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Dina Czeresnia 1
Adriana Maria Ribeiro 1
1 Departamento de Abstract This study provides an interpretation of the concept of space in epidemiology. The au-
Epidemiologia e Métodos
thors highlight that the epistemological orientation of the space concept in epidemiology is the
Quantitativos em Saúde,
Escola Nacional de Saúde theory of disease, emphasizing the importance of the concept of specific etiologic agents and
Pública, Fundação their transmission as the central structure for grasping the relationship between space and the
Oswaldo Cruz.
body. Characterization of the space for circulation of etiologic agents was the epistemological
Rua Leopoldo Bulhões 1480,
8 o andar, Rio de Janeiro, RJ base shaping the use of various theoretical developments in geography, allowing for the con-
21041-210, Brasil. struction of different explanatory watersheds in the concept of space. The article specifically an-
dina@ensp.fiocruz.br
alyzes the Latin American watershed, reviewing the main authors orienting these studies, like
adriana.ribeiro@mailbr.com.br
Pavlovsky, Max Sorre, and Samuel Pessoa. The authors highlight Milton Santos’ thinking as a
fundamental reference in recent research on the social organization of space and disease emer-
gence or prevalence. The authors also approach contemporary changes in the understanding of
space as they are reflected in epidemiological studies.
Key words Medical Geography; Geographical Space; Spatial Analysis; Epidemiology
Resumo Este trabalho apresenta uma interpretação a respeito da utilização do conceito de es-
paço em epidemiologia. Destaca que o que orienta epistemologicamente a concepção do espaço
em epidemiologia é a teoria da doença, assinalando a importância do conceito de transmissão
de agentes específicos como estrutura nuclear da apreensão da relação entre espaço e corpo. A
caracterização do espaço de circulação de agentes etiológicos das doenças foi a base epistemoló-
gica que configurou a utilização de sucessivos desenvolvimentos teóricos da geografia, possibili-
tando a construção das diferentes vertentes explicativas do conceito de espaço. O artigo analisa
especificamente a produção da vertente latino-americana, revisando os principais autores que
orientam esses estudos, como Pavlovsky, Max Sorre e Samuel Pessoa. Ressalta o pensamento de
Milton Santos como referência fundamental das pesquisas mais recentes acerca da organização
social do espaço e emergência ou prevalência de doenças. Aborda, ainda, transformações con-
temporâneas na apreensão do espaço e seus reflexos nos estudos epidemiológicos.
Palavras-chave Geografia Médica; Espaço Geográfico; Análise Espacial; Epidemiologia
lógicas e humanas, predominava uma apreen- doenças transmissíveis, por exemplo, foi possí-
são dinâmica e integrada dos fenômenos epi- vel construir modelos matemáticos que repre-
dêmicos. Ainda não havia amadurecido o pro- sentam relações entre o indivíduo e o que é ex-
cesso que aprofundou a fragmentação e dico- terno a ele – agentes microbiológicos e o meio.
tomias do conhecimento. A herança da Higie- Conceitos como suscetibilidade, resistência do
ne Pública marcou a origem tanto da epidemio- hospedeiro, assim como o de virulência do ger-
logia como da geografia (Urteaga,1980). Vincu- me e sua infecciosidade integram-se numeri-
lada à essa herança, velhas teorias, como a da camente no modelo, construindo uma repre-
constituição epidêmica, inspirada no pensa- sentação matemática que expressa o resultado
mento hipocrático, permaneceram represen- de relações entre corpo e espaço. O conceito de
tando uma forma de pensar que portava valo- imunidade de grupo expressa o resultado de
res a serem preservados. Mesmo valendo-se de tais relações.
uma linguagem anacrônica em relação ao dis- O conceito epidemiológico de risco tornou
curso científico que se estrutura a partir do sécu- essa relação ainda mais abstrata. O cálculo do
lo XIX, essa teoria foi significativamente resgata- risco traduz uma relação probabilista entre
da na construção de novos discursos sobre a rea- eventos. Não se integram no modelo do risco
lidade da saúde e da doença (Czeresnia, 1997). variáveis que representam conceitos capazes
O estranhamento e a dificuldade em reco- de expressar um processo que ocorre entre cor-
nhecer seu objeto a partir das distinções dico- po e meio. Se o conceito de transmissão repre-
tômicas, que cindiram ciências naturais e ciên- senta a interface do corpo como interação en-
cias sociais, repercutiram de maneira especial tre orgânico e extra-orgânico, o de risco pres-
na geografia e também na epidemiologia. As cinde dessa relação (Ayres, 1997), aprofundan-
transformações contemporâneas no discurso do o nível de fragmentação e rarefação do ob-
científico, ao questionar essas dicotomias, re- jeto da epidemiologia. A concepção expressa
tomam contradições que se apresentaram des- pelo conceito de risco é a de um corpo virtual.
de a origem e o desenvolvimento dessas disci- O homem é representado como receptor vigi-
plinas (Santos, 1987), estreitamente vinculadas lante de causas que podem lhe trazer danos ou
ao contexto dos estudos sobre as relações entre proteção. O espaço torna-se percebido como
espaço e doença. complexo de estímulos irradiados e exteriores
Em epidemiologia, o uso do conceito de es- ao corpo, que se impõe centralmente a todos
paço acompanhou o desenvolvimento teórico (Teixeira, 1993). O contato entre os homens e a
da geografia, especialmente da vertente cha- natureza tendeu a ser progressivamente repre-
mada geografia médica. Pensando a especifici- sentado como vínculo indireto, mediado por
dade desses estudos, destaca-se, mais uma vez, imagens cada vez mais abstratas, tanto do cor-
a importância da teoria de transmissão de ger- po, como do espaço, deixando de ser simboli-
mes como estrutura nuclear da apreensão da zado como vínculo direto e concreto.
relação entre espaço e corpo, constituindo-se É em decorrência desse processo em que o
também em limite epistemológico à intenção espaço, ao ser abstraído como multiplicidade
de compreender o espaço como uma totalida- de causas, perde tanto materialidade quanto
de integrada. As tentativas de redefinir o con- subjetividade, que a apropriação dessa catego-
ceito de espaço em epidemiologia, acompa- ria em epidemiologia desenvolveu-se preferen-
nhando o desenvolvimento teórico-conceitual cialmente no contexto do estudo das doenças
da geografia, buscaram incluir na compreen- transmissíveis. Mais especificamente, foi atra-
são do processo da doença, dimensões sociais, vés do estudo das doenças transmitidas por ve-
culturais e simbólicas. Porém, todas essas re- tores que a abordagem espacial pôde ser mais
definições esbarraram no limite imposto pela objetiva, explicitando elos capazes de integrar
teoria da doença. Pensar o homem como uma maior número de elementos e alcançando, as-
integração biopsicossocial manifesta-se através sim, maior materialidade na compreensão da
da tentativa de superpor conceitos que não dia- relação entre espaço e ocorrência de doenças.
logam com facilidade. Mesmo tentando pensar A idéia de circulação de agentes específicos
o espaço como totalidade integrada, esta é ex- no espaço é fundamental a esse desenvolvi-
pressa através de conceitos estruturados a par- mento conceitual. É buscando caracterizar de
tir de lógicas distintas e fragmentadas entre si. forma mais elaborada o espaço de circulação
Considerando esses limites, ressalta-se que de agentes que, utilizando os sucessivos desen-
o conceito de transmissão, mesmo assim, al- volvimentos teóricos da geografia, construí-
cança expressar melhor a articulação entre cor- ram-se as diferentes vertentes explicativas des-
po e meio do que o conceito de risco, desenvol- se conceito em epidemiologia, como veremos
vido posteriormente. No contexto do estudo das a seguir.
