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Fernando Nicolazzi, Helena Mollo & Valdei Araujo (org.).

Caderno de resumos & Anais


do 4º. Seminário Nacional de História da Historiografia: tempo presente & usos do
passado. Ouro Preto: EdUFOP, 2010. (ISBN: 978-85-288-0264-1)

A representação histórica do ideal iluminista: história da historiografia do


iluminismo
Josias José Freire Júnior1

De acordo com o filósofo Walter Benjamin (1892-1940) escrever a história


significa, entre outras coisas, responder aos apelos do passado no presente. Também
para W. Benjamin a história é sempre também a história de uma forma peculiar de
apreender o passado e o presente daquele passado visado, isto é, ele defende uma
história como a história da experiência do tempo em determinado momento.
Verificaremos a plausibilidade destas idéias a partir da análise de um texto clássico da
história da filosofia do Iluminismo, o texto A Filosofia do Iluminismo, de Ernst Cassirer
(1874-1945). Identificamos na história da filosofia do Iluminismo, apresentada por E.
Cassirer, uma representação peculiar desta filosofia, que no interior de seus
pressupostos críticos, representa o ideal filosófico de seu autor. A narração da história
da filosofia do Iluminismo elaborada por E. Cassirer representa assim a apreensão de
determinados elementos da história do Iluminismo que dão coesão não apenas à história
construída pelo filósofo, mas também à representação da história do Iluminismo visada
por ele.
Partiremos de alguns comentários da teoria do conhecimento na época do
Iluminismo, tal com exposta por Ernst Cassier em sua importante obra, A Filosofia do
Iluminismo (CASSIRER, 1994). Apresentaremos então considerações acerca da maneira
pela qual a experiência moderna da história e a concepção de história originada nela
pode ser compreendida como um desdobramento – e não simples conseqüência – do
conceito de conhecimento do Iluminismo. Concluiremos com a apresentação das
críticas de Friedrich Nietzsche aos conceitos modernos de história e conhecimento,
crítica que, como veremos, não cessa até o nível do escárnio, dirigido pelo filósofo
alemão, à homem de sua época.

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Universidade Federal de Goiás. Mestrando em História. Fonte Financiadora: CAPES.

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Fernando Nicolazzi, Helena Mollo & Valdei Araujo (org.). Caderno de resumos & Anais
do 4º. Seminário Nacional de História da Historiografia: tempo presente & usos do
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A título de conclusão de nosso singelo texto apresentaremos algumas


perspectivas a partir das quais seja possível ligar a crítica da representação e a crítica da
adequação da história a determinado paradigma científico, à possibilidade de refletir
sobre nosso conceito de história frente às demandas contemporâneas. Nestas últimas
linhas utilizaremos como suporte às considerações do teórico alemão Jörn Rüsen acerca
da narrativa histórica (RÜSEN, 2001) e da escrita da história (RÜSEN, 2007).
Para Cassirer a filosofia do Iluminismo, em termos de teoria do conhecimento,
foi caracterizada, em termos de procedimento, pela passagem das filosofias sistemáticas
do século XVII ao o espírito analítico do XVIII. O método da filosofia – que doravante
influenciaria o modo do pensamento científico pós-iluminista – se deslocou, de acordo
com o filósofo alemão, da demonstração geométrica e da dedução rigorosa dos
princípios, para a via da análise, concretizada no exemplo da física, pela
experimentação controlada metodicamente. Seguindo Cassirer: “Em vez do Discurso do
Método de Descartes, apóia-se [a teoria do conhecimento da época das luzes] na
Regulae philosophandi de Newton para resolver o problema central do método da
filosofia” (CASSIRER, 1994: 24). O deslocamento no significado do método não
significou senão uma mudança de ênfase entre geral e particular. Se não houve uma
“radical mutação” nas “formas de pensar” (CASSIRER, 1994: 43-44) entre os séculos
da filosofia e o da ciência, a função da razão se modificou neste intervalo. Antes de
acompanharmos esta modificação – que é o ponto que mais nos interessa – nos
asseguremos do novo significado do método.
A hegemonia da razão deveria ser verificada não na comprovação da
universalidade dos princípios, e sim na constatação de que, a partir do “procedimento
analítico”, a ordem do mundo empírico seria constatada nas leis. Para Ernst Cassirer “a
via newtoniana não é a dedução pura, mas a análise” (CASSIRER, 1994: 25). Sendo
assim, qual era o procedimento da análise, que a diferencia da dedução geométrica? O
eminente filósofo da Escola de Marburgo responde: “decomposição sintética do
fenômeno que nos é fornecido pela intuição e pela observação imediata para resolvê-la
em seu momento constitutivo” (CASSIRER, 1994: 28). O procedimento analítico deve
partir dos fatos, e através deles, constatar inteligibilidade da natureza. Ainda nas
palavras de Cassirer:

