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Resenhas

Corpo-projeto
A construção dos corpos: ambiente, Juana escreveu defesas do direito à
educação da mulher e à interpretação das
perspectivas feministas. Escrituras.
Mediante a história de Juana Inés, Ana Liési
STEVENS, Cristina Maria Teixeira; SWAIN, nos revela a disputa que circulava nas
Tânia Navarro (Orgs.). sociedades ocidentais em pleno processo de
reorganização do contrato social. Ela viveu em
Florianópolis: Editora Mulheres, 2008. um contexto histórico marcado por redefinições
das posições que os gêneros deveriam ocupar
na redistribuição dos poderes. Essa releitura
caminhava de mãos dadas com a mudança
O que é um corpo? Hormônios, sangue, que também estava em curso para a inter-
órgãos, aparelho reprodutor? A construção dos pretação dos corpos do isomorfismo para o
corpos, organizado por Cristina Maria Teixeira dimorfismo. Será a suposta diferença natural
Stevens e Tânia Navarro Swain, reúne artigos que entre os sexos que sustentará as teses de
revelam muitos corpos sob o significado corpo. contratualistas para justificar a exclusão da
O livro é composto de 12 artigos escritos por mulher da vida pública. Juana Inés seria a prova
sociólogas, historiadoras, psicólogas, educado- de que teses fundamentadas na estrutura
ras e críticas literárias espalhadas entre Brasília, biológica eram determinadas não por
São Paulo e Rio Grande do Sul. Essa diversidade descobertas revolucionárias das ciências, mas
de áreas do conhecimento produz uma riqueza por interesses de gêneros.
singular nas abordagens sobre o corpo, o Ana Liési, ao mesmo tempo que nos
desejo, a reprodução e a subversão das normas. apresenta a obra e a vida de Juana Inés,
Corpo dócil, inútil, domesticado, abjeto, celiba- discorre sobre o pensamento de John Locke,
tário, puro, lugar de produção de invisibilidade; um dos fundadores do contrato social moderno.
corpos que resistem, subversivos. A urdidura dos O projeto de estruturação dos estados modernos
artigos nos expõe a um léxico singular que marca esteve atrelado a novas configurações dos
um campo de estudos caracterizado por uma gêneros e, simultaneamente, à produção da
disputa com concepções naturalizantes e essen- matriz heterossexual. Para Locke, o con-
cialistas sobre as identidades. O livro é resultado sentimento livre da esposa à subordinação ao
de trabalhos apresentados no Seminário marido, por meio do contrato do casamento,
Internacional Fazendo Gênero, em 2006. não seria uma imposição, mas algo natural,
O artigo “A construção de corpos sexuados consentido. Os contratualistas são intelectuais
e a resistência das mulheres: o caso emblemá- responsáveis pela tessitura de um dos dispositivos
tico de Juana Inés de la Cruz”, de Ana Liési Thurler, discursivos que formarão a matriz heterossexual
é uma contribuição lapidar na luta pela e que encontrarão inteligibilidade nas
visibilização de personagens femininas que complementaridades sexual e de gênero.
afirmaram a importância da participação da Ao pôr em diálogo Juana Inés e John
mulher na vida política e pública. Juana Inés de Locke, Ana Liési termina por nos revelar as
la Cruz, mexicana, viveu entre 1651 e 1695, disputas e resistências em torno das verdades
ingressou no Convento das Carmelitas Descalças para os gêneros que estavam em processo de
aos 16 anos. Ana Liési aponta que a entrada mudança. Juana Inés fez de sua vida um
para a vida religiosa pode ser entendida como contraponto às normas então produzidas para
uma estratégia de resistência, afinal, ali poderia presidir a vida das mulheres. A polaridade Locke
ler, escutar música, escrever e conviver em um e Juana é uma síntese dos acontecimentos mais
ambiente exclusivamente feminino. Nesse amplos que ocorriam nessa época.