Pavlovsky e o conceito de foco natural suficientes para o estudo das doenças trans-
das doenças missíveis em situações onde a dinâmica de
modificação do espaço pelo homem ocorreu
Uma das mais importantes elaborações teóri- de forma mais ampliada e acelerada.
cas do conceito de espaço geográfico vincula- Posteriormente, realizaram-se estudos que,
do ao estudo de doenças transmissíveis foi fei- partindo da teoria dos focos naturais de Pa-
ta por Pavlovsky na década de 30. O conceito vlovsky, dedicaram mais atenção à influência
de foco natural expressa uma apreensão espa- (milenar) humana na transformação das paisa-
cial que integra o conhecimento das doenças gens geográficas onde se desenvolvem doenças
transmissíveis com a geografia e a ecologia. associadas a focos naturais. Rosicky (1967:114)
“Um foco natural de doença existe quando ressaltou como, desde a origem da sociedade
há um clima, vegetação, solo específicos e mi- humana baseada na agricultura e domesticação
cro-clima favorável nos lugares onde vivem ve- de animais, um foco natural manifesta-se sob a
tores, doadores e recipientes de infecção. Em ou- influência indireta de atividades humanas. Du-
tras palavras, um foco natural de doenças é re- rante a construção de trabalhos técnicos de ca-
lacionado a uma paisagem geográfica específi- ráter industrial e agrícola, as condições de exis-
ca, tais como a taiga com uma certa composi- tência de certos vetores e reservatórios animais
ção botânica, um quente deserto de areia, uma podem ser erradicadas ou acentuadas.
estepe, etc., isto é, uma biogeocoenosis. Sinnecker (1971) propôs o conceito de ter-
O homem torna-se vítima de uma doença ritório nosogênico, articulando aspectos eco-
animal com foco natural somente quando per- lógicos e sociais. As condições naturais de uma
manece no território destes focos naturais em região integram esses aspectos, condicionando
uma estação do ano definida e é atacado como a saúde dos homens e dos animais. As doenças
uma presa por vetores que lhe sugam o sangue” têm diferentes distribuições nos distintos terri-
(Pavlovsky, s/d:19). tórios, e a atividade das populações transforma
O conceito de foco natural é, portanto, apli- as condições de desenvolvimento das doenças.
cado a ambientes que apresentam condições As transformações podem remover as pré-con-
favoráveis à circulação de agentes, indepen- dições para uma doença e, ao mesmo tempo,
dentemente da presença e da ação humanas. criar condições para o surgimento de outras. O
Pode ocorrer em paisagens geográficas varia- autor ressalta ainda que a grande concentração
das, desde que haja uma interação entre bióti- das pessoas nas cidades gera novas condições
pos específicos. A definição de foco natural cir- ecológicas e sociais, propiciando a emergência
cunscreve-se a doenças transmitidas através de doenças vinculadas aos processos de urba-
de vetores, não se referindo ao estudo de doen- nização.
ças que, mesmo apresentando um agente etio-
lógico definido, propagam-se através do conta-
to direto ou mesmo pela inalação de ar conta- Max Sorre e o conceito de complexo
minado, como difteria, sarampo, escarlatina e patogênico
doenças respiratórias.
“A existência de qualquer doença transmis- Max Sorre foi além da abordagem de Pavlovsky
sível depende do trânsito contínuo de seu agen- ao trabalhar a importância da ação humana na
te causal, do corpo do animal doador (animal formação e dinâmica de complexos patogêni-
doente, portador assintomático, hospedeiro do cos. O conceito de complexo patogênico am-
parasita) para o corpo do vetor. Essa transmis- pliou o poder analítico e explicativo de uma
são geralmente ocorre quando o vetor suga o concepção antes praticamente restrita à des-
sangue do doador e subseqüentemente transmi- crição do meio físico (Ferreira, 1991). Ao assu-
te o agente causal para o receptor animal, fre- mir a ecologia como eixo central, o conceito de
qüentemente, quando suga seu sangue também; espaço que Sorre utiliza é, por um lado, o mes-
o receptor infectado pode por sua vez, tornar-se mo que se formula através da biologia: as rela-
um doador para outro grupo de vetores, etc. ções entre um meio externo que varia e um
Desta maneira, ocorre, como dizemos, a circula- meio interno que necessita adaptar-se para
ção” (grifo meu) (Pavlovsky, s/d:18). manter suas constantes fisiológicas. Por outro
O conceito de foco antropúrgico, também lado, o autor explicita que, ao se tratar de seres
desenvolvido por Pavlovsky, introduziu a idéia humanos, o conceito de meio deve enriquecer-
da transformação do espaço de circulação de se e incluir também o ambiente produzido pe-
agentes de doença pela ação humana. Porém, lo homem. Refere-se, assim, ao conceito de gê-
dá conta apenas da transformação inicial dos nero de vida que considera o conjunto da orga-
focos naturais não apresentando elementos nização social humana em seus aspectos ma-
lógicas favoráveis. O autor analisou como a or- genciando aspectos econômicos e sociais das
ganização das relações de produção e os deslo- doenças e mortes infantis.
camentos humanos mediados por estas rela- Ao estudar a epidemia de doença meningo-
ções foram fundamentais para a retenção e pa- cócica na cidade de São Paulo na década de 70,
ra a disseminação espacial da endemia. Barata (1988) apontou para o momento histó-
A disseminação das endemias não se res- rico em que o país vivia: o milagre econômico.
tringiu aos ambientes rurais. A urbanização Apesar do crescimento econômico, construí-
das fronteiras agrícolas e a migração e mobili- ram-se condições sociais favoráveis ao apare-
dade social cidade–campo possibilitaram que cimento e disseminação da epidemia, como a
se criassem focos em área urbana. Um exem- política salarial restritiva, sustentada com base
plo disso foi a adaptação da esquistossomose na repressão política e os movimentos migra-
aos espaços da periferia da cidade de São Pau- tórios, que impuseram o crescimento acelera-
lo (Silva, 1985b). Os migrantes representam um do da periferia dos grandes centros urbanos.