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O newtonismo não pressupõe como objeto e condição inviolável da


investigação, senão a ordem e a legalidade perfeita da realidade empírica.
Entretanto, essa legalidade significa que os fatos, como tais, não são um
material simples, uma incoerente massa de detalhes, mas que se pode mostrar,
nos fatos e pelos fatos, a existência de uma forma que os penetra e os une. Mas
é justamente essa articulação que não pode ser objeto de uma antecipação
conceptual, ela deve ser encontrada e demonstrada nos fatos (CASSIRER,
1994: 26).

A natureza é inteligível porque o que a caracteriza como tal é a lógica imanente


aos seus fatos, lógica que permite demonstrar a razão engastada nos próprios
fenômenos: “que se demonstre a razão nos próprios fenômenos como forma de sua
ligação interna e de seu encadeamento imanente” (CASSIRER, 1994: 26). O
procedimento metódico consiste em decompor os fenômenos em seus elementos
constitutivos e reconhecer nesses a razão que os tornam inteligíveis e que caracteriza
essa inteligibilidade: “Que o espírito se abandone, pois, a toda a riqueza dos fenômenos,
que se meça continuamente por ela: longe de correr o risco de aí se perder, está seguro
de encontrar nela sua verdade e sua própria dimensão” (CASSIRER, 1994: 27). A
natureza é, pois inteligível porque existe em sua constituição o mesmo sentido que
possibilita o conhecimento verdadeiro, é por ser dotada de uma “forma”
“matematicamente determinada” que seus fatos são oferecidos ao conhecimento
ilimitado: “É assim que se estabelecerá a verdadeira reciprocidade, a verdadeira
correlação de ‘sujeito’ e ‘objeto’, de ‘verdade’ e ‘realidade’ e que se produzirá entre
esses termos a forma de ‘adequação’, de correspondência, que é a condição de todo
pensamento científico” (CASSIRER, 1994: 27).
A centralidade da análise na teoria do conhecimento científico do Iluminismo
dotou a razão de uma nova função, no interior da hegemonia já conquistada desde o
racionalismo cartesiano. A mudança de ênfase, do geral para o particular, a renúncia a
forma de explicação sistemática (CASSIRER, 1994: 24), a passagem, em termos de
métodos, da dedução para a análise (CASSIRER, 1994: 25), a busca por princípios que
se transforma na constatação desses, pelas vias da observação, nos fatos e pelos fatos

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(CASSIRER, 1994: 26), alteraram a função e a posição da razão na ordem do saber. A


origem da razão deixa o reino das “idéias inatas” e passa à “essência absoluta das
coisas” (CASSIRER, 1994: 32). A questão deixa de ocupar a estrutura do quê conhecer
para o do como conhecer. Se questão do ser dos fenômenos naturais se deslocou para a
questão do modo – as “condições particulares que o determinam” (CASSIRER, 1994:
29) – do ser, os horizontes do conhecimento se estenderam ao infinito: se a razão
humana é imutável e universal, o caminho em direção ao conhecimento da natureza
passa pela constatação, pela experiência,da racionalidade de sua organização: “A
potência da razão humana não está em romper os limites do mundo da experiência a fim
de encontrar um caminho de saída para o domínio da transcendência, mas em ensinar-
nos a percorrer esse domínio empírico com segurança e habitá-lo comodamente”
(CASSIRER, 1994: 31-32). Habitar comodamente o mundo empírico: o espaço infinito
não deveria mais apavorar o cientista seguro de si e da natureza. A angústia pela
inesgotabilidade do conhecimento do infinito foi substituída pela “autoconfiança da
razão” (CASSIRER, 1994: 44) na possibilidade de realizá-lo: se o constatar possível,
persiga-o até onde for necessário: “Um e outro, o conhecido e o desconhecido, deve
poder apresentar-se sob forma quantitativa e, como tais, inferir-se de uma só e mesma
unidade numérica. A forma discursiva do conhecimento tem constantemente, pois, o
caráter de uma redução: ela reduz o complexo ao simples, a diversidade aparente à
identidade que a fundamenta” (CASSIRER, 1994: 45). Esta passagem já nos permitiria
encaminhar à crítica nietzschiana ao conceito de história da modernidade como pano de
fundo às críticas à autoconfiança da razão em sua unidade, sua universalidade e ao seu
progresso.
Desta forma podemos afirmar, com Ernst Cassirer, que “o método da razão é,
portanto, nesse domínio [o social] exatamente o mesmo que nas ciências da natureza e
no conhecimento psicológico” (CASSIRER, 1994: 42). Não apenas no domínio do
social, mas também do histórico: “Com efeito, já não se trata de examinar um
determinado setor dos fenômenos da natureza, por muito vasto e importante que ele seja,
mas a fundamentar universalmente a dinâmica, a teoria da natureza como tal”
(CASSIRER, 1994: 28). O grau de semelhança entre a teoria do conhecimento do
Iluminismo e o que chamamos de “conceito moderno de história” não se coloca como