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O artigo “Corpos que escapam: as subversiva que deveria ser recuperada como
celibatárias”, de Cláudia Maia, dialoga com o prioritária pelos discursos e estudos feministas. A
de Ana Liési visto estabelecer genealogias que experiência da maternidade é analisada
desnaturalizam a distribuição desigual de poder mediante a leitura da escritora Michelle Roberts,
entre o masculino e o feminino. A autora analisa que destacará as fantasias inconscientes sobre
as estratégias discursivas articuladas pelas a maternidade presentes em sua obra. Os
enunciações médico-científicas, nas primeiras romances da autora são analisados por Cristina
décadas do século XX no Brasil, as quais tinham Stevens como uma tentativa de pensar a
o corpo celibatário feminino como a negação maternidade para além da dualidade natureza/
da natureza feminina. A referência de cultura, o que possibilita repensá-la a partir de
normalidade é o corpo feminino procriativo, no uma perspectiva que desconstrói a mística da
âmbito de uma relação regulada pelo Estado. maternidade como identidade institucional
A autora analisa a crônica A tragédia das imposta, para afirmá-la, conforme Cristina
solteironas, escrita em 1937 por Berilo Neves, Stevens, como admirável experiência inovado-
na qual as mulheres não procriativas são ra. Outra obra interpretada por Cristina Stevens
interpretadas como seres portadores de corpos é a do autor D. M. Thomas. Nessa obra, a autora
defeituosos, doentes e inúteis. A matriz destacará o caráter performático dado à
heterossexual atrelada à biopolítica do Estado, questão do corpo da mãe e da maternidade.
que teve nos contratualistas alguns dos seus Afirmar a maternidade como uma
idealizadores, estava em pleno funcionamento. experiência singular do corpo-fêmea não
Um dos pontos fortes do artigo de Cláudia Maia significa que a autora não esteja atenta às
está em apontar as fissuras e resistências que o armadilhas criadas pelas idealizações para a
dispositivo da sexualidade, nesse momento realização feminina pela reprodução. Cristina
histórico, encontrava. A autora resgata os Stevens recupera a discussão tensa entre
trabalhos de Maria Lacerda de Moura e Ercília natureza e cultura, e, ao apontar a positividade
Nogueira, feministas que criticam os discursos dessa experiência, não resvala nos essencia-
hegemônicos que destinavam e aprisionavam lismos que apontam uma suposta condição
a mulher ao papel exclusivo de donas de casa. feminina ancorada na diferença sexual.
Cláudia Maia observa que há um alcance Da mesma forma que as outras autoras
limitado dessas críticas à medida que a privilegiam pontos de tensão para pensar as
maternidade, instituição fundante da rupturas e a reprodução da ordem de gênero,
heterossexualidade compulsória, não é objeto Cristina Stevens destacará os significados
de desconstrução na obra das feministas. contraditórios da maternidade, entendendo-a
Os artigos da coletânea têm movimentos como um lócus de poder e opressão,
internos similares. Ao apontar o corpo como um autorrealização e sacrifício, reverência e
lugar saturado de discurso, de poder, destacam desvalorização.
as possibilidades de resistências, de fissuras. Além Outra riqueza dessa coletânea está na
dessa questão, pode-se notar que há um núcleo pluralidade das pesquisas e do material utilizado.
de autores que se repetem nas referências Ana Liési faz um estudo histórico do impacto da
bibliográficas, com destaque para as obras de obra de Juana de la Cruz; Cláudia Maia
Michel Foucault e Judith Butler. Possíveis pontos debruça-se sobre textos de literatura e de
de unidade não retiram a singularidade de cada escritoras feministas brasileiras de década de
artigo, tampouco se pode esperar leituras 1940; Cristina Stevens lê obras literárias para
uníssonas sobre conceitos e experiências, a pensar a representação da maternidade. No
exemplo da discussão sobre a maternidade artigo de Diva Muniz, há um resgate da dimensão
desenvolvida por Cláudia Maia e Cristina Stevens. desnaturalizante e desencializadora que a
A maternidade para Cláudia Maia é uma introdução do conceito de gênero representou
instituição política, daí a leitura que médicos nos estudos feministas. É municiada com esse
fazem do corpo celibatário, doente, varonil ou arcabouço teórico, previamente analisado, que
frígido. Assim, não é consequente criticar a Diva Muniz nos apresenta sua interpretação do
heteronormatividade, para a autora, sem filme “O segredo de Brokeback mountain”.