grupo particularmente vulnerável, por sua pre- Dentro deste contexto, surgiram os elementos
cária inserção social na cidade e pela ausência que interferiram no processo epidêmico: o des-
de imunidade em relação a doenças existentes gaste do trabalhador, e, indiretamente, de seus
nos centros urbanos (Carvalheiro, 1986). A di- familiares, decorrentes dos baixos salários e da
versidade das formas de inserção social reflete incorporação feminina na força de trabalho. Os
a desigual distribuição territorial e, também, dados analisados pela autora demonstraram
diferentes perfis epidemiológicos, nos quais a claramente que, apesar da epidemia atingir
população de baixa renda é a que mais sofre o fortemente todas as áreas da cidade, as áreas
impacto das epidemias e endemias. mais pobres apresentaram riscos mais altos
A vertente da epidemiologia social, com ba- comparados às áreas central e intermediária da
se em abordagem marxista, realizou estudos cidade.
que alcançaram identificar origens e condicio- Nesse mesmo estudo, Barata (1988), com
nantes sociais e econômicos dos processos epi- base em Foucault, introduz uma abordagem, a
dêmicos. Considerou epidemia como um acon- respeito da relação entre espaço e a epidemia
tecimento social, e não apenas a soma de casos meningocócica, não decorrente da explicação
de uma mesma doença. Os autores enfatiza- estritamente epidemiológica. Ressalta como as
ram a problemática do subdesenvolvimento e, relações de poder, dominação e exclusão no es-
principalmente, das desigualdades sociais co- paço hospitalar interferem na saúde e recupe-
mo seus principais condicionantes. A erradica- ração dos indivíduos. As relações de poder, que
ção e o controle das epidemias não dependem produzem a exclusão da participação nas deci-
apenas de diagnóstico e intervenção biológica, sões, não ocorrem apenas no âmbito político e
mas de todos os elementos que participam da social mais geral, mas também nas relações co-
organização social do espaço. tidianas que se estabelecem, por exemplo, no
A maior parte desses estudos associou a hospital. Essas relações constituem-se espaços
emergência de doenças ao espaço urbano. A ci- normativos e repressivos que acentuam os as-
dade é a protagonista da configuração espacial: pectos de insegurança e carência afetiva carac-
o crescimento, a superlotação, a precária rede terísticos da situação de estar doente. Os fato-
de infra-estrutura (em especial nas periferias), res ambientais que interferem no processo do
a intensa movimentação de pessoas, favore- adoecer individual e coletivo são físicos, so-
cem a circulação de parasitas. Não só antigas ciais, como também mentais e afetivos.
doenças coabitam com novas, como doenças
anteriormente erradicadas ressurgem. As epi-
demias de meningite, cólera, dengue, leptospi- Transformações recentes na
rose são algumas das apontadas pelos autores. abordagem do espaço e da relação
Breilh et al. (1983), em estudo sobre a mor- entre espaço e doença
talidade infantil em cidades latino-americanas,
afirmaram que as principais causa mortis são A complexidade das transformações, principal-
as doenças infecto-contagiosas e a desnutri- mente nos centros urbanos, impôs novas for-
ção, conseqüências do subdesenvolvimento la- mas de elaboração teórica acerca do espaço. A
tino-americano. Mesmo nos países de maior velocidade da transformação das redes que in-
crescimento e modernização econômica, per- tegram os espaços é uma das características
sistem graves desigualdades sociais, e parte da mais marcantes da chamada condição pós-
população encontra-se em péssimas condições moderna. Essas mudanças interferem nas rela-
de vida. Os autores criticam os estudos que se ções sociais, nos valores, nos modos de agir, vi-
apóiam apenas em causas biológicas, negli- ver e pensar. O seu ritmo cada vez mais acele-
rado produziu uma crise na experiência do es- Nesse contexto, novos temas apareceram e
paço e do tempo, desafiando a nossa própria outros se renovaram: orientação sexual e doen-
capacidade perceptual de acompanhar. Os ças sexualmente transmissíveis; gênero e doen-
nossos hábitos de percepção espacial não se ça; violência; tráfico e adição de drogas; circui-
estruturaram para lidar com essa velocidade. tos espaciais urbanos de grupos específicos,
Tornou-se ainda mais evidente que as idéias do como crianças e velhos; espaços desiguais e
senso comum, aparentemente naturais, a res- doença. O reconhecimento de uma multiplici-
peito do que é o espaço escondem ambigüida- dade de formas de alteridade, como gênero, se-
des e conflitos. A experiência subjetiva conduz xualidade, raça, classe e outras configurações
a caminhos muito diferenciados de percepção de subjetividade e sensibilidade encontraram
e imaginação. Distintas culturas e grupos so- expressão no desenvolvimento recente dos es-
ciais possuem diferentes concepções acerca do tudos epidemiológicos.
espaço (Harvey, 1996). Retomou-se, além disso, o interesse a res-
A fragmentação e a individualização são peito do estudo do clima como importante
um dos lados da característica paradoxal de causa de doença. Os surtos de doenças, como a
um processo que manifesta simultaneamente febre hemorrágica causada pelo vírus Ebola,
a tendência à homogeneização e à multiplica- motivaram, mais uma vez, o interesse pelo es-
ção da expressão de heterogeneidades. A glo- tudo dos espaços pouco alterados pela ação
balização, com a formação do mercado mun- humana. A poluição ambiental, a quantidade
dial, reduziu as barreiras espaciais. Facilitou- de radiação ultravioleta ou intensidade de
se o acesso aos mais diversificados produtos campo eletromagnético vêm sendo abordados,
oriundos de diferentes regiões e aumentou-se principalmente, no estudo das neoplasias (Sil-
o contato direto entre os povos. A lógica do li- va, 1997).
vre mercado, porém, acentuou os espaços de É importante destacar que a teoria e práti-
desigualdade e exclusão. Um exemplo é a cons- ca científica também constroem representa-
trução de espaços fechados e protegidos, como ções simbólicas sobre o espaço e estruturam
condomínios e shopping-centers, para classes distintas formas de apreensão e de ação sobre
médias e, ao mesmo tempo, a expulsão dos po- a realidade. A compreensão de que múltiplos
bres para “uma nova e bem tenebrosa paisagem aspectos materiais e imateriais configuram o
pós-moderna de falta de habitação” (Harvey, espaço, engendrando praticamente todas as
1996:79). dimensões da existência humana, já está pre-
A distância entre ricos e pobres aumentou sente, por exemplo, no conceito gênero de vida
de forma desenfreada. Os pobres cada vez mais de Sorre. O conceito de complexo patogênico,
se convertem nos proscritos de uma sociedade contudo, não é suficiente para explicar a confi-
organizada em torno de um mercado consumi- guração de grande parte dos problemas de saú-
dor cada vez mais sofisticado. A exclusão social de pública na sociedade contemporânea. Estes
de grupos populacionais crescentes, explosão demandam novos discursos e abordagens que
demográfica, mudança da estrutura etária das alcancem aprofundar a perspectiva multi ou
populações, intensificação das migrações, guer- transdisciplinar, incorporando dimensões do
ras tornaram mais complexos os aspectos hu- espaço não comumente utilizadas nos estudos
manos das condições globais (Bauman, 1998). epidemiológicos.
