias eles exploram os desinformados, com uma calculadora rápida
e muitos sorrisos. E o crédito vai sendo aprovado, afinal nosso povo é honesto, sofre, mas não
deixa manchar o nome

por Ferréz

Acordou com muita dor de cabeça. Existe muita propaganda para cerveja, mas nenhuma
para ressaca.

Colocou sua calça jeans Levi’s, vestiu sua camisa Onbongo, pegou o Motorola na mesa,
sua carteira da Britt, seus óculos da Ray-Ban, sua chave com chaveiro do Corinthians, e
finalmente vestiu seu tênis Nike clássico, modelo couro, com sola desenvolvida pela
tecnologia da Nasa e cadarços antideslizantes.

Pegou o ônibus da Mercedes e antes de descer no ponto com propaganda da Riachuelo


viu 28 placas dos mais diversos produtos. Ao seu lado, um cara usando terno Armani,
com sapatos Le Blond, e uma pasta da Past-up, e ainda com um MP4 superior.

Mas não foi isso que o irritou, foi saber que dentro da pasta havia com certeza um
laptop. Sempre quis ter um, mesmo que não pense em escrever ou nada disso, mas um
laptop, ah! Seria legal ter um. Uma palavra tão bonita, só perdia para palmtop, essa era
mais elegante.

Desceu em frente ao America, cruzou a rua e entrou, um hot dog, uma Coca-Cola, 29
reais depois ele sai.

Pensa em ter um carro, apóia o governo, pois ele está ajudando as financeiras de carro,
isso é muito legal, com 48 ou 72 prestações daria para comprar um, por que não? Todo
mundo tem.

Num lugar onde seu sobrenome é o que você possui, nada mais cômodo.

O Gil da 7 galo.

O Francisco da Hilux.

O Miltinho do Opala.

Se tivesse uma Dakota queria ver quem ia entrar na frente, pedestre nem ouse.

Experimenta ter um Uninho pra ver se alguém te deixa passar.

Nem manobrista quer estacionar carro velho, meu filho.

Enquanto o mundo gira, nas Casas Bahia, o segurança desconfiou do menino, porque
estava malvestido. Dedicação total a você. Ele não estava tentando roubar, na verdade
estava sendo roubado, pois estava com uma nota fiscal na mão, pagando juros
altíssimos num país congelado.

Levou um tiro na cara, todos correram, limparam o sangue e o atendimento recomeçou.


–Só foi um susto, pessoal!

O rapaz foi retirado, o segurança nem algemado foi pela polícia, a própria polícia que
ainda falou em outros jornais que se tratava de um cidadão de bem. Os mesmos jornais
que abrandaram o caso, afinal se trata de um “incidente” envolvendo um grande
anunciante.

O rapaz chamava Alberto, estava sem um Nike, nem Zoomp, nem Adidas, talvez uma
bermuda um pouco surrada demais, e com certeza de Havaianas, as legítimas. Mas era
pouco até pra um comércio em pleno Capão Redondo, onde o cheiro de pólvora se
misturou com o escapamento dos ônibus que passavam ali em frente quando a
estupidez efetuou o disparo.

O fato é que esses grandes comércios não somam em nada na quebrada, não têm
projeto social, não se adaptam à cultura local, pelo contrário. Nas periferias eles
barbarizam os idosos, empurrando todo tipo de mercadoria, exploram os desinformados,
com uma calculadora rápida e muitos sorrisos. Prometem relógio de brinde, com a dupla
sertaneja de apoio.

E o crédito vai sendo aprovado, afinal nosso povo é honesto, sofre, mas não deixa
manchar o nome.

Enquanto empresários abrem outra firma, e fecham a antiga pra não pagar as dívidas.
Isso é capetalismo, baby! Seja bem-vindo.

A empregada que puxa o celular pra mostrar para a patroa que agora ela pode.

Somos todos iguais, e não tem nada melhor que promover a anti-revolução, afinal todos
têm o que perder, todo mundo tem crédito, pode comprar tudo, até carro! Pra que ficar
revoltado?

Aquele cara embaixo da ponte não sou eu. Aquele pedindo esmola também não.

Aquela senhora desempregada muito menos. Eu não. Eu tenho a oportunidade, se


puder comprar um caminhão passo por cima da Pick-up, se puder comprar uma Pick-up
passo por cima do Palio, se puder comprar o Palio passo por cima da moto, se puder...
Mas ainda não posso.

A televisão me disse que vou poder, com apenas uma moeda eu tiro um carro, um lindo
carro, só 72 prestações.

Todos nos agarramos em alguma vaidade, casa, carro, construir, luxo, piso de primeira,
forro, gesso, móveis de marca, ah! Uma linda piscina, hein? Pra todo mundo pagar um
pau mesmo.

Mas terminamos e depois temos que sair de lá, tudo nos sufoca, é melhor ir para um
sítio, pra casa de praia. Vinte dias por ano de férias e mantendo o ano todo caseiro,
conta de água, luz, telefone, IPTU, tratamento da piscina.

Mas não importa, sabe por quê? Pros meus amigos eu conto que tenho. Pros meus
parentes eu mostro que tenho. Pra minha esposa eu provo que tenho, e daí por diante.