considerar a maternidade como uma das formas Nos artigos, “Sobre gênero, sexualidade” e
privilegiadas de controle dos corpos femininos. “O segredo de Brokeback mountain: uma história
A maternidade, para Cristina Stevens, no de aprisionamentos”, Diva Muniz fará uma
artigo “O corpo da mãe na literatura: uma importante e competente defesa da categoria
ausência presente”, tem uma potência gênero. Para ela, a introdução dessa categoria

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possibilitou pensar mulheres e homens não como gênero revelam que gênero e biologia se
essências biológicas predeterminadas, ante- comunicam na exata medida em que a própria
riores à história, mas uma identidade construída biologia já nasce generificada. O que enten-
social e culturalmente no jogo das relações demos quando falamos de mulheres oprimidas?
sociais e sexuais pelas práticas disciplinadoras e De estrutura biológica? Nessa taxionomia
pelos discursos/saberes instituintes. A autora orientada pela biologia para dividir as espécies,
afirmará que os estudos orientados pela cate- onde caberiam as mulheres transexuais? E mais:
goria analítica gênero recusam os limites empo- onde estariam as mulheres lésbicas transexuais
brecedores de uma abordagem descritiva e que trazem em suas biografias camadas
disciplinar. Dessa nova perspectiva advêm as sobrepostas de exclusão e violência?
possibilidades subversivas. Sua força desestabi- Além disso, conforme apontou Diva Muniz,
lizadora estaria na capacidade de desnaturaliza- resgatando Judith Butler,1 ainda que os sexos
ção e desencialização do binarismo que pareçam não problematicamente binários em
caracterizara os estudos sobre as mulheres. sua morfologia e constituição, não há razão para
Para Diva Muniz, a recepção ao gênero supor que os gêneros também devam perma-
pelos estudos históricos processou-se sem a necer em número de dois.
necessária problematização. Nessa adoção Heleieth Saffioti afirma que “[...] é
descritiva e despolitizada, gênero tornou-se exatamente este fundamento biológico o
sinônimo de mulheres, de estudos das mulheres. elemento não problematizado no conceito de
A autora estabelece uma aliança teórica com gênero” (p. 175). A dimensão biológica aparece
um campo que pensa gênero como produto e no conceito de gênero não como um dado,
processo de diferentes tecnologias sociais, estático, mas permanentemente desconstruído,
aparatos biomédicos, epistemologias, práticas desnaturalizado, em suspeição.
críticas institucionalizadas e práticas da vida O que significou os estudos sobre as
cotidiana. Nesse sentido, o gênero, assim como mulheres em termos de naturalização foi
o sexo/sexualidade, não é algo existente a priori discutido pelo artigo de Diva Muniz. Há
nas pessoas, mas um conjunto de efeitos que pesquisadores/as que continuam operando o
fazem corpos. olhar sobre as relações sociais de gênero com
A segunda parte do seu artigo é dedicada o olhar binário dos estudos sobre as mulheres. A
à leitura do filme “O segredo de Brokeback invisibilidade das mulheres com cromossomas
mountain”. A autora nos oferece uma leitura dos XX, das mulheres transexuais, das travestis e das
mecanismos de produção/reprodução do lésbicas é um fato, no entanto, ao se propor
sistema de gênero na história de amor, silencia- visibilizar as mulheres XX, mediante a recupe-
mento, aprisionamento, homofobia internalizada ração da centralidade dos estudos sobre
e violência que marca as biografias do casal mulheres; seria importante dizer de que mulheres
Ennis e Jack. Heleieth está reivindicando visibilidade. Seria das
Se no artigo de Diva Muniz há uma defesa mulheres heterossexuais brancas? Das mulheres
da força do conceito de gênero, Heleieth negras lésbicas? Das mulheres transexuais
Saffioti, em “A ontogênese do gênero”, discutirá lésbicas? Ainda que se saiba que as hierarquias
os limites desse conceito. A autora proporá a de gênero produzem uma profunda exclusão
revitalização da noção de diferença sexual, do feminino, é limitador e produtor de novas
assim como da importância de seguir adiante invisibilidades equacionar mulheres XX como o
com os estudos sobre mulher. Isso se justifica à feminino e homens XY como o masculino.
