Você está na página 1de 23

DEBATE DEBATE 595

O conceito de espaço em epidemiologia:


uma interpretação histórica e epistemológica

The concept of space in epidemiology:


a historical and epistemological interpretation

Dina Czeresnia 1
Adriana Maria Ribeiro 1

1 Departamento de Abstract This study provides an interpretation of the concept of space in epidemiology. The au-
Epidemiologia e Métodos
thors highlight that the epistemological orientation of the space concept in epidemiology is the
Quantitativos em Saúde,
Escola Nacional de Saúde theory of disease, emphasizing the importance of the concept of specific etiologic agents and
Pública, Fundação their transmission as the central structure for grasping the relationship between space and the
Oswaldo Cruz.
body. Characterization of the space for circulation of etiologic agents was the epistemological
Rua Leopoldo Bulhões 1480,
8 o andar, Rio de Janeiro, RJ base shaping the use of various theoretical developments in geography, allowing for the con-
21041-210, Brasil. struction of different explanatory watersheds in the concept of space. The article specifically an-
dina@ensp.fiocruz.br
alyzes the Latin American watershed, reviewing the main authors orienting these studies, like
adriana.ribeiro@mailbr.com.br
Pavlovsky, Max Sorre, and Samuel Pessoa. The authors highlight Milton Santos’ thinking as a
fundamental reference in recent research on the social organization of space and disease emer-
gence or prevalence. The authors also approach contemporary changes in the understanding of
space as they are reflected in epidemiological studies.
Key words Medical Geography; Geographical Space; Spatial Analysis; Epidemiology

Resumo Este trabalho apresenta uma interpretação a respeito da utilização do conceito de es-
paço em epidemiologia. Destaca que o que orienta epistemologicamente a concepção do espaço
em epidemiologia é a teoria da doença, assinalando a importância do conceito de transmissão
de agentes específicos como estrutura nuclear da apreensão da relação entre espaço e corpo. A
caracterização do espaço de circulação de agentes etiológicos das doenças foi a base epistemoló-
gica que configurou a utilização de sucessivos desenvolvimentos teóricos da geografia, possibili-
tando a construção das diferentes vertentes explicativas do conceito de espaço. O artigo analisa
especificamente a produção da vertente latino-americana, revisando os principais autores que
orientam esses estudos, como Pavlovsky, Max Sorre e Samuel Pessoa. Ressalta o pensamento de
Milton Santos como referência fundamental das pesquisas mais recentes acerca da organização
social do espaço e emergência ou prevalência de doenças. Aborda, ainda, transformações con-
temporâneas na apreensão do espaço e seus reflexos nos estudos epidemiológicos.
Palavras-chave Geografia Médica; Espaço Geográfico; Análise Espacial; Epidemiologia

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000


596 CZERESNIA, D. & RIBEIRO, A. M.

Introdução guagens estranhas, entre si fragmentaram o


homem e as suas relações.
Este trabalho apresenta uma interpretação a O ponto de vista central deste trabalho é que
respeito da utilização do conceito de espaço o núcleo epistemológico que orienta a apreen-
em epidemiologia. Revisa especificamente a são do espaço em epidemiologia é a teoria da
produção da vertente que enfatiza o estudo das doença. Os elementos do espaço que são in-
relações entre espaço e doença na América La- corporados na explicação epidemiológica inte-
tina, analisando as principais referências que gram-se aos que explicam como a doença ocor-
orientam esses estudos. re no corpo.
Espaço é um conceito básico em epidemio- A epidemiologia estruturou-se como disci-
logia. Os estudos epidemiológicos tradicionais plina científica mediante o conceito de trans-
abordam a categoria “lugar”, que, diferenciado missão de agentes específicos de doenças, de-
das características “tempo” e “pessoas”, consti- finindo a explicação da propagação das epide-
tui um dos seus principais elementos de análi- mias através de uma determinada compreen-
se. Reconhecem que o estudo da distribuição são da relação entre corpo e meio. O termo
geográfica da enfermidade é importante para transmissão refere-se à concepção de corpo
a “formulação de hipóteses etiológicas, além enquanto organismo, conceito biológico defi-
de ser útil para propósitos administrativos” nido no século XIX como unidade morfológica
(MacMahon & Pugh, 1978). O espaço é com- composta de partes que realizam, de forma
preendido, separado do tempo e das pessoas, coordenada, diferentes funções.
como o lugar geográfico que predispõe a ocor- A compreensão do ser vivo como articula-
rência de doenças. No contexto da clássica tría- ção entre estrutura, função e meio estruturou,
de ecológica de Leavell & Clarck (1976), o meio na época, uma nova representação dos seres
é percebido como um recipiente que facilita ou vivos no espaço (Jacob, 1983). O espaço interno
não o contato entre pessoas, ou hospedeiros, e ao corpo correspondeu a estruturas anatômi-
agentes etiológicos. cas e funções fisiológicas, e o espaço externo ao
Contudo, o espaço não é, a priori, cindido corpo, aos elementos que constituem o próprio
do tempo e das pessoas. O lugar pode ser com- corpo (Foucault, 1995). O meio foi concebido
preendido como topos em que se dá um acon- como os fluidos, o ar ou a água em que o orga-
tecimento. Nessa perspectiva, o espaço consti- nismo está imerso, constituído de condições
tui-se e distingue-se dos corpos no momento de calor, luz, umidade, pressão, presença de
da vivência concreta dos fenômenos, através compostos químicos, teor de oxigênio e gás car-
de uma interface que se configura no decorrer bônico (Jacob, 1983). Nesse contexto, os movi-
da própria experiência. mentos e as articulações do corpo com seu meio
O vínculo entre corpo e espaço não se apre- reduziram-se a fenômenos físico-químicos.
senta claramente, pois o processo de emergên- Em epidemiologia, o espaço foi inicialmen-
cia das ciências foi também o de fragmentação te compreendido como resultado de uma inte-
do modo de pensar o homem e as suas rela- ração entre organismo e natureza bruta, com-
ções. No contexto da elaboração dos conceitos preendida independente da ação e percepção
científicos, o espaço foi concebido, segundo os humanas. Da mesma forma, na geografia clás-
mais diferentes pontos de vista, como algo an- sica, o espaço foi entendido como substrato de
terior, que existe independente da constituição fenômenos naturais, como o clima, a hidrogra-
dos seres que o habitam. A compreensão do fia, a topografia, a vegetação, etc. Porém, na
corpo separado e situado em um espaço e tem- origem do desenvolvimento do objeto da epi-
po concebidos como previamente existentes, demiologia, assim como na da geografia, já se
construiu representações que cindiram o elo manifesta a tensão que interrogou a lógica des-
entre corpo e suas circunstâncias. se conhecimento que opôs natureza e cultura,
A epidemiologia define-se como estudo da natural e artificial, corpo e mente, subjetivo e
distribuição e dos determinantes das doenças objetivo, entre outras dualidades clássicas que
em populações humanas. Considerando-se caracterizaram a emergência das ciências. A
que a doença ocorre em uma interface em que inadequação dessas dualidades à apreensão
corpo e espaço constituem-se e distinguem-se dos fenômenos que se propunham estudar é
no decorrer da própria experiência, pode-se di- sinalizada no discurso dessas disciplinas, reve-
zer que o pensamento científico cindiu o elo da lando polêmicas que acompanharam a história
interface em que ocorre a doença. A doença é desde o seu nascimento.
pensada tendo como referência não o corpo e Durante o desenvolvimento da higiene pú-
o espaço concretos, mas as distintas represen- blica, que floresceu em um período imediata-
tações de corpo e espaço que, através de lin- mente anterior ao surgimento das ciências bio-

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000


O CONCEITO DE ESPAÇO EM EPIDEMIOLOGIA 597

lógicas e humanas, predominava uma apreen- doenças transmissíveis, por exemplo, foi possí-
são dinâmica e integrada dos fenômenos epi- vel construir modelos matemáticos que repre-
dêmicos. Ainda não havia amadurecido o pro- sentam relações entre o indivíduo e o que é ex-
cesso que aprofundou a fragmentação e dico- terno a ele – agentes microbiológicos e o meio.
tomias do conhecimento. A herança da Higie- Conceitos como suscetibilidade, resistência do
ne Pública marcou a origem tanto da epidemio- hospedeiro, assim como o de virulência do ger-
logia como da geografia (Urteaga,1980). Vincu- me e sua infecciosidade integram-se numeri-
lada à essa herança, velhas teorias, como a da camente no modelo, construindo uma repre-
constituição epidêmica, inspirada no pensa- sentação matemática que expressa o resultado
mento hipocrático, permaneceram represen- de relações entre corpo e espaço. O conceito de
tando uma forma de pensar que portava valo- imunidade de grupo expressa o resultado de
res a serem preservados. Mesmo valendo-se de tais relações.
uma linguagem anacrônica em relação ao dis- O conceito epidemiológico de risco tornou
curso científico que se estrutura a partir do sécu- essa relação ainda mais abstrata. O cálculo do
lo XIX, essa teoria foi significativamente resgata- risco traduz uma relação probabilista entre
da na construção de novos discursos sobre a rea- eventos. Não se integram no modelo do risco
lidade da saúde e da doença (Czeresnia, 1997). variáveis que representam conceitos capazes
O estranhamento e a dificuldade em reco- de expressar um processo que ocorre entre cor-
nhecer seu objeto a partir das distinções dico- po e meio. Se o conceito de transmissão repre-
tômicas, que cindiram ciências naturais e ciên- senta a interface do corpo como interação en-
cias sociais, repercutiram de maneira especial tre orgânico e extra-orgânico, o de risco pres-
na geografia e também na epidemiologia. As cinde dessa relação (Ayres, 1997), aprofundan-
transformações contemporâneas no discurso do o nível de fragmentação e rarefação do ob-
científico, ao questionar essas dicotomias, re- jeto da epidemiologia. A concepção expressa
tomam contradições que se apresentaram des- pelo conceito de risco é a de um corpo virtual.
de a origem e o desenvolvimento dessas disci- O homem é representado como receptor vigi-
plinas (Santos, 1987), estreitamente vinculadas lante de causas que podem lhe trazer danos ou
ao contexto dos estudos sobre as relações entre proteção. O espaço torna-se percebido como
espaço e doença. complexo de estímulos irradiados e exteriores
Em epidemiologia, o uso do conceito de es- ao corpo, que se impõe centralmente a todos
paço acompanhou o desenvolvimento teórico (Teixeira, 1993). O contato entre os homens e a
da geografia, especialmente da vertente cha- natureza tendeu a ser progressivamente repre-
mada geografia médica. Pensando a especifici- sentado como vínculo indireto, mediado por
dade desses estudos, destaca-se, mais uma vez, imagens cada vez mais abstratas, tanto do cor-
a importância da teoria de transmissão de ger- po, como do espaço, deixando de ser simboli-
mes como estrutura nuclear da apreensão da zado como vínculo direto e concreto.
relação entre espaço e corpo, constituindo-se É em decorrência desse processo em que o
também em limite epistemológico à intenção espaço, ao ser abstraído como multiplicidade
de compreender o espaço como uma totalida- de causas, perde tanto materialidade quanto
de integrada. As tentativas de redefinir o con- subjetividade, que a apropriação dessa catego-
ceito de espaço em epidemiologia, acompa- ria em epidemiologia desenvolveu-se preferen-
nhando o desenvolvimento teórico-conceitual cialmente no contexto do estudo das doenças
da geografia, buscaram incluir na compreen- transmissíveis. Mais especificamente, foi atra-
são do processo da doença, dimensões sociais, vés do estudo das doenças transmitidas por ve-
culturais e simbólicas. Porém, todas essas re- tores que a abordagem espacial pôde ser mais
definições esbarraram no limite imposto pela objetiva, explicitando elos capazes de integrar
teoria da doença. Pensar o homem como uma maior número de elementos e alcançando, as-
integração biopsicossocial manifesta-se através sim, maior materialidade na compreensão da
da tentativa de superpor conceitos que não dia- relação entre espaço e ocorrência de doenças.
logam com facilidade. Mesmo tentando pensar A idéia de circulação de agentes específicos
o espaço como totalidade integrada, esta é ex- no espaço é fundamental a esse desenvolvi-
pressa através de conceitos estruturados a par- mento conceitual. É buscando caracterizar de
tir de lógicas distintas e fragmentadas entre si. forma mais elaborada o espaço de circulação
Considerando esses limites, ressalta-se que de agentes que, utilizando os sucessivos desen-
o conceito de transmissão, mesmo assim, al- volvimentos teóricos da geografia, construí-
cança expressar melhor a articulação entre cor- ram-se as diferentes vertentes explicativas des-
po e meio do que o conceito de risco, desenvol- se conceito em epidemiologia, como veremos
vido posteriormente. No contexto do estudo das a seguir.

