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REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS

SOBRE FILOSOFIA, CONSTITUCIONALISMO


E DIREITOS HUMANOS
FERNANDA BUSANELLO FERREIRA
FELIPE MAGALHÃES BAMBIRRA
ARNALDO BASTOS SANTOS NETO
(ORGANIZADORES)
Prof. Ms. Gil Barreto Ribeiro (PUC GO)
Diretor Editorial
Presidente do Conselho Editorial

Prof. Ms. Cristiano S. Araujo


Assessor

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Profa. Dra. Irene Dias de Oliveira (PUC GO)
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Prof. Dr. Francisco Gilson (UFT)
FERNANDA BUSANELLO FERREIRA
FELIPE MAGALHÃES BAMBIRRA
ARNALDO BASTOS SANTOS NETO
(ORGANIZADORES)

REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS
SOBRE FILOSOFIA,
CONSTITUCIONALISMO E
DIREITOS HUMANOS

Goiânia-GO
Editora Espaço Acadêmico, 2017
Copyright © 2017 by Fernanda Busanello Ferreira et al

Editora Espaço Acadêmico


Endereço: Rua do Saveiro, quadra 15 lote 22 casa 2 Jardim Atlântico
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Capa: O semeador - Van Gogh - 1888 (domínio público)

Programação Visual: Marcos Digues

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação


R332 Reflexões contemporâneas sobre filosofia, constitucionalismo e
direitos humanos. - Fernanda Busanello Ferreira, Felipe Magalhães
Bambirra, Arnaldo Bastos Santos Neto (orgs.). – Goiânia: / Editora
Espaço Acadêmico 2017

274 p. il. 15x21cm

ISBN:978-85-69818-61-8

1. Direitos humanos. 2. Filosofia. I. Ferreira, Fernanda Busanello


(org.). II. Bambirra, Felipe Magalhães (org.). III. Santos Neto,
Arnaldo Bastos (org.) . IV. Título.

CDU: 342.7

Arielle Lopes de Almeida CRB1/2785


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É proibida a reprodução total ou parcial da obra, de qualquer forma ou por qualquer meio, sem
a autorização prévia e por escrito da autora. A violação dos Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98)
é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
2017
5

AUTORES

Adriana Inomata (Universidade Positivo)


Mestre em Direitos Fundamentais e Democracia pelas Faculdades In-
tegradas do Brasil (Unibrasil). Professora de Direito Constitucional da
Universidade Positivo e da Faculdade Estácio de Sá.

Angela Couto Machado Fonseca (UFPR)


Professora da UFPR. Doutora em Filosofia do Direito, Mestre em Filo-
sofia, Bacharel em Direito e Bacharel em Filosofia.

Candice Martins Bertaso (URI/Santo Ângelo)


Mestre em Direito pela Universidade do Alto Uruguai e das Missões
(URI/Santo Ângelo). Graduada em Direito pela Universidade de Cruz
Alta (UNICRUZ). Especialista em Direito Civil e os Novos Rumos do
Processo Civil pela URI/Santo Ângelo. Publica nesse livro junto à Profa.
Dra. Fernanda Busanello Ferreira

Carolina Meire de Faria (UFMG)


Mestranda em Filosofia (UFMG), advogada, especialista em Direito
Constitucional (IDDE). Publica nesse livro junto ao Prof. Dr. Felipe
Magalhães Bambirra
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Fabiana de Almeida Maia Santos (UFRJ)


Mestra em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Espe-
cialista em Gestão de organizações do Terceiro Setor e em Direito Cons-
titucional e Docência em Ensino Superior pela UNESA. Pesquisadora
da Fundação Getúlio Vargas (FGV- Rio) e do grupo Novas Perspectivas
em Jurisdição Constitucional – UNESA. Advogada. Publica nesse livro
junto ao Prof. Dr. José Ribas Vieira

Felipe Magalhães Bambirra (UFG/ALFA)


Mestre e Doutor em Direito (UFMG). Pós-doutorando no Programa de
Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos (UFG). Profes-
sor na Universidade Federal de Goiás e Faculdades Alves Faria (GO).

Fernanda Busanello Ferreira (UFG)


Pós-Doutora em Direitos Humanos pelo PPGIDH/UFG. Doutora em
Direito pela UFPR. Professora do PPIGDH/UFG e do Curso de Direito
da UFG/REJ.

Gabriel Lima Marques (UFRJ)


Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bacha-
rel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesqui-
sador do Observatório da Justiça Brasileira – OJB, Projeto/CNJ, grupo
UFRJ. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior - CAPES. Advogado. Publica nesse livro junto ao Prof. Dr. José
Ribas Vieira

Igor Suzano Machado (UFES)


Doutor em Sociologia. Professor Adjunto do Departamento de Ciências
Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo.

José Ribas Vieira (UFRJ)


Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Montpelier I e Doutor em
Direito pela UFRJ. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação
7

da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Coordenador do Ob-


servatório da Justiça Brasileira – OJB.Liziane Bainy Velasco (FURG)
Mestranda em Direito e Justiça Social pela FURB. Foi bolsista de
Ensino, Pesquisa, Extensão e Monitoria da FURG, publica nesse livro
junto à profa. Dra. Raquel Sparemberger

Marilson Santana (UFRJ)


Professor Assistente da Faculdade Nacional de Direito da Universidade
Federal do Rio de Janeiro- FND/UFRJ. Doutor em Ciências Sociais pela
PUC-RJ. Mestre em Direito e Estado pela UnB. Graduado pela Faculda-
de de Direito da Bahia (UFBA).

Rafael Bezerra de Souza (UFRJ)


Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ.
Pesquisador do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o
Comportamento das Instituições (LETACI/FND/UFRJ). Servidor do
Ministério Público do Estado de Pernambuco. Bacharel em Direito pela
Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Publica nesse livro junto
ao Prof. Dr. José Ribas Vieira

Raquel Fabiana Lopes Sparemberger (FURG)


Pós-Doutora em Direito pela UFSC, Doutora em Direito pela UFPR,
professora adjunta do Programa de Mestrado em Direito e do Curso
de Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do
Rio Grande-FURG. Professora do Mestrado em Direito da Fundação
Escola Superior do Ministério Público- FMP. Professora visitante na
FURB-Blumenau. Coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre o Cons-
titucionalismo latino-americano e decolonialidade da FURG e do IMI-
gracidadania da Furg. Professora Pesquisadora do CNPq e FAPERGS.

Safira Orçatto Merelles do Prado (Universidade Positivo)


Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná.
Especialista em Direito Processual Civil pela PUC PR e em Direito
8

Administrativo pelo Instituto Romeu Bacellar. Integrante do Conselho


Editorial da Revista Direito do Estado em Debate, da Procuradoria
Geral do Estado do Paraná. Integrante do Conselho Editorial da Revista
de Direito Administrativo. Professora de Direito Administrativo
na graduação do Centro Universitário Internacional - UNINTER.
Professora de Direito Constitucional nos cursos de Pós-Graduação da
Universidade Positivo. Instrutora de cursos voltados à Administração
Pública e advogada administrativista militante.

Sérgio Bocayuva Tavares de Oliveira Dias (UFRJ)


Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Juiz Fe-
deral Substituto na Subseção de Volta Redonda. Bacharel em Direito
pela Universidade Federal do Mato Grosso. Publica nesse livro junto ao
Prof. Dr. José Ribas Vieira
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APRESENTAÇÃO

“O SEMEADOR”

A obra de Van Gogh que ilustra a capa deste livro, denominada “O


semeador”, é uma das oito releituras, feita pelo gênio pós-impres-
sionista, do quadro homônimo de Jean-François Millet1, precursor do
realismo. Um dos motivos para o pintor holandês admirar a obra de
Millet, foi por visualizar nela uma imagem de esperança. “O semeador
surge no final da série de colheitas e tal como na realidade, ele semeia a
terra. Depois dos campos estarem limpos e desocupados ele a ceifa pre-
parando-a para o novo plantio” 2, referem Walther e Metzger a respeito
das obras.
A pintura faz parte do período em que Van Gogh muda-se para
Arles, no sul da França, em 1888, a fim de montar uma casa que abri-
garia vários pintores (a casa amarela), o que nunca se concretizou, pois
apenas Paul Gauguin mudou-se para o local.
O quadro coloca em evidência um sol muito amarelo, incapaz,
porém, de clarear a figura do sofrido semeador, o qual pacientemen-
te joga sementes na terra com a esperança de fecundarem. A solidão e
isolamento do semeador também chamam a atenção na obra, que ainda
retrata o homem como um ser inserido na natureza, dela fazendo parte.
Cada um dos autores desse livro, igualmente, vem semeando seus
trabalhos com a esperança de acolhida em terreno fértil. Queremos des-
tacar que o leitor também poderá encontrar aproximações da obra de

1 BRIAN, Petrie. Obras Primas de Van Gogh. Lisboa, Verbo, 1974, p. 17.
2 WALTHER, Ingo F.; METZGER, Rainer. Vincent Van Gogh: obra completa de pintura. Trad.
Sandra de Oliveira. Lisboa:Taschen, 1996, p. 360.
10

Van Gogh com os textos selecionados. Que eles iluminem, de alguma


maneira, campos fecundos e permitam mais semeadores plantar, nos
mais diversos solos, e cresçam cheios de vida brotos advindos das re-
flexões sobre filosofia, constitucionalismo e direitos humanos que apre-
sentamos nesse modesto livro.
Não podemos, por fim, deixar de referir e agradecer àqueles que
“limparam o terreno” para que esse livro se desenvolvesse. Foi de fun-
damental importância a ajuda dos bolsistas Júlio César Bellini (PIBIC)
e Roniel Paniago Lima (PIVIC) do Grupo de Pesquisa Fundamentos do
Direito, da UFG/Jataí. Nossos agradecimentos a todos os autores que,
como nós, visualizam, nos campos de conhecimentos que permeiam o
livro, um raio de esperança, tal qual o que motivou Van Gogh ao pro-
duzir as releituras do semeador. Que plantios vindouros renovem estes
ideais.

Os organizadores
11

SUMÁRIO

15 PREFÁCIO
INDICADORES DA TRAJETÓRIA DA CONSTRUÇÃO DO
BINÔMIO DIREITOS HUMANOS E CONSTITUCIONALIS-
MO: ENTRE THEMIS E ADRASTÉIA
Alexandre Walmott Borges

21 VITA ACTIVA, AÇÃO E SUA RELAÇÃO COM A PHRONESIS:


UMA LEITURA DE HANNAH ARENDT E ARISTÓTELES
Angela Couto Machado Fonseca

39 LÓGICA, REALIDADE E HISTÓRIA: REFLEXÕES SOBRE O


DIREITO E OS DIREITOS HUMANOS A PARTIR DA FILO-
SOFIA DO DIREITO DE HEGEL
Felipe Magalhães Bambirra

59 A GROTESCA VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS NA


MODERNIDADE E A MEDIAÇÃO COMO DIREITO DO FU-
TURO: IN MEMORIAM A LUIS ALBERTO WARAT
Fernanda Busanello Ferreira
Candice Nunes Bertaso
12

77 DISPUTAS POLÍTICAS, AÇÕES JUDICIAIS E DIREITOS


HUMANOS SOB A ÓTICA DA FILOSOFIA POLÍTICA CON-
TEMPORÂNEA: A TEORIA E A PRÁTICA DA IDEIA DE JUS-
TIÇA NO BRASIL
Igor Suzano Machado

105 NEPOTISMO NO BRASIL: ANÁLISE CRÍTICA DA SÚMULA


VINCULANTE Nº 13 À LUZ DA TEORIA DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS
Adriana Inomata

137 IMPASSES E ALTERNATIVAS EM 200 ANOS DE CONSTITU-


CIONALISMO LATINO-AMERICANO
José Ribas Vieira
Fabiana de Almeida Maia Santos
Gabriel Lima Marques
Rafael Bezerra de Souza
Sérgio Bocayuva Tavares de Oliveira Dias

163 O SIMBOLISMO NO JULGAMENTO CONSTITUCIONAL:


UMA ANÁLISE DO CASO ELLWANGER
Carolina Meire de Faria
Felipe Magalhães Bambirra

187 CONCEPÇÕES DE CIDADANIA E TENSÕES CONTEMPO-


RÂNEAS ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO: UMA INTRO-
DUÇÃO À TEMÁTICA
Fernanda Busanello Ferreira

223 A CIDADANIA NA AMÉRICA LATINA: UM OLHAR PARA


AS NOVAS PRÁTICAS EMANCIPATÓRIAS
Liziane Bainy Velasco
Raquel Fabiana Lopes Sparemberger
13

245 A TOMADA DE CONSCIÊNCIA DAS VÍTIMAS NA AMÉRI-


CA LATINA: DO DESCOBRIMENTO AO NEOLIBERALIS-
MO.
Safira Orçatto Merelles do Prado

259 O DIREITO DOS QUILOMBOLAS, ETNICIDADE E O CONS-


TITUCIONALISMO EM UM ESTADO DEMOCRÁTICO DE
DIREITO
Marilson Santana
15

PREFÁCIO

INDICADORES DA TRAJETÓRIA DA
CONSTRUÇÃO DO BINÔMIO DIREITOS
HUMANOS E CONSTITUCIONALISMO:
ENTRE THEMIS E ADRASTÉIA

Cabe-me a honra e a distinção de prefaciar esta rica e variada co-


letânea de artigos jurídicos sobre filosofia, direitos humanos e constitu-
cionalismo. Creio que a distinção e a honra são decorrência da amistosa
e frutífera amizade cultivada com os organizadores, pessoas do mais
alto gabarito e com destacada reputação na pesquisa do direito.
A temática que serve de eixo à publicação é abrangente e multi-
facetada, comportando abordagens distintas e aprofundadas sobre os
direitos humano-fundamentais, o constitucionalismo e a filosofia. Os
organizadores se esmeram em fazer com que o objeto temático com-
preendido no binômio direitos humanos/constitucionalismo seja pro-
blematizado a partir de abordagens contemporâneas e filosóficas. O
contemporâneo aqui neste trabalho, apesar das ambiguidades e oscila-
ções é a contextualização que leva em consideração os produtos huma-
nos do passado verificando a valia e a funcionalidade atual. Com esta
dimensão a obra organiza-se com a participação de vários autores.
Pois bem, tomando esta linha de problematização, dos olhares
sobre e a respeito do constitucionalismo, da filosofia e dos direitos hu-
mano-fundamentais, crê-se ser possível lembrar-se de alguns pontos
capitais da história constitucional e dos direitos do homem. O primeiro
é o de que os direitos humanos atendem ao projeto do constitucionalis-
mo. Segundo, que este projeto é englobante de uma estratégia maior das
16

instituições sociais. Curiosamente, estes pontos capitais são informados


por um paradoxo: se os direitos humanos existem por e nas constitui-
ções, as constituições somente podem ser assim chamadas se encapsu-
lam os direitos humanos.
As criações imaginadas da humanidade constituíram e reserva-
ram, a partir do advento do racionalismo renascentista, uma nova di-
mensão ontológica às instituições, ao direito e à política. O direito e a
política assumiram funcionalidades e estruturam-se a partir do fim do
medievo com caráter identitário e teleológico próprios, voltados à con-
cepção individual e antropocêntrica do ‘novo homem’ da renascença.
Por esta razão, os direitos humanos projetam-se numa dimensão
imaginada de centro à órbita, reservado o centro ao homem e a órbita
à sociedade. Isto implicou em superação de antigas formas relacionais
que tinham desenhos diversos deste, como, por exemplo, a superação
implicou em alguma reordenação do papel familiar, clânico, da religião
e das ligações políticas. O centro da vida imaginada tornou-se atomista
e volitivo, com compressão das teias multilineares da religiosidade ou
das ligações familiais. O estado passou à função de instituição nuclear
da organização política. O estado instrumento do homem centro da
vida, e do mundo.
Com a afirmação do estado moderno, a forma de tutela da esfera
individual do sujeito homem deixa de ser adrede posicionada em hete-
ronomias morais ou teísticas para ser direcionada ao direito. Portanto,
os direitos humanos são a expressão condizente com a nova ordenação
institucional e política após a renascença. A garantia institucional da
nova autonomia do sujeito individual passa, à larga, à responsabilidade,
à finalidade e à tutela do direito.
Nos parágrafos imediatamente acima, este prefácio acentuou o
tempo do posterior à renascença. Porém, esta funcionalidade nova do
direito teve desdobramentos e arranjos inovadores, dos seiscentos aos
tempos atuais. Cumpre assinalar que toda a estrutura estatal migrou de
estruturas principescas, logo a seguir reinóis, até finalmente a estrutu-
ração dos estados nacionais. Nesta trajetória a conformação dos direi-
17

tos do homem sofreu ajustes e posicionamentos diferenciados. Talvez o


ponto central desta evolução estatal seja a fundação ou a base dos direi-
tos políticos, estabelecendo estruturas novas como, por exemplo, a res-
ponsabilidade jurídica e política dos governantes para com os súditos, a
partição funcional dos órgãos estatais e, com destaque, a afirmação do
estado constitucional.
Portanto, no imediato após a renascença a expressão da centrali-
dade do sujeito individual era antropológica, sem ser necessariamente a
expressão jurídica efetiva do sujeito individual. Houve a clivagem entre
o direito posto e o direito imaginado. Antes se moldou a estrutura do es-
tado do que a estrutura dos direitos do homem. Somente com os estados
nacionais, e com o estado constitucional, do XVIII ao XIX, o bloco de
normas jurídicas de tutela do homem ganha o destaque e a centralidade
do sujeito titular de direitos humanos.
Todavia, o advento das declarações de direitos dos oitocentos e
novecentos sofreu um processo de expansão, explosão, recuo. Entenda-
se: a pretensão universalista dos direitos humanos foi bloqueada pelas
razões de realismo político contrário à utopia. Em lugar de declarações
universais, o concerto de soberanias e dos direitos positivos de cada
constituição. O apogeu do positivismo é a acomodação peculiar do es-
tado constitucional e dos direitos humanos ao projeto dominante no
século XIX: o capitalismo liberal.
Este ponto marcante é que o estado constitucional e os direitos
humanos tornaram-se a forma institucional do mercado. O século XIX
é o século da ordenação da vida pela economia com o rebaixo de outras
formas imaginadas da existência. Assim, o estado constitucional do sé-
culo XIX é o estado da utopia economista liberal conduzido ao realismo
do capitalismo triunfante. Até mesmos as engrenagens institucionais
colocaram, em boa medida, os direitos humanos na posição de eficácia
contida, sempre aguardando a aplicabilidade pelo legislador.
O triunfo do capitalismo liberal fez alinhar o estado constitucio-
nal à concepção individualista do homem econômico, algo reduzido se
comparado à pretensão humanista do renascentismo. Por isto, o gládio
18

que se instala no século XIX entre as concepções de estado de direito: o


estado da concepção individualista e, porque não, solipsista do estado
de direito, e a concepção humanista e totalizante do cristianismo social.
Em outra ponta de crítica, a construção dos argumentos combativos so-
bre a ineficácia, a falácia da universalidade dos direitos humanos, desen-
volvida pela concepção socialista de sociedade.
O estado constitucional liberal e a concepção individual de di-
reitos geraram alguns vales de ruptura que determinaram a ascensão
de formas deturpadas, inclusive com a indevida apropriação da ideia
de estado de direito pelas ditaduras e totalitarismo vintecentistas. Passo
interessante é que as sombras do século XX também foram acompanha-
das de novas tecnologias institucionais de reforma das fórmulas libe-
rais. O destaque maior aos modelos de controle de constitucionalidade
e à assimilação dos direitos sociais e econômicos. O século XX procura
superar a escolha trágica entre direitos individuais e direitos políticos
e sociais. A ‘liberdade dos antigos’ é dos antigos; porém a ‘liberdade
dos modernos’ há de ser construída sem a incompatibilidade descrita
por Constant. A saudável convulsão do constitucionalismo do século
XX é da sobrecarga da humanidade por novos direitos, em superação à
ordem liberal do século XIX.
Após a segunda guerra mundial a ordem do concerto de sobera-
nias, e das ordens nacionais positivadas de direitos fundamentais, vai
encontrar obstáculos e disfuncionalidades: multinivelamentos, ordens
jurídicas simultâneas, relacionamento conflitivo entre o nacional e o in-
ternacional, entre o nacional e o comunitário. O modelo constitucional
do século XX sofre estes impactos além dos já mencionados e não satis-
fatoriamente resolvidos, trânsitos entre o constitucionalismo liberal e o
constitucionalismo social.
Inserir a crítica contemporânea sobre os direitos humanos e o
constitucionalismo, como é a proposta desta publicação, é buscar veri-
ficar quais os novos arranjos e tecnologias são necessários, quais as pro-
postas devem ser debatidas e apresentadas pela teoria do direito e teoria
constitucional. Nas linhas acima se discutiu a propulsão e a trajetória
19

dos direitos humanos e do constitucionalismo, do século XV ao con-


temporâneo. É interessante que a propulsão não se faz por linhas retas,
ou blocos uniformes. Ao contrário, o que parece é sempre apresentar-se
um aríete, uma ponta avançada que lança força por terreno inexplorado.
Os exemplos são elucidativos: a precoce Portugal que no século XV já
estrutura um estado centralizado e com administração vertical; a insi-
nuante organização estatal inglesa do século XVI, após as revoluções,
com a soberania parlamentar; o advento da constituição americana e
da declaração de direitos do homem e do cidadão, no século XVIII; o
controle de constitucionalidade no início do século XIX, nos EUA; as
cartas de direitos sociais do século XX; os modelos multinivelados e
multicêntricos do comunitarismo, unionismo e da internacionalização
do século XX ao XXI.
As discussões reducionistas centradas em esgotamentos e levan-
tes, entre soberanias passadas e futuras, são pouco esclarecedoras. Ve-
ja-se que as dificuldades são enfrentadas com a tomada da história das
instituições para que se projetem novos arranjos, se verifiquem gran-
des transformações. A mimética do passado é a negação da prospecção
do futuro. Bem dito, quer-se imaginar que o fenômeno constitucional
se aninha com outro tecido, e os direitos humanos se organizam com
novas plataformas e com novos projetos antropológicos e jurídicos. De
todos os passados e experiências projeta-se o novo modelo do constitu-
cionalismo e dos direitos humanos. Como dizia Cruz e Souza:

Junto da morte é que floresce a vida!


Andamos rindo junto a sepultura.
A boca aberta, escancarada, escura
Da cova é como flor apodrecida.

Hobbes, Maquiavel, Locke, Pico della Mirandola, Rousseau,


Constant, Hamilton, Kelsen; ilustrações e proposta em cada um destes
momentos, em cada um destes avanços. O direito como criação ima-
ginada, e mais ainda o constitucionalismo e os direitos humanos são
20

produtos que servem aos propósitos organizacionais sempre com fun-


damentos e criações singulares de alguns. Novamente citando Cruz e
Souza,

Livre! Ser livre da matéria escrava,


arrancar os grilhões que nos flagelam
e livre penetrar nos Dons que selam
a alma e lhe emprestam toda a etérea lava. Livre da humana,
da terrestre bava
dos corações daninhos que regelam,
quando os nossos sentidos se rebelam
contra a Infâmia bifronte que deprava.

Oxalá a proposta deste livro alcance os mesmo picos. Tomara os


mesmos novos arranjos estejam em germinar nesta obra. Que da parti-
da destes textos chegue-se ao patamar mais elevado de compreensão do
estado da arte e, sobretudo, que se escrutinem criticamente as enormes
lacunas e impropriedades do constitucionalismo e dos direitos huma-
nos com aporte na filosofia.
De Uberlândia para Goiânia, em 07 de março de 2017.

Alexandre Walmott Borges


Doutor em direito pela UFSC. Professor da UFU nos programas de pós-graduação
em direito e biocombustíveis. Professor visitante da UNESP no programa de pós-
graduação em direito. Doutorando em História pela UFU.
21

VITA ACTIVA, AÇÃO E SUA RELAÇÃO COM


A PHRONESIS: UMA LEITURA DE HANNAH
ARENDT E ARISTÓTELES

Angela Couto Machado Fonseca1

1. Introdução

Na introdução feita por Celso Lafer para A condição Humana


de Hannah Arendt é colocada a pertinência e não o desvio deste livro
com relação aos temas que ocuparam As Origens do Totalitarismo. O
estudo do fenômeno totalitário explicita sua ocorrência diante de um
cenário no qual a dominação total dos homens, responsável pela per-
da de sua espontaneidade e liberdade, os empurra para fora do mundo
do qual pertencem e quebra o sentido político humano. “Com efeito, o
isolamento e o desenraizamento são uma conseqüência, como lembra
Jacques Caroux, de um mundo cujos valores maiores são ditados pelo
labor, e no qual o próprio homo faber viu-se degradado, na sociedade
industrial, à condição de animal laborans. Comprender como a inter-
pretação da realidade, baseada na tradição européia, ajudou a construir
este mundo, que permitiu o totalitarismo, é, portanto, o ponto-de-par-
tida de The Human Condition”2. As questões suscitadas pelo totalita-
rismo acabaram por propor, assim, no pensamento de Hannah Arendt,
1 Professora da UFPR. Doutora em Filosofia do Direito, Mestre em Filosofia, Bacharel em Di-
reito e Bacharel em Filosofia.
2 LAFER, C. In: ARENDT, H. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária,
1987, p. VIII.
22 Angela Couto Machado Fonseca

um debate com a tradição. A relação com a tradição não se desenha


de modo simples. Se por um lado seus desdobramentos servem para
alcançar o próprio fenômeno totalitário e a perda do sentido político na
atualidade; por outro lado é a quebra com a tradição que se torna fla-
grante diante dos seus procedimentos inéditos. Ocupar-se da tradição,
dialogar com esta tradição, não no intuito de seu restabelecimento, mas
movida pela busca dos componentes que enfraqueceram e desvirtuaram
os sentidos políticos originários, pautados pelas capacidades da ação e
da palavra, é o fio que perpassa A Condição Humana.
Há um duplo caminho na consideração da tradição. Se ela, por
um lado, guarda os fenômenos políticos que merecem ser recuperados;
por outro lado, é no interior da própria tradição que tais fenômenos
acabaram por ser desvirtuados de sua força e sentido próprios. Assim,
no olhar para a tradição que fora rompida, destaca-se não a sua vali-
dez indiscriminada ou uma retomada saudosista da filosofia helênica. A
análise dos sentidos de vita activa dialoga até mesmo num movimento
contra a tradição, contra os filósofos que deram início a um repetido
movimento de desgaste e inferiorização dos elementos da vita activa3.
Não há que se falar de uma autoridade per se da filosofia antiga ou que
esta é retomada como portadora de realidade política irretocável, “para
Arendt, a tradição foi pensada sobretudo como o locus do esquecimen-
to das determinações políticas democráticas originárias no curso de seu
próprio processo de transmissão histórica”4.
A tradição é pensada por Arendt não apenas como sede dos ele-
mentos constitutivos da política mas também como o percurso dentro
do qual alguns aspectos fundamentais da política, em especial, aqueles
que possibilitaram a sua origem democrática, foram, ao longo da história
enfraquecidos e perdidos. Arendt não quer repetir a pólis grega, mas bus-
ca compreender aqueles traços essenciais da democracia para que estes
3 A este respeito nota-se a consideração da filosofia platônica como responsável pelo começo de
uma desvalorização de toda práxis em face da valorização da contemplação das verdades e do
bem.
4 DUARTE, A. Hannah Arendt entre Heidegger e Benjamin: a critica da tradição e a recupe-
ração da origem da política. In: Eduardo Jardim Moraes, Newton Bignotto (orgs.). Hannah
Arendt: diálogos, reflexões, memórias. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001, p. 65.
Vita Activa, ação e sua relação com a phronesis: uma leitura de Hannah Arendt e Aristóteles 23

possam contribuir à experiência política do presente. Suas análises pro-


curam capturar o fenômeno político democrático, concretizado por ações
e palavras, e encontrar no contexto do presente a pertinência para o mes-
mo fenômeno. “Segundo a autora, nas revoluções modernas os cidadãos
apropriam-se da política em atos e palavras e visam dar início a algo novo,
rompendo o continuum da história e trazendo de volta ao presente pos-
sibilidades políticas esquecidas e perdidas no passado originário Greco
-romano, no qual a política democrática foi inventada como instância do
exercício plural da liberdade”5. O que Arendt faz entrever é não tanto a
vida política típica dos antigos com suas particularidades e contingências,
mas sim o fenômeno político, independente daquela realidade específica.
Este pode ser reinventado e exercido tantas vezes quanto é possível ao
homem atuar de modo a criar algo novo e exercer sua liberdade.
O retraçar desse início, escamoteado pela história da filosofia e
pela história política, conduziu Hannah Arendt na análise da vita activa
e de sua condição humana por excelência da ação. Sua análise caminha
num debate que encontra nos filósofos antigos a partir de Platão, a per-
da de dignidade da práxis e a valorização do bios theoretikos.6 Inclusive
Aristóteles, que teria reabilitado o mundo sensível e o campo da prá-
xis ainda o fazia sustentando uma superioridade da teoria. “O próprio
enunciado Aristotélico dos diferentes modos de vida, em cuja ordem
a vida de prazer tem papel secundário, inspira-se claramente no ideal
da contemplação (theoria)”.7 O percurso da ação na literatura filosófica
teria perdido seu papel de destaque, vindo a ocupar o mesmo espaço
que as condições humanas do labor e do trabalho. Esta inferiorização
da ação como qualquer movimento ou atividade que o homem execu-
ta, contrapõe-se ao ideal da contemplação. Deste modo a práxis estaria
sempre numa escala hierárquica inferir à teoria.
Apesar das restrições mencionadas pela própria Hannah Arendt
a Aristóteles, considerando sua filiação a Platão no que se refere a uma
5 DUARTE, A. Op. Cit. p. 69.
6 Esta demarcação é feita em Hannah Arendt já nos primeiros capítulos de A Condição Humana
e no capítulo ‘A tradição e a época moderna’ de Entre o passado e o futuro.
7 ARENDT, H. A Condição Humana. Rio de janeiro: Forense-Universitária, 1987, p. 22.
24 Angela Couto Machado Fonseca

superioridade da contemplação, propomos observar como o pensamen-


to Aristotélico possui bastante a comunicar se levamos em consideração
as características da vita activa delineadas por Arendt. Não se pretende
superar as distâncias de leituras que separam estes dois autores, preten-
de-se, tão somente, recuperar o que está em jogo na práxis aristotélica
para fazer entrever como o diálogo entre os dois é bastante mais rico do
que parece. Para tanto buscaremos analisar a noção de phronesis (pru-
dência) em Aristóteles.

2. O sentido da Phronesis em Aristóteles.

A presença da noção de prudência (phronesis) no pensamento


aristotélico atua como um centro nevrálgico a partir do qual ética e polí-
tica se encontram e se completam. Esse conceito é trabalhado com mui-
to maior propriedade na ética, mas sua função para a ética revela traços
típicos da política e permite a colocação de requisitos sem os quais nem
mesmo a política poderia vir a se constituir. Para que se compreenda
estas relações, será necessário primeiro situar o ambiente da phronesis e
depois analisar rapidamente seu papel.
Aristóteles elenca, no livro VI da Ética à Nicômaco, as diferentes
atividades humanas que em algum grau permitem a manifestação da
verdade: sophia, episteme, poiesis, praxis e nous. As duas primeiras – So-
phia e episteme – referem-se às atividades teóricas e possuem, cada qual,
seu saber específico: contemplação (Sophia) e conhecimento científico
(episteme). No que se refere a poiesis e a práxis, estas são atividades prá-
ticas, possuindo como seus saberes pontuais a techne (arte/técnica) para
a poiesis e phronesis (prudência) para a práxis. Em todas estas áreas
estaria a presença do nous (intelecto).
Nesta ambientação dos saberes duas distinções que são desenha-
das nos interessam: a separação entre os campos teórico e prático; e,
dentro do ambiente da prática, a diferença entre phronesis e techne8.
8 Retomaremos em outro momento estas distinções para tratá-las em face do pensamento po-
lítico de Hannah Arendt, na medida em que tais diferenças reverberam de certo modo na
distinção de ação, labor e trabalho.
Vita Activa, ação e sua relação com a phronesis: uma leitura de Hannah Arendt e Aristóteles 25

Se esta é a especificação do lugar ao qual pertence a prudência e


qual o tipo de saber ao qual se refere, sua função na ética ocupará um
posto de destaque. Lembramos as célebres colocações que abrem o I
livro da EN9 que toda ação e toda escolha tem como mira um bem e
que é em direção ao bem que todas as coisas tendem. Esse bem que se
posiciona como finalidade de toda ação e de toda escolha é sabidamente
a felicidade (eudaimonia). A felicidade que é um fim auto-suficiente e
superior a todos os outros fins (pois desejado por si mesmo e não em
vistas a qualquer outro fim externo), é tratada como “uma certa ativida-
de da alma segundo perfeita virtude” (EN I 131102a5-6). Neste ponto é
aonde podemos começar a visualizar o papel da prudência. A virtude,
que somente pode existir na acão10, somente alcança seu grau de exce-
lência se acompanhada de phronesis. Aristóteles aponta duas formas de
existência da virtude: a virtude que existe naturalmente e aquela que
é acompanhada de prudência. A virtude moral natural trata da virtu-
de natural (arete physike) diferente do que o termo parece sugerir, não
diz respeito a uma virtude inata (aqui é preciso recuperar um elemento
significativo do pensamento de Aristóteles que trata da diferença en-
tre potência e ato), mas sim das condições que a natureza fornece para
que o ato virtuoso venha a se constituir. A virtude natural é constituída
pelo hábito. Já a virtude completa, que é a virtude moral (arete ethike)
decorre não apenas do hábito mas também do uso da razão. Praticar
uma ação moral por hábito qualifica a ação como correta, mas, a ação
se torna moralmente perfeita e mais completa quando além do hábito
está presente a consciência das razões de praticar o ato como correto.
Como diz Aristóteles “por conseguinte, as ações são chamadas justas e
temperantes quando são tais como as que praticaria o homem justo ou
temperante; mas não é temperante o homem que as pratica, e sim o que
as pratica tal como o fazem os justos e temperantes” (EN II 4 1105b5-9).

9 Daqui por diante chamaremos a Ética à Nicômaco de EN.


10 Aqui percebemos um afastamento de Aristóteles em relação a Platão, na medida em que ele
nega que virtude exista de modo perfeito no plano das Ideias. A virtude está circunscrita ao
campo da atividade, não basta saber o que é virtude ou qual seria a ação virtuosa é preciso agir
com virtude.
26 Angela Couto Machado Fonseca

A virtude perfeita, assim, é o aprimoramento da virtude natural possi-


bilitado pela phronesis.
É neste ponto que a relação entre ética e política se coloca. Na
ausência de prudência (phronesis) a ética seria incapaz de constituir-se
como sabedoria prática capaz de portar o homem à sua própria excelên-
cia. Em outros termos, a virtude somente alcança seu grau máximo de
excelência se há a presença da prudência, e somente neste percurso de
aperfeiçoamento da virtude que o próprio homem atualiza sua essência
e se constitui como homem completo. Sem a phronesis o homem não
atingiria sua potencialidade natural e não se constituiria no animal polí-
tico necessário à vida política. Trata-se da função política da phronesis.11
Nesta relação da ética e política a partir da investigação da phrone-
sis, duas leituras se colocam. Uma primeira que, ao levar em considera-
ção a presença da phronesis no processo de aperfeiçoamento do homem
revela tanto sua participação no cumprimento da função tipicamente
humana, quanto o mundo da pluralidade de homens e circunstâncias
como seu lugar de ocorrência. Uma segunda leitura trata da percepção
da phronesis como o que atua no plano do contingente, e desse modo se
afasta da contemplação e do campo teórico, mas não se confunde com a
mera techne pois atua no campo do imprevisível (possibilitando sempre
a novidade).
Na primeira leitura o que se abre é a compreensão que para Aris-
tóteles o homem é sempre um projeto possível. Constituir-se como ho-
mem exige atender ao que é específico da natureza humana: atuar como
animal racional capaz de linguagem. É na ação concreta que o homem
se faz. Este fazer-se mediante a ação implica também no estar junto com
outros na polis, a realização da essência humana exige esta disposição
de estar com os outros. A racionalidade e a linguagem são usos gre-
gários e se colocam como instrumentos de aprimoramento do homem
quando os elevam para além do mero estar junto para atender a neces-
sidades. É no funcionamento da ação acompanhada de phronesis que a
11 Lembramos aqui o quanto a Ética parece estabelecer como um caminho para a Política no
pensamento aristotélico. O aperfeiçoamento do homem individual se coloca na perspectiva de
aperfeiçoamento do cidadão, parte integrante da comunidade política.
Vita Activa, ação e sua relação com a phronesis: uma leitura de Hannah Arendt e Aristóteles 27

atuação humana, a um só golpe, atende à função de aperfeiçoamento e


o faz na medida em que estabelece vida qualitativamente superior (vida
política). A phronesis remete ao contexto de que o agir somente é ade-
quado moralmente (de acordo com a virtude perfeita) e politicamente
(junto aos outros gerando vida qualificada) quando o homem apreende
o bem fenomenologicamente (phainomenon agathos). Ou seja, o bem
como aparece ao homem e inserido no tempo e circunstância.
Neste ponto entramos na segunda leitura: o plano da contingên-
cia no qual se move a phronesis. A prática do bem se limita a circuns-
tância concreta, isto por que não há um bem em si, mas de acordo com
cada situação exigindo um tipo de ação adequada que deve ser medida.
A realização da ação correta requer a prudência na deliberação.
Agir e agir de acordo, ganham no pensamento aristotélico um
relevo mais significativo do que o conhecimento daquilo que é correto.