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questão, inegável é a influência – tensa – da primeira sobre o segundo. A


“disponibilidade da história” em seu conceito moderno, como apresenta R. Koselleck
em sua conhecida obra, parte de um afastamento do conceito narrativo de história – que
a marcou em sua época clássica, submetida às “belas letras” – em direção a um conceito
de “ação” (KOSELLECK, 2006: 237), que só atingiu este status pela confiança no
conhecimento do passado – que justificaria e legitimaria a ação política, pois a
linguagem do historiador, deve ser controlada pela teoria que garante a unidade do
procedimento e a continuidade racional da realidade – garantida pelo progresso do
conhecimento. Progresso que nem precisaria progredir-se infinitamente, pois a
infinidade do horizonte já está implícita na certeza do conhecimento verdadeiro.
As críticas do filósofo alemão Friedrich Nietzsche alcançaram a história no
instante de sua realização máxima, no momento em que a razão, garantidora do
progresso, da unidade e da legitimidade do conhecimento, estava longe de ser
questionada. Antes de passar ao filósofo intempestivo tentaremos dar um pouco mais de
clareza às nossas idéias com um balanço breve do que até agora fora discutido nesta
seção, e possíveis relações com este tema com o tema maior de nosso texto.
Das análises anteriores, nas quais tentamos acompanhar algumas idéias de
Cassirer acerca da teoria do conhecimento no Iluminismo podemos indicar algumas
questões relevantes ao nosso debate. Guardada todas as grandes diferenças, existiu uma
continuidade nos conceitos de verdade, conhecimento e razão, entre o pensamento
iluminista e o conceito de história que nos influencia tanto até hoje. A nossa dívida para
com o Iluminismo é inegável; a idéia de ciência, tal como o que tentamos fazer hoje,
não existiria sem os avanços daquela época, isso para limitar as influências ao nosso
meio. Desde o começo nosso objetivo principal é reconhecer esta dívida e ao mesmo
tempo fazer justiça à ela, criticando-a, como o Iluminismo nos ensinou.
O pressuposto de que a razão se encontraria na perfectibilidade da natureza
engendrou no espírito da modernidade a certeza no progresso do conhecimento, e por
essa, a necessidade de tomar o mundo como dado a ser escrutinado pelos poderes da
razão, em favor da verdade. Com a história não seria diferente: para se tornar ciência,
discurso sobre a verdade, o passado deveria ser reconstruído a partir de seus indícios, e
dotado mais uma vez de vida. Não há obstáculo a esta empreita, exceto um: o retorno do

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conhecimento à vida não se dá naturalmente. Se o glorioso passado dos grandes homens