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000


598 CZERESNIA, D. & RIBEIRO, A. M.

Pavlovsky e o conceito de foco natural suficientes para o estudo das doenças trans-
das doenças missíveis em situações onde a dinâmica de
modificação do espaço pelo homem ocorreu
Uma das mais importantes elaborações teóri- de forma mais ampliada e acelerada.
cas do conceito de espaço geográfico vincula- Posteriormente, realizaram-se estudos que,
do ao estudo de doenças transmissíveis foi fei- partindo da teoria dos focos naturais de Pa-
ta por Pavlovsky na década de 30. O conceito vlovsky, dedicaram mais atenção à influência
de foco natural expressa uma apreensão espa- (milenar) humana na transformação das paisa-
cial que integra o conhecimento das doenças gens geográficas onde se desenvolvem doenças
transmissíveis com a geografia e a ecologia. associadas a focos naturais. Rosicky (1967:114)
“Um foco natural de doença existe quando ressaltou como, desde a origem da sociedade
há um clima, vegetação, solo específicos e mi- humana baseada na agricultura e domesticação
cro-clima favorável nos lugares onde vivem ve- de animais, um foco natural manifesta-se sob a
tores, doadores e recipientes de infecção. Em ou- influência indireta de atividades humanas. Du-
tras palavras, um foco natural de doenças é re- rante a construção de trabalhos técnicos de ca-
lacionado a uma paisagem geográfica específi- ráter industrial e agrícola, as condições de exis-
ca, tais como a taiga com uma certa composi- tência de certos vetores e reservatórios animais
ção botânica, um quente deserto de areia, uma podem ser erradicadas ou acentuadas.
estepe, etc., isto é, uma biogeocoenosis. Sinnecker (1971) propôs o conceito de ter-
O homem torna-se vítima de uma doença ritório nosogênico, articulando aspectos eco-
animal com foco natural somente quando per- lógicos e sociais. As condições naturais de uma
manece no território destes focos naturais em região integram esses aspectos, condicionando
uma estação do ano definida e é atacado como a saúde dos homens e dos animais. As doenças
uma presa por vetores que lhe sugam o sangue” têm diferentes distribuições nos distintos terri-
(Pavlovsky, s/d:19). tórios, e a atividade das populações transforma
O conceito de foco natural é, portanto, apli- as condições de desenvolvimento das doenças.
cado a ambientes que apresentam condições As transformações podem remover as pré-con-
favoráveis à circulação de agentes, indepen- dições para uma doença e, ao mesmo tempo,
dentemente da presença e da ação humanas. criar condições para o surgimento de outras. O
Pode ocorrer em paisagens geográficas varia- autor ressalta ainda que a grande concentração
das, desde que haja uma interação entre bióti- das pessoas nas cidades gera novas condições
pos específicos. A definição de foco natural cir- ecológicas e sociais, propiciando a emergência
cunscreve-se a doenças transmitidas através de doenças vinculadas aos processos de urba-
de vetores, não se referindo ao estudo de doen- nização.
ças que, mesmo apresentando um agente etio-
lógico definido, propagam-se através do conta-
to direto ou mesmo pela inalação de ar conta- Max Sorre e o conceito de complexo
minado, como difteria, sarampo, escarlatina e patogênico
doenças respiratórias.
“A existência de qualquer doença transmis- Max Sorre foi além da abordagem de Pavlovsky
sível depende do trânsito contínuo de seu agen- ao trabalhar a importância da ação humana na
te causal, do corpo do animal doador (animal formação e dinâmica de complexos patogêni-
doente, portador assintomático, hospedeiro do cos. O conceito de complexo patogênico am-
parasita) para o corpo do vetor. Essa transmis- pliou o poder analítico e explicativo de uma
são geralmente ocorre quando o vetor suga o concepção antes praticamente restrita à des-
sangue do doador e subseqüentemente transmi- crição do meio físico (Ferreira, 1991). Ao assu-
te o agente causal para o receptor animal, fre- mir a ecologia como eixo central, o conceito de
qüentemente, quando suga seu sangue também; espaço que Sorre utiliza é, por um lado, o mes-
o receptor infectado pode por sua vez, tornar-se mo que se formula através da biologia: as rela-
um doador para outro grupo de vetores, etc. ções entre um meio externo que varia e um
Desta maneira, ocorre, como dizemos, a circula- meio interno que necessita adaptar-se para
ção” (grifo meu) (Pavlovsky, s/d:18). manter suas constantes fisiológicas. Por outro
O conceito de foco antropúrgico, também lado, o autor explicita que, ao se tratar de seres
desenvolvido por Pavlovsky, introduziu a idéia humanos, o conceito de meio deve enriquecer-
da transformação do espaço de circulação de se e incluir também o ambiente produzido pe-
agentes de doença pela ação humana. Porém, lo homem. Refere-se, assim, ao conceito de gê-
dá conta apenas da transformação inicial dos nero de vida que considera o conjunto da orga-
focos naturais não apresentando elementos nização social humana em seus aspectos ma-

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000


O CONCEITO DE ESPAÇO EM EPIDEMIOLOGIA 599

teriais e espirituais. É compreendido como terdisciplinar. A linha de investigação construí-


combinação de técnicas, cujo uso e desenvol- da por Samuel Pessoa inspirou-se nessas duas
vimento adaptam-se às diferentes condições contribuições, especialmente nos trabalhos de
geográficas onde se inserem grupos humanos. Pavlovsky. Ele criou uma escola de estudos em
Transforma-se com as necessidades e ativida- geografia médica no Brasil, no contexto da
des dos grupos, assegurando sua sobrevivência chamada medicina tropical. Estudou as ende-
(Sorre, 1984). mias prevalentes no Brasil, também, e espe-
A constituição do gênero de vida de grupos cialmente, as transmitidas através de vetores,
humanos, além de influenciar a formação psi- como esquistossomose, doença de Chagas, fi-
cológica dos indivíduos, pode modelar a pró- lariose, malária, etc.
pria aparência física destes. O gênero de vida “O meio geográfico cria, indiscutivelmente,
também se expressa através de variantes de condições constantes e necessárias para a inci-
comportamento nas situações cotidianas, co- dência e propagação de inúmeras moléstias rei-
mo alimentação e grau de atividade física. Es- nantes nos trópicos e, principalmente, em rela-
sas vivências, como aponta Sorre, são peculia- ção às doenças metaxênicas, isto é, àquelas que
res a cada grupo, e as ações e costumes prati- exigem para sua transmissão vetores biológicos,
cados na esfera individual, na verdade, consti- como por exemplo, a malária, a febre amare-
tuem a formação étnica e cultural de um povo. la, as filarioses transmitidas por mosquitos, a
A riqueza do conceito gênero de vida, con- esquistossomoses por moluscos. O desenvolvi-
tudo, não se expressa totalmente no conceito mento dos vetores bem como a multiplicação do
de complexo patogênico, que também busca agente patogênico nestes hospedeiros estão es-
integrar as dimensões física, química, biológi- tritamente ligados ao meio geográfico e espe-
ca, econômica, social e cultural. O conceito de cialmente às condições climáticas” (Pessoa,
complexo patogênico tem como objetivo expli- 1978:151).
citar uma compreensão sintética (Gadelha, Pessoa (1978) afirmou a necessidade de re-
1995). Como a idéia de constituição epidêmi- cuperar “a velha tradição hipocrática”. A ênfa-
ca, esse conceito trabalha com uma perspecti- se na bacteriologia relegou a um segundo pla-
va dinâmica, referindo-se ao conjunto de cir- no o estudo acerca da influência do ambiente
cunstâncias que predispõem um lugar, em de- sobre a ocorrência das doenças. Ressalta que o
terminado período, ao surgimento de doenças. ambiente refere-se ao conjunto de causas que
Porém, apesar dessa intenção sintética, Sorre atuam sobre o homem e não apenas ao meio fí-
estuda os complexos patogênicos, classifican- sico. Mesmo assim, é evidente, também no dis-
do-os de acordo com agentes microbiológicos curso formulado por este autor, que o elemen-
que definem doenças específicas, e coloca seu to que se mantém como eixo da apreensão da
trabalho sob uma perspectiva analítica: relação entre homem e meio na explicação da
“... A interdependência dos organismos pos- doença é a sua causa microbiológica específica.
tos em jogo na produção de uma mesma doença “Os fatores que intervêm na incidência e
infecciosa permite inferir uma unidade biológi- propagação das doenças infecciosas e parasitá-
ca de ordem superior: o complexo patogênico. rias em uma região, são numerosos e complexos.
Compreende, além do homem e do agente cau- Atribuí-los somente às condições geográficas e
sal da doença, seus vetores e todos os seres que climáticas é tão errôneo como incriminar so-
condicionam ou comprometem a sua existên- mente a presença do germe. É claro que, por
cia...” (Sorre, 1951, apud Ferreira, 1991:306). exemplo, sem o bacilo ‘virgula’ da cólera não po-
A estrutura nuclear do conhecimento da de existir esta grave enfermidade, porém nin-
doença mediante a idéia de causa, que se impôs guém nega a existência de uma geografia da có-
através da teoria dos germes, como foi afirmado lera. Não se deve limitar, todavia, o termo ‘geo-
anteriormente, tornou-se um limite epistemo- grafia’ de uma doença, no sentido estrito que se
lógico à intenção sintética de todos os autores entende por esta ciência. Se se pode, em um ma-
posteriores à elaboração da teoria dos germes. pa, delimitar as áreas de endemicidade ou epi-
demicidade da cólera, da peste, da malária, das
leishmanioses, etc., é que pelo termo geografia
Samuel Pessoa e a geografia deve-se considerar não só a geografia física, o
médica no Brasil clima e os demais fenômenos meteorológicos,
que caracterizam geograficamente a região, mas
Sorre e Pavlovsky forneceram uma importante ainda as geografias humana, social, política e
base conceitual em geografia médica, que fun- econômica. E os fatores que mais intervêm na
damentou o desenvolvimento dos trabalhos variação e propagação das doenças, são justa-
posteriores que buscaram uma perspectiva in- mente os humanos” (Pessoa, 1978:153).

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000


600 CZERESNIA, D. & RIBEIRO, A. M.

Milton Santos e os estudos culturais diversificados e podem ser compreen-


epidemiológicos sobre organização didas como constituindo espaços de circulação
do espaço e doença e difusão de agentes de doenças.
Foi também nos estudos a respeito das do-
Os conceitos geográficos propostos por Milton enças endêmicas e epidêmicas que a elabora-
Santos constituem uma das referências mais ção teórica de Milton Santos a respeito do es-
importantes para as análises da relação entre paço foi mais utilizada. Buscou-se estudar a
espaço e doença, especialmente as produzidas sua distribuição como resultado da organiza-
no Brasil. Esse autor conceitua espaço como ção social do espaço. As sociedades humanas
“um conjunto indissociável de sistemas de obje- produziram uma segunda natureza por meio
tos e sistemas de ações” (Santos, 1996:18); “um das transformações ambientais oriundas do
conjunto de fixos e fluxos que interagem” (San- processo de trabalho. O conceito de meio am-
tos, 1996:50). O espaço é aquilo que resulta da biente, do ponto de vista ecológico, envolve o
relação entre a materialidade das coisas e a vi- espaço de reprodução das espécies e a fonte de
da que as animam e transformam. A configura- recursos para essa reprodução. Considerando-
ção territorial é uma produção histórica resul- se grupos humanos, o conceito é substituído
tante dessas relações. As ações provêm das ne- pelo espaço socialmente organizado, ou seja,
cessidades humanas: materiais, espirituais, “o espaço onde se realizam processos econômi-
econômicas, sociais, culturais, morais, afetivas. cos e sociais” (Sabroza & Leal, 1992:53).
Sistemas de objetos e de ações interligam-se. Utilizando essa abordagem, o trabalho de
Não há como separar natural e artificial: “o es- Luiz Jacintho da Silva Organização do Espaço e
paço é hoje um sistema de objetos cada vez mais Doença (Silva, 1985a) conseguiu encontrar um
artificiais, povoado de sistemas de ações igual- elo explicativo entre a dimensão biológica e a
mente imbuídos de artificialidade (...) De um social, na história da doença de chagas em São
lado, os sistemas de objetos condicionam a for- Paulo. O autor analisa como as transformações
ma como se dão as ações e, de outro lado, o sis- das atividades produtivas ligadas à economia
tema de ações leva à criação de objetos novos ou cafeeira condicionaram mudanças físicas e
se realiza sobre objetos preexistentes. É assim biológicas que configuraram as condições ma-
que o espaço encontra sua dinâmica e se trans- teriais de distribuição da endemia. A estrutura
forma” (Santos, 1996:51-52). epidemiológica da doença se modificou com a
A técnica é um elemento fundamental para transformação do espaço. Com base na teoria
compreender o processo de organização espa- de foco natural e antropúrgico de Pavlovsky, ele
cial. É a técnica que intermedeia a interação estudou os elementos da paisagem geográfica
homem–natureza. Através dela, cria-se uma na- propícios ao surgimento, circulação e trans-
tureza humanizada. Não se adiciona técnica a missão do vetor, como clima, vegetação e solo.
um pretenso meio natural. A técnica produz um Por meio do conceito de espaço socialmente
espaço que é “um misto, um híbrido, um com- organizado, conseguiu integrar esses elemen-
posto de formas conteúdo” (Santos, 1996:35). tos em uma compreensão mais complexa: o es-
Milton Santos caracteriza o espaço do mun- paço foi organizado no contexto da história da
do contemporâneo (após a segunda guerra ocupação econômica, e esta forma de organi-
mundial) como meio técnico-científico-infor- zação criou um sistema de relações que trans-
macional, quando as idéias de tecnologia, de formaram as condições físicas do meio. As con-
ciência e de mercado globais são encaradas co- dições necessárias para o crescimento e declínio
mo um conjunto. A partir desse período, os ob- da endemia de chagas surgiram historicamen-
jetos técnicos são ao mesmo tempo informa- te através da superposição de paisagens geo-
cionais. A base e o substrato da produção, utili- gráficas, que se construíram no processo de de-
zação e funcionamento do espaço são a ciên- senvolvimento econômico da região estudada.
cia, a técnica e a informação. É por essa lógica Barreto (1982) também ressaltou, em estu-
que os espaços são requalificados e incorpora- do sobre a prevalência de esquistossomose
dos às novas correntes mundiais. “O meio téc- mansônica em municípios do estado da Bahia,
nico-científico-informacional é a cara geográfi- as características da organização social do es-
ca da globalização” (Santos, 1996:191). paço rural na configuração da endemia. A es-
O conceito de rede torna-se indissociável quistossomose foi introduzida no Brasil com a
ao de espaço. Definidas como conjunto de cen- migração africana de indivíduos infectados du-
tros funcionalmente articulados, as redes inte- rante o período da escravidão. A intensidade
gram os espaços configurando-se basicamente do processo endêmico e o desenvolvimento de
em dois aspectos: o material e o social. As re- novos focos, contudo, não puderam ser expli-
des atravessam contextos materiais e sócio- cados apenas pela existência de condições eco-