Aristóteles manifesta a dupla face da virtude, que não pode


ser apenas definida como um certo tipo de disposição subjec-
tiva, mas também pela referência a um certo tipo de situação.
Ser virtuoso não é apenas atuar como necessário, mas com o
necessário, quando necessário e onde for necessário.12

É delineado um tipo ideal de herói, que tem como características


sua capacidade de medir, de agir adequadamente, de aplicar às circuns-
tâncias um cuidado na sua apreciação, quer dizer, um herói que se co-
loca pela noção de adequatio, de sabedoria prática, muito mais do que
pela sua inteligência13. A figura de Péricles é alçada, na EN, como o ideal
de homem prudente, que se destaca pela prudência (ação adequada no
momento justo) em seus feitos e não tanto pela sua sabedoria. Como
coloca Aristóteles, “pensamos que os homens desse tipo são prudentes

12 Tradução livre do original francês: “Aristote manifeste la double face de la vertu, qui ne se dé-
finit pas seulement pour un certain type de disposition subjective, mais aussi par la référence à
un certain type de situation. Être vertueux, ce n’est pás seulement agir comme Il faut, mais avec
qui Il faut, quand Il faut et ou Il faut”. AUBENQUE, P. La prudence chez Aristote. Paris: Presses
Universitaires de France, 2009, p. 64.
13 AUBENQUE, P. La prudence chez Aristote. Paris: Presses Universitaires de France, 2009.
28 Angela Couto Machado Fonseca

porque são capazes de considerar (theorein) o que é bom para eles mes-
mos e para os homens” (EN VI 5 1140b8ss). Este considerar (theorein)
não é teórico, mas sim uma consideração prática sobre o contingente.
Esta passagem assinala o tom presente na EN de que a phronesis está
presente na ação que fornece sentido ao contingente das relações hu-
manas. Exatamente por que se insere e atua no campo do que pode ser
sempre inovado e alterado. O homem prudente possui a sensibilidade
de medir cada ocasião e dentro dela agir de modo a estabelecer o que
deseja.
A phronesis, que se desenha como o saber sobre a ação concreta,
não está vinculada, portanto a uma concepção teórica ou formalista. O
agir não parte de um postulado teórico fixo que justifique a ação a par-
tir de fora de seu contexto específico. Também não se pode, exatamen-
te por conta da imprevisibilidade, aproximar a ação prudente ao saber
técnico. Este último conta com táticas que de antemão prescrevem um
receituário guiando as diferentes formas possíveis de se proceder.
Na phronesis o que está em jogo é a capacidade de compreensão,
que opera de forma prática, na ação. Prudente é aquele que apreende
dentro das circunstâncias todas suas informações (elementos, tempo,
agente, pessoas envolvidas) expondo à luz a própria ação em tudo que
nela está envolvido desde sua causa até sua finalidade.
A phronesis, como este saber considerativo, não é técnica e nem
tampouco contemplação teórica, é a capacidade de, junto aos demais,
estabelecer relações pautadas pela avaliação e pela força da ação. Seu
lugar se inscreve no desenrolar da vida humana: entendendo por vida
humana a vida qualificada alcançada pelo homem que delibera e esta-
belece como viver mediante sua práxis. Seria, enfim, considerar a ins-
crição da ação do homem num plano de contingência, como ‘aquilo que
pode ser ou pode não ser’, o que indica um sentido criativo da ação, não
se trata de um horizonte de fabricação, mas de criação em meio ao jogo
das circunstâncias e seus termos. Como nos lembra Aubenque: “Num
mundo perfeitamente transparente à ciência, quer dizer onde ele seria
estabelecido sem que nada pudesse ser de outro modo do que é, não
Vita Activa, ação e sua relação com a phronesis: uma leitura de Hannah Arendt e Aristóteles 29

haveria nenhum lugar para a arte, nem, de uma maneira geral, para a
Ação humana”14.

3. Vita Activa e Ação.

Como já exposto, na abertura de A Condição Humana, o pen-


samento de Hannah Arendt se ocupa em compreender os motivos pe-
los quais a vita activa, no curso da tradição, recebeu avaliação inferior
em face da avaliação da vida contemplativa e seu ideal teórico. Arendt
pontua algumas ocasiões que abriram espaço para este desvirtuamento
da noção de vita activa, que estriam localizados na separação entre fi-
lósofo e pólis, albergados no pensamento platônico e na tradição cristã
medieval. Tais momentos permitiram a aproximação da contemplação
com o puro bem e a remissão de toda e qualquer esfera da vita activa,
enquanto inquietute, como deformações daquela forma pura e superior
de bem, “a expressão vita activa perdeu o seu significado especificamen-
te político e passou a denotar todo tipo de engajamento ativo nas coisas
desse mundo”15. Os acontecimentos pontuados não somente produzi-
ram uma diferenciação hierárquica passível de questionamento para a
autora como também enviaram para um mesmo campo de significação
modos diferentes entre si da vita activa: ação, labor e trabalho.
Procuraremos, em primeiro lugar, expor alguns traços da defini-
ção de ação e seu papel na reflexão arendtiana. Desde logo assinalamos
que a concepção de ação para Arendt supera em muito a breve exposição
que aqui será feita. O paralelo entre ação e linguagem, bem como as re-
lações entre ação e liberdade não serão trabalhados. O que pretendemos
expor, e este será nosso segundo passo, são as possíveis proximidades do
evento da ação em Arendt e o estatuto da phronesis de Aristóteles. Por
fim, o intuito será de perceber como as formas de hierarquia pensadas
por estes dois autores são similares em algumas distinções e distintas
14 AUBENQUE, P. Op. Cit. p. 68. Tradução livre do francês: “dans un monde parfaitement tras-
nparent à la science, c’est-à-dire ou Il serait établi que rien ne peut être autrement qu’il n’est, Il
n’y aurait aucune place pour l’art, ni, d’une façon Generale, pour l’action humaine”.
15 ARENDT, H. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987, p.22.
30 Angela Couto Machado Fonseca

em outras: o que leva ao questionamento de quanto as concepções filo-


sóficas presentes na análise de cada autor, mais do que suas definições
pontuais, alimentam o pertencimento de Aristóteles a uma tradição de
desabilitação da vita activa no entender de Hannah Arendt.
No que se refere a formulação de Arendt sobre a ação vemos que
sua primeira ambientação se apresenta no enquadramento desta como
uma das condições humanas referentes a vita activa. Condição huma-
na esta significativamente diversa das outras duas condições humanas
da vita activa: labor e trabalho. O labor e o trabalho estão limitados
aos exercícios que atendem as necessidades vitais e de manutenção
da vida, não ultrapassando o espaço do atendimento das ‘futilidades’
da vida privada incapazes de inserir de modo pleno a existência hu-
mana no espaço de uma vida pública (política). Cabe a ação esta fun-
ção de superação daquilo que é básico para a existência, a partir de
sua capacidade de portar a existência para o plano político dentro do
qual os homens se constituem como livres e pares uns dos outros. A
relação da ação com a pluralidade expressa este modo de ser distin-
tivo e hierarquicamente superior da mesma. A pluralidade explicita
antes de mais nada que a ação se dá entre homens nunca repetíveis
entre si. Esta passagem pronuncia um deslocamento de uma realidade
material, de coisas, para a realidade humana como o lugar da ação.
Refere a uma primeira percepção do homem como essencialmente
distinto das coisas (que são sempre repetíveis). No ambiente humano
os homens revelam uma dupla forma de estarem juntos e que justifica
este estarem juntos. São iguais e diferentes. Iguais por que partilham
de comunicação e esta comunicação é dividida num mundo do qual
todos possuem expectativas e produzem planos para o futuro. Dife-
rentes exatamente por que precisam do veículo da comunicação para
entenderem-se, para comunicarem a si próprios e sua irrepetibilidade:
“a pluralidade humana é a paradoxal pluralidade de seres singulares”16.
O homem é uma singularidade não copiável, daí a imprevisibilidade
e a contingência como características do comportamento humano. É

16 ARENDT, H. Op. cit, p. 189


Vita Activa, ação e sua relação com a phronesis: uma leitura de Hannah Arendt e Aristóteles 31

no interior da acidentalidade do comportamento humano que a ação


ganha a dignidade de não ser um mero fazer, que pode ser sempre
repetido ou uma técnica que conta com referências prévias e fixas.
Se o lugar da ação é este lugar entre homens, que obriga a gerenciar a
acidentalidade do comportamento humano, é neste espaço de abertu-
ra e indeterminação que a ação envolve a liberdade (aspecto este que
envolve igual condição de agir e ser livre). Nesta complexa rede de sig-
nificações a ação figura como um acontecimento tipicamente político
não apenas por tratar da pluralidade como vida coletiva, como o estar
junto, mas, sobretudo, por que este estar junto se desenrola sobre um
terreno escorregadio da imprevisibilidade de seres iguais e diferentes.
A ação deve ser o olho que vê tais circunstâncias e atua nelas. Com isto
os feitos políticos são únicos, pois não consistem em repetições já que
não lidam com o mundo das coisas. O mundo da política é o mundo
humano, marcado pelo homem capaz de ação e linguagem, que com
isto inscreve sua existência para além da necessidade e da utilidade. “A
ação e o discurso são os modos pelos quais os seres humanos se mani-
festam uns aos outros, não como meros objetos físicos, mas enquanto
homens”17.
A ação e a linguagem como traços da existência política, são
simbolizadas por Arendt como um segundo nascimento, aquele que ao
mesmo tempo supera e confirma a existência meramente física condu-
zida pelas exigências vitais. O segundo nascimento importa na vida tipi-
camente humana (política) e conduz ao paralelo entre ação e natalidade,
concebido pela autora.

O labor e o trabalho, bem como a ação, têm também raízes


na natalidade, na medida em que sua tarefa é produzir e pre-
servar o mundo para o constante influxo de recém-chegados
que vêm a este mundo na qualidade de estranhos, além de
prevê-los e levá-los em conta. Não obstante, das três ativida-
des, a ação é a mais intimamente relacionada com a condição

17 ARENDT, H. Op. Cit. p. 189.


32 Angela Couto Machado Fonseca

humana da natalidade; o novo começo inerente a cada nas-


cimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o
recém-chegado possui a capacidade de iniciar algo novo, isto
é, de agir18.

Na aproximação com a natalidade a ação apresenta sua face de


inovação, de poder sempre fazer-se diferente do que foi antes. A natali-
dade objetivamente considerada como o surgimento de um novo ser no
mundo, carrega nas suas entrelinhas a condição de agir e de inovar que
todo novo nascimento assinala. Ação e natalidade possuem em comum
a força de um novo começo, exprimem o movimento e sua imprevisi-
bilidde. Na contramão de tudo o que pode ser previsto “o novo sempre
acontece à revelia da esmagadora força das leis estatísticas e de sua pro-
babilidade que, para fins práticos e cotidianos, equivale à certeza; assim,
o novo sempre surge sob o disfarce do milagre”19. A ação desenha sua
envergadura não no campo de um mundo regido por determinações
naturais que denotariam ao conhecimento teórico de suas causas uma
superioridade. A ação inscreve os caminhos do próprio mundo huma-
no, faz surgir o mundo humano, mundo este que é pleno devir, pleno
gerar e criar. Devir pautado pela radical novidade de toda ação no es-
paço plural que com a ação e o discurso abre a liberdade e a igualdade
para a existência humana.

Se alguém quiser ver e conhecer o mundo tal como ele é ‘real-


mente’, só poderá fazê-lo se entender o mundo como algo
comum a muitos, que está entre eles, separando-os e unin-
do-os20.

O mundo humano, enquanto mundo da política é radicalmente


práxis. O novo parece constituir-se como um antídoto contra interpre-
tações metafísicas. A realidade humana está envolta na ação enquanto
18 ARENDT, H. Op. Cit. p. 17.
19 ARENDT, H. Op. Cit. p. 191.
20 ARENDT, H. O que é Política. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. p. 60.
Vita Activa, ação e sua relação com a phronesis: uma leitura de Hannah Arendt e Aristóteles 33

esta faz da realidade humana o mundo que decorre da performance hu-


mana diante das circunstâncias e oportunidades. Há uma diferença com
relação a concepção de realidade em si mesma, possuidora de um senti-
do já posto independente do agente humano. O caráter da inovação, do
poder ser sempre diferente exprime o vir-a-ser como fundo de validade
do mundo constituído pelo homem.
Após estas rápidas considerações sobre a concepção de ação no
pensamento político de Arendt, é possível perceber um certo grau de in-
fluência ou pelo menos de debate entre seu pensamento e o aristotélico.
Alguns elementos bastante explícitos mostram esta relação: o homem
interpretado como um ser político e a política como elevação que supe-
ra a mera vida de necessidades e utilidades. Mas se estas aproximações
são possíveis elas fornecem material ainda mais significativo para deba-
te se mergulhamos um pouco nos requisitos do que tornam o homem
um ser político e em relação a que - em qual hierarquia se desenha – a
vida política é elevação para cada um destes pensadores. É no ambiente
da consideração da ação que se move nossa leitura.
Se tomamos o pensamento aristotélico o homem somente é ani-
mal político na medida em que é racional e capaz de linguagem. Mas
tais capacidades, no interior de seu pensamento político, somente valem
enquanto condições para a efetivação concreta do homem como animal
político. Não basta pensar racionalmente e conhecer a linguagem, é pre-
ciso colocar em funcionamento a razão e usar a linguagem na prática.
A phronesis retira a ação do campo do mero hábito e explicita a práxis
como forma de ver considerativo guiado pela capacidade de medir as
circunstâncias, erigindo o espaço político e relacional dos homens que
atuam no contingente de modo a poder sempre medir em cada caso e
inovar. A proposição de Aristóteles é a de que a vida humana somente
pode ser entendida, em sua ocorrência, como práxis. Retomando o que
extraímos da noção de phronesis é possível pontuar que: 1. A presença
da phronesis é uma das condições para o homem se fazer animal polí-
tico (o que se faz mediante ação prudente). 2. A phronesis é um saber
prático – da práxis – qua atua no campo do que é contingente e imprevi-
34 Angela Couto Machado Fonseca

sível. Daí sua capacidade de inovação. 3) A phronesis torna a ação trans-


parente desde sua causa até sua finalidade e nisto insere o homem num
viver relacional junto aos demais (expondo o agente e os que participam
das circunstâncias concretas que envolvem a ação).
Na filosofia arendtiana a ação se revela como o que indica o nas-
cimento da existência humana como existência política. A ação é por si
só a condição de estar em meio aos outros, a condição da pluralidade. É
no agir que o homem se expressa e se revela ao mesmo passo que estabe-
lece o mundo de suas relações e escolhas. O homem se faz pela ação, se
concretiza no seu exercício e estabelece o mundo humano como espaço
privilegiado da práxis e da política. Os pontos que podem ser retirados
são 1) a ação , que demarca o segundo nascimento do homem, afirma
sua existência como política, aquela que se dá como confirmação e su-
peração da existência física com suas exigências e limitações. Somente
a ação, que se dá como resposta às oportunidades e circunstâncias e a
possibilidade de sua expressão e revelação mediante a linguagem que
expõe o agente e suas medições, faz do homem um ser entre outros
(igual e diferente). 2) A ação opera como radical inovação e traz consigo
a possibilidade do imprevisível. A contingência é sua marca. A práxis se
desenrola na acidentalidade.
Todos estes pontos, guardadas as diferenças da moldura especí-
fica dentro da qual se desenha o pensamento da cada autor, temos na
ação (na práxis) o campo de efetivação humana que é efetivação políti-
ca, inserida numa compreensão de que o agir é estar entre os outros e é
inovação numa economia da contingência.
No que diz respeito a vida política como elevação, isto supõe
uma hierarquia e neste aspecto vemos que ambos concordam que a vida
política conduzida pela práxis é superior a vida da necessidade guiada
pela poiesis. A poiesis em ambos casos é insuficiente, seja em Aristóteles
para o alcance da vida qualificada21, seja para Arendt para a vida política
da liberdade e igualdade na ação.
De todo modo, se em ambos pensamentos há uma superioridade

21 Aristóteles com todas as letras expõe n’A Política (1254a): “a vida é ação, não produção”.
Vita Activa, ação e sua relação com a phronesis: uma leitura de Hannah Arendt e Aristóteles 35

da práxis em face da poiesis, Aristóteles ainda estabelece um outro de-


grau em sua construção hierárquica: acima das ciências práticas esta-
riam as ciências teoréticas, os saberes da Sophia e da episteme. Saberes
estes que se dirigem ao Ser e a sua permanência. A realidade da práxis,
assim, é diversa daquela alcançada pelo saber teórico. Esta diferenciação
parece justificar a visão de Arendt sobre Aristóteles como filósofo que
desde a tradição platônica expõe uma preferência da contemplação em
face da ação.
Para Hannah Arendt este outro degrau não se coloca. As ativida-
des teóricas, pensar, querer e julgar não se estabelecem num espaço de
diferenciação valorativa.22 O mundo da práxis como mundo da aparên-
cia não estrutura a aparência como forma diversa do Ser e nem mesmo
se coloca num plano diferenciado deste último. Ser e aparecer não se
distinguem23 o que impossibilita em seu pensamento um grau de dife-
rença qualitativa entre práxis e teoria.
De acordo com o que anunciamos antes, a diferença hierárquica
desenhada nos pensamentos de Arendt e Aristóteles, por maior com-
plexidade que envolvam, denotam qual o pertencimento específico de
cada uma destas filosofias. Aristóteles responde ao paradigma típico da
antiguidade clássica, voltada ao pensamento fundamentado pelo ser.
Hannah Arendt não comunga daquilo que é típico do pensamento mo-
derno, uma metafísica da subjetividade e não se enquadra facilmente
seu pensamento em nenhuma escola. De toda forma, muitas filosofias
modernas se estabelecem em debate que questiona e põe em xeque as
fundamentações metafísicas, assinalando a presença apenas da aparên-
cia e do puro devir.24
22 Neste aspecto é interessante lembrar que Arendt rejeita que opere, assim como Marx e Niet-
zsche na filosofia moderna, uma simples inversão desta divisão hierárquica presente no pensa-
mento antigo que encontrou continuidade no pensamento medieval.
23 A este respeito conferir as análises específicas que articulam esta indiferenciação levando em
consideração o que Arendt formula em A Vida do Espírito no artigo de ASSY, B. “Hannah
Arendt e a dignidade da aparência”. In: André Duarte, Christina Lopreato, Marion Brephol de
Magalhães (orgs.). A banalização da violência: a atualidade do pensamento de Hannah Arendt.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.
24 O pensamento de Heidegger apresenta-se como forte influência na medida em que coloca de
modo explícito a paralelização do ser com o aparecer. Antes de Heidegger, embora Hannah
36 Angela Couto Machado Fonseca

Apesar da distinção final entre práxis em face da episteme e da Sophia,


que para Aristóteles implica na validade de um fundo metafísico, o campo
da práxis permanece sempre como o único legitimado para a concretização
da vida humana dentro do mundo. Cada grau de saber corresponde a cada
campo de realidade, não podendo o conhecimento do ser bastar para a rea-
lização da vida humana: que depende essencialmente da práxis.

A paralelização com o conhecimento do Ser enquanto tal não


é conveniente, enquanto se trata unicamente da estrutura da
prática humana e do conhecimento ‘prático’. Seja como co-
nhecimento técnico, seja como conhecimento político-prá-
tico, o Bem permanece restrito à prática humana. A razão
‘prática’ é totalmente dissociada de uma teleologia universal.
Para o isolamento da filosofia prática por Aristóteles, o ponto
decisivo consiste em que aquilo que ocorre como ‘bem’, do
ponto de vista teórico, e que significa a imutabilidade do Ser,
é algo distinto do Oportuno, a que está voltada a racionalida-
de prática do ser humano.25

Agir é uma forma de atuar inventivamente e artisticamente numa


realidade constituída de múltiplos elementos e circunstâncias. A Ação
importa, assim, em um campo diverso daquele do conhecimento cien-
tífico (épistemé), porque ela apresenta este caráter de trabalho sobre
e com os elementos da realidade. A phronesis aristotélica e a Ação de
Hannah Arendt, descontados seus contextos obviamente diversos e um
plano conceitual também impossível de ser entrecruzado sem muito
cuidado, apontam para essa dimensão de ser no mundo em meio a ten-
são do mundo e poder ter a sensibilidade de criar neste mundo as con-
dições humanas éticas e políticas.

Arendt houvesse designado a filosofia de Nietzsche como mera inversão do sistema platônico
(na esteira de Heidegger), este autor invalida a dualidade ser e aparecer e rejeita a imposição
totalitária e arbitrária das interpretações metafísicas. Retomando o pensamento de Heráclito,
Nietzsche aposta na radicalidade de um devir sem fundo e de pura criação.
25 GADAMER, Hans-Georg. A Idéia do Bem entre Platão e Aristóteles. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2009, p. 156.
Vita Activa, ação e sua relação com a phronesis: uma leitura de Hannah Arendt e Aristóteles 37

4. Referências Bibliográficas.

ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universita-


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__________. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Editora Perspectiva


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39

LÓGICA, REALIDADE E HISTÓRIA:


REFLEXÕES SOBRE O DIREITO E OS DIREITOS
HUMANOS A PARTIR DA FILOSOFIA DO
DIREITO DE HEGEL1

Felipe Magalhães Bambirra2

I. Introdução

Hegel apresenta três importantes reflexões no prefácio (Vorrede)


da Filosofia do Direito, uma de suas obras mais relevantes para a com-
preensão do fenômeno do direito e estado naquele autor. Antes, entre-
tanto, de verificar esses três pontos levantados pelo filósofo – relativas à
lógica, ao real, e à história – é relevante um breve estudo do instigante
prefácio.
O prefácio da Filosofia do Direito foi um dos textos mais polê-
micos de Hegel, cuja exegese promoveu tomadas de posições radicais
a respeito da situação política do autor. Chegou-se a sustentar ser He-

1 Reflexões suscitadas pelo estudo do prefácio da obra Filosofia do Direito, de G. W. F. Hegel,


para apresentação, como aluno de doutoramento, nos Seminários Hegelianos Avançados, sob
o comando do Prof. Dr. Joaquim Carlos Salgado (UFMG). Foram utilizadas as seguintes ver-
sões do livro, cujo nome original é Grundlinien der Philosophie des Rechts oder Naturrecht und
Staatswissenschaft im Grundrisse: HEGEL, G. W. F. Linhas fundamentais da filosofia do direito,
ou, Direito natural e ciência do estado em compêndio. Trad. Paulo Meneses. São Leopoldo:
UNISINOS, 2010; HEGEL, G. W. F. Prefácios. Trad. Manuel J. Carmo Ferreira. [s.l.]: Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 1999.
2 Mestre e Doutor em Direito (UFMG). Pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação In-
terdisciplinar em Direitos Humanos (UFG). Professor na Universidade Federal de Goiás e
Faculdades Alves Faria (GO).
40 Felipe Magalhães Bambirra

gel o filósofo da Restauração, o que, se fosse verdadeiro, abriria – como


efetivamente abriu – ao menos duas possibilidades. A primeira, mais
grave, seria considerar comprometida e minada a importância dos tex-
tos políticos da maturidade (como é a Filosofia do Direito), pois não
passariam de panfletagem política a justificar um movimento conser-
vador que se alastrava pela Europa. Nesse cenário, teriam valor apenas
as obras estritamente filosóficas, nas quais a política não é colocada em
primeiro plano, como a Fenomenologia do Espírito, a Ciência da Lógica
e a Enciclopédia das Ciências Filosóficas, ou, tratando-se de política, os
escritos do chamado Jovem Hegel3, retomados pela autoproclamada es-
querda hegeliana e exaltados pelo marxismo. A segunda possibilidade
seria cindir a interpretação da obra hegeliana entre um Hegel exotérico,
que publicava não exatamente o que pensava e considerava correto, de-
vido a constante ameaça de censura e represálias, e um Hegel esotérico,
a pregar apenas nas salas de aula a sua verdadeira doutrina.
Ambas as opções acima aventadas tem como resultado a tergi-
versação filosófica. No conturbado contexto político em que foi escrita
e que se seguiu à Filosofia do Direito, alguns fatos puderam reforçar essa
visão: a pressão e o controle político de professores e alunos havia au-
mentado nos últimos anos, levando à prisão, inclusive, de alguns alunos
próximos a Hegel; Hegel ataca, no prefácio, um adversário da Restau-
ração, Sr. Fries, poucos anos depois preso e destituído de sua função de
professor4; afirmou-se que Hegel inverteu a ordem de apresentação dos
poderes do Estado conforme apresentado na Enciclopédia das Ciências
Filosóficas, dando maior proeminência ao Pode Principesco5, ou seja, à
3 O termo Jovem Hegel refere-se, em geral, ao período até a publicação da Fenomenologia do
Espírito (1807), quando Hegel residia em Jena. Um dos importantes escritos políticos é a um
comentário à Constituição da Alemanha [Die Verfassung Deutschlands], ainda sem tradução
para o Português. V. ROSENZWEIG, Franz. Hegel e o Estado. Trad. Ricardo Timm de Souza.
São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 117-34.
4 V. FERREIRA, Manuel J. Carmo, Apresentação [do prefácio da Filosofia do Direito], in: HE-
GEL, Prefácios, cit., p. 175-85.
5 V. PEPERZAK, Adriaan Theodor. Modern Freedom: Hegel’s Legal, Moral, and Political Philos-
ophy (Studies in German Idealism), Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 2001; LABAR-
RIÈRE, Pierre-Jean; JARCZYK, Gwendoline. Le syllogisme du pouvoir – y a-t-il une démocratie
hegelienne ? Paris : Aubier, 1989; KERVÉGAN, Jean-François. Hegel e o Hegelianismo. Trad.
Mariana Paolozzi Sérvulo da Cunha. São Paulo: Loyola, 2008.
Lógica, realidade e história: reflexões sobre o Direito e os Direitos Humanos a partir da Filosofia 41
do Direito de Hegel

monarquia, em detrimento de uma democracia reverenciada pela Revo-


lução Francesa; poucos anos depois do falecimento de Hegel, foram pu-
blicadas as anotações de seus alunos, e, evidentemente, com o conteúdo
muitas vezes diverso do contido no livro6; e um aluno, Rudolf Haym,
publicou uma biografia de Hegel extremamente tendenciosa7.
Apesar dos desvios que tal visão unilateral provocou, os estudos
hegelianos, a partir da segunda metade do século XIX e especialmente
nos séculos XX e XXI, retomaram as bases conceituais do pensamento
de Hegel, e foram capazes de demonstrar como a pressuposição da ima-
gem de Filósofo do Estado Prussiano e da Restauração fundava-se em
análises contingenciais, e, antes de buscar compreender a obra no con-
texto do todo8, havia-se selecionado arbitrariamente aspectos capazes
de corroborar a infame tese.
Como salienta Ferreira, a tradição francesa de J. Hyppolite, J.
d’Hondt, E. Weil e, acrescentamos nós, F. Kervégan e P-J. Labarrière,
reabilitaram Hegel da condição de defensor do Estado prussiano e pas-
saram a sublinhar a preocupação com o valor da liberdade, voltando-se
preferencialmente à filosofia da história9. Também os estudos anglo-sa-
xões despontaram com pesquisas produtivas e vivas, a exemplo de T.
6 Concordamos com a posição de PEPERZAK: é um grande risco dar mais crédito aos co-
mentários (Zusätze) feitos pelos alunos à obra de Hegel do que seus próprios escritos, cui-
dadosamente revistos, sob o argumento de que Hegel seria muito mais conservador ou res-
taurador, apoiando o regime, em seus escritos do que nas aulas, momento que desfrutaria de
maior liberdade crítica. Mais grave é a questão tendo em vista de que se trata, várias vezes,
de interpretações de passagens difíceis e controversas do pensamento hegeliano. Um dos
problemas nos comentários à Enciclopédia, por exemplo, foi a junção de vários escritos de
alunos feitos em momentos diferentes, tendo em vista a Enciclopédia de 1917, mas ajuntados
ao texto da Enciclopédia de 1830, que possui várias modificações, por exemplo. Uma vez que
os Arquivos Hegel dispõem, atualmente, de uma extensa gama de notas e comentários, é pos-
sível selecionar aqueles que interessam em cada passagem, comparando-os. Nada obstante a
importância desses comentários e anotações, o texto principal, cuja autorização foi concedida
pelo autor, deve ser o principal guia [PEPERZAK, Modern Freedom, cit., p. 24-5].
7 “Raramente é a biografia de um filósofo obra de uma tal paixão política [...] uma obra plena de
profundidade de visão e apaixonada unilateralidade de julgamento [...] disputava-se mais em
torno às conclusões não desenvolvidas por HEGEL do que a respeito dos postulados de base”,
ROSENZWEIG, Hegel e o Estado, cit., p. 51 et seq.
8 Afinal, como Hegel deixa claro no prefácio, a Filosofia do Direito é uma exposição detalhada
do que já está contido no Livro III da Enciclopédia das Ciências Filosóficas, no capítulo do
Espírito Objetivo.
9 FERREIRA, Apresentação..., cit., in: HEGEL, Prefácios, op. cit., p. 182.
42 Felipe Magalhães Bambirra

M. Knox, S. Hook, Z. Pelczinski e A. Peperzak. Em relação à tradição


Alemã,

o ensaio igualmente muito breve, de J. Ritter, Hegel e a re-


volução francesa, descobrindo no pensamento hegeliano
dimensões essenciais da problemática actual, na medida em
que a sua filosofia política reflecte as tensões vitais de uma
mutação de regime económico, social e político, ao mesmo
tempo que actua numa tradição ético-cultural de fundo cris-
tão, contribuiu da forma mais eficaz para a difusão da tese do
liberalismo de Hegel e provocou toda uma série de trabalhos
que apresentam o capítulo mais fecundo dos estudos hege-
lianos na matéria (M. Riedel, G. Rohmoser, H.-K. Iltingm R.
Bubner e outros)10.

Esse foi o contexto em que veio à lume a Filosofia do Direito.


Por considerar temerário simplesmente olvidá-lo, buscamos, nessa in-
trodução, esboçar brevemente as repercussões e polêmicas de índole
política que cercam a obra, indicando uma bibliografia inicial para os
que interessarem pesquisar mais a fundo as questões. Nada obstante,
como salientado, nosso objetivo é debruçar sobre outras questões, às
vezes não menos polêmicas, mas que apenas tangenciam essa sorte de
problemas.

II. A Lógica Clássica e a Filosofia do Direito

O que fazer face à insuficiência da Lógica Clássica à Filosofia? Já


no início do prefácio, Hegel afirma que a filosofia encontra-se numa
situação de “vergonhosa decadência”. O reconhecimento, por Kant, da
intangibilidade da coisa-em-si, levou os filósofos de seu tempo à con-
clusão da insuficiência das “formas e regras da antiga lógica, do definir,
classificar e deduzir [...] e então essas regras foram rejeitadas como ca-
deias apenas”, ou seja, a lógica formal, constitutiva das categorias que
10 Loc. cit.
Lógica, realidade e história: reflexões sobre o Direito e os Direitos Humanos a partir da Filosofia 43
do Direito de Hegel

presidem o trabalho do entendimento, serve somente para o aprisiona-


mento do livre e verdadeiro pensar.
A resposta que os filósofos ofereceram a esse problema colocado
por Kant é o que mais preocupa Hegel, que inicia uma incisiva crítica
àqueles inebriados pelos encantos dionisíacos do Romantismo. Por isso,
afirma ironicamente Hegel que esses filósofos mais do que reconhecer,
“sentiram” bem o problema, e para se livrarem dessas amarras da lógica,
puseram-se a “falar arbitrariamente a partir do coração, da imaginação,
da intuição intelectual”. Porém, mesmo nesses discursos, o pathos que os
acomete exige, ainda que inconscientemente, que se proceda segundo
exatamente “os métodos desprezados da dedução comum e do raciocí-
nio argüente”11. As moiras desenrolam, inexoravelmente, o fio da curta
vida dessa plêiade de filósofos: seu pathos transmuda-se em hybris, e
Átropos sela definitivamente o seu trágico destino.
Vejamos a que conduz essa reflexão no campo da Filosofia do
Direito, pois levaria a não se pautar por essa lógica , e, afirmam alguns,
nem por nenhuma outra, posto que inexistente. Estaria o mundo da
cultura, diferentemente da natureza, “abandonado ao acaso e ao arbi-
trário”12?
Salienta Hegel que se considera, erroneamente, que a forma seria
algo de exterior e indiferente à Coisa, e, ao mesmo tempo, costuma-se
situar a tarefa do escritor e especialmente de quem escreve sobre filo-
sofia em “descobrir verdades, dizer verdades, difundir verdades e con-
ceitos corretos”. Entretanto, caso observemos cuidadosamente como é
realizada tal tarefa, concluiremos, como acidamente afirma Hegel, que
não passa da “mesma velha sopa que é sempre de novo requentada e dis-
tribuída para todas as partes”13. As mesmas verdades que são difundidas
por uma parte, “como se a sopa requentada trouxesse verdades novas e
não ouvidas”, tem o seu contrário convictamente afirmado por outra,
e, diante disso, indaga Hegel: “Ora o que nesta massa de verdades não

11 HEGEL, Prefácios, cit., p. 186.


12 HEGEL, Prefácios, cit., p. 189.
13 HEGEL, Prefácios, cit., p. 186.
44 Felipe Magalhães Bambirra

seria nem velho nem novo, mas permanente, como se deve isto destacar
destas considerações errantes sem forma – como distinguir-se e afir-
mar-se de outro modo a não ser através da ciência?14”
O problema agrava-se quando se tem em conta instituições polí-
ticas, como o direito, a eticidade e o Estado, pois “a verdade é justamen-
te tão antiga como se expõe e conhece abertamente nas leis públicas, na
moral pública e na religião”. Uma vez que o homem não se satisfaz de
conhecer essa verdade de maneira imediata, como concebê-la de forma
racional, para o seu conteúdo já em-si racional, de modo que apareça
justificado ao pensar livre, que não se contenta com o meramente dado
– “quer seja apoiado pela autoridade positiva exterior do Estado ou do
consenso dos homens, ou pela autoridade do sentimento interior do co-
ração e pelo imediato testemunho concordante do espírito”15?
Hegel identifica duas atitudes ou condutas simples do espírito.
A primeira consiste em “ater-se à convicção plenamente confiante na
verdade publicamente bem conhecida e construir sobre esta base firme
o seu modo de agir e a posição firme na vida”. A partir dessa conduta
simples, indaga-se exatamente em como identificar, com clareza, o que
é universalmente reconhecido e válido diante de opiniões infinitamente
diversas e divergentes, e esse embaraço o filósofo o considera uma posi-
ção de seriedade justa e verdadeira diante da Coisa. Há, porém, uma se-
gunda conduta simplória que o espírito pode adotar. Trata-se daqueles
que se vangloriam diante do embaraço, “enxergam a floresta antes das
árvores”, e, a partir disso, colocam-se contra aquilo que é universalmen-
te reconhecido como válido, contra a substância do direito e do ético16.
Porém, o embaraço e a dificuldade foram criados por eles próprios, e é
reveladora de que querem aquilo que é diferente do universal.
Essa última hipótese é, ainda, uma conduta simples do espírito, se de
fato não se trata da “vaidade e da particularidade do opinar e do ser”, e, assim,
conseqüentemente, continua-se na substancialidade do direito e do ético.