se depara, através da história, com uma vida não tão gloriosa, o sentido que ele
despertaria não é outro senão o de ruptura. E este é apenas um exemplo da “crise” que
se abateu sobre as certezas dos homens modernos. Como ordenar esta discussão?
Passemos pelas críticas de Nietzsche sem transformá-las em um fim.
O alvo dos ataques do filólogo alemão foi sua época em suas diversas
manifestações. Na ciência histórica de seu tempo, Nietzsche encontra uma patologia da
decadência, que deveria ser combatida vigorosamente pelas forças vitais, que deveriam
salvar os indivíduos, a cultura e o povo da decadência instaurada por aqueles que
negariam por diferentes motivos a vida.
Apresentaremos algumas idéias presentes nas Considerações Intempestivas a
partir de três pontos: a crítica nietzschiana à história, especificamente à parte
considerada inútil da história, que causaria dano à vida; em segundo lugar
apresentaremos algumas idéias sobre as possibilidades, de acordo com Nietzsche, de a
história servir a vida, e, por fim, ao ponto que articulará as considerações do filósofo à
proposta de nosso texto: o quê, para Nietzsche, impede a história de servir a vida, e o
porquê de, entre a história útil e a danosa à vida, a época do filósofo insistia na segunda.
Logo nas primeiras linhas Friedrich Nietzsche indica o alvo de seus ataques: a
“poderosa corrente historicista”, “orgulho” de sua época, defensora de uma “virtude
hipertrofiada”, o “sentido histórico” (NIETZSCHE, 2005: 69) que eclipsa o verdadeiro
sentido da vida com o peso da história, que faz do homem “prisioneiro do passado”
(NIETZSCHE, 2005: 71). A história aprisiona o homem em seu excesso, em sua busca
ociosa, que não serve à vida. Mas a qual vida Nietzsche se refere? Para o filósofo
alemão a vida não se resume aos processos biológicos, ou a vida cultura, em sim
engloba ambas as dimensões. O indivíduo vivo nestes termos é aquele dotado de uma
“força plástica”, a força que “permite a alguém desenvolver-se de maneira original e
independente, transformar e assimilar as coisas passadas ou estranhas, curar suas
feridas, recuperar as suas perdas, reconstruir para si próprio as formas destruídas”
(NIETZSCHE, 2005: 73). Identificamos nesta passagem motivos relacionados à
identidade – que poderia ser sobre a identidade individual, cultural ou nacional – e
motivos críticos, dirigidos a negação da vida, frente à constatação de que “toda a

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existência é tão somente uma eterna incompletude” (NIETZSCHE, 2005: 71). A história
prestaria um desserviço à vida, assim, nestas duas frentes: atrofiaria a ação individual
transformadora do presente pelo presente, impediria o homem de desfrutar da felicidade
do instante: “a faculdade de sentir as coisas, durante todo o tempo em que dura a
felicidade, fora de qualquer perspectiva histórica” (NIETZSCHE, 2005: 72). O filósofo
alemão mantém o mesmo núcleo de sua crítica dirigida ao cristianismo, à época
moderna, à cultura de seu tempo e às filosofias, tanto materialistas quanto idealistas que
não visem unicamente a vida.
Mas ao longo do texto o filósofo mantém o cuidado dirigir suas críticas ao que
ele tem por parte inútil da história, visto que esta parece ter alguma utilidade. O que
seria útil na história para Nietzsche seria a sua parte que “interessa os seres vivos”,
interesse motivado por três razões: “por que eles perseguem um fim, porque eles
conservam e veneram o que foi, porque eles sofrem e tem necessidade de libertação”
(NIETZSCHE, 2005: 82). O filólogo apresenta então os três tipos de história que
realizam estes interesses: a “história monumental”, a “história tradicionalista” e a
“história crítica” (NIETZSCHE, 2005: 82).
Aprender com os exemplos da história, conhecer o passado e reverenciar sua
grandeza, buscar o futuro na crítica ao passado são serviços fundamentais que a história
pode oferecer a vida. Mesmo assim estes serviços podem se corromper pelo excesso,
passando a atacar à vida que deveriam servir: a história monumental, excedendo sua
função, corrompe a vida por disseminar o ódio contra os grandes do presente em nome
dos “grandes do passado” (NIETZSCHE, 2005: 90), a história tradicionalista, em
excesso, negaria “tudo aquilo que é novo e em vias de nascer” (NIETZSCHE, 2005:
94), e por fim, a história crítica, corrompida pelo excesso, atribuiria ao presente a
responsabilidade de julgar o passado, sem ser melhor ou superior a ele (NIETZSCHE,
2005: 97). A corrupção da vida pela história, a negação do presente em favor do
passado, são perigos que podem ser evitados, se o instante a-histórico for preservado.
Mas por que não escolher a história que sirva à vida? Por que os contemporâneos de
Nietzsche estavam cegos a ponto de negar a vida em favor da verdade?
As maneiras pelas quais a história pode servir a vida foram corrompidas pela
“multidão de puros pensadores que só fazem contemplar a vida como expectadores”