Os sérios problemas epidêmicos urbanos ultra- Uma tentativa recente de ampliar os usos
passaram a esfera das doenças transmissíveis, da categoria espaço manifesta-se através do
neoplásicas e cardiovasculares. Manifestaram- conceito de situação de saúde, que busca ex-
se também como epidemia, violência, aciden- pressar as condições específicas dos grupos so-
tes de trânsito, uso de drogas, doenças psicos- ciais, objetiva e subjetivamente construídas e
somáticas e comportamentos reativos. articuladas à forma como esses grupos se con-
Ao mesmo tempo, reapareceram as amea- figuram e se inserem socialmente em determi-
ças de grandes desastres naturais: poluição do nado momento histórico e circunstâncias na-
ar e da água, progressivo aquecimento global, turais (Castellanos, 1990). Esse conceito possi-
buracos na camada de ozônio, chuva ácida, sa- bilita a abordagem dos problemas de saúde e
linização e ressecamento do solo. As conse- doença de um ponto de vista específico para
qüências epidemiológicas desse intenso pro- cada grupo populacional e, ao mesmo tempo,
cesso de transformações são radicais e impre- de uma perspectiva interdisciplinar e interse-
visíveis. A emergência de novas doenças, que torial (Rojas, 1998).
podem manifestar-se, também, como epide- Um dos mais importantes exemplos das
mias fatais e devastadoras, não é uma possibi- permanências e transformações nas formas de
lidade apenas ficcional. pensar a relação entre espaço e doença pode
ser evidenciado mediante os trabalhos sobre a teção contra as doenças inexoravelmente ten-
epidemia de AIDS. O seu surgimento, há duas dem a acompanhar a lógica mais geral da desi-
décadas, provocou um processo acelerado de gualdade e iniqüidade social.
elaboração, mobilizando recursos cognitivos e Os trabalhos a respeito da AIDS, sem dúvi-
subjetivos que acrescentaram muitos elemen- da, expressam transformações discursivas re-
tos para a compreensão da relação entre espa- centes sobre a relação entre espaço e produção
ço e epidemia. Essas abordagens não estiveram de doenças. Um exemplo pode ser sinalizado
restritas ao campo especifico da epidemiolo- através da construção dos modelos dinâmicos
gia, manifestando outras múltiplas possibili- de transmissão da AIDS, que ganharam um no-
dades de se pensar e intervir sobre o processo vo destaque. O acelerado desenvolvimento da
epidêmico, que se integram às explicações es- informática e do conjunto das ciências permi-
tritamente epidemiológicas. tiu o aperfeiçoamento das técnicas de simula-
As redes espaciais de difusão, interação (ou ção e a incorporação de inúmeras novas variá-
circulação) do vírus da AIDS são hoje percebi- veis, que manifestam as mudanças do discurso
das como de difícil delimitação. Elas não se científico contemporâneo. Mesmo mantendo a
configuram de acordo com as características mesma base lógica configurada no início do
geográficas anteriormente estudadas no âmbi- século, os modelos hoje integram informações
to das doenças transmissíveis (Barcellos & Bas- espaciais geográficas a dados sociais e indivi-
tos, 1996). A relação entre transmissão da AIDS duais, tanto comportamentais como genéticos,
e sexualidade ou uso de drogas, expressa a estabelecendo redes de transmissão extrema-
complexidade de dimensões que, embora con- mente complexas.
formadas culturalmente, se situam na esfera
das opções pessoais e individuais. As redes de
limitação ou facilitação da transmissão são Conclusão
condicionadas por características macroestru-
turais que configuram socialmente o acesso a Como vimos, o núcleo epistemológico que
recursos materiais e subjetivos, mas que se de- orienta a apreensão do espaço do ponto de vis-
finem nos espaços da vida privada dos sujeitos. ta epidemiológico é a teoria da doença. É ne-
Os centros urbanos concentram atividades cessário à explicação epidemiológica alcançar
de troca e interação social. Barcellos & Bastos expressar, de alguma forma, o espaço em que
(1996) estudaram, por exemplo, as redes so- ocorre o processo do adoecer, ou seja, a interfa-
ciais que se articulam à transmissão da AIDS ce entre corpo e espaço. Nesse sentido, a idéia
entre usuários de drogas. Os caminhos do nar- de circulação de agentes específicos, especial-
cotráfico percorrem espaços de maior vulnera- mente no contexto de doenças transmitidas
bilidade e incidência da infecção. Dessa forma, por vetores, foi fundamental à objetivação de
podem ser identificados pontos em que os flu- um conjunto de elementos, capazes de dar ma-
xos de difusão da epidemia são mais intensos. terialidade à relação entre espaço e produção
As análises espaciais que, por meio de téc- de doenças. Isto foi possível tanto no contexto
nicas de geoprocessamento, visualizam o des- da abordagem estritamente ecológica quanto
locamento da difusão dos agentes e dos even- no da que considerou o espaço socialmente or-
tos epidêmicos evidenciam também a mudan- ganizado.
ça no perfil sócio-econômico da epidemia. De- Essa configuração apresentou-se limitada,
tectou-se especificamente no Brasil a expansão especialmente para o estudo das doenças cha-
da epidemia para os segmentos de menor ren- madas não-transmissíveis. Através do conceito
da e escolaridade. Grangeiro (1994) estudou a epidemiológico de risco, a interface entre cor-
distribuição dos casos da doença na cidade de po e meio é abstraída, representada, de modo
São Paulo. Nas áreas mais ricas, predominaram virtual, como uma multiplicidade de estímulos
os casos de transmissão homossexual masculi- irradiados. O conceito de risco não explicita ar-
na, e apresentou-se uma maior razão de inci- ticulações entre elementos materiais e imate-
dência entre homens e mulheres. Nas áreas riais que possam explicar o vínculo entre espa-
mais pobres, ao contrário, houve maior núme- ço (exposição) e corpo (evento de doença). O
ro de casos de transmissão heterossexual e re- modelo do risco constrói representações das
lacionada ao uso de drogas. A razão entre casos relações entre causas e a probabilidade destas
em homens e mulheres foi menor (Grangeiro, provocarem doenças que produzem uma des-
1994). O crescente processo de pauperização conexão radical dos elos entre os homens e
da epidemia de AIDS demonstra que a distri- suas circunstâncias.