14 HEGEL, Prefácios, cit., p. 187.


15 HEGEL, Prefácios, cit., p. 187.
16 HEGEL, Prefácios, cit., p. 187.
Lógica, realidade e história: reflexões sobre o Direito e os Direitos Humanos a partir da Filosofia 45
do Direito de Hegel

Para Hegel, porém, o maior problema reside naquele homem que pensa, e
que procura no seu pensar o fundamento da sua liberdade e eticidade:

Este direito, tão alto, tão divino que é [de pensar], converte-
se, contudo, em injustiça quando só isto é considerado como
pensar, e o pensar então apenas se sabe livre na medida em
que se afasta do universal-reconhecido e válido e em que
soube inventar para si algo de particular17.

A partir desse ponto, o filósofo constata como, desde o seu tem-


po, a liberdade de pensar é falsamente identificada com a necessidade
de divergir ou mesmo hostilizar contra tudo o que é publicamente re-
conhecido, e uma “filosofia do Estado parece ter essencialmente a tarefa
de inventar e oferecer ainda mais uma teoria e, precisamente, uma teoria
nova e particular”:

Quando se vê esta representação e o impulso que lhe é con-


forme, dever-se-ia supor como se no mundo não tivesse ha-
vido ainda nenhum Estado nem nenhuma constituição po-
lítica, nem existisse presentemente, mas como se agora – e
este agora perdura sempre – se tivesse de começar tudo do
princípio e o mundo ético tivesse unicamente esperado por
semelhante invenção, aprofundamento e fundamentação ac-
tuais18.

Hegel empreende uma crítica visceral, comparando o pensamen-


to acerca do mundo ético e do mundo natural. Afinal, reconhece-se fa-
cilmente a racionalidade existente na natureza, e a possibilidade da filo-
sofia ou da ciência conhecê-la como ela é, e que a razão deve examiná-la
na sua efetividade, e não nos acidentes e contigencialidades que afloram
em sua superfície. Em relação ao mundo da cultura ocorre, porém, o
contrário. Quando não é concebido como se fosse sem racionalidade

17 HEGEL, Prefácios, cit., p. 187.


18 HEGEL, Prefácios, cit., p. 188.
46 Felipe Magalhães Bambirra

(para evitar o termo “irracional”), ou seja, movido pela pura contingen-


cialidade, coloca-se toda a sua racionalidade na particularidade do pen-
sar subjetivo, solipsista, e todos tem tanta certeza de possuir essa ver-
dade como de que são capazes de ficarem de pé e andar19. Ainda nesse
ponto, salienta Hegel que, na medida em que todos tem conhecimento
do Estado, pelo menos porque vivem a sua efetividade, é à filosofia que
se dirige o desprezo e o descrédito:

O pior do desprezo é que, conforme se disse, todo aquele que


está de pé e anda tem a convicção de estar em condições de
saber contestar e disputar sobre a filosofia em geral. A nenhu-
ma outra arte ou ciência se manifesta este último desprezo de
supor que ela se possui de modo directo20.

É a partir dessa total ignorância em relação à forma, à lógica e, em


suma, à filosofia como ciência rigorosa, que Hegel toma como exemplos
o Sr. Fries e outros filósofos menores de sua época. Foi essa filosofia que
fez declarações como a seguinte: “o verdadeiro mesmo não poderia ser
conhecido [...] este seria aquilo que cada um deixa erger-se do seu cora-
ção, ânimo e entusiasmo sobre os objetos éticos, especialmente sobre o
Estado, o governo e a constituição”21. Passa-se a exaltar, então, a juven-
tude, pois se o saber é captado de modo imediato, residiria na juventude
o saber intuído, pois os adultos estariam conformados com a tradição,
mergulhados no imenso mar da inverdade22.

19 HEGEL, Prefácios, cit., p. 188-9.


20 HEGEL, Prefácios, cit., p. 190-1.
21 HEGEL, Prefácios, cit., p. 192.
22 A crítica a Fries, um adversário do regime restaurador na Prússia, é uma das causas de se iden-
tificar Hegel como o Filósofo do Estado Prussiano. Entretanto, a crítica hegeliana mantem-se
apenas em relação à real superficialidade do discurso, veja: “no povo onde domine verdadeiro
espírito comum, para todos os assuntos da causa pública, a vida viria de baixo, a partir do povo,
a todas as obras singulares de educação popular e do serviço do povo dedicar-se-iam associa-
ções vivas, indissoluvelmente ligadas pela sagrada cadeia da amizade”, HEGEL, Prefácios, cit.,
p. 193. O texto exato de Fries, pronunciado a um grande número de estudantes reunidos em 18
de outubro de 1817 na Festa de Wartburg, é o seguinte: “Mas se o espírito de um povo houver
prosperado até ao ponto de ser um autêntico espírito-comum, em um tal povo reinariam a
justiça, o pudor e o amor à pátria, o espírito de sacrifício, mas, nesse povo, é de baixo, do povo,
Lógica, realidade e história: reflexões sobre o Direito e os Direitos Humanos a partir da Filosofia 47
do Direito de Hegel

Hegel, ao prosseguir a sua crítica a esta relativização do que seria


a “filosofia”, cujo rigor se dissolveria no “caldo do ‘coração, da amizade e
do entusiasmo’”, sustenta que esta exerceria apenas a função de remeter
o mundo ético “à contingência subjectiva da opinião e do arbítrio”:

É esse o sentido principal da superficialidade: colocar a ciên-


cia não no desenvolvimento do pensamento e do conceito,
mas antes na percepção imediata e na imaginação acidental,
deixar justamente dissolver a rica articulação do ético em si,
que é o Estado, a arquitectónica da sua racionalidade que,
através da diferenciação determinada dos círculos da vida
pública e dos seus direitos, e através do rigor da medida que
sustém cada pilar, cada arco e cada contraforte, faz brotar a
força do todo a partir da harmonia dos seus membros23.

Por fim, Hegel reflete sobre as degradantes consequências dessa


equiparação do senso comum à filosofia, ao menos em relação à filosofia
política. Deve-se ressaltar que Hegel, em várias oportunidades, salienta
que a filosofia exige o logos epistêmico, cujo método já teve a oportuni-
dade de desenvolver em sua Ciência da Lógica (1812)24.
que a vida obteve sucesso em todos os assuntos de interesse público. Não seria a forma da lei e
da vigilância sozinhas, não seria somente o contrato privado de obrigações ligadas às funções
que impulsionaria os indivíduos, mas o espírito dos subordinados; seria o apetite de saber e o
esforço do estudante que ativaria o zelo do mestre, seria o espírito do povo que impulsionaria
o juiz a ser justo. E, nesse povo, a cada obra singular da cultura popular e do serviço do povo
se consagrariam as associações vivas, reunidas de modo indissolúvel pelo laço sagrado da ami-
zade” (Fries, An die deutschen Burschen, dans Dokumente liberaler Vergangenheit, Heft 2,
München, Nationalverein, 1910, p. 30, apud, KERVEGAN, Jean-François. L’instituition de la
liberté, in: HEGEL, G.W.F. Principes de la philosophie du droit. Trad. Jean-François Kervégan.
Paris: PUF, 2003, p. 97, tradução livre.
23 HEGEL, Prefácios, cit., p. 193.
24 “Ora, como a rabulice do arbítrio se apoderou do nome da filosofia e pôde deslocar um gran-
de público para a opinião de que semelhante exercício seria filosofia, tornou-se então quase
uma desonra falar ainda de modo filosófico sobre a natureza do Estado; e não é de censurar
os homens do direito quando eles se impacientam logo que ouvem falar de ciência filosófica
do Estado”, HEGEL, Prefácios, cit., p. 194. Vale transcrever, também, o trecho do Fausto, de
Goethe, citado por Hegel [HEGEL, Prefácios, cit., p. 193]:
“Se desprezas entedimento e ciência,
Supremo dons do homem –
entregaste-te assim ao diabo
e és obrigado a perder-te”.
48 Felipe Magalhães Bambirra

Os lamúrios que Hegel apresenta são extremamente atuais. Em


tempos de facebook e outras mídias digitais, a opinião (doxa), o subjeti-
vismo solipcista, sobre os temas mais complexos ganharam espaço e são
comunicados e difundidos de modo hiperveloz, sobre temas da mais
alta complexidade, e tal é feito como se aquele que fala tivesse a auto-
ridade da verdade. Dificilmente as conversas se dão num tom dialogal,
na busca de aprendizagem e percepção de ponto de vistas variados, es-
tando mais próximo a uma política do amigo-inimigo schmittiana que
de um espaço público de debate democrático, como quer o kantiano
Habermas. O outro lado da moeda, a ser evidentemente evitado, é que
somente aqueles especialistas poderiam falar algo sobre algo, recaindo-
se numa tecnocracia. O problema com a filosofia, porém, parece real-
mente ser maior, pois não se trata de uma “ciência” hard, e é comumente
confundida com estilos de vida, opções políticas e hierarquizações axio-
lógicas – e não como aquilo que buscou ser no Ocidente, um discurso
rigoroso, racional, sobre o real.
A tecnologia contemporânea, ao mudar e democratizar como
nunca antes os meios de comunicação, permitindo que praticamente
qualquer um seja não só receptor, mas, igualmente, transmissor de in-
formação, permite transformações extremamente rápidas na socieda-
de, pois mensagens cujo conteúdo ficaria restrito a pequenos círculos,
hoje pode circular de forma quase plena. Porém – e nos preocupamos,
especificamente, com os discursos sobre os direitos humanos -, não é
fácil de se garantir que conteúdo compartilhado sejam racionalmente e
valorativamente positivos, no sentido de garantia da dignidade humana.
Podemos, ao lado de uma sociedade do conhecimento, falar de
uma sociedade da ignorância, marcada pela toxidade e intoxicação pelo
excesso de informação, pelo spam e pela falta de interesse e concentra-
ção, do que o zapping é um belo exemplo25. Ou seja, a democratização
dos meios de comunicação promovidos pela internet (facebook, you-
tube, twitter dentre outros) exige ainda maior trabalho dos Estados no
25 MAYOS, Gonçal. La “sociedad de la incultura”, ¿”cara oculta de la sociedad del conocimento”?
In: MAYOS, Gonçal; BREY, Antoni (org.). La sociedad de la ignorancia. Ed. Península: Barce-
lona, 2011, p. 185-5.
Lógica, realidade e história: reflexões sobre o Direito e os Direitos Humanos a partir da Filosofia 49
do Direito de Hegel

sentido de se garantir uma educação adequada à população, pois, como


afirma Mayos, a incultura é um perigo à democracia26 – e aos direitos
humanos!

III. O Real e o Racional

Qual a relação entre o real e o racional? Um dos trechos mais fa-


mosos e polêmicos do prefácio da Filosofia do Direito é a frase “O que é
racional é real, e o que é real é racional”. A frase, no momento do lança-
mento do livro, foi compreendida não do ponto de vista especulativo, o
qual Hegel buscou sublinhar, mas como sendo de natureza até mesmo
panfletária. Foi utilizada como uma explicação não do que é efetivo,
mas, pelo contrário, da realidade empírica, contingente, e, portanto,
uma justificativa das mazelas daquele tempo, remetendo à tese do Hegel
conservador e restaurador27.
Num curso ainda em Heidelberg, em 1802 – e também em con-
versas posteriores – Hegel teria esclarecido que o significado da frase é
que “o que é racional tem de acontecer”, no que tange à relação entre o
povo, a constituição, a forma de Estado, sua organização e articulação
jurídica-social, na medida em que mudanças não podem advir de algo
exterior, mas provem exatamente de um princípio interno, do poder da
razão na história, processualidade dialética que tem como seu termo a
efetividade28, isto é, ao mesmo tempo engendrar a realidade, produzir os
efeitos concretos, que possuem fundamento racional (universalidade),
precisão no tempo e no espaço (particularidade) e são fruídos no aqui e
agora de modo não contingencial (universal-concreto, ou efetivo).
Em 1803, Hegel teria afirmado que “a filosofia conhece en-
tão que só o racional podia acontecer, mesmo que as manifestações
singulares e exteriores possam parecer resistir-lhe tanto ainda”29.
Observa-se que as manifestações de Hegel sobre o tema seguem
26 MAYOS, La “sociedade de la incultura”..., cit, in: MAYOS, BREY, op. cit., p. 207.
27 FERREIRA, Apresentação..., cit., in: HEGEL, Prefácios, op. cit., p. 178-9.
28 FERREIRA, Apresentação..., cit., in: HEGEL, Prefácios, op. cit., p. 178-9.
29 FERREIRA, Apresentação..., cit., in: HEGEL, Prefácios, op. cit., p. 179.
50 Felipe Magalhães Bambirra

um crescente. A última manifestação, segundo Ferreira, teria sido


a seguinte: “Aquilo de que é chegado o tempo no espírito interior
acontece certa e necessariamente [...] Nenhum poder há no céu nem
na terra contra o direito do espírito [...] O que é racional torna-se
efectivo e o efectivo torna-se racional”30.
A frase, mal compreendida, poderia ser melhor traduzida subs-
tituindo-se o vocábulo “real” por “efetivo”, pois a palavra que Hegel uti-
lizou foi Wirklichkeit, e não Realität, e Wirklichkeit (efetividade) é algo
real capaz de produzir efeitos:

Essas proposições simples parecem chocantes a muitos; ex-


perimentaram hostilidade, inclusive por parte de pessoas que
não querem que se ponha em dúvida que possuam a filoso-
fia, e também, certamente, a religião [...] Na vida corrente,
chama-se eventualmente ‘uma efetivação’ qualquer capricho;
o erro, o mal, e o que pertence a esse lado das coisas – as-
sim como qualquer existência, por mais mesquinha e tran-
sitória [que seja]. Mas, também, já para uma sensibilidade
ordinária, uma existência contingente não merecerá o nome
enfático de algo efetivo. O contingente é uma existência que
não tem um valor maior que o de algo possível, que, assim
como é, pode também não ser. Mas, se falei de efetividade,
seria a pensar, de si mesmo, em que sentido eu emprego essa
expressão; pois numa Lógica mais desenvolvida ([Ciência da
Lógica, Teoria da Essência, seção III: a Efetividade]) tratei
também de efetividade e logo a distingui, precisamente, não
só do contingente, que sem dúvida tem também existência,
mas, com mais rigor, do ser-aí, da existência, e de outras de-
terminações. Já à efetividade do racional se opõe tanto a re-
presentação segundo a qual as idéias e os ideais não seriam
nada mais que quimeras, e a filosofia, um sistema de tais fan-
tasmas, como também, inversamente, a representação de que
as idéias e os ideais seriam algo demasiado excelente para ter

30 FERREIRA, Apresentação..., cit., in: HEGEL, Prefácios, op. cit., p. 179. As citações de Hegel
desse parágrafo referem-se à organização da Filosofia do Direito realizadas por Ilting.
Lógica, realidade e história: reflexões sobre o Direito e os Direitos Humanos a partir da Filosofia 51
do Direito de Hegel

efetividade, ou do mesmo modo algo demasiado impotente


para lograr consegui-la31.

A filosofia deve se preocupar com as relações necessárias, que


se dão a conhecer no plano das idéias e na efetividade histórica. Se
o presente é considerado vão pelo sentimento ou pela reflexão de
uma consciência subjetiva, quiçá capaz de ultrapassá-lo, essa própria
consciência subjetiva também integra o agora: é vã e destituída de
qualquer conteúdo ou significado. Ela própria não tem efetividade
no presente, e é, por conseguinte, apenas vacuidade. De outro lado, a
idéia, se é tida como uma mera idéia, uma opinião, também a única
realidade será a da própria opinião. A resposta, portanto, não está
em nenhuma dessas representações unilaterais. Hegel afirma o se-
guinte:

Trata-se então de reconhecer na aparência do temporal e do


transitório a substância que é imanente e o eterno que é pre-
sente. Com efeito, o racional, que é sinônimo da Ideia, quan-
do entra na sua realidade efectiva e, simultaneamente, na
existência exterior, avança numa riqueza infinita de formas,
manifestações e configurações e envolve o seu núcleo de um
revestimento multicolor, no qual se instala em primeiro lugar
a consciência, que só o conceito penetra, para encontrar o
pulso interior e para senti-lo também palpitar nas configura-
ções exteriores32.

Deve-se atentar o filósofo, porém, que dessa infinitude de pos-


sibilidades de manifestação da essência, das relações infinitamente va-
riadas que se formam no aparecer da essência, não deve ele tratar. Isso
não lhe diz respeito, e não há, nisso, qualquer vestígio de filosofia. Hegel
ilustra a afirmação com exemplos categóricos: “Platão podia abster-se

31 HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas (em compêndio: 1830). V. I. Trad. Paulo
Meneses. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2005, V. I, p. 45 [§6].
32 HEGEL, Prefácios, cit., p. 197.
52 Felipe Magalhães Bambirra

de recomendar às amas para nunca ficarem paradas com as crianças,


para embalá-las sempre no braço”33.
Conseqüentemente, o filósofo deve poupar o seu esforço de di-
zer como o Estado deve ser, e concentrar-se na tarefa de dizer como
ele é, deve tentar “conceber e apresentar o Estado como um racional em
si”, identificando decerto a contingencialidade, mas evitando tanto criar
um Estado fundamentado em particularidades, como buscar ensinar ao
Estado como ele deve ser – o que acaba redundando, novamente, em
solipsismos subjetivistas.
Indagamos: qual é a realidade dos direitos humanos e fundamen-
tais? Perceber a sua concretização processualizada é uma dificuldade que
percebemos, pois, face a sua negação cotidiana, simplesmente são des-
qualificados como se meros discursos vazio fosse, quando não tem a sua
existência negada peremptoriamente; ou mesmo são desclassificados
como redutor de pretensos avanços sociais utópicos, a partir de revolu-
ções violentas, não democráticas e excludentes. Face ao desejo de se viver
imediatamente numa utopia, esquece-se do tempo da história, das con-
quistas paulatinas, que sequer apresentam-se como um continuum – há,
sem dúvida, retrocessos localizados, mas, de forma alguma, generaliza-
dos, e os direitos humanos seguem funcionando contrafaticamente, exi-
gindo conformação do empírico. E, assim, é uma forte e útil mensagem.
Por fim, a menção ao real implica na pergunta que se dirige a
saber como o universo ético pode ser conhecido34.
Tal reflexão traz à baila a historicidade da filosofia. Para He-
gel, exatamente porque a filosofia é o “indagar do racional”, é ela um
“apreender do presente e do real efectivo”, e não meras “sabedorias aca-
dêmicas” que estabelecem um além, “sabe Deus onde deveria ser – ou
do qual bem se sabe de facto dizer onde está, isto é, no erro de um ra-
ciocinar argüente, vazio e unilateral”35. Vejamos como tal problema foi
tratado no prefácio.

33 HEGEL, Prefácios, cit., p. 197.


34 HEGEL, Prefácios, cit., p. 198.
35 HEGEL, Prefácios, cit., p. 196.
Lógica, realidade e história: reflexões sobre o Direito e os Direitos Humanos a partir da Filosofia 53
do Direito de Hegel

IV. A Filosofia e o seu tempo

O que se pode esperar de uma filosofia historicamente situada? A


tarefa da filosofia, afirma Hegel no prefácio da Filosofia do Direito, é con-
ceber o que é, e o que é, é a razão. A filosofia deve dizer o que é o real, e
não fazer futurologias que, como denunciado por Hegel, são igualmente
meros particularismos que se fundamentam na vacuidade de um que-
rer, sentir ou pensar subjetivo. Daí a sua famosa frase: “cada um é, aliás,
filho do seu tempo; assim, a filosofia é também o seu tempo captado em
pensamentos”36. E continua: “É justamente tão insensato julgar que uma
filosofia qualquer passaria por cima do seu do seu mundo presente como
julgar que um indivíduo saltaria por cima do seu tempo, saltaria por cima
de Rodes”37, ou saltaria por cima de sua própria sombra. Afinal, se uma
teoria elabora e constrói o mundo como ele deve ser, esse mundo existe
certamente, mas apenas no opinar do autor. Nas palavras de Hegel:

A filosofia é idêntica ao espírito da época em que surge; não


está acima do seu tempo, é sempre unicamente a consciência
do que é substancial na sua época. Um indivíduo também
não está acima do seu tempo; ele é filho de sua época; o subs-
tancial desta é a sua essência própria, apenas a manifesta de
forma particular. Ninguém pode sair do substancial da sua
época, como ninguém pode sair da sua pele. Logo, de um
ponto d vista substancial, a filosofia não pode saltar por cima
do seu tempo38.

Hegel ainda afirma que aquilo que fica entre o espírito consciente
de si e a razão como realidade efetiva presente, ou seja, aquilo que é
racionalmente necessário mas separa aquela razão desta, “é o grilhão
de um abstracto que não se libertou para o conceito”. Deve o filósofo,
porém,

36 HEGEL, Prefácios, cit., p. 198.


37 HEGEL, Prefácios, cit., p. 198.
38 HEGEL, Prefácios, cit., p. 203, (Einleitung, 149).
54 Felipe Magalhães Bambirra

reconhecer a razão como a rosa na cruz do presente e, des-


se modo, alegrar-se com este, esta intelecção racional é a re-
conciliação com a realidade efectiva, que a filosofia concede
àqueles a quem alguma vez foi dada a exigência interior de
conceber e de manter igualmente no que é substancial a liber-
dade subjectiva e, do mesmo modo, de ficar com a liberdade
subjectiva, não num particular acidental, mas naquilo que é
em si e para si39.

Isto, para Hegel, é o significado mais do que se designou


como unidade da forma e do conteúdo, “pois a forma no seu sig-
nificado mais concreto é a razão como conhecer concipiente, e o
conteúdo é a razão como a essência substancial do ético, bem como
da realidade efectiva natural; a identidade consciente de ambas é a
Ideia filosófica”40.
Em relação a uma função pedagógica da filosofia, no sentido
específico de ensinar o mundo como deve ser, Hegel sustenta que ela
aparece tarde demais para isso: “ela só aparece no tempo depois que
a realidade efectiva concluiu o seu processo de formação e se levou
a cabo”:

Aquilo que o conceito ensina, mostra-o também a história


necessariamente, que só na maturidade da realidade efectiva
o ideal aparece frente ao real, e que aquele constrói para si na
figura de um reino intelectual este mesmo mundo apreendi-
do na sua substância41.

Também em sua Filosofia da História, Hegel salienta a dificuldade


de se apreender com a História, apesar de ressaltar o seu lado pragmá-

39 HEGEL, Prefácios, cit., p. 198.


40 HEGEL, Prefácios, cit., p. 198-9.
41 HEGEL, Prefácios, cit., p. 199.
Lógica, realidade e história: reflexões sobre o Direito e os Direitos Humanos a partir da Filosofia 55
do Direito de Hegel

tico42, ao que indica, contra a proposição de Cícero, Historia magistra


vitae est (De Oratore).
A filosofia pinta a multicolorida realidade de cinza, “e com cin-
zento sobre cinzento ela não se deixa rejuvenecer, mas apenas reconhe-
cer; a coruja de Minerva somente ao cair da tarde levanta vôo”43. Porém,
como afirma Michelet, ao tocar o Requiem de uma era prestes a acabar,
entoa-se também o hino à aurora de um novo porvir, e, assim, ao lado
da coruja de Minerva, deve figurar também o galo do amanhecer44.
Em que pese esse distanciamento como condição da filosofia,
Ferreira salienta uma passagem em que Hegel demonstra ser inerente à
filosofia a tarefa de vencer o tempo – também asseverada pela diferença
entre a razão do espírito consciente e da realidade efetiva (o grilhão de
um abstracto que não se libertou para o conceito, acima referido):

Mas a filosofia também está por cima do tempo, nomeada-


mente segundo a forma, pois é o pensar daquilo que é, do que
é o substancial da época. Na medida em que sabe isto, ou seja,
em que o converte em objecto, em que se lhe contrapõe, o
seu conteúdo é o mesmo; como saber está também por cima.
Mas isto é apenas formal45.

O mundo não para e espera o filósofo concluir a sua reflexão,


42 “Predica-se aos governantes, aos estadistas e, principalmente, aos povos instruírem-se por
meio da experiência da história. Porém, o que a experiência e a história ensinam é que os
povos e os governos jamais aprenderam coisa alguma da história, e não seguiram o ensina-
mento que ela poderia ter inspirado. Cada época se encontra em circunstâncias tão peculiares,
representa uma situação tão individual, que nela e dela mesma deve e pode pender a decisão.
No tumulto dos acontecimentos mundiais não ajuda um princípio geral, que serve apenas de
recordação de situações análogas, por que uma pálida recordação não tem força perante a
vitalidade e a liberdade do presente”, HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Filosofia da História.
Trad. Maria Rodrigues e Hans Harden. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999,
p. 15. V., também, o nosso artigo: BAMBIRRA, Felipe Magalhães. A Metodologia Hgeliana
do Estudo da História e do Estado: a ascensão dialética no embate entre a razão e a paixão, in:
Anais do XIX Encontro Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito
(CONPEDI). Florianópolis: Boiteux, 2010.
43 HEGEL, Prefácios, cit., p. 199.
44 MICHELET, Karl Ludwig. Warheit aus meinem Leben. Berlim, 1884, p. 89-90, apud FERREI-
RA, Apresentação..., cit., in: HEGEL, Prefácios, op. cit., p. 204.
45 HEGEL, Prefácios, cit., p. 203, (Einleitung, 149).
56 Felipe Magalhães Bambirra

e nesta pós-modernidade hiperveloz, a obsolescência vem até mesmo


antes do tempo para o qual foi programada. O fluxo de informações,
pessoas, mudanças sociais, produções acadêmicas é potencializado, ao
passo que caso se conceba a filosofia como um conhecimento que reflete
a partir da ciência de seu tempo – como quer Hegel – torna-se uma tare-
fa cada vez mais árida, haja vista a hiper-especialização, hiper-produção
de saberes e hiper-complexidade, jamais observada na história.
Para a Filosofia do Direito, que tem como objeto privilegiado o
justo e a justiça, restam as mesmas angústias. O discurso sobre a justiça
coincide, em enorme medida, com o discurso sobre os direitos huma-
nos e fundamentais – o que é importante, pois ganha-se concreção dis-
cursiva. Ou seja, é justo e a justiça depende da fruição de direitos civis,
políticos, econômicos e sociais, culturais, ambientais, dentre tantos ou-
tros consagrados. Podemos afirmar que, caso se fruam direitos huma-
nos e fundamentais já reconhecidos, estaríamos a falar de um mundo
muito mais justo daquele que já conhecemos, ainda que toda a justiça
não se resuma a eles.
A complexidade mais desafiadora à Filosofia do Direito, porém,
parece se dar com os choques culturais, ondas migratórias e populações
que ainda vivem na miséria. Da resposta a estes problemas dependem
a integridade da estrutura racional do direito edificada pelo ocidente
para pensar a justiça. Da saída a estes desafios depende a afirmação dos
direitos humanos e fundamentais como realidade efetiva.

Referências bibliográficas

BAMBIRRA, Felipe Magalhães. Filosofia da História em Hegel: A


Dialética da Paixão e da Razão. In: Anais do XIX Encontro Nacional do
CONPEDI. Florianópolos: Boiteux, 2010.

HEGEL, G. W. F. Linhas fundamentais da filosofia do direito, ou, Direi-


to natural e ciência do estado em compêndio. Trad. Paulo Meneses. São
Leopoldo: UNISINOS, 2010.
Lógica, realidade e história: reflexões sobre o Direito e os Direitos Humanos a partir da Filosofia 57
do Direito de Hegel

HEGEL, G. W. F. Prefácios. Trad. Manuel J. Carmo Ferreira. [s.l.]: Im-


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HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio.


Trad. Paulo Meneses. V. I. São Paulo : Loyola, 1995.

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wer Academic Publishers, 2001.

ROSENZWEIG, Franz. Hegel e o Estado. Trad. Ricardo Timm de Souza.


São Paulo: Perspectiva, 2008.
59

A GROTESCA VIOLAÇÃO AOS DIREITOS


HUMANOS NA MODERNIDADE E A
MEDIAÇÃO COMO DIREITO DO FUTURO: IN
MEMORIAM A LUIS ALBERTO WARAT

Fernanda Busanello Ferreira1


Candice Nunes Bertaso2

Introdução

O presente texto é fruto das anotações realizadas pela autora Fer-


nanda Busanello Ferreira, ainda à época da graduação, referentes ao
“Curso de Mediação3” ministrado pelo Prof. Dr. Luis Alberto Warat,
na Universidade de Cruz Alta (RS), no ano de 2002, e revisadas pela
coautora Candice Nunes Bertaso, que também frequentou o curso. Por
opção das autoras, não há citações no texto, mantendo-se a originalida-
de das falas de Luis - como Warat preferia ser chamado. Inclusive a or-
dem do texto segue a cronologia das falas no curso, havendo momentos

1 Pós-Doutora em Direitos Humanos pelo PPGIDH/UFG. Doutora em Direito pela UFPR.


Professora do PPIGDH/UFG e do Curso de Direito da UFG/REJ. Foi aluna do Curso de Di-
reito da Universidade de Cruz Alta e conviveu com Luis Alberto Warat durante a tentativa de
aprovação do Curso de Direito da SPEI em Curitiba, um sonho que Warat não viu se realizar.
2 Mestre em Direito pela Universidade do Alto Uruguai e das Missões (URI/Santo Ângelo).
Graduada em Direito pela Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ). Especialista em Direito
Civil e os Novos Rumos do Processo Civil pela URI/Santo Ângelo.
3 As autoras agradecem de modo especial ao Prof. Dr. João Martins Bertaso que foi Coorde-
nador do Curso à época e orientador de monografia e iniciação científica das autoras, sendo
o responsável pelas idas de Warat à Universidade de Cruz Alta, o que impactou sobremaneira
em suas formações profissionais e humanas.
60 Fernanda Busanello Ferreira, Candice Nunes Bertaso

de repetição e retomadas, numa lógica pouco linear, como tipicamente


ocorre em um espaço informal de ensino.
Acredita-se que a divulgação dessas notas do curso é uma sin-
gela contribuição à academia brasileira, especialmente, aos atuais es-
tudos sobre a mediação, os quais efervesceram, especialmente, após a
aprovação do novo código de processo civil. Luis, porém, segue ainda
inovador e revolucionário, não tendo o direito alcançado a elevação
que seu pensamento propunha há mais de uma década, quiçá há mui-
to mais tempo.
Recomenda-se a leitura da obra Surfando na Pororoca - O ofício
do Mediador4 para uma dimensão mais completa sobre o tema, versão
essa escrita e revisada pelo inesquecível filósofo do direito, responsável
pela formação de tantos juristas renomados e um dos propagadores da
teoria crítica brasileira, tendo denunciado o senso comum teórico dos
juristas e seus problemas.
Luis não passava incólume aonde quer que fosse. Para diferen-
ciarmos as falas do professor da das autoras, usamos a seguinte meto-
dologia: nossas falas serão escritas em itálico, as de Warat seguirão sem
marcações especiais. Claro que o ideal seria o contrário, mas aí teríamos
um texto um tanto quanto desagradável à leitura. Luis fala praticamente
sozinho no texto. Deixe-se tocar pelo saudoso mestre você também e
saboreie suas palavras!

2. Notas do Curso de Mediação proferido por Luis Alberto Warat em


2002 – parte 1.