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(NIETZSCHE, 2005: 98). Mas por quê? O que se interpôs entre história e vida?
Nietzsche responde: “um astro magnífico e luminoso se interpôs efetivamente entre a
história e a vida [...]” (NIETZSCHE, 2005: 99). Nietzsche não nega a ciência, critica
sua interposição em relação à vida. Qual impulso que fez da vontade de ciência algo
mais importante que a vontade de vida? “pela vontade de fazer da história uma ciência”
(NIETZSCHE, 2005: 99).
A ciência na qual a história tentava se modular na época de Nietzsche possuía
algumas características, entre elas, a crença na unidade da razão e do progresso do
conhecimento, que resultou, como vimos, na garantia do conhecimento universal e no
reconhecimento de que apenas este conhecimento, posto que verdadeiro, garantiria a
transformação do mundo em um lugar habitável, ilimitado, mas cuja infinidade tinha o
mesmo traço da razão humana (CASSIRER, 1994: 45). Nietzsche não suportava a
autoconfiança da razão, a arrogância e as garantias de se desdobraram a partir delas.
Para o filólogo, não existe vida sem a “existência de uma linha de demarcação entre o
que é claro e bem visível e o que é obscuro e impenetrável” (NIETZSCHE, 2005: 74), e
o maior erro da ciência seria subestimar a riqueza caótica da vida, em favor de ordem,
do progresso, da verdade que não servissem exclusivamente àquela. Em que pecou a
ciência da história em relação à vida? Friedrich Nietzsche responde mais uma vez:
“todas as perspectivas estendidas ao infinito, para tão longe até onde podia haver futuro.
Nenhuma espécie jamais viu se desenrolar infinitamente um espetáculo comparável a
este que nos apresenta a história, esta ciência do devir universal” (NIETZSCHE, 2005:
99). Pobre do homem que traveste sua finitude e sua miséria da fantasia do universal. O
excesso de história nega a própria história, pois às perspectivas, estendidas ao infinito,
tomam o lugar do futuro e, por conseguinte da ação transformadora. Apatia gerada pela
garantia de futuro que em determinado momento os homens ousaram pensaram ter em
suas mãos, em nome da ciência que, também ela, se torna decadente se não serve à vida.
Acreditamos ser possível agora amarrar algumas idéias que encaminhem as
considerações finais de nosso texto. Para tanto acompanharemos algumas considerações
do renomado historiador e teórico alemão Jörn Rüsen, considerações que se encontram
no Apêndice à edição brasileira de sua obra Razão Histórica (RÜSEN, 2001) e no

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primeiro capítulo do volume III da série Teoria da História, História Viva (RÜSEN,
2007).
No Apêndice... J. Rüsen elaborou um panorama das questões que giram em torno
da narrativa histórica, especificamente no que se refere às discussões favorecidas pelo
chamado paradigma narrativista. Sendo assim nosso interesse em acompanhar este texto
é duplo: tanto verificar a proposta do teórico alemão quanto à querela em torno no
estatuto da história pós-narrativismo, quanto de apresentar perspectivas, em termos de
balanço atual, dos pressupostos que devem ser criticados ou incorporados, das
discussões mais ou menos encerradas e das possibilidades abertas pelas discussões em
torno da narrativa histórica.
A crítica à radicalização da proposta do paradigma narrativista – radicalização
que, no caso célebre das conseqüências da obra de Hayden White, nem parte do que é
identificado com este “paradigma” – é recusada por Jörn Rüsen no Apêndice... a partir
do reconhecimento de que: primeiro, o caráter narrativo é inalienável da história
(RÜSEN, 2001: 150); depois, a narrativa histórica não exime a história dos domínios do
conhecimento científico, racionalmente controlado pelas vias metódicas (RÜSEN,
2001: 150); e , ainda, a reflexão sobre impossibilidade de questionar o caráter narrativo
da história articulada ao reconhecimento de que narrar é também uma forma que
“corresponde a um modo próprio de argumentação racional” (RÜSEN, 2001: 154) leva
o historiador reconhecer que a narrativa histórica é uma forma peculiar de constituição
racional de sentido.
Em outro texto Rüsen expõe também, de forma também bastante clara – sem ser
superficial – o dilema colocado à ciência da história pelas reflexões sobre a narrativa
histórica e sua semelhança estrutural com a narrativa de ficção. Nas palavras do
historiador e teórico alemão: “A afirmação de que os pontos de vista determinantes da
interpretação histórica são critérios poéticos de sentido [o que a tropologia de White
seguramente constatou] abalou fortemente o estatuto científico da história” (RÜSEN,
2007: 26). Mas este abalo só se confirma se o modelo de ciência que a história visa for
guiado por uma concepção de razão que a tome por um bloco uniforme, que extravasa
as dimensões do mundo e que representa a universalidade pela modelagem das ciências
sociais, históricas, políticas, psicológicas, pelo paradigma da física newtoniana. Nas