A antiga mansão hoje é depósito de lixo. Não tem mais o glamour, elogios, festas, não
se escuta a música clássica, talvez um rap ou um funk bem alto do catador de lixo que é
novo morador.

Os óculos escuros na Paulista espantam o sorriso, afugentam a humildade e destroem a


chance de o menino receber a moeda.

Já passei natal mais feliz em barraco, comendo coxa de frango assado, comprada na
padaria com vaquinha. Já passei natal em casa de amigo, que só tinha pra oferecer um
prato com arroz e feijão, e a gente ria muito, estávamos tão felizes.

O que viraram as festas e seus símbolos? Papai Noel virou uma foto 3x4 de um
comerciante capitalista, distribuidor de brinquedos e de doces, ou o pai fantasiado para
enganar o filho e encher o bolso da Ri Happy. O coelho da páscoa virou mascote da
Garoto, que a cada ano empurra ovos maiores e mais caros nas crianças de
assalariados.

Pra periferia? Algum pequeno comerciante de coração mole que compra ovos
promocionais, um pequeno empresário que dá brinquedos baratos, ou o traficante da
quebrada que dá tudo isso hoje pra colher viciado amanhã.

Tem uma pequena árvore no quintal de casa, esse dia vi um tufo de mato no chão, era
um ninho, olhei dentro, talvez encontrasse ovos, mas me surpreendi e vi pequenos
pássaros.

Chamei um amigo, mostrei e ele se encantou, resolvemos colocar o ninho na árvore. No


outro dia fui ver o ninho, e estava no chão, tinha outro buraco do lado, chamei minha
mãe.

– Veja, mãe, nem só de rato vive a favela.

Ela olhou e gostou. Lhe mostrei dois pássaros filhotes que estavam no muro, peguei o
ninho e vi um lá dentro, de repente o ninho balançou e um saiu voando, e depois saiu
outro, ela correu e conseguiu pegar um e colocamos dentro do ninho, os bichos estavam
olhando o mundo pela primeira vez.

Um deles fugiu, mas vi outro pássaro o seguindo, talvez fosse a mãe, pegamos a
escada e colocamos o ninho na árvore de novo.

No outro dia encontrei o ninho no chão novamente, estava todo aberto, como algo que já
foi usado o suficiente, no mesmo dia vi a mãe dos pequenos pássaros, pousou no portão
durante alguns segundos, olhou em direção ao ninho e saiu, fiquei com os meus botões,
será que avisaram onde foram? Fui para o jardim, sentei no banco branco que o ex-dono
da casa me deixou e li Hesse novamente, como fazia aos meus 15 anos, não era novo,
nem encadernado, mas pra mim é meu maior bem. A sensação veio, nada de desgosto
e frustração, e apesar de toda a batalha da vida, eu lia sobre o sol, sobre o céu que não
é mais tão sinistro, sobre histórias contadas como devem ser, calmamente, levemente,
como uma caminhada em boa companhia.

O sol bateu de um lado do banco, recuei para o outro, e de repente voltei para onde
estava, senti o calor, o livro também, as páginas se iluminaram, a história continuou, um
vento veio ao meu encontro e me fez o favor de aliviar uma mente às vezes tão
cansada.

Crianças passavam na rua, minhas mãos de datilógrafo não doíam mais, segurava o
livro e olhava para as árvores, suas raízes e seus detalhes que vistos com atenção
deixam à mostra a diferença que todos nós temos.

Voltei para dentro de casa, pensei em alguns discos, e me desculpe o Zeca Baleiro e o
Chico César, mas nesse dia nenhum som casava com aquilo.

Vieram-me frases, pedaços de vidas, restos de fotos, mas após pegar um simples copo
de café, e ver ainda sobre o sofá discos de Paulo Sérgio, eu fui para o banco branco e
esperei somente pelos pássaros, os pequenos pássaros que por muita sorte segurei
ainda dentro do ninho.

Isso eu não comprei, isso eu não paguei, nem parcelei, muito menos achei num
shopping, nem tive que roubar, isso veio de graça, e acho que isso que é a vida.

Ferréz é escritor. Autor dos livros Capão pecado, Manual prático do ódio, Amanhecer
Esmeralda eNinguém é inocente em São Paulo, todos pela Editora Objetiva.

04 de Dezembro de 2008

Palavras chave: Consumismo, Sociedade, Comércio


A alma do consumo
A era hipermoderna se dá sob o signo do excesso e do extremo: não sabemos ao certo onde
termina a necessidade e onde começa o supérfluo. A vontade de saber, a vontade de se
relacionar, a vontade de viver e a vontade de lazer foram absorvidas pela lógica do consumo

por Gustavo Barcellos

Todos os dias, em algum nível, o consumo atinge nossa vida, modifica nossas relações,
gera e rege sentimentos, engendra fantasias, aciona comportamentos, faz sofrer, faz
gozar. Às vezes constrangendo-nos em nossas ações no mundo, humilhando e
aprisionando, às vezes ampliando nossa imaginação e nossa capacidade de desejar,
consumimos e somos consumidos.