Se não nos falha a memória, Luis começou o curso com uma dinâ-
mica. Deveríamos desenhar uma representação sobre nós. Usamos lápis
de cor, canetinha e nos esforçamos na criatividade. Logo após, fizemos
a apresentação aos colegas e Luis foi tecendo comentários sobre cada de-
senho. Quem conheceu o mestre, sabe que ele não nos reconfortou e sim

4 WARAT, Luis Alberto. Surfando na pororoca: o ofício do mediador. Florianópolis: Fundação


Boiteux, 2004.
A GROTESCA VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS NA MODERNIDADE E A MEDIAÇÃO 61
COMO DIREITO DO FUTURO: IN MEMORIAM A LUIS ALBERTO WARAT

problematizou cada uma das gravuras, interpelando por sentidos ocultos,


questionando desejos e pré-compreensões5. E então, as falas começaram:
Como adquirir sabedoria, perguntou Luis? Sabedoria é igual à
Iluminação, interação. O sábio esquece todas as bobagens que aprendeu
em nome do saber. Para ser sábio é necessário desaprender/esquecer
tudo que aprendemos. Para ser bom temos que esquecer a receita.
É um erro pensar que um professor ensine. O que se pode é aju-
dar a aprender a descobrir a si mesmo. O grupo tem que fazer a aula
e não o professor. O amor não é obrigatório. Nada se ensina. Não se
ensina a amar. Não se pode ensinar que a pessoa aprenda a ser sensível,
mas tem-se que ajudar a aprender a amar. Ajudar as pessoas a serem
sensíveis é ajudar a descobrir em si a própria sensibilidade.
O mediador ajuda, não prepara as pessoas para resolverem seus
conflitos. Os juízes estão para resolver conflitos, mas 90% acha que apli-
ca a justiça e aplica a lei. Há uma insuficiência da administração da jus-
tiça, a qual está falida.
Segundo Luis, julga-se conforme a “lógica do terreiro”. Os juízes
acham que estão num ritual em que baixa um espírito ditando a senten-
ça, encarnando nos juízes. Mas isso é uma fuga da realidade.
Na sequencia, Luis indaga: O que é um paradigma? É uma forma
(modelo) de entender o mundo. O modelo da modernidade acabou,
morreu. Estamos vivendo seus efeitos, seus reflexos. Do século XVI ao
XX tinha-se um pensamento e vivemos numa época em que esse para-
digma acabou. A transmodernidade é o barroco do kit da modernidade.
Como a modernidade vive é uma forma grotesca, numa visão de poder
grotesca.
Abaixo, um quadro que consta nas anotações e que as autoras opta-
ram por preservar e incorporar ao texto, por ser autoexplicativo:

5 Nota da autora Fernanda: “Lembro-me que me desenhei subindo numa escada feita de li-
vros, meio que prevendo que os estudos teriam um papel central em minha vida, e também
desenhei minha família, que era acessível por um barco. Expliquei a Luis que minha família
era meu porto seguro, local para o qual sempre eu poderia voltar. Para minha surpresa Luis
imediatamente me advertiu: cuidado! Um porto seguro pode te prender ao invés de te libertar.
O impacto que essas palavras gerou sobre mim foi muito forte. Reputo um pouco a esse mo-
mento a minha coragem para não ficar presa no porto, seja qual ele for”.
62 Fernanda Busanello Ferreira, Candice Nunes Bertaso

Séc. XVI ao XX Barroco Pós-modernidade Transmodernidade

Devir da Modernidade Modelo decadente da Modernidade Não tem paradigma


Ponto de Fuga (asfixiante) O Barroco do Kit da
Pós-Modernidade

Para Luis, o Estado hoje é uma forma grotesca do Estado Moder-


no. Quando o Executivo é um apêndice do legislativo, isso é uma paró-
dia, disse. A modernidade é o simulacro da democracia. O modelo de
direitos humanos, a cidadania e a democracia são concepções grotescas
na modernidade. A democracia no Estado Moderno é um simulacro de
democracia, as concepções de democracia e cidadania da Idade Moder-
na são também grotescas.
A modernidade tem uma concepção masculina. A concepção da
modernidade e da razão são masculinas. Acabou-se com o lado femini-
no do desejo. O desejo tem dois componentes articulados, quais sejam:
a) a energia do masculino, da estabilidade, da defesa, do eterno, da pro-
teção, do permanente; e, b) O lado feminino, do incerto, do novo, do
indefinido, do indeterminado. Contudo, a modernidade, em nome da
razão, chutou o feminino.
No Direito não há lugar para o determinado, para o que se
sabe desde sempre. O triunfo desse modelo de compreensão do
mundo foi uma guerra entre masculino (mecanicistas) e o feminino
(latinismo).
Os juristas não veem o feminino. Não há lugar para o amor, só
para o permanente, o que se repete, o que se costuma dizer. Os juristas
necessitam da confirmação do que já sabem, necessitam de certeza.
Os adultos, como as crianças, seguem buscando segurança. Ne-
cessitam da afirmação do que já sabem. Os juristas se comportam como
uma criança porque necessitam de uma certeza. Possuem o desejo in-
A GROTESCA VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS NA MODERNIDADE E A MEDIAÇÃO 63
COMO DIREITO DO FUTURO: IN MEMORIAM A LUIS ALBERTO WARAT

fantil de segurança. Comportam-se como uma criança que precisa ouvir


sempre a mesma historinha.
Tudo tem que estar previsto porque os juristas têm medo do
novo. Os juristas têm medo e por isso necessitam acreditar que tudo já
vem previsto. São os mais inseguros em relação à vida.
Os juristas tem uma cegueira histérica, eles se negam a enxergar.
Não devemos enxergar o que enxergamos. Isso predomina no Ministé-
rio Público e na Magistratura.
Novamente lançamos mão de um quadro encontrado nas anota-
ções e que será preservado, tal como nas notas:

O Magistrado pensa em O Médico


1°- Instituição 1°- Imagem (dele)
2°- Neles 2°- Hospital
3°- Conflito 3°- Doente

O Ministério Público e a Magistratura são instituições desuma-


nas. As Universidades tampouco se salvam disso. Vivencia-se uma mi-
tomania, isto é, a necessidade de “mentir-se” a si mesmo para poder
sobreviver.
Conta-se um direito que não tem nada a ver com a realidade. Pre-
cisa-se acreditar numa mentira (faz de conta). Vive-se numa bolha de
ficção que se acredita que é uma realidade. Quando se estoura a bolha,
acaba a ficção e é isso que os juristas atuais estão passando. Não pode-
mos acreditar na ficção do direito. Ela não serve mais. Por isso instala-se
a mediação que é a concepção do direito do futuro. Não há mais chance
para a ficção do direito. Uma bolha quando explode não se recompõe
mais. Não há chance de futuro.
A mediação é a saída. É o direito do futuro. Instala-se a mediação
que é a concepção do direito do futuro.
As partes não existem, estão maltratadas no Judiciário. As pes-
soas cansaram de ser maltratadas pela justiça, querem uma justiça para
64 Fernanda Busanello Ferreira, Candice Nunes Bertaso

o povo. Querem uma justiça comunitária, sem jurisdição. A gente quer


um direito a serviço dela e não do poder.
Isso não significa que tem que acabar com o Ministério Público
ou com a Magistratura, mas sim, que se tem que mudar o perfil do ma-
gistrado que tem que entender de gente, que precisa ter sensibilidade
com as partes. Precisa-se “acabar com a macumba dos terreiros”, pois
esse magistrado que ignora as emoções, que não tem possibilidade de
ser sensível, que é masculino, acabou.
Luis, então, nos pergunta o que estamos sentindo. As respostas são
variadas. Ele segue perguntando e algumas pessoas vão respondendo, eis
que ele menciona: Pensar e sentir são duas coisas diferentes. Devemos
sentir e não pensar no que sentimos.
A mediação não possui os mesmos defeitos da administração
da justiça. O mediador tem que ser gente, tem que entender de
gente, as técnicas vêm depois. Tem que usar a ética do coração. O
conflito não tem solução, tem-se que administrá-lo de uma manei-
ra satisfatória.
Perdemos a dimensão do outro. Coisificamos o outro. Não ve-
mos o doente, vemos a doença. Todas as instituições são desumanas.
Mas não importam as instituições, importam os alunos, os doentes, as
pessoas.
A mediação não tem os defeitos da administração da justiça. A
ética que importa na mediação é a ética dos sentimentos. O mediador
tem que ser gente, tem que entender de gente, as técnicas, frisou, vêm
depois. É a ética do coração que rege a mediação.
A mediação não soluciona litígios, mas conflitos. Nem soluciona,
pois, na verdade, o conflito não é resolvido, ele é transformado. O con-
flito deve ser administrado de uma forma satisfatória. Porém, a aceita-
ção de programas de humanização é mais difícil de se conseguir do que
aceitação da mediação preventiva.
Ocorre que vivemos tentando forçar limites. A função da norma
é a de pôr limites para que possamos forçá-la. O sentido da norma não
importa. As ideologias fazem-nos atribuir à lei funções impossíveis. O
A GROTESCA VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS NA MODERNIDADE E A MEDIAÇÃO 65
COMO DIREITO DO FUTURO: IN MEMORIAM A LUIS ALBERTO WARAT

direito está cheio de esperas impossíveis e promessas impossíveis. As


promessas são feitas porque não se pode cumprir.
Como fazer com que a normatividade deixe de ser promessas?
Luis pergunta e responde: Tem-se que ter orçamento (construído, produ-
zido), vontade política e participação popular. Sem movimento de ação
popular tudo são promessas.
Luis se questiona: Porque pessoas tão espertas, inteligentes, sofis-
ticadas, podem ser tão ingênuas em relação ao direito? Como sendo tão
inteligentes, são tão tontos, tão burros?
Afinal, o que são normas jurídicas? Elas estão numa hierarquia. A
dependência do jurista não é química, é normativa. Para saber o sentido
da sociedade temos que olhar as normas jurídicas. A realidade não diz
nada. Para entender o sentido da ação (conduta) tenho que consultar as
normas jurídicas.
O ato de praticar a administração da justiça é um ato que violen-
ta os direitos humanos. Decidir violenta os direitos humanos. O juiz
quando decide nossa vida nem sabe o que está decidindo. Na mediação
as pessoas sabem o que estão decidindo.
Se não há conflito, não há desejo. Minha identidade é vincula-
da conflitivamente com o outro. Não há vínculo humano que não seja
conflitivo. Somos imunes ao nosso próprio conflito. Não aprendemos
nunca.
Quando você transforma, não está decidindo o conflito, está mo-
dificando para torná-lo mais satisfatório, para aumentar a qualidade de
vida. Sobre os sentimentos não se decide, se modifica, se transforma.
As emoções se trabalham, modificam, transformam. A mediação está
ligada aos afetos, às emoções e às relações das pessoas, e não à interes-
ses. Quando se trabalha emoções, não há acordo. Não se decide afetos,
ninguém decide ser feliz ou infeliz.
O patrimônio que se negocia é o patrimônio afetivo. Afetos,
emoções, sentimentos da pessoa: somente isso o mediador trabalha.
A mediação é uma forma substitutiva do paradigma da modernida-
de. É uma forma diferente de entender o mundo. A mediação pre-
66 Fernanda Busanello Ferreira, Candice Nunes Bertaso

ventiva antecipa o conflito (em potencial) antes que aconteça. Na


mediação reparadora tem-se o conflito instalado e é feita a reparação
(grifos no original).
Neste sentido, encontramos mais um quadro nas anotações e o
mantivemos:

MEDIAÇÃO Forma Substitutiva do Paradigma da Moder-


nidade. Forma diferente de entender o mundo.

Mediação Preventiva- antecipa o conflito (em potencial) antes que aconteça


Mediação Reparadora- tem o conflito instalado e é feita a reparação.

Intermediação cultural; paradigma emergente;


Instituto proc. Alternativo; compaixão.

A mediação como paradigma emergente é um antimodelo (para-


digma ecológico). É ecológica a visão de mundo através da mediação. A
mediação é uma forma de ver o mundo.
Os elementos que impulsionavam a modernidade eram a cien-
tificidade e a racionalidade. Logo, o modelo de direito era um modelo
racional. A ciência, a objetividade e a verdade eram modelos de razão.
A arte tinha critérios racionais. A pedagogia dizia que o professor tinha
que ensinar racionalmente.
Contudo, o diálogo e a emoção são substitutos para reorgani-
zar, transformar a realidade. O amor é a permanente negociação de
valores afetivos. Amar é Negociar os Afetos. (grifos da autora no ma-
nuscrito original).
A negociação e a emoção são as maneiras de ver o mundo da
mediação, porém a negociação como diálogo, e não outra forma de ne-
gociação, importa na mediação.
Para dialogar deve haver um desacordo e o diálogo é a capacidade
das pessoas de explicitarem as suas diferenças e chegarem a um deno-
minador comum.
A GROTESCA VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS NA MODERNIDADE E A MEDIAÇÃO 67
COMO DIREITO DO FUTURO: IN MEMORIAM A LUIS ALBERTO WARAT

Se não se sabe dialogar para dentro, não se sabe dialogar para


fora. O diálogo é um elemento propulsor da mediação. O mediador au-
xilia, instiga o diálogo, tem que ajudar a aprender a dialogar. Ele desloca
o conflito para que as pessoas possam dialogar.
Neste sentido, a mediação é um treinamento progressista. É re-
volucionária. Pautada no diálogo. Não tem nada a ver com o modelo
do EUA de expansão e conquista. A mediação é revolucionária para os
oprimidos em diferentes graus.
A consequência fundamental dessa proposta é que o diálogo vai
substituir a razão como forma de ver o mundo. A mediação é um novo
paradigma, um novo modelo para ver o mundo.
Amar não é encontrar a outra metade, não deve ser o espelho.
Amar implica exercer permanentemente o diálogo de forma a chegar a
um denominador comum. O amor é a capacidade de diálogo. O diálogo
é a capacidade das pessoas de explicitarem as suas diferenças e chega-
rem a um denominador comum (Luis repetiu isso muitas vezes no curso,
segundo lembramos). Já a paixão é a incapacidade de diálogo. É uma
dependência.
O professor tem que encontrar a diferença e estimulá-la. Deve ser
um mestre que me auxilia a me encontrar comigo mesmo. Que nos auxi-
lia a sermos autônomos. Temos que nos preparar a vida toda para sermos
mestres. Quanto ao destino, a missão e a função da sala de aula, Luis con-
cluiu que: não é possível ensinar. A sala da aula é uma sessão de terapia.
Deve ter a função de escuta e de pontuar algo que se fala. Deve-se ensinar
a aprender. Temos que ajudar o aluno a encontrar-se com ele mesmo. Au-
mentar sua autoestima para ter capacidade de dialogar com os outros.
A interpretação é a tentativa de aproximação ao inacessível. É a
psicanálise do direito. Assim como o inconsciente é inacessível e só nos
aproximamos dele através de interpretação que o terapeuta faz, o direito
é o rosto de Deus (inacessível, um enigma) e só podemos nos aproximar
das normas através da interpretação.
O mestre deve ser inacessível. Saber algo sobre sua inacessibili-
dade é aprender. O mediador não pode dar recomendações, não pode
68 Fernanda Busanello Ferreira, Candice Nunes Bertaso

decidir nada, tem que saber trabalhar com o silêncio, com os enigmas,
com a inacessibilidade, tem que ser o “rosto de Deus”. A poesia, por
exemplo, tem um núcleo de mistério que mexe com você. O enigma, o
mistério, isso é tornar-se inacessível. O mediador tem que ajudar que
os outros decidam, tem que ser um mestre. O mediador tem que ser
inacessível, pois seu silêncio deve ajudar os outros.
O terapeuta intervém, faz pontuações e intervenções (inter-
pretações) e é um profissional que sabe fazê-lo. O mediador não
sabe. A mediação é uma estratégia de ajuda. Na mediação não há
comentários, são criadas condições para as pessoas descobrirem.
Quem descobre tudo são as pessoas, o mediador não dá palpites
como o conciliador. É recomendável ter dois mediadores, realizar
uma co-mediação.
A mediação como política cultural é uma ideia que se baseia no
conceito de contágio. Toda cultura, por mais autêntica e genuína que
pareça, é produto do contágio com outra cultura (grifo no original).
Nossa subjetividade é construída com o contágio com o outro.
Nossa identidade está nos outros. Lacan disse que a linguagem está nos
outros. O inconsciente de cada um está nos outros. O inconsciente é
tudo que não sei de mim mesmo. “O que você me espelha, eu encontro
em mim”. O sentido de minhas palavras não está em mim, está nos ou-
tros. A isso se dá o nome de semiótica da alteridade. O direito a partir
do outro é alteridade.
Já a contaminação é uma forma de ideologia, de alienação. O pro-
fessor costuma contaminar, pois quer impor ideias. Já o contágio (início
do contato com o outro) não é proposital, não se quis contagiar. Apren-
de-se por contágio, ele está na natureza do outro. Não posso obrigar e
tenho que estar disponível para o contágio. Por exemplo, um professor
de capoeira está sendo um mediador cultural, contagiando os alunos
com a cultura da Bahia.
Warat foi um mediador cultural (portador de contágio), trouxe
sem querer informações de outro lugar no seu discurso, que já estava
criado, só transformou em outra coisa.
A GROTESCA VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS NA MODERNIDADE E A MEDIAÇÃO 69
COMO DIREITO DO FUTURO: IN MEMORIAM A LUIS ALBERTO WARAT

Tem-se, assim, que a fórmula da mediação é: mediação = diálogo


+ contágio.
Quando a possibilidade de contágio está bloqueada, a mediação
deve restabelecer o contágio. A mediação depende de uma condição de
maturidade social. Deve-se desinfantilizar as pessoas. “Acabar” com a
sociedade que dependente dos juristas. Tem-se que estabelecer relações
sociais maduras, que é uma dimensão pedagógica de se resolver os con-
flitos.
Há uma dimensão pedagógica na mediação. Exercitar os compo-
nentes pedagógicos é diferente de castigar e punir que é a ideia do direi-
to atual. Essa dimensão pedagógica dá-se através da mediação. Pode-se
tirar alguma lição do conflito, isto é, aprender e não repetir de novo. É
uma proposta diferente da ciência moderna que foi produto do triunfo
da Inquisição. A revolução do diálogo é a libertação da alienação mo-
derna.
São características da mediação: o diálogo, o contágio, o amor, a
pedagogia, a compaixão e a sensibilidade.
A mediação como compaixão é diferente do cristianismo. A me-
diação vê a compaixão como algo a mais que a religião cristã vê, mais
assemelhada à visão budista. A mediação como compaixão é conseguir
compreender e colocar-se na dor do outro. Sentir a dor do outro. A me-
diação como compaixão quer dizer exercitar a preocupação com o ou-
tro. Significa conseguir compreender e colocar-se na dor do outro.
Temos que sentir a dor do outro para compreender a minha
própria dor. Senão é impossível compreender a dor do outro, exercer
a preocupação com o outro. Temos que ter compaixão para chegar à
sensibilidade. A compaixão é um caminho para a sensibilidade. Tenho
que me espelhar na dor do outro para sentir minha própria dor. Esse é
o caminho da filosofia da alteridade. Temos que sentir a dor do outro
em nós mesmos para nos modificarmos. A compaixão faz com que eu
me modifique.
A mediação transforma o conflito. O mediador tem que ajudar as
pessoas a sentirem sua própria dor no conflito. Para transformar con-
70 Fernanda Busanello Ferreira, Candice Nunes Bertaso

flitos tenho que sentir a mim mesmo, ver até que ponto eu contribuí no
conflito. A sensibilidade e a compaixão estão relacionadas, mas não são
a mesma coisa.
A(s) criança(s) insatisfeita(s) do(s) juiz(es) é/ são a(s) princi-
pal(is) fonte(s) do direito (Luis às vezes dizia que as fontes do direito
eram as sogras dos juízes, em tom jocoso).
Em suma, as relações humanas são relações de cobrança de afeto.
São demandas de afeto. Todos devem me dar o que eu não tive. É aí que
entra a sublimação: eleição de instituições, movimentos substitutivos
para suprir as carências. Em geral, na convivência com os outros rece-
bemos nutrientes (energias) tóxicas.
Existem várias estruturas adictas de dependência. Elas são
estruturas substitutivas, por exemplo, o álcool, a dependência quí-
mica, o fumo, o trabalho, os amores cinematográficos, o abandono,
o sexo. No fundo, todas as dependências são de índole emocional.
Somos carentes emocionais. Nos falta amor. Há gente dependente
dos dependentes (co-dependência). A pessoa está predisposta a ser
dependente. A sua estrutura de personalidade está disposta a ser
dependente. Ocorre que os vínculos insatisfatórios são uma fonte
enorme de conflitos.
Luis, se nossa memória não nos trai, realizou após essa fala a “Di-
nâmica do Ursinho”. Retomaremos e detalharemos a experiência mais ao
final do texto.
Seguiu Warat dizendo que são exemplos de mediação: a) a media-
ção escolar; b) a mediação ambiental/ ecológica; c) a mediação policial,
que parte da humanização da polícia, da ideia de mediação na seguran-
ça pública.
São tipos de mediação: a mediação preventiva que trabalha os
vínculos afetivos antes que o conflito ocorra e realiza tipos de relação de
ajuda e a mediação reparadora em que o conflito existe, mas tem-se que
repará-lo (grifos no original).
A mediação familiar encontra um forte sentido na família. Atua-
se num processo pedagógico em que as pessoas aprendem a conviver.
A GROTESCA VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS NA MODERNIDADE E A MEDIAÇÃO 71
COMO DIREITO DO FUTURO: IN MEMORIAM A LUIS ALBERTO WARAT

Não há solidariedade. Já na mediação comunitária, que é a mediação


dos oprimidos, focam-se nas relações que se produzem nas vizinhanças,
nas comunidades, periferias, favelas. Na favela há solidariedade porque
os problemas lá são de todos.
O direito passou por duas revoluções: a 1ª em 1970 e a 2ª quando
da concepção do direito baseado na cidadania, o que causou uma re-
volução. A segurança passa a ser a segurança cidadã e não a segurança
pública. A cidadania é uma relação com o outro. Está no espaço de rela-
ções. Não está no indivíduo, está na cidade. É uma cidadania dialógica,
da alteridade.
A mediação é o fator constitutivo dessa nova concepção do di-
reito baseado no outro. Trata-se do direito com o outro e não contra o
outro. O direito moderno é individualista. Os direitos subjetivos, contu-
do, estão nos outros. Não como direito ou deveres. É uma visão contra-
dogmática, do direito com o outro. É uma ideia psicanalítica, de não ser
contra, mas com. É contrário ao sentido vigente da cidadania em que eu
tenho, contra os outros.
A cidadania é um processo de produção da diferença, não de
divergência. É a possibilidade de se produzir o novo com o outro. A
diferença (novo) só é produzida com o outro, através do diálogo. Por
exemplo, os filhos são o novo produzido com o outro, são a diferença
produzida que resulta da relação amorosa com o outro.
As novidades, a história, a sociedade são produzidas com o outro.
A cidadania não é a reivindicação da subjetividade. É a necessidade de
que o novo seja inserido na sociedade.
E isso se dá através do diálogo, da mediação.
A mediação é diferente da psicanálise. Dar explicação não é o
objetivo da mediação, mas sim corrigir os problemas. Interessa na me-
diação o como. A mediação se preocupa em como. A psicanálise com o
porque. A mediação é uma técnica de ajuda grupal, é uma terapia, mas
não é psicanálise. Para Marx a realidade se modifica pela construção
simbólica. Freud disse que a fala revela aspectos ocultos dos aconteci-
mentos.
72 Fernanda Busanello Ferreira, Candice Nunes Bertaso

Quando se fala de um paradigma diferente, a concepção do


mundo (diferente) está baseada nas características da mediação. O
que no fundo se determina realidade é uma visão do mundo, um cri-
tério de produção de sentido, uma construção. Hoje há outra condição
de significação em que se dará um novo sentido, uma nova construção
da realidade. Vive-se a saudade do futuro, uma lembrança sem me-
lancolia.
O mediador é um “ajudador”, um facilitador da comunicação
entre as partes. As relações humanas são relações de comunicação, o
conflito pode estar aí, porque somos muitas vezes perversos na comuni-
cação. O maltrato da comunicação humana é um assédio simbólico. Nas
relações familiares há maus-tratos.
O mediador deve cuidar para que haja ternura nas relações de
comunicação. O mediador tem que ajudar as pessoas a aprenderem a
reivindicação. A função da mediação é reeducar as pessoas no modo
meigo e doce de falar e se relacionar. A comunicação é uma ponte, não
um obstáculo.
A mediação deve ajudar as pessoas a serem autônomas. Toda pai-
xão é desmedida e destrutiva. As cidades incas são construções duráveis
porque não existia cimento. Balançam, mas não caem porque cada peça
é autônoma. O mediador tem que ajudar para que as pessoas tenham
movimento próprio.
Luis elencou o rol do mediador da seguinte forma:

ROL DO MEDIADOR
- Facilitar e promover a comunicação;
- Promover a confiança no procedimento e na pessoa (tem que
ser sedutor e ter o comando);
- Estabelecer certo comando com as partes (controlar as situa-
ções);
- Dirigir o procedimento;
- Ajudar as partes a identificarem seus interesses e definirem as
questões em disputa;
A GROTESCA VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS NA MODERNIDADE E A MEDIAÇÃO 73
COMO DIREITO DO FUTURO: IN MEMORIAM A LUIS ALBERTO WARAT

- Ajudar a geração de opções de mútuo benefício;


- Ser agente da realidade;
- Ajudar a conhecer as necessidades do outro;
- Ajudar a pôr as fantasias no futuro;
- Ressaltar o aspecto positivo da negociação;
- Ajudar a manter viva a negociação;

A mediação deve ser guiada pela hospitalidade. O mediador tem


que ajudar as pessoas a serem hospitaleiras com o outro, que é uma con-
dição própria de nossa liberdade. Ser hospitaleiro pelo próprio corpo. Se
não conseguirmos ser hospitaleiros, se não conseguirmos abrir o corpo,
há crueldade. Temos que ser hospitaleiros.
Luis elencou também as características da mediação da seguinte
forma:

CARACTERÍSTICAS DA MEDIAÇÃO
- voluntária (o convencimento é voluntário/ sem coação);
- não adversária (não há ganhador ou vencedor);
- confidencial (sigilosa);
- terceiro imparcial que facilita a comunicação (restabelece o
diálogo);
- as partes compõem o conflito (elas recompõem, solucionam,
autocomposição assistida);
- rápida (comparada à Justiça Comum);
- econômica;
- informal, porém com estrutura (etapas);
- acento no futuro (preocupação com o futuro, o que passou,
passou);
- fomenta (incentiva) a criatividade;

Luis apresentou, por fim, as Etapas da Mediação da seguinte forma


(bem ao estilo dele, há uma mescla de espanhol com português no quadro):
74 Fernanda Busanello Ferreira, Candice Nunes Bertaso

ETAPAS DE UMA MEDIAÇÃO

Dito isso, podemos relatar um dos momentos mais marcantes de


todo o curso. Trata-se da dinâmica do Ursinho.
A GROTESCA VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS NA MODERNIDADE E A MEDIAÇÃO 75
COMO DIREITO DO FUTURO: IN MEMORIAM A LUIS ALBERTO WARAT

3. A Dinâmica do Ursinho e a Despedida– considerações finais

O curso durou dois dias e no segundo, na primeira parte da tarde,


Luis nos convidou a falarmos sobre nossas dores. Cremos ser importante
retratar a disposição da sala. Luis ordenou uma fileira de cadeiras que
ficava disposta de costas para a plateia (os alunos do curso). Então, ele nos
convidou a irmos lá, um a um. Cada pessoa pegava o urso de pelúcia, bem
pequeno, e o segurava na mão enquanto “conversava” com o bichinho, sen-
tado na cadeira de costas para os demais. No início as falas eram tímidas,
mas logo, sem perceber, falávamos de nossas principais questões.
O efeito psicanalítico dessa atividade é difícil de descrever e recon-
tar. Pelo que lembramos, grande parte das pessoas que realizaram a dinâ-
mica choraram ao confessar ao ursinho aquilo que lhes era mais dolorido.
Luis era muito bom na condução desse tipo de atividade. Ele nos contava
antes de suas experiências no divã e criava um clima de confiança e aco-
lhimento. Apenas quem conheceu o mestre de perto pode compreender a
dimensão que esse momento teve na vida de todos os presentes.
Luis gerou a partir da atividade um clima de diálogo, compaixão e
alteridade. Certamente, ali se estabeleceu o contágio. As sensibilidades foram
afloradas. A possibilidade do amor estava criada. Luis era assim, tocava as
pessoas profundamente. Tinha uma escuta privilegiada e era capaz de se
lembrar de cada história, anos depois de ocorrido o curso. Luis nos ajudou
a aprendermos a descobrir a nós mesmos. Foi um grande professor. Ele nos
mostrou como podemos violentar os demais quando achamos que praticamos
justiça. Ele mostrou todo o grotesco do direito e do Estado Moderno. Falou-
nos das violações aos direitos humanos que os magistrados, mas não só eles,
cometem ao decidir. Ele nos ensinou a ser gente. Nos ensinou o sentido de uma
mediação como direito do futuro. Nos ensinou a termos saudades do futuro
no momento de sua partida. Ao nos despedirmos de Luis, os abraços geraram
uma forte emoção em todos, então ali, naquele exato momento, entendemos o
real significado do sentimento de “saudade futura” que Luis tanto nos tentou
ensinar durante todo o curso. À Luis nossa eterna saudade, admiração e hu-
manidade resgatada. À Luis o nosso amor.
77

DISPUTAS POLÍTICAS, AÇÕES JUDICIAIS


E DIREITOS HUMANOS SOB A ÓTICA DA
FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA: A
TEORIA E A PRÁTICA DA IDEIA DE JUSTIÇA
NO BRASIL

Igor Suzano Machado 1

Introdução

O presente artigo tem como objetivo perscrutar a filosofia


política contemporânea para nela encontrar pontos de apoio teó-
ricos para a análise das disputas políticas atualmente em jogo no
Brasil. Inicialmente, será analisada a política em seu âmbito mais
tradicional, nas disputas entre governo e oposição, nas esferas dos
poderes Executivo e Legislativo. Num segundo momento, no en-
tanto, será dada atenção à disputa política que ocorre também no
poder Judiciário, tendo em vista o cenário recente de judicialização
da política e, consequentemente, politização da justiça. Por fim,
será feita nota relativa à temática específica dos direitos humanos e
como seu entendimento é afetado pelo debate teórico a que o artigo
se dedicou.

1 Doutor em Sociologia. Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universi-


dade Federal do Espírito Santo.
78 Igor Suzano Machado

1. Aportes da filosofia contemporânea 1: a teoria da justiça de Rawls

Norberto Bobbio2 (define quatro compreensões distintas acerca


da filosofia política. Para o autor, a filosofia política pode: 1. funcionar
como uma espécie de “metaciência”, fornecendo bases epistemológicas
para a ciência política; 2. delimitar o âmago do exercício do poder po-
lítico, definindo o objeto de análise da ciência política; 3. investigar as
fontes de legitimidade do exercício do poder político, justificando a do-
minação legítima; ou 4. buscar a definição do Estado ou governo ideal,
como feito em obras como “A República”, de Platão, ou “A utopia”, de
Thomas More. Estas duas últimas tarefas da filosofia política respon-
dem por seu caráter normativo, pela função de dar à prática política
uma orientação em direção à melhor forma de governo e organização
da sociedade. Essa dimensão normativa da filosofia política ganhou no
século passado um capítulo especialmente importante, abrindo uma
discussão bastante frutífera acerca da justiça, como valor fundamental
das instituições sociais.
Tal capítulo foi aberto pela influente obra “Uma teoria da Justiça”
de John Rawls. Considerando que, assim como a verdade deve ser a
principal virtude de qualquer sistema de conhecimento, a justiça deve
ser a virtude central de qualquer instituição social,3 o filósofo norte-a-
mericano buscou construir uma teoria da justiça inspirada da tradição
liberal que fosse capaz de oferecer diretrizes atraentes para a política en-
quanto forma de organização da sociedade. Conforme salienta Michael
Sandel,4 “o fato de a obra inicial de Rawls Uma teoria da Justiça ter pro-
vocado não um debate, mas três é bem a medida de sua grandeza”. Os
três debates postos em destaque por Sandel dizem respeito aos embates
entre Rawls e: 1. o utilitarismo; 2. o libertarismo; e 3. o comunitarismo.
O debate de Ralws com o utilitarismo é, dentre os três, aquele que

2 BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e a lição dos clássicos. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2000, p. 67-69.
3 RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 3
4 SANDEL, Michael. O liberalismo e os limites da justiça. Lisboa: Fundação Calouste Gulbeskian
2005, p. 245.
disputas políticas, ações judiciais e direitos humanos sob a ótica da filosofia política contemporânea: 79
a teoria e a prática da ideia de justiça no brasil

podemos considerar como verdadeiramente provocado pela iniciativa


de Rawls. Na verdade, sua teoria de justiça é uma tentativa explícita de
romper com o utilitarismo. Segundo os utilitaristas, como Jeremy Ben-
tham e John Stuart Mill, há entre os seres humanos muitas divergências
acerca do que seria justo. Dessa forma, seria difícil apelar a uma com-
preensão específica acerca do que é justo com o objetivo de organizar
toda a sociedade em torno de seus ditames. Sendo assim, mais correto
seria reconhecer que o ser humano é dominado por dois senhores, o
prazer e a dor,5 e postular que o único parâmetro confiável para a or-
ganização da sociedade seria o princípio da utilidade, que consiste na
maximização da soma dos prazeres e diminuição da soma das dores,
consideradas as sensações de todos os membros da comunidade, toma-
dos em situação de igualdade.
A querela de um liberal como Rawls perante uma ideia de justi-
ça utilitarista é que ela permite que se violem direitos individuais, caso
disso resulte um maior saldo de felicidade no âmbito da sociedade em
geral. Pode-se mesmo considerar que a discriminação de uma mino-
ria pode ser justificada se a felicidade gerada à maioria discriminatória
compensar, no cômputo geral, a tristeza daqueles discriminados. Rawls
argumenta então, que existem direitos dos indivíduos que não podem
entrar nesse cálculo utilitário e devem ser defendidos tendo em vista
um padrão de justiça que mesmo a felicidade da maioria não permite
ser sobrepujado. Assim, contra o ceticismo dos utilitaristas quanto à
possibilidade da fixação de princípios de justiça endossados por to-
dos, Rawls constrói sua teoria justamente em busca desses princípios de
justiça em torno dos quais ele acredita que haveria um consenso. Dessa
forma, ele alega que pessoas livres e iguais, unidas num sistema equitati-
vo de cooperação – a sociedade – escolheriam dois princípios de justiça,
cuja redação final é a seguinte:

a) Cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável a um esquema


5 BENTHAM, Jeremy. “O princípio de utilidade”. In: MAFFETTONE, Sebastiano; VECA, Sal-
vatore (orgs.). A ideia de justiça de Platão a Rawls. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Pág. 231-
238. p. 231.
80 Igor Suzano Machado

plenamente adequado de liberdades básicas iguais que seja


compatível com o mesmo esquema de liberdades para todos; e
b) As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas
condições: primeiro, devem estar vinculadas a cargos e posi-
ções acessíveis a todos em condições de igualdade equitativa
de oportunidades; e, em segundo lugar, têm de beneficiar ao
máximo os membros menos favorecidos da sociedade (prin-
cípio da diferença).6

Para justificar a concordância de todos em torno desses dois


princípios de justiça, Rawls recorre a um expediente filosófico a que de-
nomina de “posição original”, uma situação hipotética a partir da qual
as pessoas decidiriam os princípios de justiça que deveriam orientar a
estrutura básica da sociedade. Essa posição original, Rawls deixa claro,
é hipotética e ahistórica, não tendo nunca existido realmente. Mesmo
assim, ele argumenta, enquanto experimento filosófico ela nos permiti-
ria pensar em quais seriam os princípios de justiça em torno dos quais
concordaríamos se os discutíssemos em situação de equidade. Essa con-
dição de equidade seria garantida pelo que chamou de “véu da igno-
rância”. Tal categoria visa explicar a condição das pessoas envolvidas na
posição original que seriam pessoas que ignorariam seus reais vínculos
sociais, ignorando, dentre outras coisas, se seriam ricas ou pobres, ho-
mens ou mulheres, assim como suas vinculações étnicas e religiosas.
Ignorando tais fatos, as pessoas chegariam a dois princípios de justiça
sob os quais não se sentiriam injustiçadas, independentemente de sua
situação real na sociedade. Esses princípios seriam exatamente os prin-
cípios de justiça citados acima, que permitem a Rawls estabelecer uma
teoria da justiça em contraponto ao ceticismo utilitarista.
Há respostas utilitaristas a Rawls e importantes autores contem-
porâneos que abraçam alguma vertente do utilitarismo. Ainda assim,
o presente trabalho não irá se concentrar no utilitarismo, apoiando-se

6 RAWLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.
60.
disputas políticas, ações judiciais e direitos humanos sob a ótica da filosofia política contemporânea: 81
a teoria e a prática da ideia de justiça no brasil

inicialmente na própria teoria de Rawls e de seus críticos libertários e


comunitários, para refletir acerca da política brasileira contemporânea.
Num segundo momento, o texto também irá se estender a críticas que
tentam pensar a justiça fora desse eixo rawlsiano, desenvolvido, se-
gundo tais críticas, sem questionar a ideia de redistribuição – crítica
daqueles vinculados a teorias do reconhecimento – a centralidade da
tradição política e filosófica ocidental – crítica daqueles vinculados a
teorias mutliculturalistas – e a dominação masculina – crítica daqueles
vinculadas a teorias feministas. Mas voltemos a Rawls e seus críticos do
libertarismo e comunitarismo.