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000


O CONCEITO DE ESPAÇO EM EPIDEMIOLOGIA 601

lógicas favoráveis. O autor analisou como a or- genciando aspectos econômicos e sociais das
ganização das relações de produção e os deslo- doenças e mortes infantis.
camentos humanos mediados por estas rela- Ao estudar a epidemia de doença meningo-
ções foram fundamentais para a retenção e pa- cócica na cidade de São Paulo na década de 70,
ra a disseminação espacial da endemia. Barata (1988) apontou para o momento histó-
A disseminação das endemias não se res- rico em que o país vivia: o milagre econômico.
tringiu aos ambientes rurais. A urbanização Apesar do crescimento econômico, construí-
das fronteiras agrícolas e a migração e mobili- ram-se condições sociais favoráveis ao apare-
dade social cidade–campo possibilitaram que cimento e disseminação da epidemia, como a
se criassem focos em área urbana. Um exem- política salarial restritiva, sustentada com base
plo disso foi a adaptação da esquistossomose na repressão política e os movimentos migra-
aos espaços da periferia da cidade de São Pau- tórios, que impuseram o crescimento acelera-
lo (Silva, 1985b). Os migrantes representam um do da periferia dos grandes centros urbanos.
grupo particularmente vulnerável, por sua pre- Dentro deste contexto, surgiram os elementos
cária inserção social na cidade e pela ausência que interferiram no processo epidêmico: o des-
de imunidade em relação a doenças existentes gaste do trabalhador, e, indiretamente, de seus
nos centros urbanos (Carvalheiro, 1986). A di- familiares, decorrentes dos baixos salários e da
versidade das formas de inserção social reflete incorporação feminina na força de trabalho. Os
a desigual distribuição territorial e, também, dados analisados pela autora demonstraram
diferentes perfis epidemiológicos, nos quais a claramente que, apesar da epidemia atingir
população de baixa renda é a que mais sofre o fortemente todas as áreas da cidade, as áreas
impacto das epidemias e endemias. mais pobres apresentaram riscos mais altos
A vertente da epidemiologia social, com ba- comparados às áreas central e intermediária da
se em abordagem marxista, realizou estudos cidade.
que alcançaram identificar origens e condicio- Nesse mesmo estudo, Barata (1988), com
nantes sociais e econômicos dos processos epi- base em Foucault, introduz uma abordagem, a
dêmicos. Considerou epidemia como um acon- respeito da relação entre espaço e a epidemia
tecimento social, e não apenas a soma de casos meningocócica, não decorrente da explicação
de uma mesma doença. Os autores enfatiza- estritamente epidemiológica. Ressalta como as
ram a problemática do subdesenvolvimento e, relações de poder, dominação e exclusão no es-
principalmente, das desigualdades sociais co- paço hospitalar interferem na saúde e recupe-
mo seus principais condicionantes. A erradica- ração dos indivíduos. As relações de poder, que
ção e o controle das epidemias não dependem produzem a exclusão da participação nas deci-
apenas de diagnóstico e intervenção biológica, sões, não ocorrem apenas no âmbito político e
mas de todos os elementos que participam da social mais geral, mas também nas relações co-
organização social do espaço. tidianas que se estabelecem, por exemplo, no
A maior parte desses estudos associou a hospital. Essas relações constituem-se espaços
emergência de doenças ao espaço urbano. A ci- normativos e repressivos que acentuam os as-
dade é a protagonista da configuração espacial: pectos de insegurança e carência afetiva carac-
o crescimento, a superlotação, a precária rede terísticos da situação de estar doente. Os fato-
de infra-estrutura (em especial nas periferias), res ambientais que interferem no processo do
a intensa movimentação de pessoas, favore- adoecer individual e coletivo são físicos, so-
cem a circulação de parasitas. Não só antigas ciais, como também mentais e afetivos.
doenças coabitam com novas, como doenças
anteriormente erradicadas ressurgem. As epi-
demias de meningite, cólera, dengue, leptospi- Transformações recentes na
rose são algumas das apontadas pelos autores. abordagem do espaço e da relação
Breilh et al. (1983), em estudo sobre a mor- entre espaço e doença
talidade infantil em cidades latino-americanas,
afirmaram que as principais causa mortis são A complexidade das transformações, principal-
as doenças infecto-contagiosas e a desnutri- mente nos centros urbanos, impôs novas for-
ção, conseqüências do subdesenvolvimento la- mas de elaboração teórica acerca do espaço. A
tino-americano. Mesmo nos países de maior velocidade da transformação das redes que in-
crescimento e modernização econômica, per- tegram os espaços é uma das características
sistem graves desigualdades sociais, e parte da mais marcantes da chamada condição pós-
população encontra-se em péssimas condições moderna. Essas mudanças interferem nas rela-
de vida. Os autores criticam os estudos que se ções sociais, nos valores, nos modos de agir, vi-
apóiam apenas em causas biológicas, negli- ver e pensar. O seu ritmo cada vez mais acele-

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000


602 CZERESNIA, D. & RIBEIRO, A. M.

rado produziu uma crise na experiência do es- Nesse contexto, novos temas apareceram e
paço e do tempo, desafiando a nossa própria outros se renovaram: orientação sexual e doen-
capacidade perceptual de acompanhar. Os ças sexualmente transmissíveis; gênero e doen-
nossos hábitos de percepção espacial não se ça; violência; tráfico e adição de drogas; circui-
estruturaram para lidar com essa velocidade. tos espaciais urbanos de grupos específicos,
Tornou-se ainda mais evidente que as idéias do como crianças e velhos; espaços desiguais e
senso comum, aparentemente naturais, a res- doença. O reconhecimento de uma multiplici-
peito do que é o espaço escondem ambigüida- dade de formas de alteridade, como gênero, se-
des e conflitos. A experiência subjetiva conduz xualidade, raça, classe e outras configurações
a caminhos muito diferenciados de percepção de subjetividade e sensibilidade encontraram
e imaginação. Distintas culturas e grupos so- expressão no desenvolvimento recente dos es-
ciais possuem diferentes concepções acerca do tudos epidemiológicos.
espaço (Harvey, 1996). Retomou-se, além disso, o interesse a res-
A fragmentação e a individualização são peito do estudo do clima como importante
um dos lados da característica paradoxal de causa de doença. Os surtos de doenças, como a
um processo que manifesta simultaneamente febre hemorrágica causada pelo vírus Ebola,
a tendência à homogeneização e à multiplica- motivaram, mais uma vez, o interesse pelo es-
ção da expressão de heterogeneidades. A glo- tudo dos espaços pouco alterados pela ação
balização, com a formação do mercado mun- humana. A poluição ambiental, a quantidade
dial, reduziu as barreiras espaciais. Facilitou- de radiação ultravioleta ou intensidade de
se o acesso aos mais diversificados produtos campo eletromagnético vêm sendo abordados,
oriundos de diferentes regiões e aumentou-se principalmente, no estudo das neoplasias (Sil-
o contato direto entre os povos. A lógica do li- va, 1997).
vre mercado, porém, acentuou os espaços de É importante destacar que a teoria e práti-
desigualdade e exclusão. Um exemplo é a cons- ca científica também constroem representa-
trução de espaços fechados e protegidos, como ções simbólicas sobre o espaço e estruturam
condomínios e shopping-centers, para classes distintas formas de apreensão e de ação sobre
médias e, ao mesmo tempo, a expulsão dos po- a realidade. A compreensão de que múltiplos
bres para “uma nova e bem tenebrosa paisagem aspectos materiais e imateriais configuram o
pós-moderna de falta de habitação” (Harvey, espaço, engendrando praticamente todas as
1996:79). dimensões da existência humana, já está pre-
A distância entre ricos e pobres aumentou sente, por exemplo, no conceito gênero de vida
de forma desenfreada. Os pobres cada vez mais de Sorre. O conceito de complexo patogênico,
se convertem nos proscritos de uma sociedade contudo, não é suficiente para explicar a confi-
organizada em torno de um mercado consumi- guração de grande parte dos problemas de saú-
dor cada vez mais sofisticado. A exclusão social de pública na sociedade contemporânea. Estes
de grupos populacionais crescentes, explosão demandam novos discursos e abordagens que
demográfica, mudança da estrutura etária das alcancem aprofundar a perspectiva multi ou
populações, intensificação das migrações, guer- transdisciplinar, incorporando dimensões do
ras tornaram mais complexos os aspectos hu- espaço não comumente utilizadas nos estudos
manos das condições globais (Bauman, 1998). epidemiológicos.
Os sérios problemas epidêmicos urbanos ultra- Uma tentativa recente de ampliar os usos
passaram a esfera das doenças transmissíveis, da categoria espaço manifesta-se através do
neoplásicas e cardiovasculares. Manifestaram- conceito de situação de saúde, que busca ex-
se também como epidemia, violência, aciden- pressar as condições específicas dos grupos so-
tes de trânsito, uso de drogas, doenças psicos- ciais, objetiva e subjetivamente construídas e
somáticas e comportamentos reativos. articuladas à forma como esses grupos se con-
Ao mesmo tempo, reapareceram as amea- figuram e se inserem socialmente em determi-
ças de grandes desastres naturais: poluição do nado momento histórico e circunstâncias na-
ar e da água, progressivo aquecimento global, turais (Castellanos, 1990). Esse conceito possi-
buracos na camada de ozônio, chuva ácida, sa- bilita a abordagem dos problemas de saúde e
linização e ressecamento do solo. As conse- doença de um ponto de vista específico para
qüências epidemiológicas desse intenso pro- cada grupo populacional e, ao mesmo tempo,
cesso de transformações são radicais e impre- de uma perspectiva interdisciplinar e interse-
visíveis. A emergência de novas doenças, que torial (Rojas, 1998).
podem manifestar-se, também, como epide- Um dos mais importantes exemplos das
mias fatais e devastadoras, não é uma possibi- permanências e transformações nas formas de
lidade apenas ficcional. pensar a relação entre espaço e doença pode

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000


O CONCEITO DE ESPAÇO EM EPIDEMIOLOGIA 603

ser evidenciado mediante os trabalhos sobre a teção contra as doenças inexoravelmente ten-
epidemia de AIDS. O seu surgimento, há duas dem a acompanhar a lógica mais geral da desi-
décadas, provocou um processo acelerado de gualdade e iniqüidade social.
elaboração, mobilizando recursos cognitivos e Os trabalhos a respeito da AIDS, sem dúvi-
subjetivos que acrescentaram muitos elemen- da, expressam transformações discursivas re-
tos para a compreensão da relação entre espa- centes sobre a relação entre espaço e produção
ço e epidemia. Essas abordagens não estiveram de doenças. Um exemplo pode ser sinalizado
restritas ao campo especifico da epidemiolo- através da construção dos modelos dinâmicos
gia, manifestando outras múltiplas possibili- de transmissão da AIDS, que ganharam um no-
dades de se pensar e intervir sobre o processo vo destaque. O acelerado desenvolvimento da
epidêmico, que se integram às explicações es- informática e do conjunto das ciências permi-
tritamente epidemiológicas. tiu o aperfeiçoamento das técnicas de simula-
As redes espaciais de difusão, interação (ou ção e a incorporação de inúmeras novas variá-
circulação) do vírus da AIDS são hoje percebi- veis, que manifestam as mudanças do discurso
das como de difícil delimitação. Elas não se científico contemporâneo. Mesmo mantendo a
configuram de acordo com as características mesma base lógica configurada no início do
geográficas anteriormente estudadas no âmbi- século, os modelos hoje integram informações
to das doenças transmissíveis (Barcellos & Bas- espaciais geográficas a dados sociais e indivi-
tos, 1996). A relação entre transmissão da AIDS duais, tanto comportamentais como genéticos,
e sexualidade ou uso de drogas, expressa a estabelecendo redes de transmissão extrema-
complexidade de dimensões que, embora con- mente complexas.
formadas culturalmente, se situam na esfera
das opções pessoais e individuais. As redes de
limitação ou facilitação da transmissão são Conclusão
condicionadas por características macroestru-
turais que configuram socialmente o acesso a Como vimos, o núcleo epistemológico que
recursos materiais e subjetivos, mas que se de- orienta a apreensão do espaço do ponto de vis-
finem nos espaços da vida privada dos sujeitos. ta epidemiológico é a teoria da doença. É ne-
Os centros urbanos concentram atividades cessário à explicação epidemiológica alcançar
de troca e interação social. Barcellos & Bastos expressar, de alguma forma, o espaço em que
(1996) estudaram, por exemplo, as redes so- ocorre o processo do adoecer, ou seja, a interfa-
ciais que se articulam à transmissão da AIDS ce entre corpo e espaço. Nesse sentido, a idéia
entre usuários de drogas. Os caminhos do nar- de circulação de agentes específicos, especial-
cotráfico percorrem espaços de maior vulnera- mente no contexto de doenças transmitidas
bilidade e incidência da infecção. Dessa forma, por vetores, foi fundamental à objetivação de
podem ser identificados pontos em que os flu- um conjunto de elementos, capazes de dar ma-
xos de difusão da epidemia são mais intensos. terialidade à relação entre espaço e produção
As análises espaciais que, por meio de téc- de doenças. Isto foi possível tanto no contexto
nicas de geoprocessamento, visualizam o des- da abordagem estritamente ecológica quanto
locamento da difusão dos agentes e dos even- no da que considerou o espaço socialmente or-
tos epidêmicos evidenciam também a mudan- ganizado.
ça no perfil sócio-econômico da epidemia. De- Essa configuração apresentou-se limitada,
tectou-se especificamente no Brasil a expansão especialmente para o estudo das doenças cha-
da epidemia para os segmentos de menor ren- madas não-transmissíveis. Através do conceito
da e escolaridade. Grangeiro (1994) estudou a epidemiológico de risco, a interface entre cor-
distribuição dos casos da doença na cidade de po e meio é abstraída, representada, de modo
São Paulo. Nas áreas mais ricas, predominaram virtual, como uma multiplicidade de estímulos
os casos de transmissão homossexual masculi- irradiados. O conceito de risco não explicita ar-
na, e apresentou-se uma maior razão de inci- ticulações entre elementos materiais e imate-
dência entre homens e mulheres. Nas áreas riais que possam explicar o vínculo entre espa-
mais pobres, ao contrário, houve maior núme- ço (exposição) e corpo (evento de doença). O
ro de casos de transmissão heterossexual e re- modelo do risco constrói representações das
lacionada ao uso de drogas. A razão entre casos relações entre causas e a probabilidade destas
em homens e mulheres foi menor (Grangeiro, provocarem doenças que produzem uma des-
1994). O crescente processo de pauperização conexão radical dos elos entre os homens e
da epidemia de AIDS demonstra que a distri- suas circunstâncias.
buição espacial dos mais diversificados recur- A tradição crítica na epidemiologia, espe-
sos materiais e imateriais que favorecem a pro- cialmente na América Latina, buscou superar