Numa época toda codificada como a nossa, o código da alma (o código do ser) virou
código do consumidor! Fascínio pelo consumo, fascínio do consumo. Felicidade, luxo,
bem-estar, boa forma, lazer, elevação espiritual, saúde, turismo, sexo, família e corpo
são hoje commodities reféns da engrenagem do consumo. Podemos falar, como os
filósofos e sociólogos contemporâneos, de um hiperconsumo?

O consumo não pertence a todas as épocas nem a todas as civilizações. Somente há


pouco tempo histórico é que falamos e entendemos viver numa sociedade de consumo,
onde tudo parece adaptar-se à lógica dessa racionalidade, ou seja, à esfera do lucro e
do ganho, à ética e à estética das trocas pagas. É uma singularidade histórica. Tornamo-
nosHomo consumericus.

Num plano mais profundamente psicológico, que racionalidade é esta, a do


hiperconsumo? Que deuses estão ali abatidos? Que arquétipos? Para ecoarmos os
receios de Jung sobre deuses e doenças1, que doença é esta, a paixão consumista, tão
absorvente, tão aparente, tão definidora?

O consumo é uma forma modificada e moderna de estabelecer relações com o mundo


dos objetos e dos seres, e também com o mundo da interioridade. A vontade de saber, a
vontade de se relacionar, a vontade de viver, a vontade de lazer, foram absorvidas por
essa lógica.

Para uma psicologia arquetípica, há deuses em nosso consumo: Afrodite da sedução e


do encantamento pela beleza e pelo prazer, Hermes do comércio e da troca intensa,
Cronos do devoramento, Plutão da riqueza e da abundância, Criança Divina da
novidade, Dioniso do arrebatamento, Narciso ensimesmado, Herói furioso, Eros
apaixonado, Pan, Príapo, Puer, quem mais? Que pessoas arquetípicas estão na alma do
consumo?

Ao buscarmos pela alma do consumo, lançamo-nos, sempre mais desconfortavelmente,


no jogo entre necessidade e supérfluo, entre frívolo e essencial. Não sabemos ao certo
onde termina a necessidade, onde começa o supérfluo, onde estão as fronteiras entre
consumo de necessidade e consumo de gosto, consumo consciente e consumo de
compulsão.

A era hipermoderna se dá sob o signo do excesso e do extremo, que realiza uma


“pulsão neofílica”, um prazer pela novidade que se volta constantemente para o
presente2. O consumo acontece ao lado de outros fenômenos importantes que marcam
e que estão no centro do novo tempo histórico: o espetáculo midiático, a comunicação
de massa, a individualização extremada, o hipermercado globalizado, a poderosíssima
revolução informática, a internet. O consumo cria seus próprios templos: os shopping
centers, as novas catedrais das novas e velhas igrejas, e também, a seu modo, a própria
rede mundial de computadores.

O hiperconsumo e sua doença (o consumismo) penetram insidiosamente em áreas da


existência que, ainda numa idade moderna, são estranhas a ela: o amor, a amizade, a
religião, a saúde, a política, a sabedoria, a espiritualidade, a educação. O consumo e
suas relações de trocas pagas, lucro, rentabilidade, constante renovação, reciclagem e
imediatismo ocupam terrenos que não pertencem a esta lógica arquetípica.

Consumo: tantos são seus deuses que é preciso evocá-los com cuidado, sem
voracidade, para sentirmos sua interioridade, sua alma, sem sermos pegos em sua
malha fina.

Consumo da velocidade, consumo da informação. Consumo do turismo: turismo da


memória, turismo de aventura, turismo de reabilitação da saúde, turismo recreativo,
turismo esportivo, ecoturismo. Consumo da moda, consumo do luxo, consumo
gastronômico. Consumo do divertimento. Consumo cultural. Consumo emocional.

Consumo de móveis, de imóveis e de automóveis: a indústria automobilística


internacional sabe produzir ícones de altíssima voltagem simbólica para a era da
autonomia. Consumo da mobilidade, das viagens e dos deslocamentos geográficos
rápidos. Ou permanentes: aqui, a fantasia de renascer em outro lugar, outra cidade,
outro país, outra identidade – consumo de uma nova vida. Consumo identitário.

Consumo de utensílios domésticos, eletrodomésticos, eletroeletrônicos que liquidificam,


batem, moem, trituram, misturam, assam, limpam, fervem, fritam, amassam, amolecem,
passam e enceram para nós –sem nossas mãos, sem contato manual. Tocam sons,
reproduzem imagens, processam informações. Excesso e profusão de automatismos
também funcionando para a era da autonomia.

A moda, a morte, a saúde, a cosmética, a higiene e a limpeza são principalmente


imaginadas hoje em dia também dentro da fantasia e das práticas do consumo. Nessas
práticas, podemos entrever sua alma.

No capítulo da limpeza (pessoal e doméstica), por exemplo – que hoje se confunde ou


tem seus caminhos imaginais entrelaçados com aqueles da saúde – percebemos toda
uma cultura dos antibióticos, dos germicidas, dos antibacterianos, dos inseticidas, de
tudo aquilo que “mata bem morto”, os antivirais, os antiretrovirais, os bactericidas,
cultura dentro da qual estão também os saponáceos, os sabonetes, os sabões, os
xampus, os detergentes, as águas sanitárias, os desinfetantes, os limpadores multiuso,
o cloro: todos matadores. O hiperconsumidor mostra, na alma de seu consumo, a
flechada de uma onda apolínea de assepsia, de controle total, de segurança total, de
branco total. Nota-se na vida moderna uma preocupação obsessiva por inseguranças de
várias naturezas: biológica, médica, patrimonial, moral, ética, familiar. A autonomia
trouxe insegurança.