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palavras de Rüsen: “Essa afirmação [de abalo] decorre quase inevitavelmente da


concepção tradicional de ciência, que a ciência da história utilizou para distinguir-se
[como vimos também com Koselleck] de sua tradição pré-científica, retórica (RÜSEN,
2007: 26).
Os obstáculos, supostamente colocados no caminho da cientificidade da história
pelas discussões em torno da narrativa histórica não resistem àquelas considerações
acerca da racionalidade peculiar da narrativa histórica. A oposição entre verdade e
narrativa é assim encarada por Rüsen como a oposição entre uma “crítica que prefere a
idéia de divergência e contradição” – ressonâncias das críticas nietzschianas – e uma
“ordem transversal do mundo humano” (RÜSEN, 2001: 167) – o legado subterrâneo do
Iluminismo que justificou e legitimou uma ordem do mundo – ordem que aparece ao
longo história em outros termos, naturalmente. Questão insolúvel, se partirmos de
conceitos de verdade e de realidade inocentes – que nem fazem justiça a riqueza do
Iluminismo. Nas palavras do teórico alemão: “Diferença e pluralidade não são
incompatíveis com coerência” (RÜSEN, 2001: 172).
São as experiências do tempo, para J. Rüsen, que possibilitam a narrativa
histórica ser concebida como forma de constituição de sentido. Esta constituição de
sentido sobre a experiência não e característica exclusiva da narrativa histórica, todo ato
de narrar representa uma experiência específica do tempo (RÜSEN, 2001: 155), mesmo
que esta representação evidencie outra concepção de tempo, a partir de outra
experiência do tempo. Seguindo as palavras de Rüsen: “A constituição de sentido
produzido pela narrativa histórica a partir das experiências do tempo opera-se em quatro
planos”: a “percepção de contingências”, no plano da “interpretação do percebido”, “no
da orientação da vida prática” e no plano da “motivação do agir” (RÜSEN, 2001: 155-
156).
Podemos assim reconhecer a crítica à cientificidade da história – cientificidade
atrelada inextricavelmente ao controle metódico, controle metódico tido por vezes como
legitimação da noção de progresso do conhecimento científico e da autoconfiança da
razão – como a representação das experiências do século XX, sem atribuir uma mera
determinação daquelas críticas por esta representação, já que esse conceito passou pela
crítica – que tentamos elaborar na segunda seção de nosso trabalho – que nos impede de

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tomá-lo ingenuamente. Pensar a representação significa também refletir sobre o lugar


da representação. Talvez assim seja possível concluir que a “falta de sentido” com que
a história se deparou ao longo do século passado pertence ao âmbito da experiência
histórica do tempo, tanto dos fenômenos representados no lugar desta experiência
quanto à experiência de representar em história nosso tempo. Para Rüsen a
“significação do passado tornado presente tem de ser incondicionalmente preservada”
(RÜSEN, 2001: 172). O que antes poderia ser encarado como limitação da história
frente à determinado modelo de ciência passa a ser visto como possibilidade, como
garantia de que, mesmo frente à experiência da “falta de sentido”, a narrativa histórica
garanta um sentido a experiência do passado. A representação peculiar da história do
iluminismo apresentada assim por Cassier deve ser encarado como esforço de
apresentar a história daquele momento – pela organização dos dados – com suas
características específicas. Este reconhecimento não deve diminuir a pretensão de
cientificidade do texto do filósofo de Marburg, ao contrário, ensina-nos acerca da
necessidade que a historiografia também é filha de seu tempo.

Referências

CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. Trad. Álvaro Cabral. 2º Ed. Campinas,


SP: Editora da UNICAMP, 1994.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos
históricos. Trad. Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro:
Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
NIETZSCHE, Friedrich. Escritos Sobre História. Trad. Noéli Correia de Melo
Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2005.
RÜSEN, Jörn. Razão Histórica. Teoria da história: os fundamentos da ciência
histórica. Trad. Estevão de Rezende Martins. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
2001.
____________.História Viva. Teoria da História III: formas e funções do conhecimento
histórico. Trad. Estevão de Rezende Martins. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
2007.

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