buição espacial dos mais diversificados recur- A tradição crítica na epidemiologia, espe-
sos materiais e imateriais que favorecem a pro- cialmente na América Latina, buscou superar
as limitações dos conceitos epidemiológicos, surgimento de doenças. Não há como negar que
integrando contribuições da teoria social às o desenvolvimento tecno-científico em grande
análises dos processos coletivos de saúde e escala trouxe como conseqüência a construção
doença. Porém, os conceitos específicos da epi- de representações da realidade cada vez mais
demiologia foram pouco problematizados na complexas. O discurso da epidemiologia, assim
sua referência à biologia. A corrente histórico- como o da geografia, articulando-se ao de outras
estrutural que fundamentou esse desenvolvi- áreas de conhecimento, diversifica e amplia
mento tendeu a desvalorizar as dimensões bio- suas possibilidades. A complexidade crescente
lógica e individual do adoecer. Ao buscar am- dos enfoques conceituais, contudo, dificulta a
pliar a concepção de espaço, deixou-se de lado, construção de métodos capazes de operaciona-
caracterizada como atribuição da clínica, a con- lizá-los (Costa & Teixeira, 1999).
cepção de corpo que o reduz ao biológico e indi- O esforço de integração entre diferentes
vidual. Sem repensar a concepção de corpo, res- abordagens é o outro lado da aceleração da
tringem-se as possibilidades de encontrar elos produção de múltiplas linguagens, que frag-
que expliquem a relação entre espaço e doença. mentam as dimensões em que o corpo e o es-
Desenvolvimentos mais recentes questio- paço são apreendidos. A construção de ima-
naram as abordagens que, por um lado, res- gens e discursos sedutoramente retóricos pode
tringiam os processos à uma dimensão biolo- trazer, ao em vez de saber, perplexidade e im-
gicista e, por outro, a determinantes genéricos potência. Pode ofuscar, ao invés de esclarecer,
e estruturais (Fleury, 1992). Buscou-se reinter- os caminhos para a resolução de problemas.
pretar o significado de individual e de biológi- Nesse mundo em que se multiplicam e se frag-
co, através de conceitos como sujeito e nature- mentam exponencialmente imagens, informa-
za (Costa & Costa, 1990). O reconhecimento da ções e representações da realidade, ressalta-se
importância de valores, como subjetividade, cada vez mais a importância de reforçar os elos
autonomia, diferença, apresentou-se no con- entre pensamento e sensibilidade. Estamos vi-
texto das transformações no discurso científi- vendo o paroxismo da tendência sinalizada há
co, que, há cerca de uma década, manifesta- muito tempo por filósofos e poetas: “o processo
ram-se mais claramente na saúde coletiva. de desmembramento e decomposição da natu-
Essas transformações trouxeram novos ele- reza e do homem fez com que se perdesse a inte-
mentos para se pensar o espaço e, conseqüen- gridade da referência em seu próprio sentido”
temente, a relação entre espaço e doença. Re- (Goethe apud Cassirer, 1993:225); a visibilida-
tomando a definição de Milton Santos (Santos, de de novas estruturas na natureza e na deter-
1996) do espaço enquanto sistema de objetos e minação dos seres implicou uma cegueira em
de ações, um conjunto de fixos e fluxos, ressal- relação ao sentido do ser (Merleau-Ponty, 1992);
ta-se, no contexto dos fluxos, aspectos que fo- a visualização progressiva de realidades ante-
ram pouco trabalhados em estudos epidemio- riormente inimagináveis tendeu a afastar o ho-
lógicos. A dimensão da comunicação no meio mem de seu próprio referencial de medida
tecno-científico-informacional produz-se tam- (Arendt, 1987).
bém através da circulação de palavras, ima- A experiência vivida nos acontecimentos é a
gens, rumores, afetos. Os elementos simbóli- referência básica a qualquer perspectiva sinté-
cos contribuem de modo significativo para a tica. No caso da epidemiologia, é o sofrimento
configuração territorial e, certamente, para o humano que se manifesta através dos eventos
processo de adoecer, individual e coletivo. Su- epidêmicos, que mobiliza o pensamento a pro-
blinhando-se a dimensão fluida do espaço, des- duzir significados e encontrar, dentre as mais
tacam-se aspectos que enriquecem e tornam variadas possibilidades, aquelas que melhor
ainda mais complexa a sua natureza. Porém, a correspondem à necessidades. A crença na ver-
apropriação de teorias a respeito do espaço, dade científica torna-se cada vez mais relativa,
produzidas em outros campos do conhecimen- colocando-se em primeiro plano a idéia da uti-
to, ainda não conseguiu encontrar uma media- lidade do conhecimento. O que importa não é a
ção tão clara entre o espaço e o fenômeno do disputa entre métodos e sistemas de pensa-
adoecer como a que é alcançada pela idéia de mento definidos a priori, mas a capacidade de
circulação de agentes específicos de doenças. resolver, da melhor forma possível, problemas
Sem dúvida, desde a formulação da teoria concretos. O uso do conceito de espaço em epi-
dos germes, houve um enorme desenvolvimen- demiologia tem uma abertura transdisciplinar,
to das ciências, da visualização de estruturas permite uma multiplicidade de significações,
biológicas, da compreensão de processos so- que devem ser mobilizadas, tendo como refe-
ciais e simbólicos, o que acrescentou muitos rência situações de saúde definidas a partir de
elementos para pensar o espaço, o corpo e o interesses devidamente explicitados.
Agradecimentos
Referências
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ção Brasileira Interdisciplinar de Aids/Instituto Geografía Humana, 29:5-52.
cadas por uma intensa troca com ciências da sociais que podem magnificar efeitos adversos
natureza e da sociedade. A epidemiologia e a e, do outro lado, fontes de contaminação, lo-
geografia talvez tenham em comum, principal- cais de proliferação de vetores. Essa ligação
mente, as crises que costumam produzir pela acontece não só no espaço, mas, principalmen-
saturação de modelos ou por sua superação em te, se dá através da organização espacial. Essa
razão de novas realidades. A AIDS, lembrada organização impõe uma lógica de localização e
pelas autoras, é uma dessas novas realidades funcionamento, tanto para a produção quanto
que acabaram por derrubar antigos conceitos para a reprodução da sociedade. Esse encontro
e esquemas de análise. Foi assim com o mode- singular entre condições de risco e populações
lo proposto por Pavlovsky, superado pela urba- em risco é determinado por fatores econômi-
nização de doenças não explicadas por uma cos, culturais e sociais que atuam no espaço. O
ecologia ou geografia da paisagem natural. exemplo da saúde dos trabalhadores é, talvez,
Tanto Pavlovsky quanto Max Sorre trabalharam o mais gritante, em que a posição do indivíduo
com a ecologia, no sentido de ciência das rela- no espaço de trabalho está fortemente relacio-
ções entre ambiente e seres vivos, e talvez, por nada à função por ele exercida e a toda a estru-
isso, se prenderam aos princípios de equilíbrio tura de produção, utilizando categorias da geo-
meio interno/meio externo, homem/meio, pa- grafia sugeridas por Milton Santos. Esse con-
rasitas/hospedeiro. Talvez esses modelos se- junto de variáveis, que é indissociável, deter-
jam adequados para o estudo de algumas en- mina as condições de risco a que estão subme-
demias, mas não para doenças não transmissí- tidas parcelas da população de trabalhadores.