medida que a situação das mulheres não mudou Quando a autora afirma “seja no sentido
substancialmente nas últimas décadas, segundo de ter muitos filhos ou de ter apenas um, o fato
a autora. A ênfase do seu artigo está nas formas é que as mulheres são manipuladas, estando o
de reprodução das estruturas assimétricas de controle do exercício de sua sexualidade
gênero. Em sua crítica à utilização do conceito sempre em mãos masculinas” (p. 156), termina
de gênero, afirmará que há um esquecimento por produzir a invisibilidade de mulheres que
do caráter biológico que constitui o ser social. A fazem a opção por ter seus/suas filhos/as sozinhas
leitura dos artigos de Heleieth Saffioti e de Diva e de casais lésbicos que lutam na justiça pelo
Muniz nos revela que o gênero está em disputa direito à adoção e que decidem ter seus/suas
no âmbito das relações sociais e entre as/os filhos/as em novos arranjos familiares. Essas novas
pesquisadoras/os. Não há consenso. configurações tornam temerário afirmar que “a
A diversidade dos gêneros, os conflitos e natureza do patriarcado continua a mesma” (p.
as violências que fundam as identidades de 157).

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O conceito de gênero, para Heleieth definidoras, aproximando realidades distantes
Saffioti, pode representar uma categoria e desconstruindo os gêneros.
meramente descritiva, embora prefira a Para Norma Telles, o binarismo arraigado e
utilização de “categorias de sexo”. Concordo disseminado por todas as esferas da sociedade
com Diva, quando afirma que “uma das razões, é posto em suspeição quando a confusão e a
porém, do recurso ao termo gênero foi, sem perturbação são resgatadas como matéria-
dúvida, a recusa do essencialismo biológico, a prima para a produção das artistas. A abjeção
repulsa pela imutabilidade implícita em de corpos sem definição, meio animal, meio
‘anatomia é o destino’” (p. 120). O conceito de gente, cria um campo de reflexão sobre
gênero não é palatável ou confortável, normalidade e patologias. As artistas, seus
principalmente no âmbito dos estudos queer, quadros e contos, não exigem provas nem
marco teórico que me orienta na leitura dos verdades únicas. Apresentam novos arranjos,
artigos desta coletânea. Nas últimas décadas, anedotas, para apresentar a maleabilidade do
nota-se uma considerável produção de corpo, dos seres, das metamorfoses.
pesquisas sobre o caráter performático das O horror à indeterminação e à confusão
identidades de gênero, com isso, a tese de que no processo de classificação dos gêneros resulta
há identidades de gênero normais e outras na ideia de que a normalidade dos gêneros
transtornadas foi posta em xeque e abriu um está baseada na diferença sexual. A verdade
tenso e intenso debate com o poder médico. do sexo não permite ambiguidades. Homem e
Para os estudos queer, gênero pressupõe mulher não se confundem nunca, afirma o saber
luta, não há espaço para neutralidade, mas para médico. A confusão e o hibridismo, se existem,
disputas, inclusive com a visão heterocentrada, são expressões de corpos enfermos. Caberia à
que orientou e segue orientando parte dos ciência corrigir os erros da natureza. Dessa forma,
estudos feministas. Gênero não é a dimensão as transexuais e travestis seriam casos de
da cultura por meio da qual o sexo se expressa, hibridismo que encontram o único lugar possível
conforme afirma Heleieth, pois não existe “sexo” de existência nos compêndios médicos. São
como um dado pré-discursivo. O sexo, conforme experiências identitárias carimbadas como
Butler, sempre foi gênero.2 O artigo de Heleieth transtornos. Quando Leonora Carrington e
Saffioti é importante à medida que nos revela Remédio Varo representam um mundo sem a
que “gênero” está em disputa. suposta coerência linear e binária que estrutura
A autora nos apresenta uma leitura pouco o pensamento moderno, dizem-nos que há
otimista das mudanças nas relações entre os muitos mundos. O hibridismo não é algo externo
gêneros, posição contrastante com outros ao humano, mas está presente em nossos
artigos da coletânea, a exemplo do artigo de sonhos, em nossos desejos e nas subjetividades.