2. Aportes da filosofia contemporânea 2: o debate em torno da teoria


de justiça de Rawls

Ao oferecer um substrato filosófico a um governo social-demo-


crata que assume a responsabilidade pela igualdade sem abrir mão da
defesa de direitos individuais, a teoria de justiça de Rawls ocupou o
mainstream da política, seja enquanto teoria, seja enquanto prática. Não
à toa, podemos considerar que também os principais pleiteadores ao
governo de Brasil têm apresentado afinidades com a teoria da justiça
de Rawls, no que tange à organização da estrutura básica da sociedade
brasileira. Dois dos partidos políticos que têm protagonizado as elei-
ções presidenciais no Brasil, o Partido dos Trabalhadores e o Partido
da Social Democracia Brasileira, não obstantes diferenças marcantes,
têm apostado em alguma variante da ideia de justiça trazida à tona por
Rawls, chamadas por alguns autores de “liberalismo igualitário”.7 Isto é,
ambos os partidos endossam instituições apoiadas em alguma medida
nos princípios de justiça rawlsianos, por mais que um deles tente dar
mais ênfase à dimensão “liberal” e outro à dimensão “igualitária” desse
liberalismo igualitário proposto por Rawls.
Essa amplitude de apoios possíveis às ideias de Rawls, envolven-
do grupos que pertencem a diferentes campos do espectro político,

7 DE VITA, Álvaro. A justiça igualitária e seus críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
82 Igor Suzano Machado

pode ser explicada por uma certa ambiguidade, contida na segunda


parte do segundo princípio de justiça formulado pelo autor, chamado
“princípios da diferença”. Como destaca Perry Anderson:

A enorme ambiguidade da teoria da justiça rawlsiana está


precisamente nesse ponto. Seria o princípio da diferença
uma convocação para uma redistribuição de renda quase so-
cialista – uma vez que, conforme uma leitura, parte tão pe-
quena das gritantes disparidades que nos envolvem contribui
para o bem estar dos pobres? Ou seria ele, conforme outra
leitura, apenas uma defesa sensata da operação normal do
capitalismo – cujo crescimento constante de produtividade,
que aumentou os padrões gerais de vida, exige exatamente as
estruturas de incentivo, testadas e julgadas pela experiência,
que temos hoje?8

Contra essa ambiguidade acerca de uma justiça redistributiva que


a teoria de justiça de Rawls possa avalizar, seus críticos agrupados sobre
o rótulo de libertários, ou ultra-liberais, costumam radicalizar as exi-
gências da liberdade contra a ideia de igualdade. Assim, autores como
Robert Nozick, ou Friedrich Hayek, questionam a existência de alguma
coisa como “a sociedade”, em detrimento dos indivíduos, negando a ne-
cessidade de se pensar tal sociedade como um “sistema equitativo de
cooperação”, na linha proposta por Rawls. Para os libertários, não existe
isso de sociedade, mas apenas os indivíduos. Dessa forma, a cooperação
social não resolve o problema de redistribuição, mas sim é responsável
por criá-lo,9 já que a redistribuição não seria necessária se fosse aban-
donada a ideia antropomórfica de pensar a sociedade como se fosse um
“metaindivíduo”, que requer a miragem da “justiça social”.10 Segundo
Hayek, essa miragem apenas nos empurra em direção a uma inevitável
8 ANDERSON, Perry. Afinidades seletivas. São Paulo: Boitempo. 2002, p. 348.
9 NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 235-244.
10 HAYEK, Friedrich. “A miragem da justiça social”. In: MAFFETTONE, Sebastiano; VECA,
Salvatore (orgs.). A ideia de justiça de Platão a Rawls. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 367-
368.
disputas políticas, ações judiciais e direitos humanos sob a ótica da filosofia política contemporânea: 83
a teoria e a prática da ideia de justiça no brasil

restrição das liberdades individuais, contribuindo gradativamente para


a ascensão do totalitarismo.11 Como consequência, ao contrário do li-
beralismo de Rawls, que pode justificar uma presença mais intensa do
Estado na regulação da sociedade, o libertarismo exigiria a efetivação
de um “Estado mínimo”, como sendo o máximo de Estado que pode ser
justo e inspirador.12
Essa versão radicalizada do liberalismo – este, nada igualitá-
rio – possui seus admiradores no Brasil, orientando a prática política
de alguns setores, como certos veículos da mídia escrita. Apenas para
citar um exemplo da mobilização do libertarismo na disputa política
nacional, trago à tona uma citação do colunista Rodrigo Constantino,
então da Revista Veja, em que, contra um Estado, como o brasileiro,
que assume tarefas que vão muito além da defesa contra a violência e a
fraude, destaca que:

O paternalismo toma contornos preocupantes quando ten-


ta nos proteger de nós mesmos. É uma premissa perigosa.
Quando o governo avança na questão do fumo, a reação é
tímida pois, como lembra o jornalista, trata-se de um setor
antipático. Mas isso abre um precedente, e a Anvisa já de-
monstrou estar disposta a se meter em diversos outros assun-
tos privados, sempre em nome do “bem-geral”. 13

Apesar de poder ser entendida como uma crítica vinda da “di-


reita” – na diferenciação tradicional das ideologias políticas, entre
esquerda e direita – a crítica libertária é apenas uma das possíveis
críticas vindas do, por assim dizer, lado direito do espectro políti-
co. Isto porque há uma direita conservadora, que pode criticar um
governo e intervir politicamente com base num conservadorismo
moral, que não necessariamente se coaduna com a sacralidade que a
11 HAYEK, Friedrich. “A miragem da justiça social”. In: MAFFETTONE, Sebastiano; VECA,
Salvatore (orgs.). A ideia de justiça de Platão a Rawls. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 377
12 NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. IX
13 Disponível em: http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/tags/merval-pereira/
page/2/ Acesso em: 13/07/2014.
84 Igor Suzano Machado

liberdade de escolha individual possui para os libertários. 14 Contu-


do, falar em conservadorismo implica outra ótica de classificação da
ação política, pautada não por sua referência a uma filosofia política
normativa, mas por uma orientação temporal, na defesa da restaura-
ção – caso da política reacionária – da conservação – caso da política
conservadora – ou da transformação – caso da política revolucio-
nária ou reformista – da realidade social, o que não é o cerne do
presente trabalho.
Inclusive, uma postura conservadora pode encontrar respaldo
normativo mais vigoroso na crítica comunitária do que na crítica li-
bertária da obra de Rawls. Isto porque os comunitaristas atacam o li-
beralismo rawlsiano por entenderem que o dispositivo utilizado por
Rawls para definir seus princípios de justiça – a ideia da posição ori-
ginal, qualificada pelo chamado véu da ignorância – é falho. Segun-
do esses críticos, as pessoas não estão interessadas em saber quais
princípios de justiça elas escolheriam numa situação hipotética em
que se encontram separadas de suas vinculações sociais e culturais
reais. Pelo contrário, interessaria a elas saber quais princípios pes-
soas reais, que estão situadas num mundo recheado por diferentes
compromissos éticos de cunho cultural, religioso, etc., escolheriam
continuar endossando.15 Desta forma, os comunitaristas questionam
a prioridade que Rawls concede ao justo, em detrimento do bom.
Isto é, questionam como Rawls pode atribuir um conteúdo à justiça,
sem precisar a compreensão dos envolvidos naquele acordo sobre
a justiça a respeito do que seria a melhor forma de auto-realização,
individual ou do grupo.16
Há um individualismo que embasa o liberalismo seja em sua ver-
tente igualitária de Rawls, seja em sua vertente mais radical de libertá-
14 O já citado libertário Friedrich Von Hayek, inclusive, possui um texto intitulado exatamente
“Por que não sou conservador”, que pode ser acessado em: http://ordemlivre.org/posts/por-
que-nao-sou-conservador
15 WALZER, Michael. Esferas de justiça: uma defesa do pluralismo e a da igualdade. São Paulo:
Martins Fontes, 2003, p. 4
16 SANDEL, Michael. O liberalismo e os limites da justiça. Lisboa: Fundação Calouste Gulbeskian
2005, p. 246.
disputas políticas, ações judiciais e direitos humanos sob a ótica da filosofia política contemporânea: 85
a teoria e a prática da ideia de justiça no brasil

rios como Nozick e Hayek. Contra esse individualismo, os comunitaris-


tas destacam a importância dos laços sociais e culturais na definição da
própria individualidade. Se, para os libertários, não existe isso de socie-
dade, mas apenas os indivíduos, para os comunitaristas, pelo contrário,
só é possível se pensar em indivíduos dentro de um contexto social. Isso
faz com que eles questionem um ponto importante da justiça rawlsiana
que é a diferença entre uma teoria política da justiça, que deve regular o
espaço público, e diferentes “doutrinas morais abrangentes”, que devem
ser escolhidas no âmbito da vida privada. Exemplo dessas doutrinas
morais abrangentes seriam as religiões, que, para Rawls, devem estar
circunscritas a práticas privadas, não podendo formatar justificativas
no uso da razão pública. Pode até haver, afirma Rawls, um “consenso
sobreposto” entre os valores destas diferentes doutrinas morais abran-
gentes e os princípios de justiça que ordenam a estrutura básica da so-
ciedade. Contudo, o fundamento de validade de tais princípios não está
nesse consenso sobreposto, mas na hipótese da posição original, que
se encontra desvinculada de qualquer contexto histórico, geográfico e
cultural específico.17
Para os comunitaristas, essas doutrinas morais abrangentes são
menos uma escolha dos indivíduos, tal como pressupõe o liberalismo
individualista, do que um contexto que molda a própria individualida-
de, não podendo ocupar lugar tão subalterno no debate público. Con-
forme destaca Michael Sandel:

Em modos diferentes, aqueles que questionam a prioridade


do justo contestam a concepção de pessoa de Rawls, pers-
pectivada como um eu livre e independente, destituído de
laços morais anteriores. Defendem que uma concepção de eu
dada antes dos seus objetivos e dos seus vínculos não conse-
gue fazer sentido de determinados aspectos importantes de
nossa experiência moral e política. Certas obrigações morais
e políticas que comumente reconhecemos – obrigações de
solidariedade, por exemplo, ou deveres religiosos – podem
17 RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 44-72.
86 Igor Suzano Machado

constituir para nós obrigações que nada têm a ver com uma
escolha.18

Se, por um lado, a filosofia política comunitarista fundamenta uma


solidariedade social que pode ser mobilizada em direção a transforma-
ções coletivas contra a primazia do individualismo liberal, valorizando
a previdência social e a transferência de renda entre setores mais ricos e
mais pobres da sociedade, por outro, é ela também que melhor funda-
menta o conservadorismo moral, e a interferência, para o bem ou para
o mal, de doutrinas morais abrangentes, como a religião, na esfera públi-
ca. Por exemplo, a indicação, pelo governo, de um ministro do Supremo
Tribunal Federal (STF) que defenda a união homoafetiva e o direito ao
aborto, pode ser vista, do ponto de vista de uma filosofia política liberal
ou libertária, como o endosso da proteção das liberdades individuais, en-
quanto critério de justiça, independentemente do que expressam os va-
lores culturalmente dominantes acerca do que seria a vida boa e a mais
plena realização pessoal. Contudo, considerando-se, como fazem os co-
munitaristas, que a justiça não pode ser definida sem levar em conta os
valores determinados pela cultura do grupo afetado, é possível criticar a
indicação, ou, ao menos, considerá-la uma escolha política dentro de um
campo moral em disputa. Como exemplo de uma crítica desse tipo, po-
demos trazer à tona a manifestação do pastor Silas Malafaia contra a in-
dicação do ministro do STF Luis Roberto Barroso pela presidenta Dilma:

Como podemos votar em alguém onde a sua prática sinaliza


seus princípios que são totalmente contrários aos nossos? O
advogado indicado para a mais alta corte no país defende o
aborto e a causa gay. Assim como a presidente tem o direito
de fazer esta indicação, nós temos o direito de dizer com o
nosso voto que não concordamos com esta ideologia. 19

18 SANDEL, Michael. O liberalismo e os limites da justiça. Lisboa: Fundação Calouste Gulbeskian


2005, p. 248.
19 Disponível em: http://www.verdadegospel.com/dilma-indica-para-stf-advogado-que-defen-
de-aborto-e-gays-pr-silas-comenta/ Acesso em 13/07/2014.
disputas políticas, ações judiciais e direitos humanos sob a ótica da filosofia política contemporânea: 87
a teoria e a prática da ideia de justiça no brasil

Se não há diferença de estatura ou campo de influência, como


gostaria Rawls, entre a sua teoria política de justiça e doutrinas morais
abrangentes como as religiões, os ideais de justiça propagados pelas di-
ferentes religiões podem disputar com o liberalismo político de Rawls a
primazia no ordenamento da estrutura básica da sociedade em situação
de igualdade. No comunitarismo, esta possibilidade é aberta pelo ar-
gumento de que não há primazia do justo sobre o bom, que é definido
por vinculações sociais reais e não por uma posição original hipotética
e ahistórica. É o que se depreende da argumentação de Sandel, quando
diz que:

Em primeiro lugar, e independentemente da importância


dos “valores políticos” para que Rawls apela, nem sempre é
razoável excluir ou pôr de parte, para efeitos políticos, as exi-
gências e reivindicações que emergem a partir de doutrinas
morais e religiosas abrangentes. No que a questões morais
importantes diz respeito, a questão de saber se é ou não ra-
zoável excluir controvérsias morais e religiosas de modo a
salvaguardar um acordo político depende de qual das doutri-
nas morais ou religiosas em causa é verdadeira.20

Contudo, se, em termos de fundamentação, os comunitaris-


tas divergem dos liberais acerca do que justifica princípios de justiça
responsáveis por ordenar politicamente a sociedade – para os últimos,
esse fundamento é metafísico e individualista e, para os primeiros, esse
fundamento é situado no tempo e no espaço e assume contornos coleti-
vistas – em termos de proposição de ação, os autores vinculados ao co-
munitarismo não costumam apresentar programas tão diferentes assim
dos liberais. Isto porque tendem a aceitar que a cultura em que estão
inseridos dá sacralidade aos direitos individuais, de forma que, sob ou-
tro fundamento, prescrevem o mesmo tipo de defesa do individualismo

20 SANDEL, Michael. O liberalismo e os limites da justiça. Lisboa: Fundação Calouste Gulbeskian


2005, p. 257.
88 Igor Suzano Machado

proposto pelo liberalismo rawlsiano. No fundo, trata-se de um debate


interno às premissas do individualismo liberal, quanto aos seus funda-
mentos.21
Há, no entanto, algumas correntes da filosofia política contempo-
rânea que atacam este debate de fora, ou questionando seu foco na ideia
de interesse e de distribuição de recursos, ou pretendendo falar de uma
posição diferenciada em termos geográficos ou em termos de situação
social. Conforme esboçado acima, trata-se de uma crítica a um debate
no qual homens ocidentais discutiam acerca da melhor forma de distri-
buição de recursos. Segundo alguns críticos, faltaria a este debate uma
discussão sobre lutas sociais que buscam não a redistribuição, mas o
reconhecimento, assim como uma discussão acerca da distinção públi-
co/privado, que exclui as mulheres da política, e uma discussão acerca
da multiplicidade de culturas, cujas diferentes cosmologias nem sempre
coincidem com a cultura ocidental que embasa o liberalismo.

3. Aportes da filosofia contemporânea 3: Reconhecimento, multicul-


turalismo e feminismo

Quando foi posto em destaque, anteriormente, o embate entre


liberais e libertários, foi frisada a abertura da justiça liberal de Rawls a
uma interferência política na redistribuição de recursos. A ideia de re-
distribuição, assim, diria respeito a uma exigência de justiça, que pode
ser verificada na ação dos movimentos sociais operários de inspiração
marxista. Trata-se dos movimentos sociais mais tradicionais, orientados
pela lógica dos interesses contraditórios entre patrões e empregados, em
que os últimos exigem uma maior igualdade econômica, como forma de
superar uma exploração injusta de seu trabalho. Há autores contempo-
râneos, contudo, que negam a centralidade da categoria do interesse na
definição das pautas das lutas dos movimentos sociais, em especial dos
novos movimentos sociais em busca de direitos civis, como o movimen-

21 EISENBERG, José. A democracia depois do liberalismo: ensaios sobre ética, direito e política.
Rio de Janeiro: Relume Darumá, 2003.p. 141-142.
disputas políticas, ações judiciais e direitos humanos sob a ótica da filosofia política contemporânea: 89
a teoria e a prática da ideia de justiça no brasil

to negro e o movimento feminista. Essa retirada da ideia de interesse na


redistribuição do centro das motivações dos movimentos sociais pode
ser pensada, por exemplo, pela análise do movimento LGBT. Pode-se
pensar, digamos, no caso de um empresário homossexual, que não ne-
cessariamente tem algum interesse na redistribuição de recursos econô-
micos, mas tem interesse na transformação da sociedade numa direção
que o inclua de uma forma em que ele ainda não se sinta incluído, que
vai além da esfera econômica, dizendo respeito à obtenção de direitos já
possuídos pelos heterossexuais, ou à não discriminação de sua conduta
pelos demais membros da sociedade.
É para dar conta dessas diferentes demandas dos novos movi-
mentos sociais, que alguns autores chamam atenção para a chamada
“luta por reconhecimento”. Nesse caso, o que está em jogo não é a re-
distribuição de recursos econômicos, mas o reconhecimento moral dos
grupos que patrocinam tais lutas como merecedores de respeito nas
esferas do amor de outros indivíduos, dos direitos garantidos pelo Es-
tado, e da solidariedade prestada pelo grupo.22 Por mais que haja auto-
res, como Nancy Fraser,23 que considerem a luta por reconhecimento
como mais uma luta, além da luta por redistribuição, há autores como
Axel Honneth que emprestam às lutas por reconhecimento um caráter
central, sendo as lutas por redistribuição derivadas das lutas por reco-
nhecimento, e não o contrário. Não obstante o debate em torno desse
ponto, para os fins do presente estudo, basta-nos pôr em destaque que
a redistribuição econômica não necessariamente satisfaz todas as de-
mandas sociais subalternas, por vezes voltadas à aquisição de direitos e
diminuição das discriminações sociais, objetivos para os quais a mera
redistribuição econômica não oferece caminho satisfatório.
Como já destacado anteriormente, este ponto é especial-
mente sensível para a pauta de luta de minorias discriminadas

22 HONNETH, Axel. A luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São
Paulo: Editora 34, 2003.
23 FRASER, Nancy. “Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-so-
cialista”. In: SOUZA, Jessé (Org.). Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática
contemporânea. Brasília: UNB, 2001. Pág. 245-254..
90 Igor Suzano Machado

por orientação sexual. Tendo isso em vista, é interessante trazer à


tona para ilustrar esse embate na arena de disputa política nacio-
nal, uma manifestação do deputado federal Jean Wyllys, criticando
justamente a leniência do governo federal no tratamento da causa
LGBT, ao não permitir a circulação de material escolar destinado
à educação para tolerância perante a diversidade sexual. Segundo
o deputado:

Se a presidenta optar por ceder à chantagem — não há ou-


tro nome — dos inimigos da cidadania plena fazendo de seu
mandato um lamentável estelionato eleitoral, só me resta es-
perar que, na próxima eleição, os LGBTs e pessoas de bom
senso despertem sua consciência política e lhe apresentem
também sua fatura: não voto! 24

A acusação aos “inimigos da cidadania plena” ilustra bem o


ponto de apoio na ideia de reconhecimento moral que pauta as lutas por
reconhecimento. Não se trata apenas de acesso a bens materiais, como
seria o caso de uma luta por redistribuição, mas o fim da discriminação
moral de um grupo, que deveria possuir o mesmo acesso à cidadania,
seja em termos de direitos, seja em termos de solidariedade social, de
outros grupos que já gozam de tais prerrogativas.
Ponto semelhante é levantado pelos defensores do multicultu-
ralismo. Neste caso, contra a discriminação cultural, aposta-se no re-
conhecimento da diversidade cultural como valor positivo, devendo
ser festejado e incentivado pela sociedade e pela política.25 No entanto,
apesar de pregar o reconhecimento do valor de culturas não ocidentais,
em geral discriminadas, estigmatizadas e consideradas menos evoluí-
das, nem sempre o diálogo entre as teorias multiculturalistas e as teorias
do reconhecimento leva a uma perfeita sobreposição de visões políticas.

24 Disponível em: http://m.noticias.uol.com.br/educacao/2011/05/25/deputado-jean-wyllys-la-


menta-estelionato-eleitoral-na-suspensao-ao-kit-anti-homofobia.htm Acesso em: 13/07/2014.
25 HEYWOOD, Andrew. Ideologias políticas: do feminismo ao multiculturalismo. São Paulo: Áti-
ca, 2010, p. 105.
disputas políticas, ações judiciais e direitos humanos sob a ótica da filosofia política contemporânea: 91
a teoria e a prática da ideia de justiça no brasil

Isso porque, por mais que exista um “multiculturalismo liberal”, como


o proposto por Will Kymlikca,26 o multiculturalismo aceita direitos vin-
culados a grupos sociais específicos, que nem sempre vão ao encontro
da tradição política liberal ocidental, sobre a qual está baseada também
a ideia de reconhecimento nas esferas do amor, do direito e da solidarie-
dade proposta por Honneth. Dessa forma, o multiculturalismo acusa o
eurocentrismo das teorias políticas contemporâneas, dando espaço, por
exemplo, a perspectivas pós-colonialistas, em que são construídas pers-
pectivas políticas originadas na, por assim dizer, “periferia do mundo”,
especialmente nas ex-colônias europeias na África, Ásia e América do
Sul.
No caso brasileiro, a questão do multiculturalismo gera ten-
sões especialmente no campo dos embates religiosos, mormente no
caso do reconhecimento das religiões de matriz africana, assim como
no que diz respeito às diferentes culturas indígenas, quando não têm
suas cosmologias próprias respeitadas como fonte genuína de deman-
das por direitos diferenciados, capazes de dar guarida a práticas so-
ciais e formas de conhecimento que nem sempre coincidem inteira-
mente com os padrões impostos pelos colonizadores e que informam
o grosso de nossas instituições políticas e nossos direitos. Exemplo
desse “desencontro” entre demandas das diversas etnias indígenas e
uma orientação política alheia a essa diversidade cultural, pode ser
ilustrada na crítica de Moysés Pinto Neto, durante o governo Dilma,
quando diz que:

Isso significa que, provando sua brutal ignorância antropoló-


gica, boa parte da esquerda, e em especial a que hoje governa
o país, considera que o índio é alguém que precisa ser “incluí-
do”, ser transformado em trabalhador e se unir à luta dos de-
mais contra o capitalismo. Em outros termos, essa esquerda
subscreve o etnocídio que significaria erradicar as culturas
indígenas e as desfigura para que caibam no seu esquadro

26 KYMLICKA, Will. Multicultural odysseys: navigating the new international politics of diversity.
Oxford ; New York: Oxford University Press, 2007.
92 Igor Suzano Machado

reduzido que obviamente é um reflexo torto do mundo eu-


ropeu. 27

Além de ser acusada de estar centrada na ideia de redistribuição


e em instituições de origem europeia, a política contemporânea também
é atacada por contar com pressupostos machistas, responsáveis por ex-
cluir as mulheres da participação política. Trata-se da crítica da teoria
política feminista que se, num primeiro momento, centrou-se no direito
feminino ao sufrágio, expandiu-se depois a uma crítica mais profunda à
sociedade patriarcal. Isso porque observou-se que o sufrágio universal
não garantiu às mulheres a emancipação esperada por meio da parti-
cipação política. A esfera pública, do trabalho, da política, da guerra,
etc., ainda era um mundo masculino, pautado num imaginário social
que reduzia o lugar das mulheres à esfera doméstica. Caberia então às
mulheres realizar uma crítica a essa organização social mais profunda-
mente enraizada na sociedade e responsável por estruturá-la de forma
bastante ampla, que é o patriarcado.
Num sentido estrito, a ideia de patriarcado, o governo do pai,
tem a ver com a organização familiar, organizada com base na domina-
ção do homem sobre a mulher e dos mais velhos sobre os mais novos.
Contudo, essa organização familiar informa a constituição da sociedade
como um todo, de que é exemplo a baixa presença das mulheres em
cargos de liderança, mesmo quando a distribuição quantitativa entre os
dois sexos, na empresa ou no partido, possui números mais igualitários.
Além do patriarcado, a crítica feminista também possui como
alvos importantes a distinção entre público e privado e a indistinção entre
sexo e gênero.28 Quanto à primeira, a crítica feminista recai sobre a já indi-
cada presunção de importância maior a um âmbito público ocupado por
homens, em detrimento de um espaço doméstico em que são reclusas as
mulheres. Nesse sentido, é importante salientar a posição ambígua da fa-

27 Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/532997-por-que-o-racismo-contra-indi-


genas-e-o-maior-de-todos-no-brasil Acesso em 13/07/2014.
28 HEYWOOD, Andrew. Ideologias políticas: do feminismo ao multiculturalismo. São Paulo: Áti-
ca, 2010, p. 24.
disputas políticas, ações judiciais e direitos humanos sob a ótica da filosofia política contemporânea: 93
a teoria e a prática da ideia de justiça no brasil

mília na teoria de Rawls, ora fazendo parte, ora sendo excluída a estrutura
básica da sociedade. Tal estrutura costuma estar restrita às instituições
políticas, ao mercado, às relações internacionais, etc. E só a elas devem
ser aplicados os princípios de justiça da teoria da justiça de Rawls. Como
consequência, como pensar injustiças que operam e se reproduzem não
nessa esfera pública tradicional, mas no âmbito privado, como na organi-
zação familiar em que o patriarcado realiza suas principais operações de
jugo das mulheres? Daí a importância, para as feministas, de se pensar a
justiça refletindo também sobre a distinção entre público e privado, para
que não se exclua de antemão algumas formas importantes que assume a
injustiça praticada contra as mulheres.
Deve-se ter sempre em mente, no entanto, que existem muitos
feminismos, e, consequentemente, muitas formas de se pensar a distinção
entre público e privado. Por exemplo, o feminismo liberal não estará dis-
posto a tornar indistintas as fronteiras entre público e privado. Logo, essa
distinção é mais uma questão com a qual o feminismo deve se defrontar
para pensar a emancipação das mulheres, do que uma receita pronta a
ser aplicada enquanto parâmetro universal de justiça. O mesmo pode ser
dito a respeito da distinção entre sexo – fisiologia de natureza biológica –
e gênero – comportamento condicionado socialmente a respeito do que
se espera de homens e mulheres enquanto parâmetro de masculinidade
ou feminilidade. Há teorias feministas essencialistas em que a vinculação
entre sexo e gênero é considerada importante, pondo-se em evidência a
necessidade de maior presença de características femininas numa socie-
dade pautada por características masculinas. Mas há também, por ou-
tro lado, teorias feministas anti-essencialistas que negam a existência de
qualquer essência acerca do que seja masculino e feminino, devendo tais
diferenciações entre feminino e masculino serem desconstruídas, em vez
de glorificadas. Mesmo a vinculação entre sexo e natureza é relativizada
por algumas correntes do feminismo, que destacam o quanto a própria
fisiologia já é hoje construída e reconstruída por padrões sociais.
De qualquer forma, seja para destacar a necessidade de um mun-
do mais feminino, ou para questionar o que seja feminino e masculino,
94 Igor Suzano Machado

a questão do gênero e seu lugar na estrutura social se faz presente como


uma das principais questões da teoria feminista e, consequentemente,
ponto fundamental da agenda política daqueles orientados pelas con-
tribuições políticas do feminismo para se pensar numa sociedade mais
igualitária entre homens e mulheres. A feminista Telia Negrão ilustra
bem o ponto, quando, ao criticar o governo, diz que:

Na minha avaliação, as estratégias atuais de enfocar câncer de


mama e colo de útero e saúde materno-infantil, além de da-
rem conta das razões de adoecimento e morte das mulheres,
não estão considerando as questões de gênero. Assim como
não levam em consideração o direito das mulheres a uma
vida sem violência e em condições de realizar suas escolhas
sexuais e reprodutivas. 29

Trata-se de mais um exemplo de como a teoria reverbera na prá-


tica, quando analisamos a política. No conjunto dos exemplos citados
anteriormente, temos uma amostra de um quadro rico de disputas em
torno do campo teórico e prático acerca da direção que devem tomar
nossas instituições públicas para levarem a sério a afirmação de Rawls –
que pauta esse extenso debate acerca do que é justo na filosofia política
contemporânea – de que a busca pela justiça está para as instituições
sociais como a busca pela verdade está para os sistemas de pensamento.
Consequentemente, demandas como essas devem ser observadas nas
disputas políticas envolvidas nas próximas as eleições brasileiras e seus
desdobramentos nos governos que originarem. Gostaria, no entanto, de
chamar a atenção também para como esse debate reverbera em outra
arena de disputa política, menos tradicional. Trata-se da política feita
no Judiciário, num contexto que se convencionou chamar de “judiciali-
zação da política”.30 Este é o tema do tópico seguinte.
29 Disponível em: http://www.viomundo.com.br/entrevistas/telia-negrao-governo-dilma-ainda-
sem-rumo-na-saude-das-mulheres.html Acesso em 13/07/2014.
30 VIANNA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; MELO, Manuel Palácios
Cunha; BURGOS, Marcelo Baumann. A judicialização da política e das relações sociais no Bra-
sil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.
disputas políticas, ações judiciais e direitos humanos sob a ótica da filosofia política contemporânea: 95
a teoria e a prática da ideia de justiça no brasil

4. Filosofia política e disputas no Judiciário.

Há muitos esforços teóricos no sentido de isolar o direito da po-


lítica e da moral. Sob essa perspectiva, não faz sentido refletir sobre a
importância dos argumentos políticos acerca da justiça no que tange
ao mundo do direito. Nesse caso, a interferência da política no direito
deve ser encarada como patológica, e denunciada como indevida. Mas
há compreensões acerca do direito que não o encaram como livre da
filosofia política, de que é exemplo a teoria jurídica de Ronald Dworkin
e sua ideia de leitura moral da Constituição.31 Nesse caso, a acusação
deixa de ser a respeito da indevida presença da moral e da política no di-
reito, e passa a ser a respeito da presença, no direito, de uma orientação
política e moral correta ou equivocada. Nesse caso, Dworkin, bastante
influenciado pela obra de Rawls, reconhece a importância da filosofia
política no direito, para exigir que essa filosofia política a orientar as
práticas judicias seja uma de matriz liberal igualitária. Ainda que não
se reconheça a necessidade de orientação liberal para a prática judicial,
como faz Dworkin, pode-se tomar a obra do jusfilósofo norte-america-
no como uma referência para se pensar a influência da filosofia política
na construção do direito legal e jurisprudencial. O que ganha impor-
tância central num contexto em que o Judiciário tem assumido funções
políticas importantes, como o controle de constitucionalidade da pro-
dução legislativa.
A importância da filosofia política na construção do direito bra-
sileiro é um tema que foi abordado em profundidade por Gisele Citta-
dino em Pluralismo, Direito e Justiça distributiva: elementos de filosofia
política contemporânea. No livro, resultado de sua tese de doutorado, a
autora destaca como, pela via do constitucionalismo ibérico, a Consti-
tuição brasileira de 1988 assimilou uma identidade comunitária. Segun-
do a autora, a mais recente Constituição brasileira não teria como fun-
damento uma filosofia política liberal, ou mesmo libertária, mas seria

31 DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana.


São Paulo: Martins Fontes, 2006.
96 Igor Suzano Machado

resultado de um “constitucionalismo comunitário”. Este constituciona-


lismo comunitário seria responsável pela redação de uma constituição
que passa longe de uma “constituição garantia”, como seria almejado
por um constitucionalismo liberal, indo ao encontro, pelo contrário, da
ideia de constituição dirigente, já que portadora de uma noção substan-
tiva de bem que endossa um projeto de país a ser concretizado pela ação
pública, exigindo uma postura do Estado que não é de mera abstenção,
mas de intervenção positiva para a efetivação de direitos não só civis e
políticos, mas também sociais.32
Cittadino aponta que este constitucionalismo comunitário, res-
ponsável por dar à nossa constituição atual suas principais característi-
cas, foi resultado de uma ruptura com a cultura jurídica nacional, a seu
ver mais próxima da teoria política libertária.33 A autora não adentra
no debate, contudo, a respeito da combinação entre um constituciona-
lismo de viés comunitário e uma cultura jurídica de fundamento liber-
tário. Este ponto é importante, porque a constituição brasileira tem se
mostrado uma obra bastante aberta a transformações tanto por via da
ação legislativa do constituinte derivado, quanto por via da interpreta-
ção judicial. A este respeito, serão trazidas à tona duas decisões judiciais
cuja leitura da constituição parecem orientadas por filosofias políticas
diametralmente opostas.
Primeiramente, trago à tona a manifestação do ministro Eros
Grau, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº
46, no STF. Trata-se de ação de controle de constitucionalidade con-
centrado que exigia o fim do monopólio dos serviços postais pelo Esta-
do, exigindo que o STF se manifestasse favoravelmente à não recepção,
pela Constituição de 1988, da legislação que garantia o monopólio dos
serviços postais pela Empresa de Correios e Telégrafos (E.C.T.). Com
uma orientação claramente liberal, aqueles que ajuizaram a ação esbar-
raram, no entanto, em uma argumentação fortemente comunistarista,
32 CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e justiça distributiva: elementos de filosofia constitu-
cional contemporânea. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2004.p. 11-22.
33 CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e justiça distributiva: elementos de filosofia constitu-
cional contemporânea. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2004.p. 14.
disputas políticas, ações judiciais e direitos humanos sob a ótica da filosofia política contemporânea: 97
a teoria e a prática da ideia de justiça no brasil

pela qual a maioria dos ministros optou por manter o monopólio. Nas
palavras do ministro:

A realidade nacional evidencia que nossos conflitos são


trágicos. A sociedade civil não é capaz de solucionar esses
conflitos. Não basta, portanto, a atuação meramente subsi-
diária do Estado. No Brasil, hoje, aqui e agora – vigente uma
Constituição que diz quais são os fundamentos do Brasil e,
no artigo 3º, define os objetivos do Brasil (porque quando o
artigo 3º fala da República Federativa do Brasil, está dizendo
que ao Brasil incumbe construir uma sociedade livre, justa e
solidária) – vigentes os artigos 1º e 3º da Constituição, exige-
se, muito ao contrário do que propõe o relator, um Estado
forte, vigoroso, capaz de assegurar a todos existência digna.
A resposta de substituição do Estado pela sociedade civil,
vale dizer, pelo mercado, é incompatível com a Constituição
do Brasil e certamente não conduzirá a um bom destino.

A votação apertada da decisão colegiada dessa ação já demonstra


como essa visão comunitarista da nossa constituição tem sido eivada por
uma disputa jurisprudencial que dá contornos mais liberais, ou mesmo
libertários, à carta constitucional. Um exemplo eloquente a esse respei-
to pode ser visto em outra decisão que, com fulcro na mesma consti-
tuição, chega a conclusões muito diferentes a respeito dos monopólios
econômicos estatais e do tamanho que deve possuir o Estado no Brasil.
Trata-se de decisão da Desembargadora Federal Nizete Antônia Lobato
Rodrigues Carmos, no Agravo de Instrumento 2013.02.01.014085-4, no
Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Tal recurso discutia o polêmico
Leilão de Libra, que tinha como objeto importante reserva petrolífera
brasileira. E em sua decisão, afirmara a desembargadora que:

No Brasil, a desestatização é política consolidada nas últi-


mas décadas, provado por um variado espectro deliberativo-
normativo, como ilustra, justo no tema versado, a Emenda
98 Igor Suzano Machado

Constitucional nº 9/1995, que cuida da flexibilização dos


monopólios estatais, em serviços estratégicos, como gás ca-
nalizado, telecomunicações, pesquisa e lavra de petróleo. Daí
que o leilão agendado para implementação da exploração
econômica das camadas do pré-sal, longe de vulnerar algum
interesse público, na ordem patrimonial e mesmo moral,
cumpre, ao reverso, os ideais do constituinte originário, com-
prometido com a dialética de redução do tamanho do poder
estatal, nomeadamente na seara econômica, abrindo espaço
à materialização do chamado “Estado mínimo”.

Os exemplos acima demonstram que as tensões políticas que


atravessam as disputas eleitorais entre o governo e seus oposicionistas
possuem correlatos nas disputas judiciais. Assim, os debates da filosofia
política contemporânea que embasam, mesmo que não de forma cons-
ciente e explícita, as disputas no Legislativo e Executivo, também dão
sustentação, mesmo que também não de forma consciente e explícita, às
disputas no Judiciário. O que nos remete à importância, mais uma vez,
da teoria para esclarecimento da prática. Tema para o qual o presente
artigo buscou contribuir com o breve mapeamento que realizou, tan-
to na teoria, quanto na prática, das tensões da política contemporânea,
especialmente na política brasileira, seja no Executivo e no Legislativo,
seja no Judiciário.

5. Considerações finais

O presente artigo buscou sumarizar alguns debates da filosofia


política contemporânea com o objetivo de utilizar tais debates para o
mapeamento da política brasileira em movimento nos nossos debates
parlamentares, eleitorais e, mesmo, jurídicos. Por mais que os exem-
plos pinçados da filosofia política posta em prática tenham sido mais
numerosos nas críticas ao governo ilustradas pelos posicionamentos
de políticos ou membros da sociedade civil, os dois exemplos, ao final
do estudo, que ilustram essa disputa no Judiciário, também revelam
disputas políticas, ações judiciais e direitos humanos sob a ótica da filosofia política contemporânea: 99
a teoria e a prática da ideia de justiça no brasil

uma esfera importante de disputa e de influência central da filosofia


política. Apenas para reforçar este último ponto, é possível chamar a
atenção para outros três exemplos que servem para mostrar a impor-
tante dimensão que o embate ocupa no Judiciário de uma sociedade
que tem, de modo marcante, judicializado algumas de suas demandas
políticas.
O primeiro exemplo é a decisão do juiz federal Eugênio Rosa de
Araújo, que desconsiderou as religiões de matriz africana como verda-
deiras religiões.34 Perante um caso como este, o quanto as teorias do
reconhecimento e do multiculturalismo poderiam ser valiosas para
uma prestação judicial que se almeje justa, sem obstaculizar o exercício
de direitos por minorias étnicas ou religiosas? O segundo exemplo é a
decisão dos desembargadores Francisco Batista de Abreu e Otávio de
Abreu Portes, em decisão na qual optaram por amenizar a conduta de
ex-namorado responsável pela divulgação de fotos íntimas da vítima.
Segundo os desembargadores, ao se deixar fotografar da forma como
deixou, a vítima assumira o risco de ter sua intimidade divulgada.35 O
quanto a desconstrução feminista acerca das pressuposições de gênero
poderia esclarecer a respeito dessa decisão, que optou por transformar
a vítima em cúmplice do criminoso? Por fim, o último exemplo não diz
respeito a nenhuma decisão judicial, mas ao funcionamento do Judiciá-
rio como um todo. Trata-se da Proposta de Emenda Constitucional nú-
mero 99, que almeja ampliar o rol de legitimados a provocar o controle
de constitucionalidade concentrado a associações religiosos de âmbito
nacional. 36 O quanto o embate entre liberais e comunitaristas a respeito
da consideração das doutrinas morais abrangentes no debate público
poderia ser esclarecedor quanto a este ponto, a respeito de se devemos

34 O caso pode ser conferido em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/05/1455758-um-


banda-e-candomble-nao-sao-religioes-diz-juiz-federal.shtml Acesso em 13/07/2014.
35 O caso pode ser conferido em: http://jornalismob.com/2014/07/09/justica-de-mg-absolve
-ex-namorado-por-entender-que-mulher-que-posa-para-fotos-intimas-nao-cuida-da-mo-
ral/?utm_medium=twitter&utm_source=twitterfeed Acesso em 13/07/2014.
36 Conforme pode ser conferido em: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DI-
REITO-E-JUSTICA/438702-CCJ-APROVA-ADMISSIBILIDADE-DE-PEC-QUE-AUTORI-
ZA-ENTIDADE-RELIGIOSA-A-QUESTIONAR-LEI-NO-STF.html Acesso em 13/07/2014.
100 Igor Suzano Machado

ou não convidar as religiões a participarem do debate público e, conse-


quentemente, do controle de constitucionalidade?
A abertura e a vinculação da prática judiciária à filosofia polí-
tica já foi posta em destaque dentro da filosofia jurídica, como deixa
claro o exemplo de Dworkin, um dos mais importantes filósofos do
direito contemporâneo. Sua importância na prática já se faz sentir
em muitos exemplos da justiça brasileira, alguns dos quais citados
neste estudo. Por conseguinte, igualmente importante se faz o de-
bate a respeito do tema. Que política queremos ver efetivada pelo
judiciário brasileiro? A filosofia política contemporânea já nos deu
algumas diretrizes para pautar o debate. Resta-nos agora, devida-
mente escorados nessas balizas, mergulharmos no debate a fim de
construir um Judiciário mais próximo desta ideia que permeia o de-
bate da filosofia política contemporânea perscrutado neste estudo: a
ideia da justiça.