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000


604 CZERESNIA, D. & RIBEIRO, A. M.

as limitações dos conceitos epidemiológicos, surgimento de doenças. Não há como negar que
integrando contribuições da teoria social às o desenvolvimento tecno-científico em grande
análises dos processos coletivos de saúde e escala trouxe como conseqüência a construção
doença. Porém, os conceitos específicos da epi- de representações da realidade cada vez mais
demiologia foram pouco problematizados na complexas. O discurso da epidemiologia, assim
sua referência à biologia. A corrente histórico- como o da geografia, articulando-se ao de outras
estrutural que fundamentou esse desenvolvi- áreas de conhecimento, diversifica e amplia
mento tendeu a desvalorizar as dimensões bio- suas possibilidades. A complexidade crescente
lógica e individual do adoecer. Ao buscar am- dos enfoques conceituais, contudo, dificulta a
pliar a concepção de espaço, deixou-se de lado, construção de métodos capazes de operaciona-
caracterizada como atribuição da clínica, a con- lizá-los (Costa & Teixeira, 1999).
cepção de corpo que o reduz ao biológico e indi- O esforço de integração entre diferentes
vidual. Sem repensar a concepção de corpo, res- abordagens é o outro lado da aceleração da
tringem-se as possibilidades de encontrar elos produção de múltiplas linguagens, que frag-
que expliquem a relação entre espaço e doença. mentam as dimensões em que o corpo e o es-
Desenvolvimentos mais recentes questio- paço são apreendidos. A construção de ima-
naram as abordagens que, por um lado, res- gens e discursos sedutoramente retóricos pode
tringiam os processos à uma dimensão biolo- trazer, ao em vez de saber, perplexidade e im-
gicista e, por outro, a determinantes genéricos potência. Pode ofuscar, ao invés de esclarecer,
e estruturais (Fleury, 1992). Buscou-se reinter- os caminhos para a resolução de problemas.
pretar o significado de individual e de biológi- Nesse mundo em que se multiplicam e se frag-
co, através de conceitos como sujeito e nature- mentam exponencialmente imagens, informa-
za (Costa & Costa, 1990). O reconhecimento da ções e representações da realidade, ressalta-se
importância de valores, como subjetividade, cada vez mais a importância de reforçar os elos
autonomia, diferença, apresentou-se no con- entre pensamento e sensibilidade. Estamos vi-
texto das transformações no discurso científi- vendo o paroxismo da tendência sinalizada há
co, que, há cerca de uma década, manifesta- muito tempo por filósofos e poetas: “o processo
ram-se mais claramente na saúde coletiva. de desmembramento e decomposição da natu-
Essas transformações trouxeram novos ele- reza e do homem fez com que se perdesse a inte-
mentos para se pensar o espaço e, conseqüen- gridade da referência em seu próprio sentido”
temente, a relação entre espaço e doença. Re- (Goethe apud Cassirer, 1993:225); a visibilida-
tomando a definição de Milton Santos (Santos, de de novas estruturas na natureza e na deter-
1996) do espaço enquanto sistema de objetos e minação dos seres implicou uma cegueira em
de ações, um conjunto de fixos e fluxos, ressal- relação ao sentido do ser (Merleau-Ponty, 1992);
ta-se, no contexto dos fluxos, aspectos que fo- a visualização progressiva de realidades ante-
ram pouco trabalhados em estudos epidemio- riormente inimagináveis tendeu a afastar o ho-
lógicos. A dimensão da comunicação no meio mem de seu próprio referencial de medida
tecno-científico-informacional produz-se tam- (Arendt, 1987).
bém através da circulação de palavras, ima- A experiência vivida nos acontecimentos é a
gens, rumores, afetos. Os elementos simbóli- referência básica a qualquer perspectiva sinté-
cos contribuem de modo significativo para a tica. No caso da epidemiologia, é o sofrimento
configuração territorial e, certamente, para o humano que se manifesta através dos eventos
processo de adoecer, individual e coletivo. Su- epidêmicos, que mobiliza o pensamento a pro-
blinhando-se a dimensão fluida do espaço, des- duzir significados e encontrar, dentre as mais
tacam-se aspectos que enriquecem e tornam variadas possibilidades, aquelas que melhor
ainda mais complexa a sua natureza. Porém, a correspondem à necessidades. A crença na ver-
apropriação de teorias a respeito do espaço, dade científica torna-se cada vez mais relativa,
produzidas em outros campos do conhecimen- colocando-se em primeiro plano a idéia da uti-
to, ainda não conseguiu encontrar uma media- lidade do conhecimento. O que importa não é a
ção tão clara entre o espaço e o fenômeno do disputa entre métodos e sistemas de pensa-
adoecer como a que é alcançada pela idéia de mento definidos a priori, mas a capacidade de
circulação de agentes específicos de doenças. resolver, da melhor forma possível, problemas
Sem dúvida, desde a formulação da teoria concretos. O uso do conceito de espaço em epi-
dos germes, houve um enorme desenvolvimen- demiologia tem uma abertura transdisciplinar,
to das ciências, da visualização de estruturas permite uma multiplicidade de significações,
biológicas, da compreensão de processos so- que devem ser mobilizadas, tendo como refe-
ciais e simbólicos, o que acrescentou muitos rência situações de saúde definidas a partir de
elementos para pensar o espaço, o corpo e o interesses devidamente explicitados.

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000


O CONCEITO DE ESPAÇO EM EPIDEMIOLOGIA 605

Agradecimentos

Agradecemos as sugestões de Paulo Chagastelles Sa-


broza.

Referências

ARENDT, H., 1987. A Condição Humana. Rio de Ja- de Medicina Social, Universidade do Estado do
neiro: Forense-Universitária. Rio de Janeiro/ Relume-Dumará.
AYRES, J. R. C. M., 1997. Sobre o Risco: Para Compre- HARVEY, D., 1996. A Condição Pós-Moderna. São
ender a Epidemiologia. São Paulo: Editora Hu- Paulo: Loyola.
citec/Rio de Janeiro: ABRASCO. JACOB, F., 1983. A Lógica da Vida: Uma História da
BARATA, R., 1988. Meningite: Uma Doença sob Cen- Hereditariedade. Rio de Janeiro: Graal.
sura? São Paulo: Cortez. LEAVELL, S. & CLARCK, E. G., 1976. Medicina Preven-
BARCELLOS, C. & BASTOS, F. I., 1996. Redes sociais e tiva. São Paulo: McGraw-Hill.
difusão da AIDS no Brasil. Boletín de la Oficina MacMAHON, B. & PUGH,T. F., 1978. Principios e
Sanitaria Panamericana, 121:11-24. Métodos de Epidemiología. México, D.F.: La Pren-
BARRETO, M. L., 1982. Esquistossomose Mansônica: sa Médica Mexicana.
Distribuição da Doença e Organização Social do MERLEAU-PONTY, M., 1992. O Visível e o Invisível.
Espaço. Dissertação de Mestrado, Salvador: Uni- São Paulo: Perspectiva.
versidade Federal da Bahia. PAVLOVSKY, Y. N., s/d. Natural Nidality of Transmis-
BAUMAN, Z., 1998. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. sible Diseases. Moscow: Peace Publishers.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. PESSOA, S. B., 1978. Ensaios Médico-Sociais. São Paulo:
BREILH, J.; GRANDA, E.; CAMPANA, A. & BETAN- CEBES/Editora Hucitec.
COURT, O., 1983. Ciudad y Muerte Infantil. Quito: ROSICKY, B., 1967. Natural foci of diseases. In: Infec-
Ediciones CEAS. tious Diseases: Their Evolution and Erradication
CARVALHEIRO, J. R., 1986. Processo migratório e dis- ( T. A. Cockburn, org.), pp. 108-126, Springfield:
seminação de doenças. Textos de Apoio: Ciências Charles C. Thomas.
Sociais, 1:29-55. ROJAS, L. I., 1998. Geografia y salud: Temas y pers-
CASSIRER, E., 1993. El Problema del Conocimiento en pectivas en América Latina. Cadernos de Saúde
la Filosofía y en la Ciencia Modernas. Libro IV. Pública, 14:701-711.
México, D.F.: Fondo de Cultura Económica. SABROZA, P. C. & LEAL, M. C., 1992. Saúde, ambiente
CASTELLANOS, P. L., 1990. Avances metodológicos e desenvolvimento. Alguns conceitos fundamen-
en epidemiología. In: Anais do 1o Congresso Brasi- tais. In: Saúde, Ambiente e Desenvolvimento (M.
leiro de Epidemiologia, pp. 201-216, São Paulo: Leal., P. Sabroza, R. Rodrigues & P. Buss, org.), pp.
ABRASCO. 45-93, São Paulo: Editora Hucitec/Rio de Janeiro:
COSTA, D. C. & COSTA, N. R., 1990. Teoria do conhec- ABRASCO.
imento e epidemiologia. Um convite à leitura de SANTOS, B. S., 1987. Um Discurso sobre as Ciências.
John Snow. In: Epidemiologia. Teoria e Objeto (D. Porto: Edições Afrontamento.
C. Costa, org.), pp. 167-202, São Paulo: Editora SANTOS, M., 1996. A Natureza do Espaço – Técnica e
Hucitec/ABRASCO. Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: Editora Hu-
COSTA, M. C. N. & TEIXEIRA, M. G. L. C., 1999. A con- citec.
cepção de ‘espaço’ na investigação epidemiológi- SILVA, L. J., 1985a. Organização do espaço e doença.
ca. Cadernos de Saúde Pública, 15:271-279. In: Textos de Apoio: Epidemiologia 1 ( J. R. Carva-
CZERESNIA, D., 1997. Do Contágio à Transmissão: lheiro, org.), pp. 159-188, Rio de Janeiro: Escola
Ciência e Cultura na Gênese do Conhecimento Epi- Nacional de Saúde Pública/ABRASCO.
demiológico. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. SILVA, L. J., 1985b. Crescimento urbano e doença: Es-
FERREIRA, M. U., 1991. Epidemiologia, conceitos e quistossomose no Município de São Paulo (Bra-
usos: O complexo patogênico de Max Sorre. Ca- sil). Revista de Saúde Pública, 19:1-7.
dernos de Saúde Pública, 7:301-309. SILVA, L. J, 1997. O conceito de espaço na epidemio-
FLEURY, S., 1992. Saúde Coletiva? Questionando a Oni- logia das doenças infecciosas. Cadernos de Saúde
potência do Social. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. Pública, 13:585-593.
FOUCAULT, M., 1995. As Palavras e as Coisas: Uma SINNECKER, H., 1971. General Epidemiology. Lon-
Arqueologia das Ciências Humanas. São Paulo: don: John Wiley & Sons.
Martins Fontes. SORRE, M., 1984. A noção de gênero de vida e sua
GADELHA, P., 1995. História de Doenças: Ponto de En- evolução. In: Max Sorre: Geografia ( J. F. Megale,
contros e de Dispersões. Tese de Doutoramento, org.), pp. 99-123, Rio de Janeiro: Editora Ática.
Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, TEIXEIRA, R. R., 1993. Epidemia e Cultura: AIDS e Mun-
Fundação Oswaldo Cruz. do Securitário. Dissertação de Mestrado, São Paulo:
GRANGEIRO, A., 1994. O perfil sócio-econômico dos Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo.
casos de AIDS na cidade de São Paulo. In: A AIDS URTEAGA, L., 1980. Miseria, miasmas y microbios.
no Brasil (R. Parker, C. Bastos, J. Galvão & J. S. Pe- Las topografías médicas y el estudio del medio
droza, org.), pp. 91-125, Rio de Janeiro: Associa- ambiente en el siglo XIX. Cuadernos Críticos de
ção Brasileira Interdisciplinar de Aids/Instituto Geografía Humana, 29:5-52.

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000


606 CZERESNIA, D. & RIBEIRO, A. M.

Debate sobre o artigo de Dina Czeresnia século, fundamentado no paradigma biologi-


& Adriana Maria Ribeiro cista. Em contrapartida, em relação às doenças
crônico-degenerativas e considerando o mo-
Debate on the paper by Dina Czeresnia delo multicausal, os elos entre corpo e espaço
& Adriana Maria Ribeiro são menos evidentes, dado que o elemento ex-
terno não pode ser reconhecido na forma de
agentes transmissíveis.
É com a corrente marxista da geografia que
a epidemiologia busca elementos explicativos
das relações entre espaço e sociedade, tendo,
Eduardo Maia Freese O artigo apresentado por Dina Czeresnia & contudo, sempre a contribuição de epidemio-
de Carvalho Adriana Ribeiro nos instiga a pensar, de forma logistas como Castellanos (1987), Possas (1989),
ampliada, o processo saúde-doença e os deter- Laurell & Noriega (1989), Breilh et al. (1990),
Departamento de Saúde minantes subjetivos que permeiam suas rela- dentre outros, que procuraram evidenciar as-
Coletiva, Núcleo de Estudos
ções. As autoras propõem uma discussão con- pectos relacionados às desigualdades existen-
em Saúde Coletiva, Centro de
Pesquisas Aggeu Magalhães, ceitual e histórica, considerando diversas con- tes entre classes e distintos grupos sociais. Es-
Fundação Oswaldo Cruz. cepções e aplicação da categoria de análise “es- sas contribuições se expressam claramente pa-
Departamento de Medicina
paço” em epidemiologia. O conteúdo aborda- ra além daquelas que se encontram estrita-
Social, Universidade Federal
de Pernambuco. do é de extrema importância nos dias atuais mente no campo biológico, ao considerarem as
para a saúde pública e, particularmente, para o contradições existentes no modelo econômico,
desenvolvimento da epidemiologia, tendo em no processo de industrialização, na urbaniza-
vista a possibilidade de apontar para horizon- ção, na questão agrária e nas migrações, que
tes explicativos das novas e velhas mazelas que têm influenciado de forma extremamente mar-
afligem as diferentes sociedades, populações e cante na organização social do espaço habita-
indivíduos. do (Santos, 1988).
O uso do espaço enquanto categoria de Porém, é fato que as várias concepções e
análise para a compreensão da ocorrência e da modelos acima referidos não consideram a
distribuição das doenças nas coletividades sur- subjetividade existente entre os elos que sepa-
ge antes mesmo da consolidação da epidemio- ram espaço, enquanto categoria de análise, e o
logia como disciplina científica. De fato, a rela- indivíduo. Entretanto, os diferentes autores la-
ção do meio geográfico com o processo saú- tino-americanos, ainda que centrados numa
de–doença e sua historicidade já são estudadas visão que privilegia a doença, têm alcançado
desde, aproximadamente, 480 a.C. com o tra- avanços importantes quando consideram o
balho de Hipócrates intitulado Ares, Águas e processo de adoecer como determinado social-
Lugares (Pessoa, 1978), numa concepção am- mente, entendido enquanto processo históri-
bientalista, tendo uma aplicação concreta na co. Estes consideram dois momentos funda-
epidemiologia a partir dos estudos de Snow mentais:
(1990) sobre o modo de transmissão da cólera 1) O momento da produção (trabalho), co-
em Londres, no início da Revolução Industrial mo explicativo para um perfil epidemiológico
e Científica. de doenças crônicas, particularmente do setor
Certamente, concordamos com as autoras secundário (industrial) e terciário (comércio e
quando apontam que é a teoria da doença que serviços), secundarizados pelas doenças infec-
tem guiado epistemologicamente a concepção ciosas e parasitárias; e
do espaço em epidemiologia e verificamos que 2) O momento da reprodução da força de
o artigo apresenta uma trajetória bastante per- trabalho, que, tendo em vista o insuficiente sa-
tinente quando observa que, historicamente, lário, não dá condições ao trabalhador de su-
se trabalha uma concepção de lugar centrada prir suas necessidades básicas de sobrevivên-
no natural. Essa concepção é também uma cia, como alimentação e moradia adequadas,
contribuição de fundamental importância pa- saneamento básico, lazer, etc. Em conseqüên-
ra a compreensão da epidemiologia das doen- cia, verificamos um perfil epidemiológico com
ças infecciosas, particularmente as de trans- predominância das doenças infecciosas e pa-
missão vetorial, como explicitado por Silva rasitárias, secundarizadas pelas enfermidades
(1997). Talvez isso ocorra porque as doenças crônicas e degenerativas.
infecciosas apresentam elos entre o espaço e o Entendemos que existe, ainda, um terceiro
corpo determinados externamente (vírus, bac- ou novo padrão epidemiológico em sociedades
térias, fungos, etc.), transmitidos ou não por emergentes, em um contexto de iniqüidade so-
vetores, sendo mais visíveis para o conheci- cial, que encarnam e espelham as contradições
mento científico adquirido pelo homem neste da forma desorganizada de ocupação dos es-