Margareth Rago e Luana Saturnino Tvardovskas. Os artigos de Silvana Vilodre Goellner e
Norma Telles, em “Bestiários”, leva-nos ao Tânia Fontenele-Mourão apresentam resultados
mundo mágico da obra das artistas Leonora de pesquisas que analisam processos de
Carrington e Remédio Varo. Os livros das bestas, construção de corpos femininos pautados pelas
populares durante a Idade Média, são idealizações do gênero feminino. O artigo
recuperados pelo surrealismo, movimento “Cultura fitness e a estética do comedimento:
artístico que as influenciou consideravelmente. as mulheres, seus corpos e aparências”, de
As taxonomias das espécies cedem lugar aos Silvana Vilodre Goellner, discute a cultura fitness
hibridismos, aos devaneios na obra das artistas. como mecanismos que funcionam em torno
Norma Telles analisa como o pensamento vai da construção de uma representação de corpo
sendo deslocado para a vida animalizada. Todo como sinônimo de saúde e beleza. O corpo
o esforço da ciência moderna em separar o trabalhado é associado a termos plenos de
mundo humano do mundo animal é posto em positividades, dentre eles, “bem-estar”,
xeque pelos surrealistas e, particularmente, pelas “qualidade de vida” e “vida saudável”. Para
artistas. Ao analisar contos e quadros das artistas, Silvana Vilodre, a cultura fitness desdobra-se de
a autora aponta para a interação de animais e diferentes maneiras e, de forma persuasiva,
humanos, o que resulta em um mundo fantástico, captura as mulheres com a promessa de
onírico, onde imperam a indeterminação e a felicidade.
incerteza. A irreverência está presente na criação Um dos pontos que podem ser destacados,
de corpos femininos, marcados pela liberdade a partir das reflexões da autora, é o caráter
animalesca. O hibridismo das personagens e incluso da construção dos corpos generificados.
figuras, segundo a autora, supera as limitações A ideia de corpo-projeto materializa-se nas

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práticas que constituem a cultura fitness. O Tânia Fontele-Mourão e Silvana Vilodre são
corpo apresenta-se como uma substância fundamentais para pensar os canais de
precária que precisa da confirmação e do comunicação entre os muitos femininos, sem
reconhecimento da feminilidade e masculini- perder de perspectiva os aprisionamentos e as
dade, e que, nesse caso, encontra nas práticas potencialidades de resistência que derivam da
de remodelação, fabricação e consertos dos biopolítica contemporânea aliada às novas
“defeitos naturais” os dispositivos para tornar-se tecnologias de gênero que circulam pela
real. As idealizações de gênero nos levam para sociedade.
lugares inabitáveis, um não-lugar, mas que Para Tânia Fontele-Mourão, o desejo de
operam ações, opções e desejos. Já nascemos intervenções é interpretado como uma patolo-
com débitos e teremos a vida inteira para gia feminina que potencialmente poderia gerar
consertar os erros originais. Esse me parece ser resistência e rebelião, mas que é manipulada
o eixo principal do artigo de Silvana Vilodre. Fazer para servir à manutenção da ordem estabe-
dietas, aumentar ou diminuir partes dos corpos, lecida. Sintoma desse nível de patologia coletiva
injetar produtos, suar e suar, são práticas que seria o fato de que nove em dez mulheres entre
revelam o caráter ficcional de um corpo 15 e 64 anos querem mudar algum aspecto de
feminino original que nasce pronto. corpo, principalmente peso e forma de corpo,
As múltiplas tecnologias de gênero estão conforme pesquisa realizada pela Dove.