6. Adendo: nota final sobre a questão dos direitos humanos

Os embates e cruzamentos entre as diferentes formas de se pensar


a justiça na filosofia política contemporânea e sua efetivação na ação po-
lítica, seja nas instâncias políticas mais tradicionais, seja no judiciário,
leva-nos a refletir também sobre a efetivação de algo tido atualmente
como pressuposto ou corolário da ideia de justiça: a noção de direitos
humanos. O que o quadro de embates da filosofia política contemporâ-
nea nos mostra, no entanto, é que a ideia de direitos humanos é muito
mais uma zona de disputa do que um receituário para a consecução da
justiça.
Muito já se criticou a noção de “gerações” de direitos humanos,
haja vista a lógica etapista e escatológica de sucessão no tempo que tal
noção parecia trazer em si. Contra essa noção, tornou-se corrente falar
em diferentes “dimensões” dos direitos humanos, que encampariam,
sem os mesmos problemas conceituais, o que outrora foram considera-
das a primeira, a segunda e a terceira “gerações” de direitos humanos,
disputas políticas, ações judiciais e direitos humanos sob a ótica da filosofia política contemporânea: 101
a teoria e a prática da ideia de justiça no brasil

englobando, respectivamente, direitos humanos civis e políticos, sociais


e de solidariedade. 37 Contudo, a ideia de diferentes dimensões também
me parece bastante problemática, quando leva a crer que se trata de di-
ferentes dimensões de uma mesma coisa, como seriam as diferentes di-
mensões de altura, largura e profundidade de um objeto físico. O que as
controvérsias da filosofia política contemporânea colocam em destaque,
no entanto, é que, ao contrário das diferentes dimensões de um objeto
físico que, por definição, se sobrepõem, mas não colidem entre si, dife-
rentes direitos, considerados fundamentais por diferentes contribuições
filosóficas, podem colidir.
É essa potencial colisão que fundamenta, por exemplo, a histe-
ria libertária contra ideia de “justiça social”. Falando em termos de di-
mensões, trata-se de levantar a primeira dimensão de direitos humanos,
relativos à liberdade individual, contra a segunda e a terceira, relativa
e direitos sociais, potencialmente redistributivos. Uma concepção de
justiça de cunho comunitário, por outro lado, poderia levar ao caminho
contrário, questionando a lógica individualista da primeira dimensão
de direitos humanos, a favor da segunda e terceira, mais atentas ao fun-
damento social e cultural da justiça. A própria ideia de “direitos huma-
nos” pode ser atacada, dependendo do aporte filosófico utilizado. Sob
uma perspectiva utilitarista, pode-se alegar que “prazer e dor” são senti-
dos por outras espécies além da espécie humana, e, acusando a ideia de
“direitos humanos” de antropocêntrica e especista – isto é, calcada no
preconceito contra outras espécies – destacar como se deve pensar em
direitos fundamentais também para outros animais não humanos. Além
dessa acusação que consideraria a noção de direitos humanos uma no-
ção demasiadamente estreita, um aporte multiculturalista pode, por ou-
tro lado, destacar quanto a noção é excessivamente ampla, quando con-
sidera como direitos “humanos” algo que traduz uma tradição moral
ocidental, correspondente às expectativas de apenas uma pequena parte

37 Há autores que destacam outras “gerações” ou “dimensões” de direitos humanos, sustentando


uma “quarta” ou mesmo “quinta” geração desses direitos. Contudo, há sérias controvérsias
acerca da real existência dessas demais gerações, sendo menos controversa apenas a ideia de
três gerações ou dimensões.
102 Igor Suzano Machado

da humanidade, desconsiderando a diversidade cultural do gênero hu-


mano, numa atitude patentemente etnocêntrica.
Para deixar a questão mais concreta, imaginemos um dos casos
que talvez esteja entre os mais complicados da história do direito e deve
futuramente ser enfrentado pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro: a
propriedade quilombola pertence indivisivelmente ao grupo ou parcela-
damente a cada um dos indivíduos que compõem aquela comunidade?
Uma perspectiva comunitarista ou multiculturalista poderia sustentar
que o direito humano a ser respeitado aí é o direito de autodetermina-
ção do grupo. Mesmo assim, uma perspectiva liberal poderia considerar
que, caso seja assim, o grupo estaria reprimindo os direitos de cada um
dos indivíduos, que devem possuir prioridade enquanto os verdadeiros
direitos humanos que devem respeitados no caso.
Outro exemplo de questão judicial dificílima que pode ser encara-
da pelos tribunais brasileiros: o sacrifício de crianças em determinadas
comunidades indígenas deve ser respeitado por fazer parte dos direitos
humanos de especificidade cultural da tribo, ou, pelo contrário, deve ser
atacado como desrespeito aos direitos humanos daquelas crianças, que
teriam validade universal? Mais uma vez, nesse caso, uma concepção
de direitos humanos pautada pela lógica comunitarista poderia colidir
frontalmente com uma que fosse pautada pela perspectiva liberal.
Claro que diferentes matrizes que conformam a ideia de justi-
ça podem ser levadas em consideração, produzindo, em muitos casos,
combinações entre direitos humanos oriundos de diferentes gerações
ou dimensões, de acordo com a classificação tradicional. Contudo, não
se deve exagerar nessa capacidade de conciliação. Muitas vezes será ne-
cessário realizar escolhas trágicas, que tanto a noção de dimensões de
direitos humanos, quanto a adaptação tosca da ideia de ponderação de
princípios que tem sido acolhida por nossos tribunais, mais obscurecem
do que ajudam a compreender e fornecer orientações práticas.
Sendo assim, talvez seja mais justo falar em diferentes matrizes
ou linhagens de direitos humanos – ou fundamentais, para recorrer a
outra terminologia que tenta escapar das críticas do especismo e etno-
disputas políticas, ações judiciais e direitos humanos sob a ótica da filosofia política contemporânea: 103
a teoria e a prática da ideia de justiça no brasil

centrismo. Ou, pelo menos, atrelar o debate à atual discussão acerca da


justiça na filosofia política, cujos aportes permitem fundamentar, den-
tre outros debates centrais na discussão acerca dos direitos humanos, o
debate acerca da pertinência da própria noção de direitos humanos, da
primazia dos direitos perante a política ou da política perante os direitos
e, no caso das possíveis colisões, fundamentar também quais direitos
humanos devem ter prioridade. Conforme se pode observar nas ques-
tões levantadas acerca dos direitos dos quilombolas e das tribos indíge-
nas que aceitam o sacrifício de crianças, em alguns casos, defender os
direitos humanos pode não representar a solução dos problemas, mas
apenas um novo problema a ser, necessariamente, enfrentado, quando
nos voltamos, mais uma vez, para a questão chave, que precede e funda-
menta o debate sobre os direitos humanos, do que seria a justiça.

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105

NEPOTISMO NO BRASIL: ANÁLISE CRÍTICA


DA SÚMULA VINCULANTE Nº 13 À LUZ DA
TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Adriana Inomata1

1. INTRODUÇÃO

Etimologicamente o termo nepotismo deriva do latim, formado


pela conjugação dos termos nepos ou nepotis, significando, respecti-
vamente, neto e sobrinho, ou ainda “favorito do papa” com o sufismo
ismo, o qual remete à ideia de prática ou resultado. Nepotismo refere-se,
nesse sentido, à “autoridade que os sobrinhos e outros parentes do Papa
exerciam na administração eclesiástica”2, nos séculos XV e XVI.3
Neste sentido, o nepotismo configura-se como uma “conduta ha-
vida na Administração do Estado, pela qual agentes públicos, valendo-
se dos cargos por eles ocupados, concedem favores e benefícios pessoais
a seus parentes e amigos”4.
1 Mestre em Direitos Fundamentais e Democracia pela Faculdades Integradas do Brasil (Uni-
brasil). Professora de Direito Constitucional da Universidade Positivo.
2 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário aurélio da língua portuguesa. 4ª ed.
Curitiba: Ed. Positivo, 2009, p. 1396.
3 Conforme conceitua o Ministro Ricardo Lewandowiski no julgamento do Recurso Exraor-
dinário n 579.951-4/RN, do qual foi relator. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso
Extraordinário nº 579.951-4, Rio Grande do Norte. Recorrente: Ministério Público do Estado
do Rio Grande do Norte. Recorrido: Município de Água Nova e outros (A/S). Relator: Min.
Ricardo Lewandowiski. Brasília, DF, 20 de agosto de 2008. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília,
n. 202, 24 out. 2008. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?doc-
TP=AC&docID=557587>. Acesso em: 28 fev. 2017.)
4 ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais da administração pública. Belo
Horizonte: Del Rey, 1994, p. 213.
106 Adriana Inomata

Historicamente, como será demonstrado, as práticas de nepo-


tismo estão vinculadas com a má utilização dos cargos de confiança
(comissionados) e isso representa, atualmente, resquícios de moeda de
troca nas negociações políticas. Ora, em face de sua natureza, os car-
gos de confiança são aqueles que implicam na confiança da autoridade
nomeante; porém têm sido utilizados, em face do seu número sempre
crescente, como instrumento de favorecimentos pessoais.
É possível, ainda, traçar um conceito de nepotismo de acordo
com o ordenamento jurídico brasileiro5 como a prática de nomear de-
terminados parentes para cargos de confiança (cargos em comissão),
partindo do pressuposto de que há, neste caso, favorecimento pessoal,
do familiar ou barganha de cargos ou funções. Como será visto, a partir
da Resolução n. 7/2005, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), pas-
sou-se a proibir a nomeação de determinados parentes para cargos de
confiança e funções de gratificação no âmbito do Poder Judiciário, o
que foi confirmado para todos os Poderes pela súmula vinculante 13 do
Supremo Tribunal Federal (STF).
O nepotismo constitui-se, então, em mazela que ainda persiste no
cenário político brasileiro, enraizado nos órgãos e instituições públicos.
Trata-se de verdadeira distorção do uso da coisa pública, em função de
interesses privados.
Diante de tal cenário, faz-se necessário analisar de forma crítica
como o assunto tem sido tratado pelos órgãos públicos brasileiros, em
especial por meio atuação do Supremo Tribunal Federal.
Para tanto, o presente artigo iniciar-se-á com a busca das raízes
históricas dessa prática, sob o enfoque do coronelismo, do clientelismo,
do mandonismo e do patrimonialismo. A partir de então, será apre-
sentada a regulamentação dada ao tema pela Resolução 07/2005 do
Conselho Nacional de Justiça e a consolidação da matéria pela Súmula
Vinculante n. 13 e demais decisões do Supremo Tribunal Federal. O in-
tuito do presente estudo é desmistificar a ideia de que o nepotismo no

5 Conforme será demonstrado adiante com análise das normas constitucionais, infraconstitu-
cionais e da interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal.
NEPOTISMO: RAÍZES HITORICAS E ANÁLISE CRÍTICA DA RESOLUÇÃO Nº 7 DO CNJ E DA 107
SÚMULA VINCULANTE Nº 13

Brasil foi extinto a partir da SV n. 13, revelando que de avanço houve


muito pouco e em muitos casos, especialmente no que tange ao direito
fundamental de igual acesso aos cargos públicos, houve até retrocessos.

2. RAÍZES HISTÓRICAS DA PRÁTICA DO NEPOTISMO NA AD-


MINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA

Para uma compreensão crítica do tema, o presente trabalho op-


tou por, primeiramente, analisar as raízes históricas do nepotismo, sob
a perspectiva histórico-sociológica da utilização privada dos cargos e
funções públicos. Essa escolha se justifica na medida em que para com-
preender a permanência dessa prática no cenário brasileiro, é necessário
elucidar as origens dessa mazela, partindo de alguns conceitos como
coronelismo, mandonismo, clientelismo e patrimonialismo.
Antes de tudo, é preciso esclarecer e diferenciar os termos coro-
nelismo, mandonismo e clientelismo, a fim de se evitar confusão, im-
precisão e inconsistência no uso dessas expressões, conforme alerta José
Murilo de Carvalho6.
O coronelismo, segundo o autor, tem por característica ser um
sistema político, uma complexa rede de relações que vai desde o coronel
até o Presidente da República, envolvendo compromissos recíprocos, ou
seja, barganhas entre o governo e os coronéis. Na descrição do autor:

Nessa concepção, o coronelismo é, então, um sistema polí-


tico nacional, baseado em barganhas entre o governo e os
coronéis. O governo estadual garante, para baixo, o poder do
coronel sobre seus dependentes e seus rivais, sobretudo ce-
dendo-lhes o controle dos cargos públicos, desde o delegado
de polícia até a professora privada. O coronel hipoteca seu
apoio ao governo, sobretudo na forma de votos. Para cima os
governadores dão seu apoio ao presidente da república em
troca de reconhecimento deste de seu domínio no estado. O

6 CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: uma discussão con-
ceitual. Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v. 40, n. 2, 1997, p. 229 a 250, p. 229.
108 Adriana Inomata

coronelismo é fase de processo mais longo de relacionamen-


to entre fazendeiros e governo.7

Trata-se, portanto, de uma complexa estrutura de poder, de do-


mínio sobre a população, baseada em acordos recíprocos entre os co-
ronéis e governo, sendo, aqueles, responsáveis pelo controle popular
e consequentemente, a legitimação do governo estadual. Em troca, o
governo garante o poder local dos coronéis e concede-lhes cargos e fun-
ções públicos.
O coronelismo é datado historicamente e surge na confluência de
um fato político com uma conjuntura econômica. O fato político foi o
federalismo: o governo republicano era eleito pelas máquinas dos par-
tidos únicos estaduais, era o chefe da política estadual. “Em torno dele
se arregimentavam as oligarquias locais, das quais os coronéis eram os
principais representantes.”8 A conjuntura econômica foi a decadência
dos fazendeiros, uma vez que acarretou o enfraquecimento do poder
político dos coronéis em face de seus dependentes e rivais. A manu-
tenção desse poder passou, então, a exigir a presença do Estado, que
expandia sua influência na proporção em que diminuía a dos donos de
terra. “O coronelismo era fruto de alteração na relação de forças entre os
proprietários rurais e o governo e significava o fortalecimento do poder
do Estado antes que o predomínio do coronel. O momento histórico,
portanto, em que se deu essa transformação foi a Primeira República, o
que durou de 1889 até 1930.”9
O mandonismo, por sua vez, não se configura como um sistema,
mas uma característica da política tradicional, e tende a diminuir con-
forme a generalização da cidadania. O conceito de mandonismo e de
coronelismo não se confundem, pois “o coronelismo seria um momen-
to particular do mandonismo, exatamente aquele em que os mandões
7 Ibid, p. 231.
8 Ibid. p. 230.
9 Ibid, p. 231. E, adiante: “O coronelismo não existiu antes dessa fase e não existe depois dela, ele
morreu simbolicamente quando se deu a previsão dos grandes coronéis baianos, em 1930. Foi
definitivamente enterrado em 1937, em seguida à implantação do Estado Novo e à derrubada
de Flores da Cunha, último dos grandes caudilhos gaúchos.”
NEPOTISMO: RAÍZES HITORICAS E ANÁLISE CRÍTICA DA RESOLUÇÃO Nº 7 DO CNJ E DA 109
SÚMULA VINCULANTE Nº 13

começam a perder força e têm de recorrer ao governo. Mandonismo,


segundo José Murilo de Carvalho, sempre existiu.10 Nesse sentido, o
mandonismo “refere-se à existência local de estruturas oligárquicas e
personalizadas de poder.”11 Ou seja, o mandonismo é caracterizado pela
figura de um mandão (potentado, chefe, coronel), o qual exerce seu do-
mínio real e arbitrário sobre uma dada população em razão do contro-
le de recursos estratégicos, como a posse de terra, impedindo-a de ter
acesso ao mercado e à cidadania.
O clientelismo, de outro modo, não pode ser identificado ao co-
ronelismo, pois se trata, aquele, de um fenômeno muito mais amplo e
assemelha-se, na amplitude de seu uso, ao conceito de mandonismo.
“Ele é o mandonismo visto do ponto de vista bilateral.” 12 O clientelismo
é identificado como um tipo de relação entre atores políticos que en-
volve concessão de benefícios públicos, na forma de empregos, benefí-
cios fiscais, isenções, em troca de apoio político, sobretudo na forma de
voto. O clientelismo e o mandonismo diferem-se do coronelismo como
característica que, de certo modo, perpassa toda a história política bra-
sileira.13
A dificuldade na distinção dos domínios público e privado pelos
governantes brasileiros desde tempos remotos, também foi identificada
por Sérgio Buarque de Holanda, o qual atribui a isso a educação dos
indivíduos sob fortes valores da família de caráter patriarcal brasileira.14
10 Ibid, p. 232.
11 Idem.
12 Assim, o clientelismo não se confunde com coronelismo, nem com mandonismo, pois “as
relações clientelísticas, nesse caso, dispensam a presença do coronel, pois ela se dá entre o go-
verno, ou os políticos e setores pobres da população. Deputados trocam votos por empregos e
serviços públicos que conseguem graças à sua capacidade de influir sobre o Poder Executivo.
Nesse sentido, é possível mesmo dizer que o clientelismo se ampliou com o fim do coronelismo
e que ele aumenta com o decréscimo do mandonismo. À medida em que os chefes políticos
locais perdem a capacidade de controlar os votos da população, eles deixam de ser parceiros
interessantes para o governo, que passa a tratar com os eleitores, transferindo para estes a
relação clientelística.” (Ibid, p. 233)
13 Outra diferenciação trazida pelo autor entre clientelismo e coronelismo, é que se trata do
clientelismo quando alguns autores referem-se ao coronelismo no meio urbano em fases re-
centes. “As relações clientelísticas, nesse caso, dispensam a presença do coronel, pois ela se dá
entre o governo, ou políticos e setores pobres da população.” (idem)
14 “No Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo da família patriarcal, o de-
110 Adriana Inomata

Esclarecidos e diferenciados esses conceitos, passa-se à análise das


origens das práticas do nepotismo desde o Brasil Colônia. Nessa época
o cargo público pertencia ao Rei, como atributo de sua soberania. A no-
meação para seu exercício apresentava-se como uma forma de ascensão
social, uma vez que era um privilégio de resultados sociais práticos15.
Segundo Arno Wehling e Maria José Wehling, são características
do exercício do cargo público na colônia: a patrimonialidade na utilização
de cargos públicos (o cargo era considerado como parte do patrimônio
do rei, podendo ser doado ou vendido pelo mesmo); o uso privado da
função pública16; o predomínio da fidelidade pessoal17; a multiplicidade
das funções (mesmo cargo com diversas funções, demonstrando a falta de

senvolvimento da urbanização – que não resulta unicamente do crescimento das cidades, mas
também do crescimento dos meios de comunicação, atraindo vastar áreas rurais para a esfera
de influência das cidades – ia acarretar um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem
vivos ainda hoje. Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade, for-
mados por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre domínios do privado
e do público. Assim eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário “patrimo-
nial” do puro burocrata conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário “patrimonial”,
a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os
empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e
não a interesses objetivos, como sucede o verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem
a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos.
A escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de acordo com a confiança
pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com as suas capacidades pró-
prias. Falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático. O fun-
cionalismo patrimonial pode, com a progressiva divisão das funções e com a racionalização,
adquirir traços burocráticos. Mas em sua essência ele é tanto mais diferente do burocrático,
quanto mais caracterizados estejam os dois tipos (HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do
Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 145-146)
15 Segundo Arno Wehling e Maria José Wehling, “tratando-se de uma sociedade de ordens, o
ofício era visto como uma dignidade atribuída pelo monarca a que correspondiam prestígio,
honras e privilégios, não apenas no nível mundano, mas com resultados sociais práticos. O
exercício do cargo público dava ao indivíduo uma concreta preeminência na sua comunidade
e perante os órgãos públicos. Assim, a ocupação pelo pai ou avô de um ofício real, mesmo
modesto, era considerado favor favorável ao ingresso em vários cargos. Constituía-se, dessa
forma, num elemento de ascensão social.” (WEHLING, Arno e WEHLING, Mari José. O fun-
cionário colonial entre a sociedade e o rei. In PRIORI, Mary del (org). Revisão do paraíso: os
brasileiros e o Estado em 500 anos de história. Rio de Janeiro: campus, 2000. p.143).
16 Pois “a ideia básica era a de que o cargo, com poucas exceções – remunerasse seu detentor, o
que o aproximava de um objeto de propriedade, como o direito de uso ou a enfiteuse” (Ibid., p.
144)
17 O ofício era um benefício do rei. Assim, o vínculo estabelecido reforçava os laços de clientela
e tornava a função pública um objeto de fidelidade pessoal ao monarca. A fidelidade pessoal
prevalecia sobre a noção de impessoalidade da administração pública moderna. (Ibid., p. 143)
NEPOTISMO: RAÍZES HITORICAS E ANÁLISE CRÍTICA DA RESOLUÇÃO Nº 7 DO CNJ E DA 111
SÚMULA VINCULANTE Nº 13

planejamento); estabilidade (quando não vitaliciedade e hereditariedade);


ausência de especialização profissional (saber de experiência); e associa-
ção com o enobrecimento como meio mais eficaz de ascensão social.18
Enfim, “o funcionário colonial era um súdito fiel, embora com
interesses pessoais e de grupo e natureza privada que muitas vezes pre-
dominavam sobre o interesse comum e as intenções dos governantes.”19
O problema da utilização dos cargos públicos persiste com a
proclamação da República. O Estado Brasileiro, até 1930, caracterizou-
se por garantir dos privilégios sociais, econômicos e políticos a uma
determinada elite social. Este cenário exemplificou o clientelismo, ou
seja, a relação que “envolve a concessão de benefícios públicos na forma
de empregos, benefícios ficais, isenções, em troca de apoio político, so-
bretudo na forma de voto”.20
Como conceituado anteriormente, o clientelismo caracterizava uma
forma de dominação política tradicional, na qual havia uma confusão entre
as esferas pública e privada. O governante controla o Estado como se fosse
um em privado. Trata-se da noção de patrimonialismo de Max Weber. 21
Segundo Raymundo Faoro, a política brasileira herdou de Portugal
a estrutura patrimonialista estamental, a qual é marcada pela presença do
Estado controlado e espoliado por uma elite (estamento burocrático) que
“conduz, comanda, supervisiona os negócios [públicos], como negócios
privados seus”, o que caracteriza o chamado Estado patrimonialista22.
A estrutura patrimonialista estamental no Brasil, como legado de
Portugal, é formada pela conjunção de dois fatores primordiais: o eco-

18 Idem.
19 Ibid, p. 159
20 CARVALHO, José Murilo de. Op. cit., p.233.
21 WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução de
Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília. Ed. UnB, 1999.
22 “A comunidade política conduz, comanda, supervisiona os negócios, como negócios privados
seus, na origem, como negócios públicos depois, em linhas que se demarcam gradualmente. O
súdito, a sociedade, se compreendem no âmbito de um aparelhamento a explorar, a manipular,
a tosquiar nos casos extremos. Dessa realidade se projeta (...) a forma de poder, instituciona-
lizada num tipo de domínio: o patrimonialismo, cuja legitimidade assenta no tradicionalismo
– assim é porque sempre foi.” FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do patronato
político brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 819 (sem grifo no original)
112 Adriana Inomata

nômico e o sociopolítico. O fator econômico é definido pelo capitalismo


politicamente orientado, o que Faoro identifica como patrimonialismo.
Nesse aspecto, o Estado dirige, planeja a economia tendo em vista os in-
teresses particulares do grupo que o controla: o estamento. Já o aspecto
político é definido pelo patrimonialismo estatal. Neste aspecto o esta-
mento utiliza-se do corpo administrativo para gerenciar a economia.
O estamento burocrático exerce o domínio político, dele saindo a
classe política, ou seja, a elite que governa.
Este estamento burocrático comanda todos os negócios privados,
o que evidencia o domínio institucionalizado, o patrimonialismo estatal
que incentivava o setor especulativo da economia, voltado ao lucro sob
o comando e proteção política. Essa espécie de domínio assenta-se na
cooptação e no clientelismo.23
As trocas entre o Estado e a classe dominante ocorrem através do
controle de cargos públicos. O estamento apropria-se assim das opor-
tunidades econômicas, das concessões e cargos. O Estado centralizador
é espoliado por uma minoria que enriquece e afasta o desenvolvimento
da representação das demais classes sociais. Essa característica histórica
vem resistindo até os dias de hoje.
As formações sociais são para a estrutura patrimonial estamen-
tal ponto de apoio móveis, sendo valorizados aqueles que mais a sus-
tentam, sobretudo aqueles capazes de fornecer-lhe recursos financeiros
para a expansão.24
A partir de 1930, por exigência do processo de urbanização e de in-
dustrialização, e como reflexo da Revolução, há uma reordenação política
23 “Característico principal, o de maior relevância econômica e cultural, será o do predomínio,
junto ao foco superior de poder, do quadro administrativo, o estamento que, de aristocrático,
se burocratiza (cap. III, 3) progressivamente, em mudança de acomodação e não estrutural. O
domínio tradicional se configura no patrimonialismo, quando aparece o estado-maior de co-
mando do chefe, junto à casa real, que se estende sobre o largo território, subordinando muitas
unidades políticas. Sem o quadro administrativo, a chefia dispersa assume caráter patriarcal,
identificável no mando do fazendeiro, do senhor de engenho e nos coronéis. Num estágio
inicial, o domínio patrimonial, desta forma constituído pelo estamento, apropria as oportuni-
dades econômicas de desfrute dos bens, das concessões, dos cargos, numa confusão entre setor
público e o privado, que, com aperfeiçoamento da estrutura, se extrema em competências
fixas, com divisão poderes, separando-se o setor fiscal do setor pessoal.” (Ibid, p. 823)
24 Ibid, p.826.
NEPOTISMO: RAÍZES HITORICAS E ANÁLISE CRÍTICA DA RESOLUÇÃO Nº 7 DO CNJ E DA 113
SÚMULA VINCULANTE Nº 13

do Estado, e o modelo burocrático começa a ser implantado. Criam-se


estatutos e normas para a administração pública, em especial quanto a ad-
ministração de pessoal, de compras e execução financeira e orçamentária.
Porém, ao mesmo tempo, decorrente do processo de acomoda-
ção, diferenciam-se dois padrões de administração pública: os altos es-
calões adotam os parâmetros do modelo burocrático com treinamento,
bons salários e garantias; já os órgãos inferiores executores de políticas
públicas nos setores de saúde e educação ainda estão sujeitos às políticas
patrimonialistas e clientelistas.
Entre 1930 e 1945, o regime autoritário convive sob uma veste
constitucional. Tem-se, portanto, no Brasil, com a Constituição de 1937,
em especial, uma Constituição semântica, nas palavras de Karl Lowens-
tein25. O ordenamento jurídico serve apenas para reconhecer a situação
de poder de uma minoria. O fortalecimento e a expansão da adminis-
tração pública serviram para dar sustentação ao regime ditatorial.
O regime autoritário convive com a vestimenta constitucional,
sem que a lei maior tenha capacidade normativa, adulterando-se no
aparente constitucionalismo. A autocracia autoritária pode operar sem
que o povo perceba seu caráter ditatorial, o qual só emerge nos conflitos
e nas tensões quando os órgãos estatais e a carta constitucional cedem
ao real, verdadeiro e atuante centro de poder político. A soberania po-
pular não existe senão como farsa escamoteação ou engodo.26
Já no período que vai de 1945 a 1967 não existem ações relevantes
no sentido de conferir à administração pública maior eficiência ou pro-
fissionalismo. O Plano de Metas do Governo de Juscelino Kubitscheck
foi executado através de outras estruturas, não havendo movimentos no
sentido de profissionalizar a burocracia disponível.
Em face desta política, frequentes eram as críticas a respeito de fa-
vorecimentos a pessoas e empresas na execução dos planos de governo.
Posteriormente, novamente sob o regime militar, novo rearranjo
administrativo foi realizado com vistas a assegurar o desenvolvimento
25 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la constitución. Traducción y estudio sobre la obra por Alfre-
do Gallego Anabitarte. Barcelona: Editorial Ariel S.A., 1986, p. 218-219.
26 FAORO, Raimundo. Op. Cit., p.830.
114 Adriana Inomata

econômico. Todavia, como das outras vezes, o processo de moderni-


zação resultou de imposição do regime autoritário e não de uma rei-
vindicação democrática. Aliás, um dos argumentos dos militares era
o de que o Brasil não estava apto ao exercício da democracia pela falta
de participação social e econômica que só o incremento do capitalismo
pode propiciar. Assim, era necessário antes investir na economia.
Neste período, grande parte das atribuições do Estado relativas
ao fornecimento de bens e serviços públicos foi transferida para autar-
quias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista,
que gozavam de tratamento diferenciado, dispensado o concurso pú-
blico para admissão e sendo reduzidas as formalidades para compras.
Desde modo, ao longo dos anos a administração direta foi sen-
do relegada ao isolamento. A sociedade não possuía qualquer forma de
controle sobre os atos ou sobre a efetividade das suas ações.
De acordo com Marcelo de Figueiredo TORRES,

os interesses privados dos setores sociais mais fortes e or-


ganizados eram defendidos e alcançados através do relacio-
namento com os poderosos burocratas que comandavam
soberanamente as instituições públicas e que distribuíam
recursos financeiros, subsídios e benesses sem controle so-
cial ou político”, em uma “aliança entre a alta administra-
ção e a classe empresarial potencializada e favorecida pelo
insulamento burocrático” que dá à burguesia nacional “um
canal privilegiado de acesso ao Estado, em sintonia com a
nossa tradição de direcionar a administração pública para o
atendimento das demandas dos grupos sociais mais fortes e
organizados da sociedade”27

Com o retorno da democracia, extinto o período militar, uma


nova ordenação da administração pública se apresenta a partir da re-
definição do Estado pela Carta de 1988. As regras relativas ao serviço

27 TORRES, Marcelo Douglas de Figueiredo. Estado, democracia e administração pública no Bra-


sil. FGV Editora, 2008, p.159-60.
NEPOTISMO: RAÍZES HITORICAS E ANÁLISE CRÍTICA DA RESOLUÇÃO Nº 7 DO CNJ E DA 115
SÚMULA VINCULANTE Nº 13

público vem expressas no Texto constitucional, fortalecendo a adminis-


tração direta e diminuindo a autonomia gerencial da administração in-
direta, em especial pela exigência de concurso público para admissão de
pessoal e a adoção da Lei de Licitações para compras de bens e serviços.
A mobilização dos funcionários públicos determinou a inclusão
de diversas garantias, tais como a estabilidade excepcional e a aposen-
tadoria integral. Para a admissão é necessária a realização de concurso
público, sendo este afastado apenas para o exercício de cargo em comis-
são e para as funções temporárias.
A partir de então, as possibilidades de incluir a ocupação de car-
gos públicos como mercadoria de negociação entre o Estado e a classe
dominante não foram de todo afastadas posto que persistem relativa-
mente aos cargos em comissão. Estes são utilizados, por vezes, como
instrumento de barganha, perpetuando o clientelismo.
Visualiza-se, assim, na história brasileira, um quadro constan-
te, com tendência a diminuição a partir da Constituição de 1988, de
promiscuidade entre o público e privado na Administração Pública, o
que obstaculizou a efetiva implementação do modelo gerencial de ad-
ministração pública burocrática defendida por Max Weber, a qual tem
como características essenciais a impessoalidade, a especialização das
funções, o profissionalismo, a objetividade e a efetividade.