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000


O CONCEITO DE ESPAÇO EM EPIDEMIOLOGIA 607

p. 5. Medellin: Congresso Mundial de Medicina


paços urbanos e rurais. Nesses locais, coexis- Social. (mimeo.)
tem, em níveis elevados, as enfermidades ar- LAURELL, A. C. & NORIEGA, M., 1989. Processo de
caicas, (cólera, esquistossomose, sarampo, Produção e Saúde: Trabalho e Desgaste Operário.
hanseníase, tuberculose), para as quais já dis- São Paulo: Editora Hucitec.
pomos de tecnologia para erradicá-las ou con- PESSOA, S. B., 1978. Ensaios Médico-Sociais. São Pau-
trolá-las, e as enfermidades da modernidade, lo: CEBES/Editora Hucitec.
POSSAS, C., 1989. Epidemiologia e Sociedade: Hetero-
particularmente as enfermidades crônicas e
geneidade Estrutural e Saúde no Brasil. São Paulo:
degenerativas, bem como eventos e danos à Editora Hucitec.
saúde, inclusive as mortes violentas (acidente SANTOS, M., 1988. Metamorfose do Espaço Habitado:
de trânsito, homicídio etc.). Fundamentos Teóricos e Metodológicos da Geo-
Outras duas considerações colocadas para grafia. São Paulo: Editora Hucitec.
discussão são: SILVA, L. J., 1997. O conceito de espaço na epidemio-
logia das doenças infecciosas. Cadernos de Saúde
1) O emprego de técnicas de georreferen-
Pública,13:585-593.
ciamento e geoprocessamento dos dados e in-
SNOW, J., 1990. Sobre a Maneira de Transmissão do
formações, que muito têm contribuído para o Cólera. 2a Ed. São Paulo: Editora Hucitec/Rio de
entendimento do espaço enquanto categoria Janeiro: ABRASCO.
de análise. Entretanto, essas técnicas não de-
vem ser entendidas como ciência ou panacéia
para explicar o processo saúde–doença, posto
que suas possibilidades e potencialidades são
amplas, mas também têm claras limitações,
pois são técnicas apenas.
2) A segunda consideração é a reflexão so-
bre os ambientes de trabalho e suas relações
conflitantes entre chefes, supervisores e os de- Christovam Elos entre geografia e epidemiologia
mais trabalhadores. Relações geradoras de ten- Barcellos
são psicológica e estresse, que debilitam a saú- O artigo de Dina Czeresnia & Adriana Ribeiro
de dos indivíduos e que ainda não foram devi- Departamento de apresenta uma reflexão oportuna sobre o espa-
Informações em Saúde,
damente explorados pela epidemiologia, na ço na epidemiologia. Outros artigos com preo-
Centro de Informações
medida que pouco se conhece sobre estas e os em Ciência e Tecnologia, cupações semelhantes vêm sendo publicados
elos existentes entre espaço e corpo. Fundação Oswaldo Cruz. nos próprios Cadernos de Saúde Pública nos úl-
Por último, as autoras nos fazem também timos anos, demonstrando uma retomada de
refletir sobre a utilização do método epidemio- uma abordagem espacial para os problemas de
lógico baseado na quantificação e distribuição saúde. Dentre estes podem ser mencionadas as
das doenças infecciosas e parasitárias e no mo- contribuições de Maria da Conceição Costa &
delo dos fatores de risco para as doenças crôni- Maria da Glória Teixeira (Costa & Teixeira, 1999),
co-degenerativas. Parece claro que tal metodo- Luiza Iñigez Rojas (Rojas, 1998) e Luiz Jacintho
logia não é apropriada para compreender a da Silva (Silva, 1997). Também em artigo nesta
subjetividade existente entre espaço e corpo. revista, apontamos vantagens e riscos do uso do
Entretanto, parece, também, óbvio que, para geoprocessamento para análises de ambiente e
buscar compreender a subjetividade do pro- saúde, procurando identificar problemas teóri-
cesso de adoecer, é necessário nos apropriar- co-metodológicos encontrados nessa possível
mos do método qualitativo, este sim possuidor junção (Barcellos & Bastos, 1996). Essa série de
de potencialidades capazes de explicar catego- artigos, entre os quais se destaca a presente re-
rias de análise subjetivas. A tão preconizada visão, permite hoje recuperar correntes históri-
triangulação metodológica entre as ciências, cas e identificar tendências do uso do espaço
visando a interdisciplinaridade e, quiçá, a como categoria de análise da epidemiologia.
transdiciplinaridade, aparenta ter grande po- Diversos outros artigos, que vêm sendo recen-
tencial de buscar desvendar a complexidade temente apresentados nesta e em outras revistas
do processo saúde–doença, centrada, particu- de saúde pública, contêm mapas ilustrativos ou
larmente, na saúde. demonstrativos da distribuição espacial de agra-
vos à saúde, suas fontes de risco ou determinan-
BREILH, J., 1990. Deterioro de la Vida. Un Instrumen- tes sociais e ambientais. Felizmente, a crescen-
to para Analisis de Prioridades Regionales en lo
te utilização de categorias geográficas na análi-
Social y la Salud. Quito: Corporación Editora Na-
cional.
se de saúde parece estar sendo acompanhada
CASTELLANOS, P. L., 1987. Sobre el concepto salud- por reflexões a cerca de sua formulação teórica.
enfermidad: Un ponto de vista epidemiológico. Como apontado pelas autoras, geografia e
In: Congresso Mundial de Medicina Social, Anais, epidemiologia têm histórias semelhantes, mar-

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000


608 CZERESNIA, D. & RIBEIRO, A. M.

cadas por uma intensa troca com ciências da sociais que podem magnificar efeitos adversos
natureza e da sociedade. A epidemiologia e a e, do outro lado, fontes de contaminação, lo-
geografia talvez tenham em comum, principal- cais de proliferação de vetores. Essa ligação
mente, as crises que costumam produzir pela acontece não só no espaço, mas, principalmen-
saturação de modelos ou por sua superação em te, se dá através da organização espacial. Essa
razão de novas realidades. A AIDS, lembrada organização impõe uma lógica de localização e
pelas autoras, é uma dessas novas realidades funcionamento, tanto para a produção quanto
que acabaram por derrubar antigos conceitos para a reprodução da sociedade. Esse encontro
e esquemas de análise. Foi assim com o mode- singular entre condições de risco e populações
lo proposto por Pavlovsky, superado pela urba- em risco é determinado por fatores econômi-
nização de doenças não explicadas por uma cos, culturais e sociais que atuam no espaço. O
ecologia ou geografia da paisagem natural. exemplo da saúde dos trabalhadores é, talvez,
Tanto Pavlovsky quanto Max Sorre trabalharam o mais gritante, em que a posição do indivíduo
com a ecologia, no sentido de ciência das rela- no espaço de trabalho está fortemente relacio-
ções entre ambiente e seres vivos, e talvez, por nada à função por ele exercida e a toda a estru-
isso, se prenderam aos princípios de equilíbrio tura de produção, utilizando categorias da geo-
meio interno/meio externo, homem/meio, pa- grafia sugeridas por Milton Santos. Esse con-
rasitas/hospedeiro. Talvez esses modelos se- junto de variáveis, que é indissociável, deter-
jam adequados para o estudo de algumas en- mina as condições de risco a que estão subme-
demias, mas não para doenças não transmissí- tidas parcelas da população de trabalhadores.
veis e situações epidêmicas. Algumas vezes te- Essas relações não são tão evidentes no cha-
mos que pensar no desequilíbrio, no efeito de mado ambiente geral, isto é, no espaço de mo-
um fato novo – um novo agente infeccioso ou radia, de circulação e de consumo. Nesse caso,
as migrações – na determinação de doenças. cabe à investigação epidemiológica e à geogra-
Também parece estar em crise a chamada epi- fia da saúde restabelecer esse elo.
demiologia dos fatores de risco (Castellanos, O uso do espaço na área de saúde tem sido
1990), que freqüentemente desconsidera as in- incrementado com o crescente acesso a bases
terações entre indivíduos (unidades de obser- de dados epidemiológicos e pela disponibili-
vação) e as condições coletivas que emergem dade de ferramentas cartográficas e estatísti-
destas relações. Algumas das importantes ex- cas computadorizadas. O uso dessas ferramen-
pressões dessa coletividade são as cidades, as tas pressupõe, no entanto, modelos de explica-
redes sociais, os grupos sócio-espaciais, locali- ção do processo saúde/doença baseados em
zados em guetos ou condomínios residenciais, variáveis espaciais, como distância e vizinhan-
ou organizados em torno de fatores comuns ça, e no inter-relacionamento com dados de
que unem pessoas, produzem subjetividades caracterização do lugar. O espaço é muitas ve-
coletivas e se manifestam no espaço; em luga- zes utilizado como simples plano geométrico
res particulares (Sabroza & Leal, 1992). Essas para a disposição e análise de dados epidemio-
relações são necessariamente coletivas e têm lógicos, tendo como premissa os elementos es-
expressão espacial, embora muitas vezes de di- paciais próximos compartilharem condições
fícil apreensão. sócio-ambientais semelhantes. O espaço tem
O lugar, ao lado de pessoas e tempo, é uma sido fragmentado para, numa segunda aborda-
das três principais dimensões de análise de fe- gem, permitir verificar a diferenciação de con-
nômenos epidemiológicos. Essa categorização dições sociais e ambientais, tendo como pres-
é meramente didática, uma vez que pessoas, supostos a homogeneidade interna e a inde-
tempo e lugares interagem. O conjunto lugar- pendência das unidades espaciais de agrega-
tempo-pessoas é, em outras palavras, precisa- ção e análise de dados. Uma terceira aborda-
mente o objeto da geografia. A geografia estu- gem é focada na visão particular do lugar e das
da a relação entre sociedade e espaço, ou seja, circunstâncias em que o espaço pode produzir
como, onde, em que condições e por que cau- riscos à saúde. A cada uso do espaço corres-
sas se dá o desenvolvimento humano (não pro- ponde um conceito e um conjunto de métodos
priamente equivalente ao desenvolvimento e técnicas de análise que podem ser emprega-
pessoal) na superfície da terra (lugares). Para das. A falta de explicitação desses conceitos e
isso, compreende esse processo como resulta- métodos prejudica não só o próprio estudo,
do da acumulação de forças históricas (tempo). mas o estabelecimento desse possível elo entre
Nesse sentido, o espaço não só viabiliza a geografia e saúde. O uso do geoprocessamento,
circulação de agentes, como enfatizado pelas uma ferramenta de cada vez mais fácil acesso e
autoras, mas estabelece um elo, unindo, de um utilização entre profissionais da saúde, tam-
lado, grupos populacionais com características bém pressupõe um embasamento metodológi-