Essa lógica consumista se estende ao círculo dos protetores solares, dos preventivos de
todas as linhas e atividades, preservativos, camisinhas, air bags, cintos de segurança,
advertências sobre ingestão de alimentos, bebidas e fumo, bloqueadores solares,
sensores, alarmes, detectores de metais, câmeras de vigilância, sistemas sofisticados
de proteção patrimonial, de segurança residencial e seguros de vida, de saúde, de
viagem.
À prova d’água, à prova de choque, resistente. Ética que nos prepara para “esperar o
inesperado”: uma contradição em termos. Insegurança cotidiana, cotidiano da
insegurança, coincidente com o fim dos referenciais estáveis tradicionais. Eis a era
moderna na qual se insere a “sociedade de consumo”.

Mas o maior consumo talvez seja mesmo o consumo da autonomia, da faculdade de se


governar por si mesmo, de instituir e reger as leis (nomos) pelas quais se governa a si
mesmo. Autonomia é liberdade e aprisionamento ao mesmo tempo.

Autonomia: não preciso mais ir ao cinema e estar sujeito a horários, arranjos e


endereços públicos e coletivos; eu possuo um home theater. Imprimo minhas fotos na
impressora doméstica alinhada para isso. Faço meu jantar com o auxílio luxuoso de
todos os eletrodomésticos que não param de reinventar-se, os processadores de comida
aliados aos fornos de microondas; ou simplesmente compro o jantar pronto e congelado,
estocado e prático, rápido. Faço meus filmes no computador pessoal.

Organizo e escolho as músicas que quero ouvir — a trilha sonora da minha vida — sem
surpresas desagradáveis ou diferentes, simplesmente baixando arquivos de áudio da
internet e armazenando-os em meu iPod. A telefonia está em minhas mãos, em
qualquer lugar, é móvel, e com ela a impressão de contato por trás da fantasia de
conectividade. A comunicação está toda em minhas mãos. Minha correspondência,
agora por via eletrônica, está em minhas mãos (ou diante de meus olhos) na hora que
desejo ou preciso, em qualquer lugar do planeta. E está em minhas mãos principalmente
tudo aquilo que posso comprar pronto (ready-to-go): desde a comida – entregue em
casa (delivery), ou então ao acesso rápido de uma corrida de carro (drive-through) – até
medicamentos, entretenimento, companhia, sexo e roupas prêt-à-porter. Percebemos a
enorme presença da fantasia de autonomia. E esta autonomia está a serviço da
felicidade privada.

O nosso tempo é um tempo de escolhas. A “customização” cada vez mais intensa da


maioria dos bens e dos serviços de consumo permite que eu diga como quero meu
refrigerante, meu carro, meu jeans, meu computador.

A superindividualização também leva à autonomia, ou vice-versa, e impõe processos de


escolha cada vez mais intensos e urgentes: “Os gostos não cessam de individualizar-
se”3.

O senhor dos Portões (Mr. Gates) abriu as janelas (Windows) de um presente que
requer, sim, definições (escolhas) cada vez mais “altas”, mais precisas, mais
particularizadas, em quase tudo.

A própria identidade torna-se, no mundo hipermoderno, uma escolha que se dá num


campo cada vez mais flexível e fluido de possibilidades: tribos, nações, culturas,
subculturas, sexualidades, profissões, idades. Personas to-go. Autonomia: nomear-se a
si mesmo.

O tema “pervasivo” da autonomia em nosso imaginário coletivo mais profundo engendra


e produz nossa ligação com tudo que é automático, nossa paixão pelo automatizado,
nos objetos e nas relações, nos serviços e na vida cotidiana, na alma e no corpo, na
linguagem e na ação, e também nossa prisão nos automatismos — nossos padrões
psicológicos automáticos.

Já se viu nisso um processo de distanciamento do mundo da matéria, onde quase tudo


já trabalha por si, sem a intervenção de nossas mãos ou de nosso corpo. Às vezes, nem
de nossos olhos. Mas é também possível ver nisso um mundo esquecido de coisas
físicas que quer se animar, que deseja alma, e ver na alma um anseio compensatório
ainda maior pela sedução física do mundo – pois a alma precisa do mundo.

No hiperconsumo, como advertiam os alquimistas, literaliza-se o físico no material.


Precisamos consumir cada vez mais, e cada vez mais intensamente, aparelhos,
automóveis, dispositivos, engenhocas, gadgets e, com eles, seus fantasmas.

Tudo a alma consome, e tudo pode ser consumido pela alma em seu eterno trabalho.
Ou, tudo pode virar um vaso para fazer alma, como já nos afirmou James Hillman: “O
vaso do cozinhar da alma aceita tudo, tudo pode se tornar alma; e ao tomar em sua
imaginação quaisquer e todos os eventos, cresce o espaço psíquico” 4.