3. VEDAÇÃO DO NEPOTISMO NO ORDENAMENTO JURÍDICO


BRASILEIRO: O TRATAMENTO DADO PELA CONSTITUIÇÃO
REPUBLICANA DE 1988 E PELA LEGISLAÇÃO INFRACONSTI-
TUCIONAL

A Constituição brasileira de 1988 inaugura uma nova fase no


constitucionalismo brasileiro, marcada pelo processo de democratiza-
ção. Constituição cidadã, a Lei Fundamental brasileira, além de inaugu-
rar seus dispositivos elegendo o Brasil como um Estado Democrático de
Direito, traz a dignidade da pessoa humana como princípio fundamen-
tal, decisão política fundamental do povo brasileiro. Nessa esteira, traz
116 Adriana Inomata

um amplo catálogo de direitos fundamentais, não apenas as clássicas


liberdades públicas, mas também direitos sociais e econômicos. Defini-
tivamente, instaura-se no Brasil, ao menos no plano normativo-consti-
tucional, um Estado Social de Direito28.
Como ensina Eneida Desiree Salgado: “Um Estado Democrático
de Direito e republicano, que proclama a soberania popular e desenha
um sistema predominantemente representativo, exige mecanismos de
escolha dos representantes e controle de controle do poder público.”29
Essa é a lógica que funda organização da Administração Pública.
Desta forma, a Constituição traz em seu artigo 37 os princípios que
devem reger a Administração Pública, dentre os quais a moralidade e a
impessoalidade. Tais princípios, somados ao princípio republicano, con-
sagrado no artigo inaugural da Constituição, por si só impõem aos agen-
tes públicos o dever de exercerem suas atividades em conformidade com
o interesse público, a ética e a transparência, proibindo, portanto, a uti-
lização dos espaços públicos para favorecimentos meramente pessoais.30
Importante, de antemão, alertar que este trabalho adota a con-
cepção de que os princípios são, na lição de Robert Alexy, mandamentos
de otimização, que ordenam que algo seja realizado na máxima medida
do possível, dentro das possibilidades fáticas e jurídicas do caso31. Isso
significa afirmar que princípios como moralidade e impessoalidade não

28 Sobre a concepção de Estado Social de Direito aqui utilizada, ver: NOVAIS, Jorge Reis. Con-
tributo para uma teoria do Estado de Direito. do Estado de Direito Liberal ao Estado Social e
democrático de Direito. Coimbra: Almedina, 2006.
29 SALGADO, Eneida Desiree. Abuso de Poder Político e Moralidade Administrativa na Legis-
lação Eleitoral. In: GUIMARÃES, Edgar (coordenador). Cenários do Direito Administrativo.
Estudos em Homenagem ao Professor Romeu Felipe Bacellar Filho. Belo Horizonte: Editora
Fórum, 2004, p. 227.
30 O uso do poder político para favorecimentos pessoais corresponde ao que Enrique Dussel
denomina de “Corrupção do político”, que significa, nas palavras o autor: “A corrupção origi-
nária do político, que denominaremos o fetichismo do poder, consiste em que o ator político (os
membros da comunidade política, sejam cidadãos ou representantes) acredita poder afirmar
sua própria subjetividade para a instituição em que cumpre alguma função (...) como a sede
ou a fonte do poder político. (...) Se os membros, por exemplo, crêem que exercem o poder a
partir de sua autoridade auto-referente (ou seja, para si próprios) seu poder foi corrompido.”
(DUSSEL, Enrique. 20 teses da política. Tradução de Rodrigo Rodrigues. São Paulo: Expressão
Popular, 2007, p. 16.)
31 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 90.
NEPOTISMO: RAÍZES HITORICAS E ANÁLISE CRÍTICA DA RESOLUÇÃO Nº 7 DO CNJ E DA 117
SÚMULA VINCULANTE Nº 13

serão tratados aqui neste trabalho como conceitos fechados, cujos limi-
tes são pré-estabelecidos. Essa concepção corresponde mais ao que é
denominado teoria interna dos direitos fundamentais, a qual parte do
pressuposto de que os limites de um direito (princípio) são internos a
ele e por isso, in abstrato, é possível definir o conceito e os contornos
de um princípio. De outro modo, a teoria externa, proposta por Alexy,
entende que, em abstrato, só é possível falar de um conceito prima facie,
quando se trata de um princípio. Deste modo, os princípios da morali-
dade e da impessoalidade em abstrato, desvinculados de qualquer ca-
sos concreto, devem ser abordados de forma prima facie, ou seja, como
conceitos abertos que terão seus contornos definidos no caso concreto,
quando colidirem com outros princípios.32
O princípio da moralidade, posto ao lado da legalidade, significa
que não basta agir de acordo com a lei, é preciso que o ato seja moral
para ser válido, isso impõe, prima facie, um comportamento, tanto da
administração pública quanto do cidadão em relação à ela, de acordo
com a moral, os bons costumes, as regras da boa administração, os prin-
cípios da justiça, da equidade e da honestidade33. Não se trata de uma
moralidade subjetiva, mas de uma prescrição de um dever ético para
a administração pública. Como esclarece Romeu Felipe Bacellar Filho,
a moral administrativa não guarda estrita compatibilidade com a mo-
ral comum, “imposta ao homem para sua conduta interna”34. A moral
administrativa é a imposição de um dever ético à conduta externa do
agente, de um agir de acordo com a finalidade do bem comum35.
O princípio da impessoalidade, que é positivado no plano constitu-
cional pela primeira vez na Constituição de 1988, impõe, prima facie, dois
deveres: primeiro exige da Administração Pública um agir de acordo com
a finalidade pública proibindo o tratamento diferenciado. Isso significa
que “a Administração não pode atuar com vistas a prejudicar ou bene-
32 Ibid., p. 276-278.
33 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 22 ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 77.
34 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Princípios constitucionais do processo administrative disci-
plinar. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 179.
35 Idem.
118 Adriana Inomata

ficiar pessoas determinadas, uma vez que é sempre o interesse público


que tem que nortear o seu comportamento.”36 O segundo dever imposto
por este princípio, voltado aos agentes públicos, impõe a esses um atuar
impessoal, sem interferência de interesses pessoais do agente. Ora, os atos
administrativos representam a vontade estatal e não do agente. Este é ape-
nas a representação do órgão ou entidade do qual integra.
Assim, tais princípios somados ao princípio republicano, consa-
grado no artigo inaugural da Constituição, que em suma determina que
o poder público deve ser exercido em nome do povo; bem como ao
princípio implícito da finalidade pública, por si só impõem aos agentes
públicos o dever de exercerem suas atividades em conformidade com
o interesse público, a ética e a transparência, proíbem portanto a utili-
zação dos espaços públicos para favorecimentos meramente pessoais.37
A Constituição de 1988 proíbe, deste modo, como decorrência de
seus princípios estruturantes, a utilização do cargo/função pública para
mero favorecimento pessoal, como objeto de barganha para obtenção
de favorecimentos ou como forma de “apadrinhamento”.
No campo das leis infraconstitucionais, uma série de dispositivos
foram editados no intuito de proibir a nomeação de parentes para car-
gos de confiança em diversos setores da administração público, com o
intuito de extirpar a prática do nepotismo.
Tem-se como exemplos:
a) Lei Federal nº 8.112/90 (Estatuto dos Funcionários Públicos
da União), em seu art.117, VII, proíbe ao servidor público
civil federal a “manter sob sua chefia imediata, em cargo ou
função de confiança, cônjuge, companheiro ou parente até o

36 DI PIETRO, Op. Cit., p. 67.


37 O uso do poder político para favorecimentos pessoais corresponde ao que Enrique Dussel
denomina de “Corrupção do político”, que significa, nas palavras o autor: “A corrupção origi-
nária do político, que denominaremos o fetichismo do poder, consiste em que o ator político (os
membros da comunidade política, sejam cidadãos ou representantes) acredita poder afirmar
sua própria subjetividade para a instituição em que cumpre alguma função (...) como a sede
ou a fonte do poder político. (...) Se os membros, por exemplo, crêem que exercem o poder a
partir de sua autoridade auto-referente (ou seja, para si próprios) seu poder foi corrompido.”
(DUSSEL, Enrique. 20 teses da política. Tradução de Rodrigo Rodrigues. São Paulo: Expressão
Popular, 2007, p. 16.)
NEPOTISMO: RAÍZES HITORICAS E ANÁLISE CRÍTICA DA RESOLUÇÃO Nº 7 DO CNJ E DA 119
SÚMULA VINCULANTE Nº 13

segundo grau civil”. Tal medida visa evitar a falta de controle


e de cobrança das chefias em face da existência de parentesco
próximo.
b) da mesma forma tem-se a Lei nº 9.421/1996, em seu art. 1038,
revogada pela Lei nº 11.416/2006, a qual vem a reafirmar a
vedação do nepotismo no âmbito do Poder Judiciário, em seu
art. 6º .39.
c) no âmbito da Justiça Eleitoral, a Lei n. 8.868/1994, a qual dispõe
sobre a criação, extinção e transformação de cargos efetivos e
em comissão, nas Secretarias do Tribunal Superior Eleitoral e
dos Tribunais Regionais Eleitorais e dá outras providências,
em seu art. 12, estabelece, in verbis, que “Salvo se servidor efe-
tivo de juízo ou tribunal, não poderá ser nomeado ou designa-
do, para cargo ou função de confiança, cônjuge, companheiro
ou parente, até o terceiro grau civil, inclusive, de qualquer dos
respectivos membros ou juízes em atividade”,
d) no âmbito do Supremo Tribunal Federal, tem-se os arts. 355, §
7º40 e 357, parágrafo único41, do Regimento Interno, os quais

38 “Art. 10. No âmbito da jurisdição de cada Tribunal ou Juízo é vedada a nomeação ou designa-
ção, para os Cargos em Comissão e para as Funções Comissionadas de que trata o art. 9°, de
cônjuge, companheiro ou parente até o terceiro grau, inclusive, dos respectivos membros ou
juízes vinculados, salvo a de servidor ocupante de cargo de provimento efetivo das Carreiras
Judiciárias, caso em que a vedação é restrita à nomeação ou designação para servir junto ao
Magistrado determinante da incompatibilidade.”
39 “Art. 6o No âmbito da jurisdição de cada tribunal ou juízo é vedada a nomeação ou designa-
ção, para os cargos em comissão e funções comissionadas, de cônjuge, companheiro, parente
ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, dos respectivos membros e ju-
ízes vinculados, salvo a de ocupante de cargo de provimento efetivo das Carreiras dos Quadros
de Pessoal do Poder Judiciário, caso em que a vedação é restrita à nomeação ou designação
para servir perante o magistrado determinante da incompatibilidade.”
40 “Art. 355, § 7º Salvo se funcionário efetivo do Tribunal, não poderá ser nomeado para cargo
em Comissão, ou designado para função gratificada, cônjuge ou parente (arts. 330 a 336 do
Código Civil*), em linha reta ou colateral, até terceiro grau, inclusive, de qualquer dos Minis-
tros em atividade.”
41 “Art. 357. Comporão os Gabinetes dos Ministros: I – até dois Assessores, bacharéis em Direito,
nomeados em Comissão, nos termos da lei e dos atos regulamentares do Tribunal; II1 – até
dois Assistentes Judiciários, escolhidos dentre servidores portadores de diploma de curso de
nível superior, um dos quais recrutado no Quadro da Secretaria do Tribunal; III – até seis
Auxiliares, da confiança do Ministro, cinco dos quais, no mínimo, serão recrutados dentre os
servidores do Tribunal. Parágrafo único. Não pode ser designado Assessor, Assistente Judici-
120 Adriana Inomata

restringem a nomeação de parentes como forma de combate


ao nepotismo.
e) também no âmbito do Tribunal de Contas da União, a partir
da Lei nº 8.443/1992 (Lei Orgânica do Tribunal de Contas da
União), em seu art. 110, IV42.

Esse cenário legislativo demonstra a tentativa, típica da cultura


brasileira, em solucionar o problema do nepotismo por meio de lei. Não
houve iniciativa legislativa, no entanto, no sentido de redução do núme-
ro de cargos em confiança ou, ainda, para determinar critérios objetivos
para o seu preenchimento.
É possível notar que a tentativa de erradicar o uso pessoal e imoral
dos cargos em comissão acabou por eleger como inimigo a ser combati-
do o “parente”. Os laços de parentesco tornaram-se o único critério para
a configuração do nepotismo e, portanto, impedimento absoluto para
a ocupação de cargos em comissão, que dispensam concurso público.
Neste passo, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) veio a editar a
Resolução nº 07, de 2005, a qual, segundo a ementa, “disciplina o exercício
de cargos, empregos e funções por parentes, cônjuges e companheiros de
magistrados e de servidores investidos em cargos de direção e assessora-
mento, no âmbito dos órgãos do Poder Judiciário e dá outras providências.”
Antes de analisar a respectiva Resolução do CNJ, é oportuno esclare-
cer qual é a sua natureza e as suas funções constitucionalmente atribuídas.
O Conselho Nacional de Justiça constitui-se em órgão criado pela
Emenda Constitucional n. 45 de 2004 como integrante da estrutura do Poder
Judiciário, atuando como órgão administrativo, portanto sem função juris-
dicional. Conforme art. 103-B, §4º da Constituição de 1988 (artigo incluído
pela E.C. 45/2004) compete ao Conselho o controle da atuação administrati-

ário ou Auxiliar, na forma deste artigo, cônjuge ou parente, em linha reta ou colateral, até o
terceiro grau, inclusive, de qualquer dos Ministros em atividade.”
42 “Art. 110. (...) IV - provimento dos cargos em comissão e funções de confiança por servidores
do quadro de pessoal, exceto quanto aos Gabinetes de Ministro, do Procurador-Geral e de
Auditor em relação a um Oficial de Gabinete e a um Assistente, que serão de livre escolha da
autoridade, obedecidos os requisitos legais e regimentais; (Redação dada pela Lei nº 9.165, de
1995)”
NEPOTISMO: RAÍZES HITORICAS E ANÁLISE CRÍTICA DA RESOLUÇÃO Nº 7 DO CNJ E DA 121
SÚMULA VINCULANTE Nº 13

va e financeira do Poder Judiciário, podendo expedir atos regulamentares no


âmbito de sua competência, ou recomendar providências; bem como apreci-
sar a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos
do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los, ou fixar prazo para
que adotem as devidas providências necessárias ao exato cumprimento da lei.
Trata-se, o Conselho Nacional de Justiça, de órgão administrativo
de competências fiscalizatórias e regulamentares a serem exercidas com
vistas ao adequado cumprimento das leis e da Constituição.
Valmir Pontes Filho reforça que, na medida em que a Constitui-
ção de 1988 estabelece em seu inciso II, inciso II, do §4º, do art. 103-B,
que cabe ao CNJ “zelar pela observância do art. 37” da Constituição, “ao
Conselho não é dado (...) atuar como se Legislativo fosse.” Ao CNJ cabe
apenas o exercício da competência regulamentar, “com vistas à preser-
vação das regras do aludido art. 37, CF”.43
No exercício de sua competência regulamentar, o CNJ, ao editar a
Resolução nº 7/2005, estabeleceu em seu artigo inaugural a vedação a “a
prática de nepotismo no âmbito de todos os órgãos do Poder Judiciário,
sendo nulos os atos assim caracterizados.” Em seguida, em seu artigo
2º, a Resolução relaciona o que considera por práticas de nepotismo44.

43 FILHO, Valmir Pontes. A Resolução n. 07 do CNJ e o Equivocado Combate ao Nepotismo.


Revista eletrônica sobre a reforma do estado, Salvador, nº 4, dezembro, 2005, janeiro, feverei-
ro, 2006. Disponível em http://www.direitodoestado.com/revista/RERE-4-DEZEMBRO-
2005-VALMIR%20PONTES.pdf acesso em 14 de julho de 2011.
44 Art. 2º Constituem práticas de nepotismo, dentre outras:
I - o exercício de cargo de provimento em comissão ou de função gratificada, no âmbito da juris-
dição de cada Tribunal ou Juízo, por cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral
ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, dos respectivos membros ou juízes vinculados;
II - o exercício, em Tribunais ou Juízos diversos, de cargos de provimento em comissão, ou de
funções gratificadas, por cônjuges, companheiros ou parentes em linha reta, colateral ou por
afinidade, até o terceiro grau, inclusive, de dois ou mais magistrados, ou de servidores inves-
tidos em cargos de direção ou de assessoramento, em circunstâncias que caracterizem ajuste
para burlar a regra do inciso anterior mediante reciprocidade nas nomeações ou designações;
III - o exercício de cargo de provimento em comissão ou de função gratificada, no âmbito da juris-
dição de cada Tribunal ou Juízo, por cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral
ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, de qualquer servidor investido em cargo de
direção ou de assessoramento;
IV - a contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional
interesse público, de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinida-
de, até o terceiro grau, inclusive, dos respectivos membros ou juízes vinculados, bem como de
qualquer servidor investido em cargo de direção ou de assessoramento;
122 Adriana Inomata

Importante ainda observar que, em seu artigo 5º, a Resolução nº


07/2005 determina que os então ocupantes de cargos de provimento em
comissão e de funções gratificadas, que se encaixem em qualquer das hi-
póteses do art. 2º, deverão ser exonerados pelos respectivos Presidentes
dos Tribunais, dentro do prazo de noventa dias.
Ora, como esclarecido acima, cabe ao Conselho Nacional de Jus-
tiça apenas a função de regulamentar o disposto na Constituição Fe-
deral de 1988, sendo a este órgão proibido exercer a função legiferante
típica do Poder Legislativo. Nesse sentido, Valmir Pontes Filho aponta
que “qualquer proibição que se queira impor à autoridade pública, de
nomear alguém para exercer cargo em comissão (declarado em lei de
livre nomeação – CF, art. 37, II), embora cônjuge, só pode ser veiculada
por intermédio de lei em sentido formal”.45 Para o autor, trata-se de ma-
téria posta sob reserva legal.
Nesse sentido, foram impetrados diversos mandados de seguran-
ça, obtendo liminares contra a aplicação da Resolução, vide por exemplo
as limares concedidas pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro46. No
mesmo sentido, foram impetradas Ações Diretas de Inconstitucionali-
dade (ADI), como a ADI 3632 e a ADI 3617, requerendo a declaração
de inconstitucionalidade de dispositivos da referida Resolução do CNJ.
Por fim, para sanar a discussão, a Associação dos Magistrados
Brasileiros (AMB), propôs Ação Declaratória de Constitucionalidade
(ADC 12) em face da Resolução nº 7/2005, do CNJ. A referida ação foi
julgada procedente pelo Supremo Tribunal Federal, o qual entendeu que
a vedação do nepotismo decorre diretamente dos princípios constitu-
cionais da impessoalidade, eficiência, igualdade e moralidade.47
V - a contratação, em casos excepcionais de dispensa ou inexigibilidade de licitação, de pessoa
jurídica da qual sejam sócios cônjuge, companheiro ou parente em linha reta ou colateral até o
terceiro grau, inclusive, dos respectivos membros ou juízes vinculados, ou servidor investido
em cargo de direção e de assessoramento.
45 Idem.
46 TJ/RJ, DO 26 jan. 2006, MS 200600400077, Rel. Des. Antonio Eduardo F. Duarte ; TJ/RJ, DO
11 jan. 2006, MS 20060040006, Rel. Des. Fabricio Bandeira Filho; TJ/RJ, DO 16 jan. 2006, MS
2006004008, Rel. Des. Luiz Zveiter; dentre outros.
47 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 12-6, Dis-
trito Federal. Requerente: Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). Requerido: Conse-
NEPOTISMO: RAÍZES HITORICAS E ANÁLISE CRÍTICA DA RESOLUÇÃO Nº 7 DO CNJ E DA 123
SÚMULA VINCULANTE Nº 13

4. O ALCANCE DASÚMULA VINCULANTE Nº 13 E A RESTRI-


ÇÃO DIREITOS FUNDAMENTAIS: ANÁLISE CRÍTICA

O Supremo Tribunal Federal, por meio da súmula vinculante n.º


13, de 29 de agosto de 2008, estabeleceu que

A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha


reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive,
da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa ju-
rídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramen-
to, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou,
ainda, de função gratificada na administração pública direta e
indireta em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste me-
diante designações recíprocas, viola a Constituição Federal 48.

Assim, mantendo a orientação dada pela Resolução n. 7, do CNJ,


a Súmula Vinculante n. 13 determinou a proibição da prática do nepo-
tismo em toda a administração pública brasileira para o exercício de
cargo em comissão ou confiança, ou de função gratificada, atendo-se
unicamente critério do grau de parentesco, tanto no caso do nepotismo
direto, quanto no caso do nepotismo cruzado. Nesse sentido, segundo
o texto sumular, é proibida a nomeação de parente (consanguíneo ou
por afinidade, até terceiro grau) de autoridade nomeante ou de servi-
dor de mesma pessoa jurídica investido no cargo de direção, chefia ou
assessoramento, para cargo em comissão ou de confiança e para função
gratificada, vendando ainda o chamado nepotismo cruzado.
Após a edição da referida súmula, o STF passou por um processo
de discussão e revisão de alguns critérios que ali foram estabelecidos ou
omitidos. Isso se deu, especificamente, com relação à distinção entre favo-
lho Nacional de Justiça. Relator: Min. Carlos Britto. Brasília, DF, 20 de agosto de 2008. Diário
de Justiça Eletrônico. Brasília, 10 dez. 2009. v. 237. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/pagi-
nadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=606840>. Acesso em: 28 fev. 2017.
48 Fonte de Publicação: DJe nº 162, p. 1, em 29/8/2008 e DOU de 29/8/2008, p. 1. Legislação:
Constituição Federal de 1988, art. 37, “caput”. Precedentes: ADI 1521 MC, MS 23780, ADC 12
MC, ADC 12, RE 579951.
124 Adriana Inomata

recimento familiar de agentes no provimento de cargos administrativos e


no provimento de cargos políticos ou político-administrativos.49 Ou seja, o
Supremo relativizou a aplicação da súmula para os casos de provimento dos
cargos de natureza política. Deste modo, a Súmula Vinculante n. 13 só seria
aplicada aos cargos de confiança funções gratificadas puramente adminis-
trativos, de livre nomeação e livre exoneração, excluindo cargos políticos,
mesmo os não eletivos, situação que deve ser vista caso a caso, a fim de se
verificar se não há troca de favores ou fraude à lei. Secretários municipais
e estaduais, Ministros de Estado podem, a princípio, ser utilizados por pa-
rentes imediatos do governante, sem configurar nepotismo. Essa relativiza-
ção promovida pelo STF foi recebida pelos juristas com certa perplexida-
de50, com toda razão. Ora, essa distinção não se justifica à luz do princípio
republicano, e da igualdade de acesso aos cargos e funções públicas. Para
agravar ainda mais esse quadro de insegurança quanto aos destinatários
da SV n. 13, não há conceituação pacífica de agentes políticos ou cargos
políticos na doutrina administrativista brasileira, como demonstrou Paulo
Modesto, em seu artigo “Nepotismo em cargos político-administrativos”51.
De todo modo, a vedação do nepotismo mediante súmula vincu-
lante foi celebrada. Tratou-se de apresentar uma solução pronta, sem o
devido debate democrático, como se o problema da apropriação privada
das funções públicas tivesse finalmente tivesse sido resolvido. Não se
apresentou soluções concretas para o uso indiscriminado de cargos em
comissão, com a propositura de requisitos mais objetivos, respeitando o

49 BRASIL. Supremo Trinbunal Federal. Agravo Regimental na Medida Cautelar na Reclama-


ção nº 6.650-9. Agravante: José Rodrigo Sade. Agravado: Eduardo Requião de Mello e Silva.
Relator: Min. Ellen Gracie. Brasília, DF, 16 de outubro de 2008. Diário de Justiça Eletrônico.
Brasília, 21 nov. 2008. v. 222. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.
jsp?docTP=AC&docID=563349>. Acesso em: 28 fev. 2017
BRASIL. Supremo Trinbunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 825.682,
Santa Catarina. Agravante: Ministério Público do Estado de Santa Catarina. Agravado: Mu-
nicípio de Armazém e outros. Relator: Min. Teori Zavascki. Brasília, DF, 10 de fevereiro de
2015. Diário de Justiça Eletrônico. Brasília, 02 mar. 2015. Disponível em: <http://redir.stf.jus.
br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7893662>. Acesso em: 02 mar. 2017.
50 MODESTO, Paulo. Nepotismo em cargos politico-administrativos. Revista Eletrônica de Di-
reito do Estado (REDE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº. 32, outubro/no-
vembro/dezembro de 2012. Disponível na Internet: <http://www.direitodoestado.com/revista/
REDE-32-DEZEMBRO-2012-PAULO-MODESTO.pdf>. Acesso em: 28 de outubro de 2017.
51 Idem.
NEPOTISMO: RAÍZES HITORICAS E ANÁLISE CRÍTICA DA RESOLUÇÃO Nº 7 DO CNJ E DA 125
SÚMULA VINCULANTE Nº 13

princípio da eficiência. Não se atentou para a restrição de direitos fun-


damentais, em especial o de acesso aos cargos públicos.
Outra questão a ser atacada diz respeito ao conteúdo da súmula
vinculante 13 e o a garantia fundamental da legalidade, segundo a qual o
Poder Público só pode fazer o que a lei formal (geral e abstrata) permite
e o particular pode fazer ou deixar de fazer tudo o que a lei não proíbe52.
Embora o STF tenha se pronunciado no sentido de que há inexigibilida-
de de lei formal para a vedação do nepotismo, pois esta decorre direta-
mente do art. 37, caput, da CF53, é preciso olhar a questão de modo mais
atento e menos superficial.
O art. 37, no inciso II, com redação dada pela EC n. 19, estabele-
ce as condições para o acesso aos cargos, empregos e funções públicas.
Como regra, a CF estabelece a necessidade de aprovação prévia em con-
curso público para investidura em cargo ou emprego público, na forma
prevista em lei. Mas também, ao lado dessa hipótese, estão as nomeações
para cargo em comissão declarado em lei. Conforme salienta Maria Sylvia
Zanella Di Pietro, “a lei é que definirá ‘os casos, condições e percentuais
mínimos’ a serem observados no provimento de cargos em comissão.”54
O que se observa na edição da SV n. 13 é verdadeira atividade
legislativa por parte do Supremo, na medida em que este fixa critérios
gerais para a configuração do nepotismo em todas as esferas da Ad-
ministração Pública, inovando o ordenamento jurídico55, e ainda gera,
por consequência, uma sanção àquele que se enquadra nessa hipótese
normativa: a perda do cargo ou função. Como afirmado anteriormente,
52 DI PIETRO, Op. Cit., p. 64.
53 BRASIL. Supremo Trinbunal Federal. Recurso Extraordinário nº 579.951-4, Rio Grande do
Norte. Recorrente: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte. Recorrido: Muni-
cípio de Água Nova e outros (A/S). Relator: Min. Ricardo Lewandowiski. Brasília, DF, 20 de
agosto de 2008. Diário de Justiça Eletrônico. Brasília, 24 out. 2008. Disponível em: <http://redir.
stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=557587>. Acesso em: 28 fev. 2017.
54 DI PIETRO, Op. Cit., p. 523.
55 Deve-se atentar para o fato de que mesmo na legislação específica não havia uniformidade
quanto aos critérios para a configuração do nepotismo. Por exemplo, a Lei 8.112/90, que disci-
plina o Estatuto dos Funcionários Públicos da União, proíbe o nepotismo até o segundo grau
de parentesco; a revogada Lei nº 9.421/1996 (artigo 10), que tratava do plano de carreira do
Poder Judiciário, a Lei 11.416/2006, em seu artigo 6 e a Lei nº 8.432/1992 (artigo 44, § 3º), que
cria cargos na Justiça do Trabalho vedam a nomeação de parentes até o terceiro grau, mas não
fazem menção alguma aos casos de nepotismo cruzado.
126 Adriana Inomata

nem mesmo o CNJ, com a competência regulamentar que a CF lhe atri-


bui, pode criar obrigações sem respaldo na lei, como ensina Vladimir
Pontes Filho. Disso se conclui que qualquer proibição à autoridade pú-
blica de nomear parentes para cargo em comissão, de confiança ou fun-
ção gratificada, ou imposição de exoneração, se já nomeadas, só pode
ser veiculada mediante lei (geral e abstrata).56
No que diz respeito à restrição ao direito ao igual acesso aos car-
gos públicos (art. 37, I, CF), a Súmula Vinculante n. 13 promove uma
intervenção injustificada, desproporcional, portanto.
Como direito fundamental que é57, o direito ao livre acesso aos
cargos públicos só pode ser restringido mediante a exigência da propor-
cionalidade. Esse caso expressa uma restrição a esse direito, decorrente
dos princípios da moralidade e da impessoalidade.
Ora, como ensina Robert Alexy, os direitos fundamentais, como
mandamentos de otimização, possibilitam vários graus de concretiza-
ção, o que significa afirmar que, pelo caráter prima facie, estão sujeitos a
restrições58. Todo e qualquer direito fundamental (todos os princípios,
na verdade) pode sofrer restrições e essas sempre derivam de outras
normas. A questão a saber é: quais restrições são legítimas. As interven-
ções em direitos fundamentais consideradas válidas, constitucionais,
são aquelas que atentam à máxima da proporcionalidade e suas sub má-
ximas: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito59.
As restrições a direitos fundamentais sempre derivam da Constituição,
direta ou indiretamente.60 A restrições podem ser realizadas mediante
lei (especialmente nos casos de reserva legal), ou mediante o processo

56 FILHO, Valmir Pontes. A Resolução n. 07 do CNJ e o Equivocado Combate ao Nepotismo.


Revista eletrônica sobre a reforma do estado, Salvador, nº 4, dezembro, 2005, janeiro, feverei-
ro, 2006. Disponível em http://www.direitodoestado.com/revista/RERE-4-DEZEMBRO-
2005-VALMIR%20PONTES.pdf acesso em 14 de julho de 2011.
57 Segundo entendimento de Ingo W. Sarlet, o direito de igual acesso aos cargos públicos (art.
37, I , CF) é considerado direito fundamental fora do catálogo do Título II da Constituição
brasileira de 1988, pelo critério material. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fun-
damentais. Uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11ª ed.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 117.
58 ALEXY, Robert. Op. Cit., p. 281.
59 Ibid., p. 588 e ss.
60 Ibid., p. 286 e ss.
NEPOTISMO: RAÍZES HITORICAS E ANÁLISE CRÍTICA DA RESOLUÇÃO Nº 7 DO CNJ E DA 127
SÚMULA VINCULANTE Nº 13

de ponderação, quando há colisão entre princípios, pelo Poder Judiciá-


rio. Quando há reserva legal, a competência para restringir um direito é
dada ao Poder Legislativo. Esse é o caso da restrição ao direito de igual
acesso aos cargos públicos, conforme redação dada pelo art. 37, I, da CF.
Há, portanto, neste caso, uma inconstitucionalidade formal, pois
há uma violação à ordenação constitucional de competências, uma vez
que a CF ordena que cabe ao legislativo regular o acesso aos cargos em-
pregos e funções públicas mediante lei (reserva legal), excluindo essa
competência do Poder Judiciário.
Se não bastasse isso, há também uma inconstitucionalidade de natu-
reza material, uma vez que a intervenção ao direito de igual acesso aos car-
gos públicos com vistas à realização da moralidade e impessoalidade, pelo
simples critério do parentesco, não se revela proporcional. Ora, o impedi-
mento de que parentes de até terceiro grau da autoridade nomeante sequer
pode ser considerado uma medida plenamente apta à garantir a moralidade
na administração pública. Mesmo que se considere o contrário, que o im-
pedimento do acesso aos cargos comissionados, de confiança ou funções de
gratificação, por parentes seja medida adequada para garantir a moralidade
nesses casos, a medida não se mostra como necessária, pois existiriam ou-
tras formas (menos gravosas para o titular do direito fundamental de igual
acesso aos cargos/funções públicas e tão eficientes quanto) de controlar a
eficiência, a moralidade e a impessoalidade na nomeação para cargos em
comissão (de confiança e funções gratificadas), que não fosse apenas o cri-
tério do parentesco. Nesse ponto, seria necessária uma ampla e democrática
discussão acerta do estabelecimento de critérios objetivos para o preenchi-
mentos de cargos e funções que dispensam concurso público.. Além disso,
mesmo se fosse considerada necessária, a medida é desproporcional em
sentido estrito, pois a intervenção ao direito fundamental é gravíssima, não
resta nada do direito, enquanto a justificativa com base na moralidade é
moderada61.
61 Sobre a moralidade administrativa como justificativa de restrição a direito fundamental, Car-
los Luiz Strapazzon faz uma abordagem crítica ao moralismo como fundamento de restrição
ao direito de livre acesso aos mandatos eletivos. “O constitucionalismo brasileiro, pós-1988,
não é do tipo que autoriza a tutela moral dos cidadãos. Bem ao contrário, é do tipo que ma-
ximiza a proteção das liberdades individuais e cívicas. O direito constitucional atual, por sua
vez, é garantia de liberdades, igualdade e solidariedade. Essa função garantista dos direitos
128 Adriana Inomata

A decisão aqui não se justifica, pois não é imposta por lei – re-
serva legal imposta pelo art. 37, I –, e não respeita a máxima da propor-
cionalidade. No entanto, foi anunciada como solução definitiva para o
problema do nepotismo.
Note-se ainda que a o Supremo Tribunal Federal, ao rechaçar a
presença de parentes nos cargos de direção, demonstra uma atuação
legislativa ainda mais enfática, ao fazer uma interpretação diversa do
Código Civil Brasileiro sobre o que seja parentesco, mantendo o enten-
dimento da Resolução nº 7 do CNJ.
O Código Civil nos artigos 1591 a 1595 trata das relações de
parentesco. 62 Parentesco é o vínculo que une uma pessoa a outras da
mesma família. Será considerado consanguíneo quando as pessoas são
unidas em razão de vínculo biológico, ou seja, laços de sangue, assim
também como os filhos por vínculo de adoção que, em virtude da Cons-
tituição de 1988, adquiriram mesmo patamar de filhos biológicos para
todos os efeitos legais. Será consanguíneo em linha reta quando se esta-
belecer uma linha de descendência entre as partes (avô, pai, filho, neto).
Não há limitação de grau neste tipo de parentesco. O parentesco será
consanguíneo em linha colateral quando as partes tiverem um mesmo
ancestral comum (irmãos, tio e sobrinho, primos). O Código civil con-
sidera parentes os colaterais até o quarto grau (primos).
O parentesco por afinidade é o que une os parentes de um cônju-
fundamentais não pode ser diminuída em nome de uma prevenção preconceituosa contra
indivíduos de conduta duvidosa , como sugeriu o deputado relator do projeto ficha limpa , ou
para salvar a políticados politicos…” (MEZZAROBA, Orides; STRAPAZZON, Carlos Luiz.
Moralismo político e restrições a direitos fundamentais. Revista Direitos Fundamentais & Jus-
tiça, PUC-RS, nº14 – jan./mar. 2011)
62 “Art. 1.591. São parentes em linha reta as pessoas que estão umas para com as outras na rela-
ção de ascendentes e descendentes.
Art. 1.592. São parentes em linha colateral ou transversal, até o quarto grau, as pessoas provenien-
tes de um só tronco, sem descenderem uma da outra.
Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem.
Art. 1.594. Contam-se, na linha reta, os graus de parentesco pelo número de gerações, e, na cola-
teral, também pelo número delas, subindo de um dos parentes até ao ascendente comum, e
descendo até encontrar o outro parente.
Art. 1.595. Cada cônjuge ou companheiro é aliado aos parentes do outro pelo vínculo da afinidade.
§ 1o O parentesco por afinidade limita-se aos ascendentes, aos descendentes e aos irmãos do côn-
juge ou companheiro.
§ 2o Na linha reta, a afinidade não se extingue com a dissolução do casamento ou da união estável.”
NEPOTISMO: RAÍZES HITORICAS E ANÁLISE CRÍTICA DA RESOLUÇÃO Nº 7 DO CNJ E DA 129
SÚMULA VINCULANTE Nº 13

ge ao outro cônjuge, ou seja, aquele que se estabelece por laços oriundos


do casamento (sogro, genro, cunhado). Para a Lei civil, o parentesco por
afinidade em linha reta (sogro, sogra, genro e nora) não se extingue,
nem mesmo com o término do casamento (art 1.595, §2º). O parentesco
por afinidade na linha colateral vai apenas até o segundo grau (cunhado)
(art. 1595, §1º).
Analisando o texto da Súmula Vinculante nº 13, verifica-se que
não só a redução da abrangência do instituto do parentesco, no caso do
parentesco consanguíneo, mas também a ampliação do parentesco por
afinidade, abrangendo aqueles até terceiro grau. A SV n. 13 também
tratou com impropriedade a eleição do critério de parentesco na medida
em que inúmeras situações que, se analisadas sob prisma do princípio
da impessoalidade e da moralidade, não se apresentam como nepotis-
mo e, portanto, determinarão o afastamento da aplicação da súmula, até
que enfraquecida seja cotidianamente desrespeitada.
Ora, no tocante ao parentesco por afinidade, apenas os ascen-
dentes e descendentes, em até terceiro grau, como o sogro e a sogra, o
enteado e a enteada, e os irmãos do cônjuge ou companheiro, estão im-
pedidos de ocuparem os cargos comissionados ou funções gratificadas.
Assim, do ponto de vista do alcance da possibilidade de favoreci-
mento familiar, a súmula vinculante nº 13 deixou de alcançar os primos
(parentesco em linha colateral de 4º grau), deixa também de incluir os
sobrinhos da esposa do nomeante (que pela lei não são considerados
parentes). Não atinge os bisnetos e os amigos, os conhecidos aliados
políticos.
Cabe reforçar ainda, a Súmula Vinculante n. 13 pode promover
uma situação de grave injustiça, uma vez que o puro critério do paren-
tesco pode levar ao afastamento de pessoas tecnicamente aptas a exercer
o cargo. Além disso, é de se questionar se o simples critério do paren-
tesco afasta, por si só, a presunção de legalidade (e moralidade!) do ato.
Algumas das razões apresentadas para a eleição do critério paren-
tesco como requisito para a configuração do favorecimento informam
sobre a facilidade e conhecimento público do fato e a possibilidade de
130 Adriana Inomata

realização de controle. É possível que esta situação seja evidente em pe-


quenos Municípios, que sequer precisariam de norma para configurar
o favorecimento, uma vez que nestes casos é perfeitamente possível a
população local identificar o favoritismo sem mérito para obtenção de
cargo público. Todavia, é de se questionar se será possível identificar,
por exemplo, que no Ministério das Cidades alguém tenha sido nomea-
do para determinado cargo porque é sobrinho da esposa de um Diretor
de departamento do Ministério das Relações Exteriores.
Assim, muito embora seja imprescindível a adoção de medidas
para evitar que o setor público seja administrado como coisa privada
pertencente a certas pessoas, o meio proposto apresenta os mesmos ran-
ços de outrora, uma vez que foi subtraída a prática democrática plena
para sua instituição.
A medida adotada ignora que existem servidores com anos de
serviço e que percebem gratificações em decorrência do profissionalis-
mo com que exercem suas atividades, bem como que o favorecimento
muitas vezes ocorre por interesses políticos e que não se referem ao pa-
rentesco propriamente dito e quanto a isso a súmula vinculante nº 13
não oferece qualquer proteção ao patrimônio público. A súmula ignora,
por fim, que existem parentes de autoridades com grande experiência
profissional e que justamente por ser o cargo em comissão a autoridade
deve ter confiança no nomeado, sendo razoável que deposite tal con-
fiança em um parente.
É importante reforçar, com o perigo da redundância, que a atual
Constituição Federal em nenhum momento traz proibições à contrata-
ção baseadas unicamente no parentesco. Assim, a proibição de nomea-
ção de profissional habilitado apenas pelo fato de que possui parentesco
com alguma autoridade, representa restrição sem lei que a justifique,
ficando evidente a inconstitucionalidade da proibição regulamentada
na SV n. 13.
Isso não significa que se deve admitir o uso indiscriminado e an-
tiético dos cargos e funções públicas, que devem ser perpetuadas as más
práticas do uso da coisa pública com interesses particulares que encon-
NEPOTISMO: RAÍZES HITORICAS E ANÁLISE CRÍTICA DA RESOLUÇÃO Nº 7 DO CNJ E DA 131
SÚMULA VINCULANTE Nº 13

tram raízes no Brasil colonial. Não se está na defesa de um irrestrito


acesso aos cargos e funções públicas comissionadas ou de confiança por
parentes. O que se defende aqui é que a solução para a questão seja en-
frentada de outra maneira, com respeito aos princípios constitucionais e
direitos fundamentais, pilares do Estado Democrático de Direito.