em pleno funcionamento, determinando A histeria, a agorafobia e a anorexia, para
lugares específicos para se fazer o trabalho de a autora, não são patologias individuais, mas
reconstrução dos corpos: academias, clínicas, expressões de um nível de sofrimento resultado
centros de estética, enfim, fábricas de produção dos aprisionamentos e controles do corpo
de corpos inteligíveis. A experiência corpórea, feminino. Os corpos esqueléticos das anoréxi-
materializada em determinadas performances, cas, o desespero das histéricas, a ansiedade
constitui as subjetividades de gênero, ou seja, a das agorafóbicas, são protestos inconscientes,
ideia ou promessa de felicidade está incipientes e contraproducentes, pois são
diretamente vinculada às formas corpóreas que experiências corpóreas e existenciais que não
se têm. Eis uma promessa que já nasce fadada se constituem em voz política, mas estão ali
ao fracasso. revelando os aprisionamentos de um sistema de
No artigo “Mutilações e normatizações do gênero que prega, como se mantra fosse, que
corpo feminino – entre a bela e a fera”, Tânia a felicidade está em ter um corpo adequado
Fontele-Mourão apontará outras tecnologias aos padrões estéticos. A doença como sintoma
que produzem feminilidade, calcadas em de um sistema de gênero que desvaloriza o
sacrifício, dor, riscos. Escovas progressivas, dietas feminino e captura seus corpos também é
rigorosas, depilação, próteses, são práticas de analisada por Tânia Navarro Swain, em seu artigo
reconstrução corporal, a exemplo da análise nessa coletânea, quando observa que a TPM
do culto fitness, que nos expõem com dureza o seria uma fórmula de interiorização e controle
caráter ficcional de se pensarem identidades das mulheres, agrilhoando-as a um corpo que
de gênero como uma substância, desvinculado dita seu comportamento e sua ação no mundo.
das práticas, conforme discutirá Tânia Navarro Os artigos de Guacira Lopes Louro, “O
em seu artigo. A proliferação de novas tecnolo- ‘estranhamento’ queer”, e de Margareth Rago
gias de gênero e o crescente consumo pelos e Luana Tvardovskas, “O corpo sensual em
femininos e masculinos produzem uma inversão: Márcia X”, esboçam reflexões queer sobre
práticas antes vinculadas exclusivamente a identidades, corpo e desejo. Guacira Lopes
travestis e transexuais passam a ser rotinizadas Louro apontará a proposta dos estudos queer
em amplas esferas sociais. A proliferação do como uma bússola teórica que oferece
uso múltiplo do silicone seria uma marca das fundamentos radicais para a desconstrução da
identidades protéticas que se caracteriza pela heronormatividade e do binarismo de toda
promessa de felicidade mediante reconstrução ordem. A autora reconhece a força do
dos corpos. binarismo que opera em todas as esferas sociais,
Esses processos mais radicais e incisivos de inclusive no interior dos grupos chamados
intervenção/fabricação produzem novas formas, minoritários. A política de identidade fixa uma
porém não originais, de refazer o feminino. São identidade gay, uma identidade lésbica, uma
mulheres cromossomaticamente XX que identidade feminina. No campo da luta das
parodiam práticas e performances vinculadas minorias, também se produzem exclusão e
ao mundo trans. Nesse sentido, as pesquisas de invisibilidades. As margens produzem seus

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centros e periferias, hierarquizando performan- linguagem como criadora de realidades,
ces, tornando uma expressão, ou jeito de estar principalmente os atos linguísticos violentos. Os
no mundo, mais legítima. atos da fala produzem invisibilidades e posições
A autora destacará a força das normas de poder. A força da linguagem com
sociais regulatórias que pretendem que um modalidade constitutiva das normas de gênero
corpo, ao ser identificado como macho ou é um dos pontos fortes na análise e posição
fêmea, determine, necessariamente, um gênero política dos estudos queer. A negatividade do
(masculino ou feminino) e conduza a uma única insulto é invertida, transformando em parte
forma de desejo (que deve se dirigir ao sexo/ estruturante das identidades. Portanto, recuperar
gênero oposto). O processo de heteronormativi- a linguagem como um campo de disputa na
dade, ou seja, a produção e reiteração compul- luta pela transformação radical das relações
sória da norma heterossexual, inscreve-se nessa assimétricas de gênero é uma estratégia
lógica, supondo a manutenção da continuidade fundamental. É dessa luta que nos fala Marie-
e da coerência entre sexo/gênero/sexualidade. France Dépéche. Conforme discorre, o conceito
A discussão teórica apresentada por de linguagem não se restringe a um sistema de
Guacira Lopes Louro dialoga com a leitura signos, fixos, a-histórico. A linguagem é uma
queer que Margareth Rago e Luana Tvardovskas instituição instável, um lugar de exercício do
fazem da obra de Márcia X. As autoras poder, de confronto entre forças adversas e,
destacam a força desestabilizadora da artista portanto, potencialmente violenta, principal-
plástica, que, em suas instalações, brincava com mente quando define, a partir dos corpos, os
objetos sagrados, a exemplo do terço, lugares de fala e de inserção sociopolítica.