Precisamos enxergar no consumo um vaso de fazer alma. Para isso, precisamos libertar
nossa visão das preconcepções filosóficas, morais e psicológicas, que nos levam a
entender no consumo apenas um patologizar mais intenso.

A superindividualização reforça um sujeito que, ao encontrar-se agora numa condição


mais flexível, vive no ego a ilusão de uma ação mais consciente e livre no mundo. Esse
sujeito é frágil, e aqui está o seu paradoxo. Seu patologizar é imenso, é intenso, e
cresce na proporção do consumo, da autonomia e da liberdade: depressão, paranóia,
compulsão, baixa auto-estima, competitividade extremada, pânico, suicídio, solidão,
medo, estresse, sintomas psicossomáticos, hiperatividade, hiperconsumismo.
Vulnerabilidade psicológica, desestabilização emocional.

O consumo flexibiliza e amplia os limites da experiência e até mesmo o espaço psíquico


da liberdade. O consumo faz parte da atração da alma pelo desejo, de seu envolvimento
com o desejo. Faz parte do mito de Eros e Psiquê. E o desejo aqui é pelas coisas do
mundo — desejo que, em última instância, deseja de verdade animar o mundo, torná-lo
alma.

A lógica consumista parece ser a de um hipernarcisismo. Se existem deuses nas nossas


doenças, quem são eles no consumismo?

Comecemos pela necessidade: temos necessidade de quê? De quanto? Quando? Não


sabemos mais ao certo, é claro. As medidas enlouqueceram. Movemo-nos agora num
mar de necessidades: pseudonecessidades, necessidades artificiais, necessidades
básicas, necessidades estrategicamente plantadas pelo marketing, necessidades que
não sei se tenho, necessidades futuras, até chegar ao desnecessário, o extraordinário
que é demais. A necessidade delira.

Ananke

A necessidade é arquetípica e tem um lugar na alma, um nexo psíquico mais profundo.


Ananke, a Necessidade, rege os movimentos da alma, é a personificação da força
constrangedora dos poderes do destino — os decretos do destino físico e do destino
psíquico. Longe ou separada da alma, torna-se escrava da ânsia, do desejo cego, a que
chamamos ansiedade (que tem a mesma raiz etimológica que ananké). Ansiedade, em
essência, é desejar profundamente… coisa nenhuma!

Afrodite

A sedução é o terreno de Afrodite, e ela, banida da civilização secular, destituída de um


lugar de honra dedicado à beleza e ao amor sensual, retorna no apelo ao consumismo
puro. A sedução das coisas pelas coisas: literalismo, ânsia cega pelo mundo, a que
chamamos… ansiedade. Sempre que somos seduzidos, sabemos que é seu o trabalho
na alma, alinhando-a com o desejo, com Eros.
Já que hoje, como disse Hillman, o “shopping center e o catálogo de compras são os
lugares onde Afrodite trabalha sua sedução”5, é lá, na embriaguez do consumo, na
hiperescolha, que encontramos a fantasia da conquista do mundo, do deleite sensual
pelo mundo.

Mas o jogo da sedução, na verdade, está em tudo, em todas as pontas da sociedade de


consumo; não podemos dele escapar, e já nada fazemos sem sua presença. A
ampliação das necessidades também tem a ver com ele, assim como a lógica do
efêmero e da novidade na qual estamos mergulhados. E também a pornografia, a
inflação erótica, o sexo serial: consumo sexual. Afrodite furiosa está conosco desde o
amanhecer até quando nos deitamos, adentrando o mundo dos sonhos e a noite escura
da alma. A sedução explode.

Na troca, enxergamos a “inflação hermética” de que também fala Hillman, a cultura


midiática de massa. Hiperconectividade, hipermercado, hiperconsumo: tudo se liga.
Supertroca, super-comércio: de informação, de serviços, de produtos, de afetos, de
imagens, de mensagens. Tudo pago. Devo manter-me informado, trocando o tempo
todo, “estar ligado” – ligado/desligado, on/off: eis o dilema. Comércio de tudo, tudo se
torna comercial.

O mercado se apossa do que não estava no mercado, e que talvez a ele mesmo não
pertença; tudo é absorvido pelo modelo consumista: amor, relações, espiritualidade,
direitos humanos etc. A hipertrofia mercurial da comunicação, da informação, reflete
uma aceleração da troca. A troca dispara.

É nesse campo mercurial que vemos como a lógica do consumo nos apresenta hoje ao
jogo entre desuso (tempo acelerado) e reuso (tempo lento). Use e abuse virou desuse
(descarte) e reuse (recicle). Descartar ou reciclar? A tensão entre o descartável e o
reciclável mostra-nos o delírio hermético na sociedade da hipertroca.

A prótese do prazer

A face mais nervosa do consumo é seu sumo, o gesto consumista por excelência:
acompra, propriamente dita.

Comprar é um impulso ascendente, de natureza espiritual, que nos joga no eixo entre
elevação e mergulho. Mas é também um foco de fantasia, portanto um lugar de alma,
nunca um gesto puro. Diga-me o que compras e te direi quem és! Direi também como
patologizas e como imaginas a liberdade.