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000


O CONCEITO DE ESPAÇO EM EPIDEMIOLOGIA 609

co prévio. Que paradigmas usamos e dispomos tema central do oportuno artigo de Dina Cze-
nesse caso? Estamos buscando o complexo pa- resnia & Adriana Maria Ribeiro.
togênico? Estamos condenados à geografia A principal vertente acadêmica da geografia
quantitativa? Trabalhamos com a ecologia das médica surge em 1943, com a publicação do
doenças? Existe alguma maneira de se fazer primeiro volume da obra magistral de Max Sor-
geografia crítica usando geoprocessamento? re, Les Fondements de la Géographie Humaine,
Não temos respostas para estas questões, mas dedicado aos seus fundamentos biológicos.
o debate incitado por esse artigo permite recu- Sorre propõe aqui o complexo patogênico co-
perar a história da difícil relação entre geogra- mo um conceito de integração entre a geogra-
fia e epidemiologia e apontar possíveis cami- fia e as ciências biológicas. A geografia médi-
nhos a seguir. ca aplicada torna-se popular a partir de 1939,
quando o parasitologista russo Y. N. Pavlovsky
BARCELLOS, C. & BASTOS, F. I., 1996. Geoprocessa- lança a sua teoria dos focos naturais das doenças
mento, ambiente e saúde, uma união possível?
humanas, que teria servido de base para as ativi-
Cadernos de Saúde Pública, 12:389-397.
CASTELLANOS, P. L., 1990. Sobre el concepto de
dades de controle de diversas endemias rurais
salud-enfermedad. Descripción y explicación de no território soviético. Do ponto de vista concei-
la situación de salud. Boletín Epidemiológico, tual, importa examinar como Sorre e Pavlovsky
10:1-7. interpretam as relações entre o homem, o espaço
COSTA, M. C. N. & TEIXEIRA, M. G. L. C., 1999. A con- geográfico e as doenças, e em que consiste a no-
cepção de “espaço” na investigação epidemioló- vidade de suas proposições (Ferreira, 1991).
gica. Cadernos de Saúde Pública, 15:271-279.
O foco natural das doenças é descrito em
ROJAS, L. I., 1998. Geografía y salud: Temas y pers-
pectivas en América Latina. Cadernos de Saúde Pavlovsky como um objeto da geografia física:
Pública, 14:701-711. uma paisagem caracterizada por elementos
SABROZA, P. C. & LEAL, M. C., 1992. Saúde, ambiente climáticos e de cobertura vegetal, onde circu-
e desenvolvimento. Alguns conceitos fundamen- lam agentes etiológicos, vetores e reservatórios
tais. In: Saúde, Ambiente e Desenvolvimento. Uma de uma infecção. O ser humano situa-se fora
Análise Interdisciplinar (M. C. Leal, P. C. Sabroza,
do foco, ainda que eventualmente sua ação so-
R. H. Rodriguez & P. M. Buss, org.), pp. 45-93, Rio
bre a paisagem possa contribuir para a disse-
de Janeiro: ABRASCO/São Paulo: Editora Hucitec.
SILVA, L. J., 1997. O conceito de espaço na epidemio- minação de infecções. Sua posição hierárquica
logia das doenças infecciosas. Cadernos de Saúde corresponde exatamente à dos demais elemen-
Pública, 13:585-593. tos paisagísticos e biológicos em jogo. Não há,
no plano conceitual, nenhuma ruptura com a
tradição positivista; a noção de foco natural
reaparecerá na tríade clássica agente-hospe-
deiro-meio da epidemiologia funcionalista de
Leavell & Clarck (1976). No Brasil, as idéias de
Pavlovsky teriam ampla divulgação nos escri-
tos de Samuel Pessoa (1978), cujo valor reside
mais em seu caráter de denúncia social do que
Marcelo Urbano No final do século XVIII, os médicos passaram em seu apuro conceitual ou metodológico.
Ferreira a interrogar o corpo humano em busca da sede Por outro lado, o complexo patogênico de
das doenças, que Morgagni e Bichat localiza- Sorre pertence ao âmbito da geografia huma-
Departamento de riam nos órgãos e tecidos e Virchow, posterior- na. Nele, o papel do homem não se restringe ao
Parasitologia, Instituto
mente, na célula. Quase simultaneamente, a plano biológico, como eventual hospedeiro de
de Ciências Biomédicas,
Universidade medicina social buscava compreender a distri- agentes infecciosos. A doença não surge ou de-
de São Paulo. buição das doenças em populações humanas e saparece como fenômeno natural; a gênese ou
muferrei@usp.br
seus determinantes. A idéia de território das desintegração dos complexos patogênicos é
doenças surge, portanto, em contextos distin- condicionada pela ação humana sobre o ambi-
tos. O território da clínica é delimitado por dis- ente. No entanto, Sorre prende-se a uma pers-
ciplinas como a anatomia, a histologia e a pato- pectiva ecológica para compreender esta ação
logia, enquanto o espaço que a medicina social humana, sintetizada em seu conceito de gêne-
investiga corresponde ao objeto de estudo do ro de vida. Os diferentes gêneros de vida resul-
geógrafo. Embora técnicas cartográficas vies- tariam de modos diversos de adaptação do ho-
sem sendo utilizadas, ao longo do século XIX, mem às dificuldades impostas pelo meio geo-
para descrever a distribuição das doenças hu- gráfico. Não cabem nessa perspectiva atores
manas, o intercâmbio conceitual entre a medi- sociais em conflito de classes nem formações
cina social e a geografia somente se intensifica sociais que geram determinados modos de
em meados do século XX. Esse intercâmbio é o ocupação do espaço. A fria recepção das idéias

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000


610 CZERESNIA, D. & RIBEIRO, A. M.

LEAVELL, S. & CLARCK, E. G., 1976. Medicina Preven-


de Sorre no Brasil, pelo menos entre os epide- tiva. São Paulo: McGraw-Hill.
miologistas, pode ser medida pela inexistência NAJAR, A. L. & MARQUES, E. C., 1998. Saúde e Espaço:
de estudos empíricos que se utilizam de seu Estudos Metodológicos e Técnicas de Análise. Rio
conceito de complexo patogênico. de Janeiro: Editora Fiocruz.
A geografia crítica proporciona outro pos- PESSOA, S. B., 1978. Ensaios Médico-Sociais. São Pau-
sível elo de interação entre a epidemiologia e a lo: CEBES/Editora Hucitec.
SANTOS, M., 1985. Espaço e Método. São Paulo: Nobel.
geografia. Entre os epidemiologistas de forma-
SILVA, L. J., 1991. Evolução da Doença de Chagas no
ção positivista, no entanto, há dificuldade de Estado de São Paulo. Tese de Doutorado, Ribeirão
absorver conceitos de espaço incompatíveis Preto: Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto,
com a tríade agente-hospedeiro-meio. O pro- Universidade de São Paulo.
blema básico reside no modo como se analisa a
relação entre as partes e o todo. Ora, na geogra-
fia crítica o espaço humano é interpretado co-
mo uma totalidade que resulta da ação do ho-
mem organizado em sociedade sobre a paisa-
gem. Nas palavras de Milton Santos, “a essên-
cia do espaço é social. Nesse caso, o espaço não
pode ser apenas formado pelas coisas, os obje-
tos geográficos, naturais e artificiais, cujo con- José Ricardo Czeresnia & Ribeiro nos trazem um tema da
junto nos dá a Natureza. O espaço é tudo isso, Ayres maior relevância: a questão do espaço em Epi-
mais a sociedade: cada fração da natureza demiologia. Com efeito, tempo e espaço são,
abriga uma fração da sociedade atual” (Santos, Departamento de como sabemos desde Kant, as intuições funda-
Medicina, Faculdade de
1985). Essa totalidade não resulta meramente mentais com as quais o entendimento contri-
Medicina, Universidade
da justaposição de seus componentes, nem es- de São Paulo. bui para a construção do conhecimento positi-
tes podem ser compreendidos sem referência vo – ainda que se ponha em questão o caráter
à totalidade. transcendental dessas categorias estéticas. Com
No plano teórico, a maior contribuição so- justa razão, portanto, toda disciplina científica
bre espaço e doença da epidemiologia brasilei- que reflete sobre suas bases epistemológicas
ra deve-se a Luiz Jacintho da Silva (Silva, 1991), precisa, mais ou cedo ou mais tarde, examinar
que radicaliza a noção de foco antropúrgico de de que modo essas noções basilares estão ins-
Pavlovsky em seus estudos sobre a doença de truindo o conhecimento que produz. Esse
Chagas no Estado de São Paulo. Geógrafos bra- exercício se torna tão mais necessário quanto
sileiros vêm realizando trabalhos metodológi- mais tais intuições se desdobram na constru-
cos e empíricos valiosos, como aqueles reuni- ção da linguagem própria de cada campo de
dos na obra coordenada por Alberto Najar & conhecimento, na constituição de categorias
Eduardo Marques (Najar & Marques, 1998), não analíticas e conceitos nos quais tempo e espa-
mencionados por Czeresnia & Ribeiro. A vasta ço revestem-se, eles próprios, de conteúdo em-
obra geográfica de Milton Santos, que ganha pírico que se busca validar. É o caso da histó-
cada vez mais leitores no Brasil, propõe uma ria, da geografia e, sem sombra de dúvida, da
sólida base conceitual para a epidemiologia so- epidemiologia.
cial lidar com os problemas do espaço. A geo- Tempo, lugar e pessoa compõem a tríade
grafia urbana, em especial, convive com fecun- básica da produção/interpretação dos cons-
das teorias do espaço de orientação marxista, tructos epidemiológicos, dizem os manuais
como as de Manuel Castells & Henri Lefebvre que fundaram as bases metodológicas da disci-
(Castells & Lefebvre, apud Gottdiener, 1997). plina. O que, na verdade, poderia ser escrito
Criam-se condições para que a geografia médi- como pessoas em lugares/tempos. É a distri-
ca brasileira se liberte de sua tradição de des- buição de ocorrências que define o escopo da
crever (e eventualmente denunciar) a ocorrên- epidemiologia, já propõem textos mais recen-
cia e distribuição das endemias rurais e se de- tes. De qualquer modo está ali, inexorável, o
bruce sobre temas como, por exemplo, a emer- espaço. Para além de fundamento estético, ele
gência de doenças infecciosas nas cidades. mesmo é aspecto a ser apreendido e problema-
AIDS e tuberculose estão na pauta dessas futu- tizado, assim como o tempo, como vem discu-
ras investigações. tindo Gil Sevalho. Quantificar e comparar ocor-
rências pressupõe delimitar em termos de tem-
FERREIRA, M. U., 1991. Epidemiologia e Geografia: O po e espaço a grandeza de eventos definidos.
complexo patogênico de Max Sorre. Cadernos de
Assim, determinar onde os eventos acontecem
Saúde Pública, 7:301-309.
GOTTDIENER, M., 1997. A Produção Social do Espaço
é, em epidemiologia, indispensável para che-
Urbano. São Paulo: Edusp. gar a identificar porque eles acontecem ou, ao

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000


O CONCEITO DE ESPAÇO EM EPIDEMIOLOGIA 611

menos, como podem vir a não acontecer. As são capazes de evidenciar mecanismos disfun-
autoras defendem, nesse sentido, que a própria cionais no corpo. Estamos de acordo, porém,
identidade da disciplina se construiu sobre que, desde a verdadeira revolução epistemoló-
uma figura de espacialidade, qual seja, a busca gica que foi a emergência do conceito de risco
das vias de transmissão das doenças de massa. em epidemiologia, o desvelar de um círculo
Não obstante seu caráter central na consti- disfuncional, cujo centro estava na intimidade
tuição da epidemiologia, o espaço também não orgânica e cuja circunferência se estendia para
conseguiu, porém, escapar ao horror antiteoré- tudo que, no meio externo, se relacionava com
tico que marca o desenvolvimento conceitual ela, perdeu espaço (eu disse espaço?!). Até os
dessa disciplina. O espaço tem sido amplamen- anos 30, as relações entre microbiologia, imu-
te usado em epidemiologia para conhecer co- nologia e clínica permitiram à epidemiologia
mo se distribuem as doenças e seus correlatos manter-se ainda como porta-voz de uma me-
(serviços, tratamentos, respostas), mas não pa- cânica interno–externo, mas, agora, já traba-
ra pensar o que isso significa. Espaço virou lu- lhando menos com a idéia de disfunção do que
gar, e este passou a ser apreendido como ende- com a idéia de desequilíbrio (entre infectantes,
reço. O endereço, enquanto tal, foi progressiva- infectados e suscetíveis). Após a Segunda Guer-
mente deixando de ser um dado empírico dota- ra Mundial, contudo, vemos a epidemiologia
do de significado para transformar-se no supor- do risco prescindir quase totalmente não só da
te lógico de variáveis cada vez mais abstratas, fisiopatologia, como também de qualquer me-
altamente isoladas do “conjunto indissociável cânica interno–externo para produzir seu co-
de sistemas de objetos e sistemas de ação” de que nhecimento. Nem disfunção, nem desequilí-
nos fala Milton Santos (Santos, 1996:18). brio, o que a epidemiologia passa a buscar e re-
Essa é uma das questões centrais suscita- velar é o desfavorável. Se uma ocorrência qual-
das pelo trabalho aqui apresentado. Dado que, quer tem possibilidade de estar favorável ou
também a epidemiologia, como ocorrência, co- desfavoravelmente associada a outra no cam-
mo evento delimitável espacialmente, deve ser po da saúde, esse fato, junto com sua extensão,
tratada como parte indissociável de um siste- passa a ser o norte e o traço distintivo da pro-
ma (ou sistemas) de objetos e ações, cabe per- dução hegemônica na epidemiologia do risco.
guntar: o que esse deslocamento nos diz a res- Nesse sentido, cabe perguntar: não terá a epi-
peito de nós próprios? Por que o lugar repre- demiologia contemporânea modificado sua re-
senta o espaço no âmbito da nossa prática epi- lação com as teorias das doenças? Nesse con-
demiológica? Se considerarmos ainda que, en- texto, como se recompôs o espaço da epide-
tre nossos sistemas de objetos e ações, um de- miologia? Qual princípio está gerando hoje os
les, o sistema lingüístico, tem um lugar deter- fragmentos que, através do “lugar”, represen-
minante na contínua reconstrução desses sis- tam o espaço nos estudos epidemiológicos?
temas, por maior razão devemos nos deter so- Certamente, essas questões não são algo a
bre o que estamos fazendo com o espaço em que as autoras devam (e possam) responder de
que vivemos quando, epidemiologicamente, o forma conclusiva em sua tréplica. São reflexões
designamos “lugar”. fundamentais que seu artigo apenas levanta e
Da problemática acima desdobra-se ainda inicia. Cabe a nós todos, do campo da epide-
outra ordem de questões levantadas pelo arti- miologia e da saúde pública, especialmente
go e que diz respeito às transformações históri- aqueles que já vêm dedicando esforços espe-
cas, com a licença do trocadilho, do lugar epis- ciais para a compreensão do problema, como
temológico que vem ocupando esse “lugar” Luiz Jacintho da Silva, Maurício Barreto, Paulo
epidemiológico no desenvolvimento científico Sabroza, entre outros, ajudar a respondê-las
da disciplina. As autoras destacam que o ponto com nossas melhores reflexões e práticas coti-
de vista central do seu trabalho é o de que “o dianas.
núcleo epistemológico que orienta a apreensão
do espaço em Epidemiologia é a teoria da doen- SANTOS, M., 1996. A Natureza do Espaço – Técnica e
Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: Editora Hu-
ça” e que “os elementos do espaço que são incor-
citec.
porados na explicação epidemiológica inte-
gram-se aos que explicam como a doença ocorre
no corpo” (grifos meus). Nesse sentido, pare-
cem sugerir que o “lugar” é um dispositivo frag-
mentador do espaço – do qual a epidemiologia
extrai alguns elementos – e que o princípio des-
sa fragmentação é a fisiopatologia – só interes-
sando os fragmentos que (e à proporção que)