produzindo deslocamento de olhares, corpos, No debate sobre as formas de violências
sexualidade e desejo. A sua crítica ao físicas e simbólicas contra a mulher, a autora
falocentrismo tem um forte componente queer, destacará que a prostituição é a expressão
à medida que inverte polos, desloca olhares, maior dessas múltiplas violências contra as
cria instabilidades. Para as autoras, a obra da mulheres. No entanto, sua posição carece de
artista revela a capacidade de autonomia das uma escuta mais atenta das mulheres
mulheres e seu desejo de transformar sua trabalhadoras sexuais, sujeitas que vivem,
economia desejante, desconstruindo os produzem, reproduzem e interagem no mundo
discursos misóginos masculinos, que visam impor- do comércio sexual. Uma concepção que não
lhes uma identidade construída do exterior. lida com as muitas variáveis e imponderáveis
Márcia X desenvolveu performances e que constituem esse campo social acaba por
instalações, questionando o estatuto da arte e produzir uma reificação das relações que
do artista na sociedade, do corpo e da acontecem no seu interior. Parece-me
sexualidade, da normalidade e da perversão. simplismo transferir a responsabilidade exclusiva
Em uma de suas performances, apresen- para os homens de práticas e relações
tou-se vestida com uma camisa e uma cueca, continuamente negociadas. Se a realidade é
onde abrigava um volume que simulava o órgão multifacetada, escorregadia, quando se trata
sexual masculino. A imagem da mulher sensual de trabalho sexual e trabalhadoras sexuais, esse
era, em seguida, quebrada pela visão ambígua nível de incertezas é potencializado.
da genitália. Em outro momento, a artista As mulheres trabalhadoras sexuais não são
apresenta uma instalação com muitos terços desprovidas de agência. Uma das lutas dessas
formando um pênis enorme. Embaralhamento trabalhadoras é pelo reconhecimento
das fronteiras instituídas, diluição das oposições profissional e acesso aos direitos e às obrigações
binárias, são marcas na obra dessa artista, previdenciárias. Diante dessa demanda, o que
segundo Margareth Rago e Luana Tvardovskas, fazer? Dizer-lhes: não, a luta é pela extinção do
que destacarão que as mulheres, que já não trabalho sexual, pois esse trabalho é uma
são ingênuas nem castas, ousam brincar com o degradação da mulher? Esse argumento é o
desejo, afirmar o prazer, insinuar e expor o corpo, mesmo utilizado pelos defensores da família
borrando ou desfazendo insistentemente as heterocentrada. Valeria perguntar qual a fonte
fronteiras do normal e do perverso. A obra de explicativa para trabalho sexual masculino. Seria,
Márcia X seria uma referência para essas então, apenas uma inversão dos polos, ou seja,
mudanças. os homens veem seus corpos “apropriados” pelo
Em “Reações hiperbólicas da violência da conjunto de mulheres?
linguagem patriarcal”, Marie-France Dépéche Tânia Navarro Swain, em “Entre a vida e a
realiza uma importante reflexão sobre a morte, o sexo”, faz uma crítica radical à

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centralidade do sexo na vida contemporânea, heteronormatividade e que os homens, os que
alertando-nos sobre a força do dispositivo da formulavam essas estratégias, estivessem fora
sexualidade. Para a autora, diante do massacre dessa matriz, como se fossem portadores de
a que somos submetidos/as diariamente com uma natureza que os predispõe à virilidade e à
mensagens de que só é possível ser feliz com competição e tenham um desejo intrínseco pelo
muito sexo, de que não existe vida fora da controle do feminino. Seria a produção da ideia
sexualidade compulsória, devemos denunciar de que o feminino está para a cultura e o
que esses enunciados são estratégias a serviço masculino, para a natureza?