Assim, comprar, como qualquer ação arquetípica, também está cheia de deuses: a
compra heróica e suada, a compra racional saturnina feita em vezes, a compra
prazerosa e sensual, de impulso, a compra culpada ou martirizada, a compra que
rejuvenesce, a compra festiva e de expansão da personalidade, a compra pornográfica,
a compra generosa e a retensiva, a compra para o outro, a compra que é um presente,
um modo de dizer algo.

A febre de comprar nos faz pensar, como sugeriu Lipovetsky, que “ela seja uma
compensação, uma maneira de consolar-se das desventuras da existência, de
preencher a vacuidade do presente e do futuro”6. O frenesi das compras então funciona
para nossa longa solidão egóica como “simulacro de aventura”, o fantasma da obra,
pequena loucura cotidiana, a prótese do prazer.

A compra é a magia do efêmero. É asa, é brasa. É futuro, promessa, desejo de mudar,


intensificação, momento de morte. É o fim da produção, quando as coisas são
finalmente absorvidas pela psique.

A compra, ao contrário do que se poderia pensar, dissolve o ego em alma, dissolve o


ego heróico em sua fantasia de morte. Comprar é o que resta. Comprar é nosso modo
de fazer o mundo virar alma.

Gustavo Barcellos é psicólogo pela PUC-SP; mestre em psicologia clínica pela New School for Social
Research de Nova York; membro analista da Associação Junguiana do Brasil (AJB) e da Associação
Internacional de Psicologia Analítica (IAAP). Autor de Jung, Editora Ática e de Vôos e raízes: ensaios
sobre imaginação, arte e psicologia arquetípica, Editora Ágora. Editor da revisto Cadernos Junguianos
da AJB.

1 C. G. Jung, CW 13, §54: “Os deuses tornaram-se doenças”.


2 “Hipercapitalismo, hiperclasse, hiperpotência, hiperterrorismo, hiperindividualismo, hipermercado, hipertexto —
o que mais não é hiper? O que mais não expõe uma modernidade elevada à potência superlativa? […] Tudo se passa
como se tivéssemos ido da era do pós para a era do hiper.” Gilles Lipovetsky, Os tempos hipermodernos, Editora
Bacarolla, 2004, p. 53, 54, 56.
3 Gilles Lipovetsky, O império do efêmero, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 174.
4 James Hillman, Re-Visioning Psychology, Nova York: Harper & Row, Harper Colophon Edition, 1977, p. 69.
5 James Hillman, “Loucura cor de rosa ou por que Afrodite leva os homens à loucura com pornografia”,
em Cadernos Junguianos, Revista anual da Associação Junguiana do Brasil, São Paulo, nº 3, 2007, pp. 7-
35.6 Gilles Lipovetsky, Os tempos hipermodernos, Editora Bacarolla, 2004, p. 79.

04 de Dezembro de 2008

Palavras chave: Consumismo, Sociedade


A fábrica do desejo
Instituição onipresente em nossa sociedade, o supermercado é o resultado direto dos primeiros
estudos psicológicos sobre o comportamento do consumidor. Da criação de produtos até sua
apresentação, tudo é feito para manipular os sentidos e os sentimentos, a fim de favorecer a
compra impulsiva e o consumismo

por Franck Mazoyer

Foi em 1996. Uma notícia como outra qualquer. Os seguranças de umagrande loja
haviam pego um menino de dez anos com um joguinho eletrônico que ele acabara de
roubar, por não ter dinheiro. Para dar-lhe uma lição, a direção da loja foi severa: uma
hora de intimidação e voltar para casa entre os dois seguranças. Em pânico, o garoto
escapou da vigilância dos dois guardas e se jogou do terceiro andar do prédio. Uma
decisão terrível, extrema, tomada em poucos segundos. O mesmo tempo necessário
para decidir, duas horas antes, furtar o maldito jogo. Uma questão de pulsões, nesse
caso com conseqüências trágicas, mas sobre as quais repousam, depois de muitos
anos, estratégias comerciais perfeitamente elaboradas.

Financiados por grandes grupos de distribuição, foi nos anos 1950 que apareceram os
institutos de “pesquisa de motivações”. Sua missão: estudar o comportamento do
homem comum para incitá-lo, à sua revelia, a comprar este ou aquele produto. Tratava-
se de “escanear” o subconsciente das pessoas, identificar as diferentes personalidades
(os passivos, os ansiosos, os hostis etc.) e descobrir suas fraquezas profundas. Em
seguida, era o momento de conceber a “isca” psicológica que devia ser mordida.
Segundo a revistaSales Management, “em 1956, 12 milhões de dólares foram gastos
por fabricantes como Goodyear ou General Motors para financiar esse tipo de
pesquisa” 1.