veis e situações epidêmicas. Algumas vezes te- Essas relações não são tão evidentes no cha-
mos que pensar no desequilíbrio, no efeito de mado ambiente geral, isto é, no espaço de mo-
um fato novo – um novo agente infeccioso ou radia, de circulação e de consumo. Nesse caso,
as migrações – na determinação de doenças. cabe à investigação epidemiológica e à geogra-
Também parece estar em crise a chamada epi- fia da saúde restabelecer esse elo.
demiologia dos fatores de risco (Castellanos, O uso do espaço na área de saúde tem sido
1990), que freqüentemente desconsidera as in- incrementado com o crescente acesso a bases
terações entre indivíduos (unidades de obser- de dados epidemiológicos e pela disponibili-
vação) e as condições coletivas que emergem dade de ferramentas cartográficas e estatísti-
destas relações. Algumas das importantes ex- cas computadorizadas. O uso dessas ferramen-
pressões dessa coletividade são as cidades, as tas pressupõe, no entanto, modelos de explica-
redes sociais, os grupos sócio-espaciais, locali- ção do processo saúde/doença baseados em
zados em guetos ou condomínios residenciais, variáveis espaciais, como distância e vizinhan-
ou organizados em torno de fatores comuns ça, e no inter-relacionamento com dados de
que unem pessoas, produzem subjetividades caracterização do lugar. O espaço é muitas ve-
coletivas e se manifestam no espaço; em luga- zes utilizado como simples plano geométrico
res particulares (Sabroza & Leal, 1992). Essas para a disposição e análise de dados epidemio-
relações são necessariamente coletivas e têm lógicos, tendo como premissa os elementos es-
expressão espacial, embora muitas vezes de di- paciais próximos compartilharem condições
fícil apreensão. sócio-ambientais semelhantes. O espaço tem
O lugar, ao lado de pessoas e tempo, é uma sido fragmentado para, numa segunda aborda-
das três principais dimensões de análise de fe- gem, permitir verificar a diferenciação de con-
nômenos epidemiológicos. Essa categorização dições sociais e ambientais, tendo como pres-
é meramente didática, uma vez que pessoas, supostos a homogeneidade interna e a inde-
tempo e lugares interagem. O conjunto lugar- pendência das unidades espaciais de agrega-
tempo-pessoas é, em outras palavras, precisa- ção e análise de dados. Uma terceira aborda-
mente o objeto da geografia. A geografia estu- gem é focada na visão particular do lugar e das
da a relação entre sociedade e espaço, ou seja, circunstâncias em que o espaço pode produzir
como, onde, em que condições e por que cau- riscos à saúde. A cada uso do espaço corres-
sas se dá o desenvolvimento humano (não pro- ponde um conceito e um conjunto de métodos
priamente equivalente ao desenvolvimento e técnicas de análise que podem ser emprega-
pessoal) na superfície da terra (lugares). Para das. A falta de explicitação desses conceitos e
isso, compreende esse processo como resulta- métodos prejudica não só o próprio estudo,
do da acumulação de forças históricas (tempo). mas o estabelecimento desse possível elo entre
Nesse sentido, o espaço não só viabiliza a geografia e saúde. O uso do geoprocessamento,
circulação de agentes, como enfatizado pelas uma ferramenta de cada vez mais fácil acesso e
autoras, mas estabelece um elo, unindo, de um utilização entre profissionais da saúde, tam-
lado, grupos populacionais com características bém pressupõe um embasamento metodológi-
co prévio. Que paradigmas usamos e dispomos tema central do oportuno artigo de Dina Cze-
nesse caso? Estamos buscando o complexo pa- resnia & Adriana Maria Ribeiro.
togênico? Estamos condenados à geografia A principal vertente acadêmica da geografia
quantitativa? Trabalhamos com a ecologia das médica surge em 1943, com a publicação do
doenças? Existe alguma maneira de se fazer primeiro volume da obra magistral de Max Sor-
geografia crítica usando geoprocessamento? re, Les Fondements de la Géographie Humaine,
Não temos respostas para estas questões, mas dedicado aos seus fundamentos biológicos.
o debate incitado por esse artigo permite recu- Sorre propõe aqui o complexo patogênico co-
perar a história da difícil relação entre geogra- mo um conceito de integração entre a geogra-
fia e epidemiologia e apontar possíveis cami- fia e as ciências biológicas. A geografia médi-
nhos a seguir. ca aplicada torna-se popular a partir de 1939,
quando o parasitologista russo Y. N. Pavlovsky
BARCELLOS, C. & BASTOS, F. I., 1996. Geoprocessa- lança a sua teoria dos focos naturais das doenças
mento, ambiente e saúde, uma união possível?
humanas, que teria servido de base para as ativi-
Cadernos de Saúde Pública, 12:389-397.
CASTELLANOS, P. L., 1990. Sobre el concepto de
dades de controle de diversas endemias rurais
salud-enfermedad. Descripción y explicación de no território soviético. Do ponto de vista concei-
la situación de salud. Boletín Epidemiológico, tual, importa examinar como Sorre e Pavlovsky
10:1-7. interpretam as relações entre o homem, o espaço
COSTA, M. C. N. & TEIXEIRA, M. G. L. C., 1999. A con- geográfico e as doenças, e em que consiste a no-
cepção de “espaço” na investigação epidemioló- vidade de suas proposições (Ferreira, 1991).
gica. Cadernos de Saúde Pública, 15:271-279.