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000


612 CZERESNIA, D. & RIBEIRO, A. M.

Sem dúvida, o conceito de transmissão pre-


serva um conteúdo relacional que não é tão
Maria de Fátima O texto de Dina Czeresnia & Adriana Ribeiro evidente para a ocorrência das doenças não-
Militão de apresenta um tema bastante atual e estimula o transmissíveis ou outros eventos de saúde/do-
Albuquerque leitor a fazer algumas reflexões e questiona- ença em populações (Czeresnia & Albuquerque,
mentos. Tendo como propósito interpretar a 1998). Porém, hábitos e comportamentos con-
Núcleo de Estudos em utilização do conceito de espaço em epidemio- siderados como fatores causais/protetores pa-
Saúde Coletiva, Centro
logia e revisar a produção teórica a respeito, na ra essas doenças/eventos, tais como fumo, ali-
de Pesquisas Aggeu
Magalhães, Fundação América Latina, sente-se falta, no entanto, de mentação, agentes tóxicos, uso de preservativos,
Oswaldo Cruz. uma maior clareza a respeito da perspectiva etc., parecem circular de forma diferenciada em
Departamento de
assumida pelo artigo. Se esta era sistematizar as grupos populacionais. E, sem dúvida, esse fato
Medicina Clínica,
Centro de Ciências da diversas correntes do pensamento geográfico, não depende apenas de variações individuais.
Saúde, Universidade especialmente a concepção de espaço, e sua in- Assim, estudar a relação entre o uso de ca-
Federal de Pernambuco.
fluência na epidemiologia, o artigo exibe uma pacetes e a mortalidade entre motociclistas é
grande lacuna quando não considera os traba- diferente de estudar o efeito das leis que obri-
lhos do geógrafo e médico Josué de Castro. gam o uso de capacetes por motociclistas sobre
Entre as vertentes explicativas, somente fo- a mortalidade por acidentes de moto, em dife-
ram destacadas as influências de Pavlovsky, rentes lugares/espaços (Morgenstern, 1998). Os
Max Sorre, Samuel Pessoa e Milton Santos. A estudo ecológicos orientados pela concepção
obra pioneira de Josué de Castro, Geografia da de espaço socialmente organizado tornam evi-
Fome, publicada em 1946 (Castro, 1992), ficou dentes os efeitos de processos não perceptíveis
inexplicavelmente de fora. Do ponto de vista no âmbito dos indivíduos (Castellanos, 1998).
social, a obra se insere no âmbito da geografia A utilização do conceito de espaço redefini-
crítica, precisamente na chamada geografia de do pela geografia crítica é uma das propostas
denúncia, que, segundo Moraes, “Fazia-se uma teórico-metodológicas no âmbito da epidemio-
descrição da vida regional, que não encobria as logia que têm tentado integrar o conhecimento
contradições existentes no espaço analisado. biológico do processo de adoecer aos fenôme-
Sendo a realidade injusta, sua mera descrição nos sociais. É um esforço que parece bem-su-
já adquiria um componente de oposição à or- cedido em enfatizar a função estrutural da di-
dem instituída” (Moraes, 1990:118). mensão social do processo saúde/doença, co-
Vale, então, salientar uma outra questão co- mo têm demonstrado vários estudos orienta-
locada pelo artigo, que é a suposta inadequa- dos por essa abordagem. E, principalmente,
ção dessa abordagem para as doenças não in- mostra-se como uma alternativa metodológica
fecciosas. Em síntese, o texto assume que: “a para identificação e análise das necessidades
idéia de circulação de agentes específicos no es- de populações, buscando-se superar as iniqüi-
paço é fundamental a esse desenvolvimento dades em saúde (Paim, 1997). Contribuir para
conceitual”, porque expressaria melhor as rela- a viabilização de mudanças das práticas sani-
ções do homem com o meio. tárias, subsidiando novos modelos de interven-
Abordando um evento não transmissível, no ção sobre os problemas de saúde pública, sem
caso a fome, a obra de Josué de Castro (Castro, dúvida, é um dos grandes méritos desse esforço.
1992) não ficou ancorada na tríade agente, hos- É preciso, contudo, não perder de vista o
pedeiro e ambiente, apreendida nas investigações alerta das autoras para o fato de que nenhuma
das doenças transmissíveis. Samuel Pessoa, no estratégia de análise isolada é capaz de dar
ensaio Histórico da Geografia Médica, afirma: “Es- conta da pluralidade dos fatores implicados na
tudos sobre a alimentação em relação à geografia ocorrência de eventos de saúde e doença na
têm vindo mais abundantemente à luz, talvez de- prática das investigações e serão sempre apro-
vido à influência poderosa do notável nutricionis- ximações da realidade.
ta e geógrafo Josué de Castro” (Pessoa, 1983:119).
O espaço, socialmente organizado pelos CASTELLANOS, P. L., 1998. O ecológico na epidemi-
ologia. In: Teoria Epidemiológica Hoje – Funda-
homens, congrega as marcas impressas por es-
mentos, Interfaces e Tendências (N. Almeida Filho,
sa organização, adquirindo características lo- M. L. Barreto, R. P. Veras & R. B. Barata, org.), pp.
cais próprias que expressam a diferenciação de 129-147, Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.
acesso aos resultados da produção coletiva (San- CASTRO, J., 1992. Geografia da Fome – Dilema Brasi-
tos, 1979). A ocupação do espaço territorial re- leiro: Pão ou Aço. 11a Ed. Rio de Janeiro: Griphus.
fletiria, assim, as posições ocupadas pelos in- CZERESNIA, D. & ALBUQUERQUE, M. F. M., 1998.
divíduos na sociedade e seria conseqüência de Limites da inferência causal. In: Teoria Epidemio-
lógica Hoje – Fundamentos, Interfaces e Tendên-
uma construção histórica e social, sendo, por is-
cias (N. Almeida Filho, M. L. Barreto, R. P. Veras &
so, capaz de refletir as desigualdades existentes.

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000


O CONCEITO DE ESPAÇO EM EPIDEMIOLOGIA 613

R. B. Barata, org.), pp. 63-78, Rio de Janeiro: Edi-


tora Fiocruz.
que o núcleo de suas idéias, que emergiram de
MORAES, A. C. R., 1990.Geografia: Pequena História um intenso programa de pesquisa empírica,
Crítica. São Paulo: Editora Hucitec. centrava-se nos agentes infecciosos que circu-
MORGENSTERN, H., 1998. Ecologic studies. In: Mod- lavam como zoonoses em áreas previamente
ern Epidemiology (K. J. Rothman & S. Greenland, inabitadas. Historicamente, esse era o momen-
eds.), pp. 459-480, Philadelphia: Lippincott-Raven to da intensa expansão das fronteiras agrícolas
Publishers.
e industriais da extensa União Soviética.
PAIM, J. S., 1997. Abordagens teórico-conceituais em
estudos de condições de vida e saúde: Notas para Na França, no mesmo período e de forma
reflexão e ação. In: Condições de Vida e Situação independente, um geógrafo, Maxmilian Sorre,
de Saúde: Saúde e Movimento (R. B. Barata, org.), com uma vasta obra e contribuições nas mais
pp. 7-30, Rio de Janeiro: ABRASCO. diversas áreas da geografia, preocupa-se tam-
PESSOA, S., 1983. Histórico da geografia médica. In: bém com a questão das doenças infecciosas e
Ensaios Médico-sociais ( J. R. F. de A. Bonfim & D.
busca entender suas determinações no campo
C. da Costa Filho, org.), pp. 94-121, Rio de Janei-
de confluência da geografia, das ciências so-
ro: Guanabara Koogan.
SANTOS, M., 1979. O Espaço Dividido: Os Dois Circuitos ciais e das ciências biológicas, desenvolvendo
da Economia Urbana dos Países Subdesenvolvidos. o conceito de complexo patogênico. Mais tarde,
Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora. outro autor busca ampliar esse conceito para
os demais problemas de saúde, denominando-
o de complexo sócio-patogênico. Porém, na
perspectiva da epidemiologia social, é a divul-
gação dos trabalhos de Milton Santos, princi-
palmente aqueles produzidos a partir da se-
gunda metade da década de 70, que tem um
impacto significante, pois trazia no conceito de
espaço a possibilidade de articular os comple-
Maurício Lima O espaço e a epidemiologia: entre o conceitual xos elementos da dinâmica das sociedades,
Barreto e o pragmático bem como da sua historicidade. Uma questão
importante é nos perguntar porque um concei-
Instituto de Saúde No movimento de construção da epidemiolo- to tão poderoso, como bem coloca Czeresnia &
Coletiva, Universidade
gia social latino-americana, no decorrer da dé- Ribeiro, teve a sua aplicação geograficamente
Federal da Bahia.
cada de 70, necessitava-se avidamente de no- restrita à América Latina e tematicamente res-
vos conceitos que o liberasse das amarras im- trita a questões relacionadas, quase exclusiva-
postas pelo modelo epidemiológico, surgido mente, às endemias. Sem ter tal pretensão,
no pós-guerra e que se cristalizava a partir do acredito que a busca de resposta para tal inda-
livro Principles and Methods in Epidemiology gação nos ajuda a entender um pouco mais dos
de MacMahon, Pugh and Ipsen (MacMahon et percalços relativos à evolução da epidemiolo-
al., 1960), publicado no início da década ante- gia em nosso continente.
rior. Nesse contexto, surgem, entre outros, de- A reafirmação de uma geografia nova em
bates em torno das desigualdades sociais inter- contraposição à geografia tradicional foi acom-
mediados pelo conceito de classe social ou so- panhada de profundos debates, que perpassa-
bre a utilização do conceito de espaço na busca ram por profundas redefinições das bases teó-
de explicação para as conformações geográfi- ricas desta disciplina. Embora se deva enfati-
cas definidas, principalmente, pelas endemias. zar, como o fazem autores relacionados com a
Uma revisão da geografia crítica da saúde geografia nova, que as tendências hegemôni-
nos leva a alguns autores fundamentais, como cas no interior da geografia continuam a diri-
Pavlovsky, Maximilian Sorre e Milton Santos. gir-se para outras direções, preocupadas com
Os trabalhos de Pavlovsky, parasitologista de as questões locacionais e com o desenvolvi-
grande importância no contexto da antiga mento dos métodos quantitativo, deslocadas
União Soviética a partir da década de 30, eram dos fundamentos teóricos postos em conceitos
pouco conhecido fora da cortina de ferro. Pes- como o de espaço. Os defensores da geografia
quisadores ocidentais de esquerda, após visitas nova fizeram um trabalho radical de crítica ao
àquele país, passavam a divulgar as idéias pa- modelo hegemônico. Nesse percurso e tendo
vlovskianas. No Brasil, o grande divulgador foi em vista o limite aqui definido, eu gostaria de
o iminente e militante parasitologista Samuel reportar-me a dois trabalhos fundamentais pa-
Pessoa. Embora a contribuição de Pavlovsky te- ra entender o processo de gestação da geogra-
nha sido transcendental para o entendimento fia nova: o primeiro, Explanation in Geography,
de muitas idéias da dinâmica dos agentes infec- por David Harvey (Harvey, 1969), na Inglaterra;
ciosos, deve-se chamar a atenção para o fato de e o outro, La Production de l’Espace, por Henry

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000


614 CZERESNIA, D. & RIBEIRO, A. M.

Lefebvre (Lefebvre, 1991), na França. Ambos os Nos trabalhos de Milton Santos (Santos,
autores, enquanto intelectuais de sólida for- 1980), que, além de conter contribuições origi-
mação marxista, foram ambientados em dife- nais para a constituição da geografia nova, será
rentes tradições epistemológicas e científicas. o difusor dessas idéias em nosso meio, siste-
Harvey, geógrafo, herdeiro da tradição induti- matiza-se o conceito de espaço que será aco-
vista anglo-saxônica, centra-se na idéia de que lhido por alguns epidemiologistas que enten-
é necessário trabalhar com os fatos, processá- diam que este se ajustava bem ao projeto de
los, analisá-los. Vai além, porém, ao conceber uma epidemiologia social. Alguns poucos tra-
que estes só passarão a ter pleno sentido quan- balhos epidemiológicos tem sido produzidos
do alicerçados por sólidas teorias. O autor, em- utilizando-se desse referencial. É importante
bora reconheça a importância da rota teoréti- chamar a atenção para o fato de que, na intro-
co-dedutiva, enfatiza que teorias somente al- dução do livro que inaugura esta fase (Santos,
cançam status científico quando podem gerar 1980), o autor expressa que ali iniciava o seu
hipóteses passíveis de serem testadas, ou se- “projeto ambicioso”, consagrado ao tema do
ja, que sigam as etapas do método científico. “espaço humano”, o qual ele propunha comple-
Acontecem casos em que a teoria antecede aos tar em etapas, sem desconhecer os riscos que
métodos que irá testá-lo, porém existem tam- se colocavam para o cumprimento da tarefa.
bém teorias que nunca disporão de tais méto- Parece-me que, apesar do vigor do debate
dos. Portanto, nunca serão científicas. Nessa li- intelectual dos programas de trabalho filosóficos
nha, em um trabalho seguinte, no qual busca e científicos de onde paulatinamente emerge o
construir uma teoria sobre a cidade, Harvey conceito unificado de espaço, o qual permitirá
(1973) pontua que “a ponte entre as imagina- pensar em uma nova geografia, esta não con-
ções sociológica e geográfica somente pode ser segue firmar-se como hegemônica, porém deixa
construída se possuirmos instrumentos adequa- marcas na organização disciplinar da geografia.
dos”(Harvey, 1973:37). Outros aspectos impor- O deslocamento dessa experiência para a epi-
tantes considerados pelo autor e que podem demiologia nos mostra que ainda existe um lon-
servir de esquema para análise de outras disci- go caminho a ser percorrido, bastando observar-
plinas são: a) a relação entre os argumentos mos como os debates epistemológicos e meto-
metodológicos da geografia comparados com os dológicos, no seu interior, ainda são incipientes.
do conhecimento, em geral; b) o relacionamen- Parafraseando Harvey (1973), a ponte entre
to entre as afirmações feitas pelos metodologis- as imaginações epidemiológica e geográfica
tas da geografia e a prática dos geógrafos, como somente pode ser construída se possuirmos os
revelado pelo seu trabalho empírico; c) o rela- instrumentos adequados, veremos que, quei-
cionamento entre as formas explanatórias acei- ramos ou não, em verdade, existem duas pon-
tas pelos geógrafos e as formas explanatórias tes. Por uma, circula o conceito de espaço (de-
aceitas pelos praticantes de outras disciplinas. rivado da geografia nova), o qual, apesar da sua
O ambicioso programa proposto por Lefeb- importância, como bem pontuado no artigo em
vre (l991), um filósofo, tinha por objetivo cons- debate, tem tido, até o momento, uso limitado
truir ou descobrir uma unidade teórica entre no campo da epidemiologia. Na outra, com trá-
campos que são apreendidos separadamente, fego intenso, vemos o florescimento do uso de
quais sejam: o físico, o mental e o social. Adver- técnicas geocartográficas e geoestatísticas em
te que, na busca dessa teoria unitária, não se torno dos denominados sistemas de informa-
poderia descartar os inevitáveis conflitos den- ções geográficos – SIGs (derivados da geografia
tro do conhecimento. Como conseqüência, tradicional). Várias questões podem emergir
controvérsias e polêmicas seriam inevitáveis. desta constatação (inclusive quanto à sua vera-
Questiona a razão pela qual os esforços de cidade), porém, para os praticantes da epide-
construção de uma teoria unificada de espaço, miologia, não tenho dúvida de que a questão
anunciados em épocas passadas, haviam sido mais imediata na hora da travessia é: tenho de
abandonados. O seu projeto emerge do pro- optar por uma das duas ou posso circular livre-
fundo diálogo e reflexões em torno de Hegel, mente entre elas?
Marx, Nietzsche, Freud, entre outros, da sua
aproximação com os movimentos artísticos e HARVEY, D., 1969. Explanation in Geography. Lon-
don: Edward Arnold.
da sua militância política e, ao final, deixa cla-
HARVEY, D., 1973. Social Justice and the City. London:
ro que “este livro foi informado desde o seu iní- Edward Arnold.
cio até o fim por um projeto…de uma sociedade LEFEBVRE, H., 1991. The Production of Space. Oxford:
diferente, um diferente modo de produção, aon- Blackwell.
de a prática social seria governado por diferentes SANTOS, M., 1980. Por uma Geografia Nova. São
determinações conceituais” (Lefebvre, 1991:419). Paulo: Editora Hucitec.