Os primeiros resultados foram reveladores. Para ser comprado sem hesitação, o produto
devia responder a oito diretrizes ocultas: cortejar o narcisismo do consumidor,
proporcionar-lhe segurança emocional, assegurar-lhe que ele era merecedor, inscrevê-lo
em sua época, transmitir-lhe sentimentos de autenticidade, poder, imortalidade e
criatividade. Ao agir sobre essas diferentes alavancas, distribuidores e publicitários
fariam com que seus produtos fossem comprados não por sua utilidade real, mas pela
“falta” que eles prometiam preencher. Dessas pesquisas nasceu um conceito comercial
conhecido de todos: o supermercado. Uma imensidão de escolhas, prateleiras a perder
de vista, uma avalanche de luz e cores. Um conjunto de elementos que subjugam o
consumidor, fazem-no perder suas referências e, ao final, favorecem as compras por
impulso. “Em mercearias, onde há vendedores, as compras impulsivas são reduzidas
aproximadamente à metade. Diante de um vendedor, o cliente reflete sobre aquilo de
que realmente tem necessidade” 2.

No contexto do supermercado, o cliente volta a habitar um reino semelhante aos


descritos nos contos de fada de sua infância, onde tudo que deseja está ao alcance da
mão. Com a ajuda de câmeras para registrar o número de batimentos das pálpebras, os
pesquisadores mostraram que clientes mergulhados nesse universo “maravilhoso”
encontravam-se em um estado próximo ao primeiro estágio da hipnose. O número de
batimentos das pálpebras, normalmente de 32 por minuto, caía pela metade enquanto
duravam as compras, para retomar em seguida seu ritmo habitual – após uma nítida
elevação na passagem pelos caixas, marcando a volta à realidade. Esse estado de
maravilhamento, no qual as resistências são diminuídas, favorece de forma significativa
a compra por impulso.
Maravilhar para seduzir. Nada mais fácil quando as pessoas em mira são o alvo
preferido dos marqueteiros: as crianças. Um especialista no assunto, Clyde Miller,
explica a importância de se dirigir especificamente a elas: “Dá trabalho, é verdade, mas,
se você pensa em ficar no negócio por muito tempo, imagine o que pode significar em
termos de lucro para sua empresa se puder condicionar um milhão ou dez milhões de
crianças, que serão um dia adultos treinados a comprar seu produto, como os soldados
são treinados a avançar quando ouvem a voz de comando”.
Para fidelizar seus futuros clientes, a idéia foi incorporar às lojas jogos e atividades
lúdicas. Estratégia: gravar em sua memória emocional essa atmosfera alegre que eles
tentarão, uma vez adultos, reviver ao consumir. Cinqüenta anos mais tarde, essas
práticas foram adotadas com muito sucesso por marcas como Ikea ou McDonald’s.
Qualquer um que tenha entrado em um desses templos do consumo já pôde observar
uma área reservada às brincadeiras infantis. A Fnac também se mostra toda atenciosa
com sua jovem clientela. A empresa investiu mais de 15 mil euros em cada unidade para
pagar os serviços de especialistas em marketing sonoro. Após entrar na Fnac Junior
(especializada em games infantis), um jogo de amarelinha ao som de uma música doce
conduz sutilmente os pequenos. No centro, encontramos uma passarela musical. Cada
passo ativa uma nota. As crianças adoram. Para atrair e prender os visitantes, a música
acompanha o tipo de brinquedo que elas descobrem. “É preciso que saibamos, de olhos
fechados, que estamos nesta loja, e não em uma concorrente”, explica Michael
Boumendil, que concebeu o aperfeiçoamento sonoro. “A música cria um verdadeiro elo
afetivo com o lugar e mergulha crianças e pais no universo da marca”. Uma
interatividade com o ponto de venda que renderá seus frutos dentro de alguns anos.

Do mesmo modo, numa megastore, a escolha da música ambiente em nada se deve ao


acaso. Em lugares assim, a questão é o tempo. Uma música lenta com propensão à
nostalgia desacelera o passo dos clientes. E, quanto mais tempo eles ficam dentro da
loja, mais consomem. Por outro lado, nos fast-foods, onde a intenção é criar uma cadeia
coordenada de serviços, opta-se por músicas bem mais ritmadas. Uma questão de
rentabilidade.

“O som é um poderoso estímulo de compra”, confirma Thierry Lageat, responsável de


marketing do grupo Brime Technologies. Nessa empresa de pesquisa em marketing
sensorial, antes de inseri-los no mercado, os clientes submetem seus produtos a
especialistas conhecidos como “ouvidos de ouro”. A função deles é comparar o som de
novos produtos com os sons sintetizados, portadores de uma imagem positiva.
“Tentamos desenvolver normas para definir o que é um som agradável e portador de
sentido. Por exemplo, um som de clique simboliza segurança. Ele pode ser requisitado
para acompanhar uma embalagem de gel hidratante ou uma porta de carro sendo
fechadas. Outras sonoridades irão gravar no espírito do consumidor a idéia de
dinamismo, frescor ou mesmo luxo”. Ao escutar repetidamente esses sons feitos sob
medida, o ouvido fica inconscientemente condicionado a prestar mais atenção a eles.

Em uma sala ao lado, Christel, engenheira de marketing sensorial, testa cereais.


Embalagem sendo aberta, leite derramado, mastigação. “Nesses diferentes estágios,
procuramos otimizar os sons que irão aumentar o apetite”, explica ela. “Desde a abertura
da embalagem, tudo é trabalhado para despertar os sentidos. A forma dos cereais é
recalculada se não se obtém um som bem crocante”. Com a ajuda de um software que
integra a forma e os materiais do produto testado, os pesquisadores podem conceber as
modificações a serem feitas para obter a “boa” sonoridade.