da heterossexualidade compulsória e da Essa ausência, no entanto, não retira do
heteronormatividade, ou seja, esses enunciados livro sua força e originalidade. Navegamos por
criam aquilo que dizem descrever. um léxico que marca o campo de estudos sobre
Uma vigilância permanente, não aceitar o o corpo, desejo, poder, biopoder, e que está
hegemônico, fazer do corpo um manifesto de em disputa com o poder/saber médico e com
recusa às idealizações, ao dispositivo da as ciências psi. Muitos corpos nos são
sexualidade e ao dispositivo amoroso, revelar apresentados ao longo dos 12 artigos, o que faz
os aprisionamentos e promover resistências cair por terra a ideia de que nascemos e vivemos
capilares, reconstruindo o corpo como espaço com um único corpo. Mudamos, nossos corpos
de resistência e negação dos padrões mudam. A imagem de uma humanidade com
hegemônicos, são questões que atravessam o dois corpos, pautados na diferença sexual,
artigo de Tânia Navarro. Seu texto tem cheiro, evapora-se.
vida, suor, posicionamento. É prazerosa sua Vivemos em uma época pós-humana. O
leitura porque produz reverberações na corpo é refeito, retocado, manipulado, seja
subjetividade da leitora. Os bons textos são para adequar-se às normas ou para subvertê-
aqueles que ao lê-los ficamos com a agradável las. Um humano ciborgue, protético, revela-nos
sensação de que estamos sendo lidos, que a busca do masculino e do feminino, funda-
plagiando Mário Quintana. Eis a sensação que mentada em uma origem biológica, é um conto
Tânia Navarro despertou-me ao analisar a de fadas ou um conto de terror. Conforme
necessidade de um mundo que funcione a partir apontou Norma Telles, vivemos em uma época
de uma nova estética da existência que não dos corpos fragmentados, que desfazem e
produza dor, exclusão e violência contra os refazem a forma humana, sem uma fixação,
corpos construídos na condição de abjetos. mutável.
A autora articula seu desejo com uma Os ciborgues sociais precisam de
discussão teórica que nos fala de deslocamento, reconhecimento para ter vida. Não se recons-
nomadismo, inconformismo. A estética da troem corpos para si mesmo. O desejo de reco-
existência leva a autora a pensar sobre a nhecimento, de felicidade, faz-nos seres para
produção crítica de si, sujeito político e histórico, os/as outros/as. Estamos sempre em relação e
quebrando os grilhões do natural, da em disputa. Nenhuma identidade sexual e de
sexualidade compulsória e das novas servidões gênero é absolutamente autônoma, autêntica,
que se anunciam ao criar nossos corpos. original, facilmente assumida, isolada. Toda a
A radicalidade do seu texto está em maquinaria posta em movimento para fazer
relacionar sexualidade à posse, à traição, à corpos dóceis ou corpos rebeldes só encontra
honra, à autoestima, à emoção, valores que se sua eficácia se produz algum nível de reconhe-
confundem em torno de corpos definidos pelo cimento. A identidade é um construto instável e
poder de nomeação, pela performatividade mutável, uma relação social contraditória e não
dos comportamentos codificados pelo social, finalizada.
pelas condições de imaginação que esculpem Notas
modelos. 1
Judith BUTLER, 2003.
2
BUTLER, 2003.
***
Referências bibliográficas
Uma ausência do livro refere-se às reflexões BENTO, Berenice. A (re)invenção do corpo:
sobre os processos de construção dos corpos sexualidade e gênero na experiência
masculinos. Essa ausência pode gerar certo transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.
incômodo, pois pode sugerir que exclusiva- BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo
mente o corpo feminino foi objeto de reiteradas e subversão da identidade. Rio de Janeiro:
inversões discursivas para a construção da Civilização Brasileira, 2003.

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FONSECA, Claudia Lee Williams. “A dupla carreira PISCITELLI, Adriana Garcia. “Entre as ‘máfias’ e a
da mulher prostituta”. Revista Estudos ‘ajuda’: a construção de conhecimento no
Feministas, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 7-34, tráfico de pessoas”. Cadernos Pagu, São
1996. Paulo: Unicamp, v. 31, p. 29-65, 2008.
HARAWAY, Donna. Simians, Cyborgs and
Women: The Reinvention of Nature. New York: Berenice Bento
Routledge, 1991. Universidade Federal do Rio Grande do Norte

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