O foco natural das doenças é descrito em
ROJAS, L. I., 1998. Geografía y salud: Temas y pers-
pectivas en América Latina. Cadernos de Saúde Pavlovsky como um objeto da geografia física:
Pública, 14:701-711. uma paisagem caracterizada por elementos
SABROZA, P. C. & LEAL, M. C., 1992. Saúde, ambiente climáticos e de cobertura vegetal, onde circu-
e desenvolvimento. Alguns conceitos fundamen- lam agentes etiológicos, vetores e reservatórios
tais. In: Saúde, Ambiente e Desenvolvimento. Uma de uma infecção. O ser humano situa-se fora
Análise Interdisciplinar (M. C. Leal, P. C. Sabroza,
do foco, ainda que eventualmente sua ação so-
R. H. Rodriguez & P. M. Buss, org.), pp. 45-93, Rio
bre a paisagem possa contribuir para a disse-
de Janeiro: ABRASCO/São Paulo: Editora Hucitec.
SILVA, L. J., 1997. O conceito de espaço na epidemio- minação de infecções. Sua posição hierárquica
logia das doenças infecciosas. Cadernos de Saúde corresponde exatamente à dos demais elemen-
Pública, 13:585-593. tos paisagísticos e biológicos em jogo. Não há,
no plano conceitual, nenhuma ruptura com a
tradição positivista; a noção de foco natural
reaparecerá na tríade clássica agente-hospe-
deiro-meio da epidemiologia funcionalista de
Leavell & Clarck (1976). No Brasil, as idéias de
Pavlovsky teriam ampla divulgação nos escri-
tos de Samuel Pessoa (1978), cujo valor reside
mais em seu caráter de denúncia social do que
Marcelo Urbano No final do século XVIII, os médicos passaram em seu apuro conceitual ou metodológico.
Ferreira a interrogar o corpo humano em busca da sede Por outro lado, o complexo patogênico de
das doenças, que Morgagni e Bichat localiza- Sorre pertence ao âmbito da geografia huma-
Departamento de riam nos órgãos e tecidos e Virchow, posterior- na. Nele, o papel do homem não se restringe ao
Parasitologia, Instituto
mente, na célula. Quase simultaneamente, a plano biológico, como eventual hospedeiro de
de Ciências Biomédicas,
Universidade medicina social buscava compreender a distri- agentes infecciosos. A doença não surge ou de-
de São Paulo. buição das doenças em populações humanas e saparece como fenômeno natural; a gênese ou
muferrei@usp.br
seus determinantes. A idéia de território das desintegração dos complexos patogênicos é
doenças surge, portanto, em contextos distin- condicionada pela ação humana sobre o ambi-
tos. O território da clínica é delimitado por dis- ente. No entanto, Sorre prende-se a uma pers-
ciplinas como a anatomia, a histologia e a pato- pectiva ecológica para compreender esta ação
logia, enquanto o espaço que a medicina social humana, sintetizada em seu conceito de gêne-
investiga corresponde ao objeto de estudo do ro de vida. Os diferentes gêneros de vida resul-
geógrafo. Embora técnicas cartográficas vies- tariam de modos diversos de adaptação do ho-
sem sendo utilizadas, ao longo do século XIX, mem às dificuldades impostas pelo meio geo-
para descrever a distribuição das doenças hu- gráfico. Não cabem nessa perspectiva atores
manas, o intercâmbio conceitual entre a medi- sociais em conflito de classes nem formações
cina social e a geografia somente se intensifica sociais que geram determinados modos de
em meados do século XX. Esse intercâmbio é o ocupação do espaço. A fria recepção das idéias
menos, como podem vir a não acontecer. As são capazes de evidenciar mecanismos disfun-
autoras defendem, nesse sentido, que a própria cionais no corpo. Estamos de acordo, porém,
identidade da disciplina se construiu sobre que, desde a verdadeira revolução epistemoló-
uma figura de espacialidade, qual seja, a busca gica que foi a emergência do conceito de risco
das vias de transmissão das doenças de massa. em epidemiologia, o desvelar de um círculo
Não obstante seu caráter central na consti- disfuncional, cujo centro estava na intimidade
tuição da epidemiologia, o espaço também não orgânica e cuja circunferência se estendia para
conseguiu, porém, escapar ao horror antiteoré- tudo que, no meio externo, se relacionava com
tico que marca o desenvolvimento conceitual ela, perdeu espaço (eu disse espaço?!). Até os
dessa disciplina. O espaço tem sido amplamen- anos 30, as relações entre microbiologia, imu-
te usado em epidemiologia para conhecer co- nologia e clínica permitiram à epidemiologia
mo se distribuem as doenças e seus correlatos manter-se ainda como porta-voz de uma me-
(serviços, tratamentos, respostas), mas não pa- cânica interno–externo, mas, agora, já traba-
ra pensar o que isso significa. Espaço virou lu- lhando menos com a idéia de disfunção do que
gar, e este passou a ser apreendido como ende- com a idéia de desequilíbrio (entre infectantes,
reço. O endereço, enquanto tal, foi progressiva- infectados e suscetíveis). Após a Segunda Guer-
mente deixando de ser um dado empírico dota- ra Mundial, contudo, vemos a epidemiologia
do de significado para transformar-se no supor- do risco prescindir quase totalmente não só da
te lógico de variáveis cada vez mais abstratas, fisiopatologia, como também de qualquer me-
altamente isoladas do “conjunto indissociável cânica interno–externo para produzir seu co-
de sistemas de objetos e sistemas de ação” de que nhecimento. Nem disfunção, nem desequilí-
nos fala Milton Santos (Santos, 1996:18). brio, o que a epidemiologia passa a buscar e re-
Essa é uma das questões centrais suscita- velar é o desfavorável. Se uma ocorrência qual-
das pelo trabalho aqui apresentado. Dado que, quer tem possibilidade de estar favorável ou
também a epidemiologia, como ocorrência, co- desfavoravelmente associada a outra no cam-
mo evento delimitável espacialmente, deve ser po da saúde, esse fato, junto com sua extensão,
tratada como parte indissociável de um siste- passa a ser o norte e o traço distintivo da pro-
ma (ou sistemas) de objetos e ações, cabe per- dução hegemônica na epidemiologia do risco.
guntar: o que esse deslocamento nos diz a res- Nesse sentido, cabe perguntar: não terá a epi-
peito de nós próprios? Por que o lugar repre- demiologia contemporânea modificado sua re-
senta o espaço no âmbito da nossa prática epi- lação com as teorias das doenças? Nesse con-
demiológica? Se considerarmos ainda que, en- texto, como se recompôs o espaço da epide-
tre nossos sistemas de objetos e ações, um de- miologia? Qual princípio está gerando hoje os
les, o sistema lingüístico, tem um lugar deter- fragmentos que, através do “lugar”, represen-
minante na contínua reconstrução desses sis- tam o espaço nos estudos epidemiológicos?