Para lutar contra a concorrência, tudo é explorado e tira-se partido da menor fraqueza do
consumidor. A empresa trabalha igualmente na área do tato. Seus especialistas
estudam a dureza, a maleabilidade, a aderência de um produto para definir sua carteira
de identidade sensorial. Isso vale tanto para escovas de cabelo quanto para telefones
celulares. Na medida em que o acesso ao produto é livre, como em uma megastore, o
tato se torna uma maneira suplementar de persuasão na hora da compra.

Graças às novas tecnologias, os fabricantes se voltaram também para os odores. O


objetivo foi incorporar aos jogos eletrônicos o cheiro de pneus queimando, do bafo de
um dragão ou odor da pólvora de uma arma de fogo. DigiScents e AromaJet, duas
empresas americanas, lançaram-se a essa tecnologia numérica olfativa. Elas
pretendiam colocar no mercado geradores de cheiros conectados diretamente ao
computador. Sob a forma de cartuchos, esses geradores contêm várias essências
básicas que podem ser associadas entre si para a obtenção de inúmeras nuanças
diferentes. A mistura é em seguida soprada na direção do jogador com a ajuda de um
microventilador. Grandes grupos industriais, como Procter & Gamble e Nestlé, para os
quais o odor dos produtos constitui um argumento de venda, interessaram-se por essa
possibilidade, pensando em fazer promoção via internet.

Cheiro de carro novo

Sendo o olfato o sentido mais poderosamente manipulável, o marketing olfativo lança


mão de especialistas em química orgânica para criar esses aromas artificiais. “Os
cheiros ficam gravados no cérebro humano de um jeito extremamente durável”, explica
Aurélie Duclos, pesquisadora em marketing olfativo. “Eles são estocados no nível do
sistema límbico, sob a forma de emoções ligadas ao contexto no qual marcaram o
sujeito. Se a pessoa sente outra vez um desses odores, ela volta a mergulhar na
experiência vivida antes.”

O consumidor, pobre coitado, não tem consciência de nada disso. O estímulo é feito
completamente à sua revelia. Uma tentação para megastores e hipermercados.
Algumas, para incrementar as vendas, não resistiriam: difusão de aromas artificiais de
frutas maduras em frutas que ainda não estão, odor luxuoso de couro em produtos de
plástico etc. A última novidade é o cheiro de couro novo, que faz a alegria dos
vendedores de carros usados. Em todos esses casos, trata-se sem dúvida de
publicidade enganosa, mas é difícil estabelecer algum tipo de controle.

O centro de robótica da École des Mines de Paris criou a primeira loja virtual para testar
os consumidores. Dentro de uma sala em que as paredes foram substituídas por telas
gigantes, o cliente-cobaia, acionando um carro de verdade com instrumentos, se desloca
virtualmente pelos trajetos. No fundo da sala, atrás de um vidro espelhado, analistas
observam suas reações. Segundo Alain Sivan, especialista da análise do
comportamento e dos processos decisórios, “isso permite estudar o impacto visual dos
produtos sem ter de fabricá-los efetivamente”. Nos Estados Unidos, como complemento
a essas técnicas, são utilizados pupilômetros. Quanto mais a pupila se dilata, mais o
cliente está interessado. Já a empresa Capita Research Group avaliou o nível de
envolvimento do telespectador diante de uma inserção publicitária, com a ajuda de
eletroencefalogramas 3. Segundo o tipo de ondas emitidas pelo cérebro, podemos saber,
sem passar pelo depoimento excessivamente subjetivo da pessoa, se o produto tem
chance de agradar ou não.

Em tal contexto, mesmo achando que está livre, o consumidor cai numa armadilha
invisível em que cada um de seus gestos foi previsto com antecedência, cada decisão
sua foi anteriormente estudada. As pressões exteriores, assim instrumentalizadas, se
metamorfoseiam, para enorme alegria dos marqueteiros, em pulsões inconscientes, cujo
efeito é semelhante ao do álcool para os dependentes alcoólicos. Jean Adès e Michel
Lejoyaux, psiquiatras, descrevem um caso exemplar, o de Eléonore: “No momento de
suas compras, ela demonstrava uma emoção intensa, a impressão de não ser mais ela
mesma, de perder todo o controle. Em uma mesma tarde, era capaz de comprar
dezenas de vestidos, dezenas de pares de sapatos, vários chapéus. Despejada do lugar
onde morava após seis meses sem pagar o aluguel, Eléonore, em seguida a uma
tentativa de suicídio, foi hospitalizada na ala psiquiátrica” 4. Esta foi a oportunidade para
que começasse, enfim, uma difícil jornada em busca de si mesma.

Franck Mazoyer é jornalista.

1 Citado em Vance Packard, La persuasion clandestine, Paris, Calmann-Lévy, 1989.


2 Ibid.
3 Le Monde, 18 de abril de 2000.
4 Entrevista concedida por ocasião do lançamento de seu livro, La fièvre des achats, Paris, Les Empêcheurs de
Penser en Rond, 2000.

04 de Abril de 2008

Palavras chave: Consumismo, Empresas, Sociedade

Você também pode gostar