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000


O CONCEITO DE ESPAÇO EM EPIDEMIOLOGIA 615

em diferentes âmbitos disciplinares introduz a


noção de processo no tratamento de diversos
Rita Barradas As autoras descrevem um amplo panorama fenômenos. No âmbito da epidemiologia, prin-
Barata acerca da utilização do conceito de espaço em cipalmente nos estudos acerca das doenças
pesquisas epidemiológicas, pontuando as trans- transmissíveis, o conceito de mecanismo de re-
Departamento de formações históricas do conceito ao longo dos servatório ou cadeia do processo infeccioso
Medicina Social, Santa
últimos dois séculos. A tese central do artigo é exemplifica essa nova tendência na qual espa-
Casa de São Paulo.
a de que no âmbito da epidemiologia o concei- ço e tempo são referenciais relativos para a
to de espaço foi construído, em cada momen- compreensão de processos de disseminação da
to, como uma decorrência da teoria da doença, transmissão.
isto é, espaço é tomado mais como uma noção Sob a influência crescente do materialismo
instrumental, subordinada à concepção de do- histórico, principalmente de suas versões mili-
ença dominante em cada período histórico. tantes dos movimentos sociais das décadas de
Para problematizar a orientação para a qual 20, 30 e 40, a categoria espaço vai paulatina-
a argumentação foi construída poderíamos mente perdendo força, restando apenas a cate-
formular a seguinte questão: Em que episteme goria tempo, subjacente à noção de processo,
e a partir de quais elementos se constrói a teo- na explicação de diferentes tipos de fenôme-
ria da doença em cada momento? Esta formu- nos. Assiste-se a um domínio quase que abso-
lação nos levaria a inverter o foco, dirigindo luto da dimensão temporal em muitos campos
nossa indagação no sentido de verificar como do conhecimento. O modelo da história natural
as diferentes concepções da categoria espaço das doenças poderia ser tomado como exem-
contribuíram, em diferentes momentos histó- plar dessa fase. A sucessão de fases desenrola-
ricos, para a construção das teorias da doença. se cronologicamente, sendo possível abstrair
Assim, espaço passaria a ter um papel na con- da explicação a referência a qualquer espaço
figuração do pensamento epidemiológico, não concreto.
apenas de caráter instrumental e subordinado, Com o movimento da chamada nova geo-
mas, antes, um papel ativo e propriamente grafia, no pós-guerra, procura-se restituir ao
epistêmico. pensamento materialista e histórico a dimen-
Na fase de constituição da epidemiologia são espacial abandonada no período anterior.
como disciplina científica, a descrição da dis- Esse movimento se traduz, na epidemiologia,
tribuição das doenças nas coletividades de- em estudos que trabalham com o conceito de
sempenhou papel fundamental no sentido de espaço socialmente construído, em seus dife-
permitir a formulação de hipóteses capazes de rentes matizes de expressão. Passa-se, então,
orientar o estudo dos determinantes. Toda des- de um espaço pensado inicialmente como uma
crição necessita, do ponto de vista formal, das referência absoluta, um cenário, evoluindo-se
categorias espaço e tempo para poder se reali- para a concepção de um espaço relativo neces-
zar. Segundo Kant, ambas seriam formas puras sário apenas para a apreensão dos fenômenos,
de intuição a priori necessárias para a apreen- para um espaço relacional, lugar de construção
são sensível dos fenômenos. Sem um conceito, de relações dos homens entre si e de criação de
absoluto ou relativo, de espaço e tempo torna- sua vida material e imaterial.
se impossível diferenciar, delimitar, definir ob- Enfim, é possível pensar as relações entre a
jetos ou fenômenos passíveis de investigação categoria espaço e as explicações epidemioló-
objetiva, ou o uso das demais categorias do en- gicas tanto pelo vetor doença–espaço quanto
tendimento (esquemas transcendentais kan- pelo vetor espaço–doença. Consideramos, en-
tianos). Assim, a construção de uma epidemio- tretanto, que a segunda perspectiva pode per-
logia descritiva, destinada a investigar a distri- mitir a compreensão das origens do pensamen-
buição das doenças nas populações, requer um to sobre saúde–doença, articulando esse saber
conceito de espaço para se concretizar, ainda ao conhecimento científico prevalente em ca-
que o espaço seja visto meramente como cená- da período histórico, enquanto a primeira pers-
rio onde os fatos se desenrolam, como algo ex- pectiva aprofunda e investiga a configuração
terno e estático em referência ao objeto de es- assumida por determinadas categorias explica-
tudo. tivas no interior do campo disciplinar. Trata-
No início do século XX, sob a influência da se, portanto, de perspectivas complementares
revolução relativista na física, os diferentes mais do que antagônicas na elucidação dos pro-
campos científicos passam a tratar espaço e cessos de constituição de saberes específicos.
tempo como categorias interdependentes, su-
perando a dicotomia anteriormente existente.
O desenvolvimento das concepções sistêmicas

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000


616 CZERESNIA, D. & RIBEIRO, A. M.

O autor responde Rita Barata interroga que episteme constrói a


The author replies teoria da doença e se essa episteme não se de-
fine inicialmente por uma dada concepção do
espaço. Será que há uma anterioridade do con-
ceito de espaço em relação ao de corpo? Ou se-
ja, é o conceito espaço que determina o de cor-
po ou é o de corpo que determina o de espaço?
O artigo pauta-se na idéia de que a concepção
de espaço está vinculada à de corpo. O proces-
so de fragmentação do conhecimento foi o de
Dina Czeresnia Em primeiro lugar, desejo agradecer aos edito- fragmentação do espaço, do corpo e de seu mo-
Adriana Maria res do Cadernos de Saúde Pública, por terem vimento (o tempo). Diferentes sentidos são da-
Ribeiro propiciado a oportunidade deste debate, e aos dos ao corpo, ao tempo e ao espaço, conforme
colegas que participaram enriquecendo a dis- a perspectiva de quem o observa.
cussão. É um privilégio poder discutir este arti- A medicina configurou-se mediante uma
go com um grupo de especialistas que tanto já compreensão dessa relação, expressa nas teo-
contribuiu com estudos a respeito deste tema. rias de doença. A epidemiologia, como uma
Como observou Christovam Barcellos, uma sé- disciplina articulada à medicina e ao conceito
rie de trabalhos centrados na abordagem espa- moderno de doença, estrutura-se com base na
cial dos problemas de saúde foi publicada nos idéia do corpo orgânico. A relação entre corpo
Cadernos de Saúde Pública nos últimos anos, e e espaço reduziu-se aos elementos do espaço
o debate neste momento é uma forma de esti- capazes de se integrarem aos elementos fisico-
mular o diálogo entre diferentes autores. químicos mediante os quais o corpo é apreen-
O artigo se propôs a realizar uma interpre- dido. As inúmeras tentativas de ampliar as con-
tação sobre a utilização do conceito de espaço cepções de espaço e de tempo no interior da
em epidemiologia, fazendo uma revisão dos disciplina esbarraram nos limites impostos por
principais autores cujo pensamento orientou essa construção.
os estudos sobre o tema na América Latina. Ao Localizar esse limite esclarece a natureza
delimitar-se a análise em Pavlovsky, Max Sorre, dos desafios que se apresentam. Um dos prin-
Samuel Pessoa e Milton Santos, assumiu-se um cipais é lidar com o homem em sua integrida-
recorte que, sem dúvida, implicou reduções. de. A visão dual do homem, que o divide em
Essa escolha considerou que eles foram os que corpo e mente, está na origem desta questão. O
tiveram maior influência no desenvolvimento problema que restringiu historicamente a abor-
das investigações sobre saúde e espaço, mas dagem da epidemiologia não diz respeito ape-
não teve a pretensão de negar ou muito menos nas à redução da concepção do espaço, ou do
desqualificar a importância de outros, espe- tempo, mas também à concepção do homem e
cialmente alguém do porte de Josué de Castro, do seu corpo. Não é à toa que no Congresso de
lembrado por Maria de Fátima Militão de Albu- Saúde Coletiva do ano 2000 estará em foco o te-
querque. ma do sujeito.
O subtítulo do artigo esclarece que se trata O sujeito não foi devidamente considerado
de uma interpretação, isto é, o texto não pre- na epidemiologia, que se constituiu conside-
tende falar em nome da verdade. Ao contrário, rando o homem um organismo, articulando-se
é explicitamente um ponto de vista sobre a a uma clínica configurada privilegiadamente
questão, e isso justifica mais ainda a pertinên- com base na microbiologia e na imunologia. A
cia e oportunidade do debate. emergência do conceito de risco aprofundou o
O argumento central do texto é o de que a processo de diluição das relações entre o ho-
teoria da doença orienta epistemologicamente mem e as suas circunstâncias. A medida da pro-
a concepção do espaço em epidemiologia. O babilidade da ocorrência entre exposição e
conceito de transmissão e a idéia de circulação evento não integra uma explicação acerca do
de agentes de doença no espaço foram funda- que ocorre na relação entre corpo e meio.
mentais para essa construção. O conceito de “Transmissão” ainda preserva um elo entre
espaço foi utilizado principalmente no estudo os dois, mesmo reduzindo esse elo aos elemen-
de doenças transmissíveis, mais especifica- tos do espaço capazes de incorporarem-se à
mente as doenças endêmicas transmitidas por apreensão fisiopatológica do corpo. Sem dúvi-
vetores. O modo de transmissão dessas doen- da, o conceito de risco modificou a relação da
ças permite que se alcance mais materialidade epidemiologia contemporânea com a teoria das
nas explicações das relações entre elementos doenças, como aponta José Ricardo Ayres. Pes-
do corpo e do espaço. soas, tempos e espaços tornam-se ainda mais

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000


O CONCEITO DE ESPAÇO EM EPIDEMIOLOGIA 617

fragmentados e desconectados. O deslocamen- modelos de análise de risco e também à análi-


to da epidemiologia no sentido de privilegiar as se espacial e é um dos pontos mais ressaltados
análises de risco é um dos principais condicio- nas intervenções deste debate. As técnicas de
nantes do uso restrito e da incipiente discussão geoprocessamento têm viabilizado o estudo de
teórica acerca da categoria espaço, apesar de espaços crescentemente particularizados. A
esta ser tão básica na constituição da discipli- fragmentação dos lugares, as inúmeras alter-
na, como destacou Maurício Barreto. nativas de utilização de bancos de dados e de
A perspectiva de ampliar o uso do conceito apresentação de mapas, tabelas e gráficos, são
de espaço vincula-se à de construir formas de também evidência da relatividade das verda-
trabalhar os problemas epidemiológicos com des que se enunciam através deles.
base em abordagens que transitem entre teo- Se, por um lado, não há como negar a po-
rias e métodos elaborados por distintas disci- tencialidade desses recursos, por outro lado, es-
plinas conforme ressaltou Eduardo M. Freese tes devem ser utilizados ancorados em uma só-
de Carvalho. É através dessa abertura que se lida base conceitual devidamente explicitada.
pode resgatar também o sujeito. Mas a possibi- Conceitos e métodos são sempre redutores, e é
lidade de integrar sujeito (pessoa), tempo e es- importante ter clareza dos limites do conheci-
paço, na compreensão dos problemas de saúde mento construído. O melhor método é aquele
e doença das populações ainda esbarra nos li- mais adequado às perguntas que se quer res-
mites da(s) teoria(s) da doença. ponder.
As importantes transformações, tanto nos Mauricio Barreto finaliza sua intervenção
problemas sanitários como também no discur- com essa questão apresentada também por
so científico contemporâneo, têm aberto novas Christovam Barcelos e Eduardo Freese. Como
questões, demandando novas alternativas para conciliar a necessidade de maior desenvolvi-
pensar a relação entre espaço e fenômenos de mento teórico do conceito de espaço e seu uso
saúde. Estas não excluem a pertinência dos mo- na epidemiologia com o intenso aumento dos
delos de análise de risco. Maria de Fátima Mili- recursos técnicos em geoprocessamento? Pen-
tão de Albuquerque comenta, por exemplo, a so que se deve buscar transitar entre a reflexão
importância dos estudos ecológicos, que per- teórica e o desenvolvimento de técnicas, e,
mitem relacionar eventos de saúde a aspectos além disso, buscar se integrar ao máximo a ou-
específicos da organização do espaço urbano, tras áreas de conhecimento. Esse trânsito não é
como o estudo dos efeitos da aplicação de leis tarefa de um pesquisador isolado, e a dificul-
que regulam o trânsito sobre a mortalidade por dade em realizá-lo diz respeito, principalmen-
acidentes. te, a disputas de competência. Não fosse a im-
A questão é considerar devidamente os li- portante presença dessas disputas e a tendên-
mites do método epidemiológico e não reificar cia hegemônica de se demarcar a epidemiolo-
as suas possibilidades, incrementadas por meio gia como uma disciplina estritamente técnica,
de recursos de programas computacionais ca- acredito que a oposição entre teoria e método
da vez mais poderosos. Isso diz respeito aos se revelaria uma falsa questão.

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000

Você também pode gostar