temas, por maior razão devemos nos deter so- Certamente, essas questões não são algo a
bre o que estamos fazendo com o espaço em que as autoras devam (e possam) responder de
que vivemos quando, epidemiologicamente, o forma conclusiva em sua tréplica. São reflexões
designamos “lugar”. fundamentais que seu artigo apenas levanta e
Da problemática acima desdobra-se ainda inicia. Cabe a nós todos, do campo da epide-
outra ordem de questões levantadas pelo arti- miologia e da saúde pública, especialmente
go e que diz respeito às transformações históri- aqueles que já vêm dedicando esforços espe-
cas, com a licença do trocadilho, do lugar epis- ciais para a compreensão do problema, como
temológico que vem ocupando esse “lugar” Luiz Jacintho da Silva, Maurício Barreto, Paulo
epidemiológico no desenvolvimento científico Sabroza, entre outros, ajudar a respondê-las
da disciplina. As autoras destacam que o ponto com nossas melhores reflexões e práticas coti-
de vista central do seu trabalho é o de que “o dianas.
núcleo epistemológico que orienta a apreensão
do espaço em Epidemiologia é a teoria da doen- SANTOS, M., 1996. A Natureza do Espaço – Técnica e
Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: Editora Hu-
ça” e que “os elementos do espaço que são incor-
citec.
porados na explicação epidemiológica inte-
gram-se aos que explicam como a doença ocorre
no corpo” (grifos meus). Nesse sentido, pare-
cem sugerir que o “lugar” é um dispositivo frag-
mentador do espaço – do qual a epidemiologia
extrai alguns elementos – e que o princípio des-
sa fragmentação é a fisiopatologia – só interes-
sando os fragmentos que (e à proporção que)
Lefebvre (Lefebvre, 1991), na França. Ambos os Nos trabalhos de Milton Santos (Santos,
autores, enquanto intelectuais de sólida for- 1980), que, além de conter contribuições origi-
mação marxista, foram ambientados em dife- nais para a constituição da geografia nova, será
rentes tradições epistemológicas e científicas. o difusor dessas idéias em nosso meio, siste-
Harvey, geógrafo, herdeiro da tradição induti- matiza-se o conceito de espaço que será aco-
vista anglo-saxônica, centra-se na idéia de que lhido por alguns epidemiologistas que enten-
é necessário trabalhar com os fatos, processá- diam que este se ajustava bem ao projeto de
los, analisá-los. Vai além, porém, ao conceber uma epidemiologia social. Alguns poucos tra-
que estes só passarão a ter pleno sentido quan- balhos epidemiológicos tem sido produzidos
do alicerçados por sólidas teorias. O autor, em- utilizando-se desse referencial. É importante
bora reconheça a importância da rota teoréti- chamar a atenção para o fato de que, na intro-
co-dedutiva, enfatiza que teorias somente al- dução do livro que inaugura esta fase (Santos,
cançam status científico quando podem gerar 1980), o autor expressa que ali iniciava o seu
hipóteses passíveis de serem testadas, ou se- “projeto ambicioso”, consagrado ao tema do
ja, que sigam as etapas do método científico. “espaço humano”, o qual ele propunha comple-
Acontecem casos em que a teoria antecede aos tar em etapas, sem desconhecer os riscos que
métodos que irá testá-lo, porém existem tam- se colocavam para o cumprimento da tarefa.
bém teorias que nunca disporão de tais méto- Parece-me que, apesar do vigor do debate
dos. Portanto, nunca serão científicas. Nessa li- intelectual dos programas de trabalho filosóficos
nha, em um trabalho seguinte, no qual busca e científicos de onde paulatinamente emerge o
construir uma teoria sobre a cidade, Harvey conceito unificado de espaço, o qual permitirá
(1973) pontua que “a ponte entre as imagina- pensar em uma nova geografia, esta não con-
ções sociológica e geográfica somente pode ser segue firmar-se como hegemônica, porém deixa
construída se possuirmos instrumentos adequa- marcas na organização disciplinar da geografia.
dos”(Harvey, 1973:37). Outros aspectos impor- O deslocamento dessa experiência para a epi-
tantes considerados pelo autor e que podem demiologia nos mostra que ainda existe um lon-
servir de esquema para análise de outras disci- go caminho a ser percorrido, bastando observar-
plinas são: a) a relação entre os argumentos mos como os debates epistemológicos e meto-
metodológicos da geografia comparados com os dológicos, no seu interior, ainda são incipientes.
do conhecimento, em geral; b) o relacionamen- Parafraseando Harvey (1973), a ponte entre
to entre as afirmações feitas pelos metodologis- as imaginações epidemiológica e geográfica
tas da geografia e a prática dos geógrafos, como somente pode ser construída se possuirmos os
revelado pelo seu trabalho empírico; c) o rela- instrumentos adequados, veremos que, quei-
cionamento entre as formas explanatórias acei- ramos ou não, em verdade, existem duas pon-
tas pelos geógrafos e as formas explanatórias tes. Por uma, circula o conceito de espaço (de-
aceitas pelos praticantes de outras disciplinas. rivado da geografia nova), o qual, apesar da sua
O ambicioso programa proposto por Lefeb- importância, como bem pontuado no artigo em
vre (l991), um filósofo, tinha por objetivo cons- debate, tem tido, até o momento, uso limitado
truir ou descobrir uma unidade teórica entre no campo da epidemiologia. Na outra, com trá-
campos que são apreendidos separadamente, fego intenso, vemos o florescimento do uso de
quais sejam: o físico, o mental e o social. Adver- técnicas geocartográficas e geoestatísticas em
te que, na busca dessa teoria unitária, não se torno dos denominados sistemas de informa-
poderia descartar os inevitáveis conflitos den- ções geográficos – SIGs (derivados da geografia
tro do conhecimento. Como conseqüência, tradicional). Várias questões podem emergir
controvérsias e polêmicas seriam inevitáveis. desta constatação (inclusive quanto à sua vera-
Questiona a razão pela qual os esforços de cidade), porém, para os praticantes da epide-
construção de uma teoria unificada de espaço, miologia, não tenho dúvida de que a questão
anunciados em épocas passadas, haviam sido mais imediata na hora da travessia é: tenho de
abandonados. O seu projeto emerge do pro- optar por uma das duas ou posso circular livre-
fundo diálogo e reflexões em torno de Hegel, mente entre elas?
Marx, Nietzsche, Freud, entre outros, da sua
aproximação com os movimentos artísticos e HARVEY, D., 1969. Explanation in Geography. Lon-
don: Edward Arnold.
da sua militância política e, ao final, deixa cla-
HARVEY, D., 1973. Social Justice and the City. London:
ro que “este livro foi informado desde o seu iní- Edward Arnold.
cio até o fim por um projeto…de uma sociedade LEFEBVRE, H., 1991. The Production of Space. Oxford:
diferente, um diferente modo de produção, aon- Blackwell.
de a prática social seria governado por diferentes SANTOS, M., 1980. Por uma Geografia Nova. São
determinações conceituais” (Lefebvre, 1991:419). Paulo: Editora Hucitec.