5. CONCLUSÕES

O nepotismo, como prática que visa o favorecimento pessoal e


de parentes na utilização de cargos públicos como negócios privados,
está historicamente enraizado na cultura brasileira. A utilização da coisa
pública para proveito pessoal é marca na história da administração pú-
blica brasileira e contribui para o distanciamento entre Estado e povo,
entre democracia real e democracia formal. É o que se visualiza no es-
tudo sobre coronelismo, mandonismo, clientelismo e patrimonialismo
no Brasil.
Assim, pode-se verificar que, como prática de favorecimento de
parentes em cargos e funções públicos, o nepotismo sempre esteve pre-
sente enquanto verdadeira cultura e como tal não pode ser extirpada
pela simples edição de atos legislativos, mesmo que constitucionais.
A história brasileira demonstra a ideologia que se esconde na
ideia de que as reformas são realizadas pelos “poderes”, pelo Estado,
principalmente mediante a edição de leis. Isso significa o isolamento
do povo das decisões públicas, em especial em decisões que repercutem
diretamente no erário público.
Desta forma, a regulação do nepotismo não se deu de forma di-
versa. A partir, principalmente, da edição da Resolução n.07/2005 do
CNJ e da súmula vinculante n. 13, percebe-se que a sociedade brasileira,
em geral, acreditou estarem moralizados os cargos de confiança, e ter,
as referidas regulamentações, posto fim, ao menos no plano normativo,
ao nepotismo no Brasil. Ficou evidente, pela abordagem crítica dada a
Súmula Vinculante n. 13 e à Resolução 05/2005, que tais institutos estão
longe de promover um campo propício para a verdadeira eliminação do
nepotismo enquanto prática de má utilização de cargos de confiança e
de funções gratificadas. Ao revés, em muitos casos acabam por promo-
ver um verdadeiro retrocesso, desfavorecendo o profissionalismo e a efi-
ciência daqueles que por ventura estejam enquadrados nos parâmetros
da referida súmula e ainda intervindo gravemente do direito de igual
acesso aos cargos públicos de forma desproporcional. Sendo assim, con-
clui-se que somente mediante uma decisão efetivamente democrática,
em que haja amplo debate social sobre o tema, e por meio de um proce-
dimento hábil para tanto (qual seja, edição de lei respeitando o devido
processo legislativo), pode-se (e deve-se!) estabelecer parâmetros para a
eliminação da utilização desvirtuada dos cargos público, estabelecendo
critérios para utilização de cargos de confiança, em comissão e funções
gratificadas, com base na eficiência e não na mera proibição do paren-
tesco.
Novamente a proposta reformadora parte de cima para baixo.
Tal como as demais conquistas liberais, se apresenta como inspiração
de determinado grupo, não são reflexo de um predisposição social, são
pelo contrário um engodo, mais um convite a acomodação popular, re-
tardando a maturidade democrática.63

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137

IMPASSES E ALTERNATIVAS EM 200 ANOS


DE CONSTITUCIONALISMO LATINO-
AMERICANO12

José Ribas Vieira3


Fabiana de Almeida Maia Santos4
Gabriel Lima Marques5
Rafael Bezerra de Souza6
Sérgio Bocayuva Tavares de Oliveira Dias7

1 Este artigo fora publicado na RECHTD. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e


Teoria do Direito, v. 5, p. 122-132, 2013.
2 O presente trabalho é resultado da disciplina eletiva Tópicos Especiais: Observatório do Judi-
ciário, oferecida no curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da
UFRJ, no primeiro semestre letivo de 2013, sob a orientação do professor Doutor José Ribas
Vieira que construiu um programa dedicado exclusivamente ao estudo do novo constitucio-
nalismo latino-americano.
3 Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Montpelier I e Doutor em Direito pela UFRJ.
Professor dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro
- UFRJ. Coordenador do Observatório da Justiça Brasileira – OJB.
4 Advogada. Mestra em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Especialista em
Gestão de organizações do Terceiro Setor e em Direito Constitucional e Docência em Ensi-
no Superior pela UNESA. Pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas (FGV- Rio) e do grupo
Novas Perspectivas em Jurisdição Constitucional – UNESA. E-mail: fabianamaiaadv@yahoo.
com.br.
5 Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em
Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisador do Observatório da Justiça
Brasileira – OJB, Projeto/CNJ, grupo UFRJ. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior - CAPES. E-mail: gabriel-marques@hotmail.com.
6 Servidor do Ministério Público do Estado de Pernambuco. Bacharel em Direito pela Uni-
versidade Federal de Pernambuco - UFPE. Mestre em Direito pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro - UFRJ. Pesquisador do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o
Comportamento das Instituições (LETACI/FND/UFRJ). E-mail: rafaelbezerras@gmail.com.
7 Juiz Federal Substituto na Subseção de Volta Redonda. Bacharel em Direito pela Universidade
Federal do Mato Grosso. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
138 José Ribas Vieira, Fabiana de Almeida Maia Santos, Gabriel Lima Marques, Rafael Bezerra de
Souza, Sérgio Bocayuva Tavares de Oliveira Dias

INTRODUÇÃO

O final do século XX tem sido marcado por um amplo questio-


namento do legado do constitucionalismo advindo do pós-45. Embora
se reconheça a forte presença da efetivação de direitos fundamentais,
seus limites institucionais são questionados, assim como a legitimidade
da jurisdição constitucional. Fora esse plano conceitual, merece acrésci-
mo o surgimento de novas modalidades de constitucionalismo, dentre
as quais estaria inserido o “novo constitucionalismo latino-americano”,
dotado de uma pretensão de rompimento ou ao menos de releitura, con-
frontada com a vertente tradicional europeia. Indagações surgem sobre
esta modalidade ser um enfretamento decisivo ao legado arraigado da
própria trajetória latino-americana. Nessa linha de um possível distan-
ciamento a um corpo constitucional consolidado, investiga-se qual nova
concepção seria apontada. Identificada à presença de um novo consti-
tucionalismo regional, propõe-se a seguir, examinar suas manifestações
em diálogo com a herança eurocêntrica.

1. A TRAJETÓRIA DO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AME-


RICANO: continuidade ou ruptura?

Ao analisarmos a extensa obra do constitucionalista argentino


Roberto Gargarella8, saltam aos olhos dois aspectos que se notabilizam
por serem vislumbrados em quase todos os trabalhos do autor, sua crí-
tica constante a uma concepção elitista de democracia,9 e sua preocu-
pação em relação às desigualdades sociais. Exatamente por isso, vale
destacar, essa parte do trabalho terá como preocupação demonstrar
comparativamente, o modo como essas duas categorias centrais per-
passam os escritos do professor portenho sobre o constitucionalismo
latino-americano dos séculos XIX e XXI.
8 GARGARELLA. R. 2003. El período fundacional del constitucionalismo sudamericano
(1810–1860). Desarrollo Económico, vol. 43, nº 170. pp. 305-328.
9 Concepção tradicional nos países latino-americanos e que tem por objetivo transferir direta
ou indiretamente o poder político das mãos do povo para grupos específicos de dominação.
IMPASSES E ALTERNATIVAS EM 200 ANOS DE CONSTITUCIONALISMO LATINO- 139
AMERICANO

A partir de 1810, com os processos de independência na Amé-


rica Latina, destaca o catedrático da Universidade de Buenos Aires, a
existência de um verdadeiro caos constitucional. Em um curto espa-
ço de tempo, aproximadamente 50 anos, a efervescência das ideias fez
com que leis fundamentais fossem produzidas aos montes. Contudo,
em meio à desordem, um modelo de organização política10 ganhou no-
toriedade e tornou-se com o passar dos anos o mais influente dentre os
adotados pelos países da América Latina, o chamado modelo individua-
lista ou liberal. Sua adesão em massa, ainda consoante o autor, se deu
principalmente na segunda metade do século XIX, como reação a dois
outros modelos organizativos que existiam à época, mas que represen-
tavam cada qual, um extremo. Estes eram o perfeccionista ou conserva-
dor, cuja tendência era a tirania, e o modelo coletivo ou populista, que
inclinava-se à anarquia11.
Conveniente aos interesses das elites criollas recém chegadas ao
poder, o modelo tido como conservador, de tradição hispânica, inspi-
rou, senão todas, quase todas as constituições elaboradas nos primeiros
anos que se seguiram às revoluções. Afinal, arrefecido o calor da inde-
pendência, fazia-se necessário organizar a sociedade de modo tal, fosse
mantida a ordem e a estabilidade política daqueles que se elevavam a
partir de então, à condição de governo. Para tanto, a solução apresen-
tada por este constitucionalismo dito perfeccionista, foi concentrar o
poder político nas mãos de alguns poucos, que por serem mais “ilus-
trados”, teriam condições de decidir melhor os principais assuntos de
interesse dos jovens Estados. Tal solução, aplicada à organização institu-
cional, resultou na configuração de um poder executivo forte, dotado de
poderes excepcionais à serem utilizados em situações de crise externa
e interna, na estruturação de um poder legislativo débil, submetido ao

10 Vale a referência de que para Gargarella, um modelo constitucional é um tipo ideal acerca
do modo de organizar a estrutura básica da sociedade. Assim, a constituição para o autor,
desempenha um papel fundamental, uma vez que é nela em que se escrevem os princípios
orientadores da sociedade (Ibidem, p.306).
11 GARGARELLA, 2003, p.305.
140 José Ribas Vieira, Fabiana de Almeida Maia Santos, Gabriel Lima Marques, Rafael Bezerra de
Souza, Sérgio Bocayuva Tavares de Oliveira Dias

executivo e de preenchimento censitário,12 na organização territorial de


caráter centralizado, bem como, na mitigação dos direitos civis sob o
pretexto da preservação de certos valores morais13 e políticos, os quais
deveriam ser compartilhados por toda a sociedade14.
Todavia, em contraponto do modelo conservador, havia na outra
extremidade, chamado modelo populista ou rousseauniano, que propug-
nava um desenho constitucional completamente distinto. Suas propostas
centravam-se na constituição de uma organização territorial descentra-
lizada e na defesa de um parlamento poderoso, que através do princípio
majoritário, submeteria os ditames da vontade popular à reta observância
dos poderes executivo e judiciário. Duramente criticado por subordinar
direitos individuais aos interesses majoritários, o ideal coletivo, de acordo
com Gargarella1516 não encontrou um espaço político propício para o seu
desenvolvimento direto na América Latina. Suas referências, de maneira
mais robusta, deram-se quase que exclusivamente na Europa, sobretudo
na França, e no debate constituinte norte-americano, no qual saiu per-
dedor. Entretanto, ao contrário do que se possa pensar à primeira vista,
isso não quer dizer que o constitucionalismo populista foi desconhecido
por aqui à época, na verdade, foi justamente ao contrário, afinal, tanto se
sabia dele, que frequentemente se utilizavam exemplos deste modelo, para
incutir no imaginário popular como uma participação mais aberta pode-
ria representar uma verdadeira ameaça à governabilidade e a estabilidade
social, tão caras naquele período histórico17.

12 Um exemplo que pode ser citado é o constante da constituição do Equador de 1843, onde o
legislativo era convocado somente uma vez a cada 4 anos, e onde se permitia ao executivo,
dentre outras coisas, suspender procedimentos judiciais. No mesmo sentido, pode-se aludir,
de igual modo, a lei fundamental do Peru de 1826, em que se consagrou Símon Bolívar tanto
como presidente vitalício quanto como irresponsável politicamente.
13 A ideia era a construção de uma cidadania que compartilhasse dos mesmos valores morais,
sobretudo religiosos. Um exemplo disso pode ser tomado da carta política do Equador de 1869
que condicionava direitos civis à adoção da fé católica.
14 Ibidem, 2003, pp.308-310.
15 Et seq. p.321.
16 O autor chama a atenção para o exemplo do General Artigas, que segundo ele, foi um dos
poucos que defendeu na América Latina, o modelo constitucional coletivo.
17 Ibidem. p.325.
IMPASSES E ALTERNATIVAS EM 200 ANOS DE CONSTITUCIONALISMO LATINO- 141
AMERICANO

No meio de tudo isso, por fim, havia ainda o modelo liberal-indi-


vidualista, de matriz essencialmente norte-americana, e que se colocava
como um meio termo entre os modelos conservador, e populista. Con-
forme identifica o constitucionalista de Buenos Aires18, o liberalismo
tinha como pauta dois atributos que são essenciais para a sua compreen-
são, a ideia de que o Estado deveria ser neutro, não podendo, portanto,
se imiscuir nas escolhas pessoais de seus cidadãos, e a tese de que todos
deveriam ser tratados com igual respeito e consideração. Para que isto
se concretizasse, continua o autor19, o modelo recomendava a adoção de
constituições orientadas fundamentalmente a limitar o poder das maio-
rias, motivo pelo qual, mostrava-se necessário à adoção do checks and
balances, e de seus mecanismos tradicionais de controle institucional,
tais como o bicameralismo, o controle judicial das leis, e o veto presi-
dencial.
Ocorre que o medo em relação ao projeto político rousseau-
niano, fez com que a partir da segunda metade do século XIX, os
representantes do modelo conservador se unissem em pacto aos do
liberalismo individualista. Isso por sua vez, trouxe como consequên-
cia, uma verdadeira esquizofrenia constitucional. Afinal, inspiradas
pelo chamado “discurso da desconfiança”20,21 as novas cartas políti-
cas não tinham outro objetivo, senão, por um lado, desenhar insti-
tuições limitadoras da participação popular, e por outro, estabelecer
mecanismos perpetuadores das desigualdades sociais, que diga-se
de passagem, já eram profundas à época. Ou seja, direitos civis am-
plíssimos, e direitos políticos restritos, essa foi em síntese, à tônica
do constitucionalismo latino-americano do século XIX, que se es-

18 Ibidem. p.326.
19 Ibidem. p.328.
20 GARGARELLA. R. 2011. Fragmento del Borrador del Libro “200 años de Constitucionalismo
en América Latina”. Caps. 5 e 6. Disponível em <http://seminariogargarella.blogspot.com.br/>.
Acesso em: 06/07/2013. pp. 1-32.
21 O discurso da desconfiança foi de suma importância no momento fundacional latino-ameri-
cano. Sustentado pelas elites, possuía os seguintes traços comuns: preocupação com a ordem
e a estabilidade política; temor frente à anarquia; prevenção à participação das maiorias na
política e crítica as abstrações das teorias estrangeiras, distantes da realidade (Ibidem. p.03).
142 José Ribas Vieira, Fabiana de Almeida Maia Santos, Gabriel Lima Marques, Rafael Bezerra de
Souza, Sérgio Bocayuva Tavares de Oliveira Dias

praiando por toda a organização social e institucional desses países,


fez surtir seus efeitos também no século XX.
Ora, eis aqui, portanto, uma das críticas de Gargarella22 dirigidas
ao que se convencionou denominar de novo constitucionalismo lati-
no-americano. Para o autor, o século XX foi marcado essencialmente
pela incorporação de novos paradigmas, tais como, os direitos sociais, a
partir da constituição mexicana de 1917. Todavia, ao mesmo tempo em
que se assimilaram novas perspectivas, se manteve um apego a velhas
concepções, como, por exemplo, o hiper-presidencialismo23, produto da
incorporação de um checks and balances “desbalanceado”24. Assim, para
ele, a única forma de superar essa realidade essencialmente contraditó-
ria, seria através de uma reforma institucional profunda que em alguns
casos ou não foi feita, ou vem sendo feita de forma tímida.
Neste sentido, analisando as novas cartas políticas produzidas
por Venezuela, Equador e Bolívia no começo do século XXI, Gargarel-
la chega à conclusão de que em matéria de direitos sociais, culturais e
indígenas, os textos são extremamente generosos. Porém, no que tan-
ge a parte do poder propriamente dito, o professor argentino chama a
atenção para o fato de que os mesmos deixam a desejar, uma vez que
insistem, quase todos, na manutenção de velhas estruturas moldadas à
partir de um projeto político liberal-conservador, e que historicamente
apenas serviu para o estrangulamento dos direitos concedidos pela lei
fundamental25. Desta forma, para o autor, a promulgação de novas leis, e
dentre elas, de uma nova magna carta, assume um caráter extremamen-
te relevante para a superação das desigualdades políticas, institucionais
e sociais que ainda persistem na América Latina. Contudo, para ele, isso
não é o suficiente. Na verdade, alerta Gargarella26, se o objetivo é supe-

22 GARGARELLA. R. 2010. Una maquinaria exhausta: constitucionalismo y alienación legal en


América. Isonomía: Revista de teoría y filosofía del derecho, nº. 33. pp. 7-34.
23 GARGARELLA. R. & COURTIS. C. 2009. El nuevo constitucionalismo latinoamericano: pro-
mesas e interrogantes. CEPAL: Santiago de Chile. 45 p. p. 29.
24 Ibidem, p.19.
25 Ibidem, p. 10-11.
26 GARGARELLA, 2011, p.23.
IMPASSES E ALTERNATIVAS EM 200 ANOS DE CONSTITUCIONALISMO LATINO- 143
AMERICANO

rar, de fato, o legado liberal-conservador, a única saída possível, deve


estar atenta necessariamente a um redesenho institucional.

2. O CONSTITUCIONALISMO DA AMÉRICA LATINA HOJE: en-


quadramento e explicação

Uma devida análise acerca do constitucionalismo contempo-


râneo na América Latina demanda, em que pese o fato de ambos
compartilharem uma formação cultural e profissional europeia, a
leitura dos estudos produzidos pelos professores Roberto Viciano
Pastor27 e Rubén Martínez Dalmau28 considerados os precursores do
desenvolvimento teórico do chamado novo constitucionalismo lati-
no-americano.
Decerto, já havia ampla produção acadêmica acerca das expe-
riências constitucionais desenvolvidas nos países latino-americanos.
Todavia, cabe o reconhecimento do ineditismo da abordagem promovi-
da pelos autores na sistematização das inovações normativas constantes
principalmente nas constituições andinas, decorrente em grande parte
do trabalho in loco desenvolvido quando da sua participação como as-
sessores constituintes dos processos constitucionais do Equador, Bolívia
e Venezuela.
Partindo da perspectiva histórica dos paradigmas constitucionais
evidenciados na América Latina, especificamente da transição do velho
constitucionalismo para o chamado novo constitucionalismo, Viciano e
Dalmau29 promovem o cotejo entre o chamado “neoconstitucionalis-
mo” e o “novo constitucionalismo latinoamericano”, com ênfase na con-
sideração dos processos constituintes.

27 Professor catedrático de direito constitucional da Universidade de Valência e coordenador da


“Rede por um novo constitucionalismo”.
28 Professor titular de direito constitucional da Universidade de Valência e presidente do “Centro
de Estudos Políticos e Sociais”.
29 VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén. Aspectos generales del nuevo
constitucionalismo latinoamericano. Corte Constitucional do Equador para el período de tran-
sición. El nuevo Constitucionalismo latinoamericano. 1 ed. Quito, 2010a.
144 José Ribas Vieira, Fabiana de Almeida Maia Santos, Gabriel Lima Marques, Rafael Bezerra de
Souza, Sérgio Bocayuva Tavares de Oliveira Dias

Inicialmente, em análise do “neoconstitucionalismo” os autores30


o consideram como sendo uma teoria do Direito, e não uma teoria da
constituição. Assim sendo, embora ambos reconheçam a existência do
fenômeno da “constitucionalização do direito”31, possuindo como ca-
racterísticas marcantes a centralidade da constituição e a sua efetivação
calcada na Jurisdição Constitucional, bem como a força normativa dos
princípios no ordenamento jurídico, entendem que não possui em seu
bojo qualquer intento de ruptura de paradigma constitucional, apenas
visando a conversão do “Estado de Direito em Estado Constitucional de
Direito”32.
Desta feita, o “neoconstitucionalismo” constituir-se-ia como cor-
rente doutrinária de origem acadêmica, enquanto que o “novo constitu-
cionalismo” apresentar-se-ia como um movimento baseado nas deman-
das sociais e manifestações populares. Todavia, ressaltam os autores,
trata-se de uma corrente constitucional em processo de construção
doutrinária, com elementos comuns com o modelo de matriz europeia,
contudo, de caráter não hermético3334.
Assim sendo, apesar de identificarem a absorção de elementos ca-

30 Faz-se necessária a ressalva epistemológica de que resta inconsistente qualquer tentativa de


categorizar de modo uniforme o presente fenômeno constitucional, haja vista as variadas for-
mas de entendê-lo e interpretá-lo já consagradas em doutrina nacional e estrangeira. Neste
sentido, Miguel Carbonel (2005), em coletânea clássica sobre o tema, o define como “Neocons-
titucionalismo (s)”, tendo em vista as múltiplas possibilidades de construção e constituição
desse movimento. Cf. CARBONELL, Miguel(org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Edito-
rial Trotta, 2003.
31 Este fenômeno também é concebido na doutrina estrangeira, nas palavras do jurista italiano
Riccardo Guastini, como “impregnação da constituição no ordenamento jurídico”. GUASTI-
NI, Riccardo. La “constitucionalización” del ordenamiento jurídico: el caso Italiano. In. Ne-
oconstitucionalismo(s), Miguel Carbonell, Editorial Trotta. Na doutrina nacional, Eduardo
Moreira concebe-o como “invasão da constituição”, em sua obra Neoconstitucionalismo: a
invasão da constituição (2008).
32 Op.cit, 2010a, p. 17-18.
33 VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén. 2011a. Fundamentos teóricos y
prácticos del nuevoo constitucionalismo latino americano. In: Gaceta Constitucional, nº 48. p.
312-313.
34 VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén. 2011b. ¿Se puede hablar de
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2013. p. 4
IMPASSES E ALTERNATIVAS EM 200 ANOS DE CONSTITUCIONALISMO LATINO- 145
AMERICANO

racterísticos do “neoconstitucionalismo” pelo modelo latino-americano,


mormente, a “impregnação da constituição no ordenamento jurídico” e
o seu foco na interioridade da constituição, ou seja, a sua normatividade,
consideram como eixo central do novo constitucionalismo a busca da le-
gitimidade democrática - foco na exterioridade da constituição – de base
extrajurídica, assegurada a partir da participação política e da cidadania
ativa e da primazia da soberania popular quando do exercício do poder
constituinte derivado.3536
Por conseguinte, umas das principais diferenças que distinguem o
velho constitucionalismo da América Latina do novo paradigma consti-
tucional materializado no “novo constitucionalismo latino-americano”,
diz respeito aos processos constituintes. Enquanto naquele constata-
va-se um acordo entre as elites políticas e econômicas alheio à natu-
reza soberana essencial do poder constituinte, neste evidencia-se uma
dinâmica participativa e popular. Assim, os autores qualificam o novo
paradigma constitucional como um “constitucionalismo sem pais”, no
qual restaria assegurada a vontade popular na condução dos processos
constituintes democráticos, em contraste com a concepção vigente no
velho constitucionalismo.373839
Nesse sentido, afirmam Viciano e Dalmau40:

O novo constitucionalismo recupera a origem revolucioná-


ria do constitucionalismo, dotando-o dos mecanismos atuais
que podem fazê-lo mais útil na emancipação e avanço dos
povos através da constituição como mandato direto do po-
der constituinte e, em consequência, fundamento último do
poder constituído.

35 VICIANO E DALMAU, 2010a, pp. 18-19.


36 Op.cit., 2011b, p. 4.
37 Op.cit., 2010a, p. 22.
38 Op.cit., 2010b, pp.9-13.
39 VICIANO E DALMAU, 2011b, p.9.
40 Ibidem, 2011b, p. 4.
146 José Ribas Vieira, Fabiana de Almeida Maia Santos, Gabriel Lima Marques, Rafael Bezerra de
Souza, Sérgio Bocayuva Tavares de Oliveira Dias

Desta feita, identificam a constituição colombiana de 1991


como sendo vanguardista neste processo, na qual evidenciou-se in-
tensa mobilização da sociedade civil (movimento “sétima cédula”)
e uma Assembleia Constituinte marcadamente democrática, ainda
que sem o referendo de ratificação popular4142. Em realidade, quando
da análise dos pressupostos elencados pelos autores espanhóis como
elementos característicos do “novo constitucionalismo latinoameri-
cano”, quais sejam: a) referendo ativador do processo constituinte;
b) referendo de aprovação do texto constitucional; c) rigidez para a
reforma constitucional, pode-se concluir que fora a constituição da
Venezuela de 1999 a primeira a se enquadrar perfeitamente nestes
critérios (;).
Posteriormente, incorporaram-se ao novo paradigma constitu-
cional as constituições originadas a partir dos processos constituintes
ocorridos no Equador (2007-2008) e na Bolívia43 (2009).
Cabe o registro da ressalva dos autores acerca da constituição
equatoriana44, quanto ao exercício do poder constituído. Diferente-
mente das constituições boliviana e venezuelana, nas quais restara ex-
cluída a previsão de seu exercício, a carta equatoriana ainda prevê a
sua reforma pelo poder constituído, exceto suas cláusulas fundamen-
tais, que dizem respeito a direitos e garantias fundamentais, estrutura

41 VICIANO E DALMAU, 2010a, pp. 25-33.


42 VICIANO E DALMAU, 2010b, p. 12.
43 O referido enquadramento pode ser constatado a partir da leitura do artigo 408, inciso I, da
Constituição boliviana, o qual prescreve o procedimento para a reforma total da constituição:
La reforma total de la Constitución, o aquella que afecte a sus bases fundamentales, los derechos,
deberes y garantías, o a la primacía y reforma de la Constitución, tendrá lugar a través de una
Asamblea Constituyente originaria plenipotenciaria, activada por voluntad popular mediante
referendo. La convocatoria del referendo se realizará por iniciativa popular, por la firma de al
menos el veinte por ciento del electorado; por la Asamblea Legislativa Plurinacional; o por la
Presidente o el Presidente del Estado. La Asamblea Constituyente se autorregulará a todos los
efectos. La entrada en vigencia de la reforma necesitará ratificación popular mediante referendo.
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/repositorio/cms/portalStfInternacional/newsletterPor-
talInternacionalFoco/anexo/NUEVACONSTITUCIONDEBOLIVIA.pdf>. Acesso em: 10 jun
2013.
44 Para a compreensão das possibilidades de reforma constitucional da Constituição equatoriana
sugere-se a leitura dos artigos 441, 442 e 444. Disponível em: <http://www.ecuanex.net.ec/
constitucion>.
IMPASSES E ALTERNATIVAS EM 200 ANOS DE CONSTITUCIONALISMO LATINO- 147
AMERICANO

e elementos fundamentais do Estado ou procedimento de reforma da


constituição454647.
Constata-se, assim, o fomento ao fortalecimento do Poder Cons-
tituinte, a partir da ideia de continuidade constitucional, que ressalta a
eliminação do poder constituído e ampliação dos atores constitucionais,
quando do exercício do poder de reforma, calcado na primazia da so-
berania popular.
Ainda, como características desse novo paradigma constitucional
elencam-se:

a) a originalidade dos institutos previstos no texto constitucio-


nal; b) a limitação da atuação do poder constituído; c) rigidez
constitucional48; d) o fomento à participação popular, me-
diante o desenvolvimento de novos instrumentos de demo-
cracia participativa e cidadania ativa, em revisão do modelo
de democracia representativa, baseado na representação polí-
tica através de partidos políticos49.

Como atributo peculiar ao “novo constitucionalismo latinoame-


ricano”, tem-se o reconhecimento e o empoderamento da população
indígena, historicamente marginalizada dos processos político-decisó-
rios, fato evidenciado na fundação do chamado Estado Plurinacional da
Bolívia, no qual as 36 etnias indígenas são reconhecidas como nações;
na coexistência da jurisdição exercida pela Justiça Indígena Campesina
com a Jurisdição Ordinária, bem como na composição mista do Tribu-
nal Constitucional Plurinacional50.

45 VICIANO E DALMAU, 2010a, p. 33.


46 VICIANO E DALMAU, 2011b, p. 18.
47 VICIANO E DALMAU, 2010b, p. 18.
48 VICIANO E DALMAU, 2010a, pp. 24-26.
49 Ibidem, pp. 34-35.
50 Para a devida compreensão do reconhecimento da autonomia da Jurisdição Indígena cf. a
Sentencia Constitucional Plurinacional 1422/2012. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/
repositorio/cms/portalStfInternacional/newsletterPortalInternacionalDestaques/anexo/Reso-
lucion_1422_2012__Tribunal_Constitucional_de_Bolivia.pdf>. Esta iniciativa fora elogiada
148 José Ribas Vieira, Fabiana de Almeida Maia Santos, Gabriel Lima Marques, Rafael Bezerra de
Souza, Sérgio Bocayuva Tavares de Oliveira Dias

Ainda resta evidenciado nas cartas constitucionais identifica-


das com o “novo constitucionalismo latinoamericano” a preocupa-
ção com postura contra-hegemônica e de enfrentamento a diretrizes
econômicas fundadas em doutrina neoliberal, haja vista a previsão
expressa constitucional de estatização da política econômica, do fo-
mento da economia solidária e da preservação dos recursos naturais
decorrente do modelo biocêntrico, que prescreve direitos fundamen-
tais à Pachamama”, e não apenas à pessoa humana (modelo antropo-
cêntrico).
Por fim, cabe a menção da expressa ressalva dos autores em não
vincular as constituições brasileira de 1988, a constituição peruana de
1992, decorrente de autogolpe promovido pelo então presidente Alberto
Fujimori e a reforma constitucional argentina de 1994 ao novel paradig-
ma constitucional latinoamericano51.
No caso brasileiro, a desconsideração se justificaria pelo seu
processo constituinte deficitário de legitimidade democrática, vi-
venciado durante o regime militar, haja vista a participação de re-
presentantes da ditadura militar na composição da Assembleia Na-
cional Constituinte; a ausência de consulta popular para a ativação
do poder constituinte e a de ratificação popular do projeto final da
constituição5253.
Como síntese das aproximações e tensões entre o “neoconstitu-
cionalismo” e o “novo constitucionalismo latinoamericano”, segue abai-
xo quadro ilustrativo:

pela ONU, considerando que o reconhecimento da justiça indígena pode agregar valor à jus-
tiça ordinária na Bolívia, recuperando a sua credibilidade. Confira notícia em: <http://www2.
stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/destaquesNewsletter.php?sigla=newsletterPortalInter-
nacionalNoticias&idConteudo=241480>.
51 VICIANO E DALMAU, 2011, pp. 319- 320.
52 VICIANO E DALMAU, 2011, pp. 318-319.
53 VICIANO E DALMAU, 2010b, pp. 11-12.
IMPASSES E ALTERNATIVAS EM 200 ANOS DE CONSTITUCIONALISMO LATINO- 149
AMERICANO

NOVO CONSTITUCIONALISMO
NEOCONSTITUCIONALIS-
LATINO-AMERICANO
MO

PONTOS DE APROXIMAÇÃO
- A constitucionalização do ordenamento jurídico;
- A rigidez constitucional;
- A força normativa dos princípios e a sua presença abundante nas consti-
tuições;
- Constituições analíticas/prolixas (busca da permanência da vontade do
constituinte, em face da necessidade de estabilidade institucional).

PONTOS DE TENSÃO

Fomento do alargamento da Ju- Fortalecimento do Poder Constituinte


risdição Constitucional sob a pri- e ampliação dos atores constitucionais,
mazia do Poder Judiciário sob a primazia da soberania popular

Efetivação da constituição centrada na


Efetivação da constituição centra-
participação popular nos processos de
da na Jurisdição Constitucional
interpretação e alteração da Constituição

A dignidade da pessoa humana é


alçada ao centro do ordenamento A Defesa da “Pachamama” e “Sumak
jurídico - Modelo Antropocên- Kawsay” - Modelo Biocêntrico
trico
Adoção de princípios constitu-
Adoção de princípios constitucionais
cionais clássicos (Ex.: separação
clássicos e outros originais (“Pachama-
dos poderes, rigidez constitucio-
ma” e “Sumak Kawsay”)
nal)
Coexistência entre Jurisdições ordinária
Jurisdição Constitucional ordiná-
e Justiça Indígena Campesina (pluralis-
ria (monismo jurídico)
mo jurídico)

Estado Constitucional de Direito Estado Plurinacional de Direito


150 José Ribas Vieira, Fabiana de Almeida Maia Santos, Gabriel Lima Marques, Rafael Bezerra de
Souza, Sérgio Bocayuva Tavares de Oliveira Dias

3. O CONSTITUCIONALISMO PLURALISTA: autodeterminação e


povos indígenas

Segundo Raquel Yrigoyen54, essa atual vertente do constituciona-


lismo regional conduz à superação da concepção tradicional e europeia
do Estado-nação. O traço marcante do Estado Moderno repousa sobre
o monopólio estatal da produção normativa e do uso da violência ins-
titucionalizada.
Jacques Chevallier55, tratando do assunto com enfoque estri-
tamente eurocêntrico, enfatiza que tal “institucionalização do poder”
do Estado Moderno tem a pretensão de estabelecer um quadro de sub-
missão política geral e impessoal, com a consequente produção de um
“novo quadro de submissão”, a cidadania, excludente dos demais víncu-
los paralelos ou concorrentes. Com isso, a soberania Estatal – represen-
tada no monopólio do uso de força e produção do Direito – viabiliza a
formação de unidade de valores.
Este quadro ortodoxo já vinha sendo objeto de questionamentos
fora do contexto da América latina. Com efeito, Chevallier56 fala em um
Estado pós-moderno, que também passa por um estágio de superação
do monismo jurídico, exatamente como aponta Raquel Yrigoyen. Con-
tudo, a perspectiva de exame das mudanças parte de pressupostos rela-
cionados à influência da globalização na produção normativa e quanto à
forma de solução de conflitos. O “mercado internacional” é o responsá-
vel por este “direito plural” pós-moderno, pois os operadores econômi-
cos passam a demandar a aplicação de regras próprias para a adequada
regulação da dinâmica da globalização, daí o surgimento das “normas
flexíveis” no âmbito do direito internacional, resolução de conflitos con-
forme a lex mercatoria e a ênfase na arbitragem.
54 YRIGOYEN. R. Z. Y. El Pluralismo Jurídico en la historia constitucional latinoamericana: de
la sujeción a la descolonización. Disponível em: <6ccr.pgr.mpf.mp.br/destaquesdosite/3_
RYF_2010_CONSTITUCIONALISMO_Y_PLURALISMO_BR.pdf>. Acesso em 05/07/2013.
p.01.
55 CHEVALLIER. J. 2009. O Estado Pós-Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Hori-
zonte: Editora Fórum. 152 p. p. 15.
56 Ibidem, pp. 144-145.
IMPASSES E ALTERNATIVAS EM 200 ANOS DE CONSTITUCIONALISMO LATINO- 151
AMERICANO

Enquanto o marco característico do Estado pós-moderno está re-


lacionado ao modelo econômico vigente, a vertente mais atual do cons-
titucionalismo latino-americano nada tem com isso, pois o rompimento
com o monismo jurídico assenta-se no reconhecimento da autonomia
de grupos culturais distintos no âmbito de um mesmo Estado. A ma-
triz, portanto, é realmente diferente, visualizando-se o caráter original
de refundação do Estado com base na coexistência de uma diversidade
de culturas, superando-se a distorcida visão de unidade de valores for-
jada com o ascensão do Estado moderno. Tal processo, contudo, não é
uniforme, por isso Raquel Yrigoyen57 traça as suas diferentes vertentes.
Merece destaque a percepção de que uma ordem jurídica dotada
de unidade de valores e cultura – tal como preconcebida pelo Estado
moderno – foi logo adotada no surgimento dos Estados independen-
tes, segundo um modelo de assimilação para “conversão de índios em
cidadãos, um projeto missionário-civilizador de evangelização e civi-
lização”58, a exemplo da visão colonial de expansão da fé cristã pelo
novo mundo. A independência das nações latino-americanas, não
trouxe, portanto, significativo rompimento com o modelo precedente
no que tange ao reconhecimento da autonomia dos povos indígenas.
Este panorama sofre alteração somente no século XX, com o advento
da Constituição mexicana de 1917 e o reconhecimento de direitos e su-
jeitos coletivos, dentre eles, as comunidades indígenas, contudo, sob a
perspectiva de integração destas comunidades ao Estado por meio de
políticas de reforma agrária e garantia de alguns direitos e respeito a es-
pecificidades culturais, sem viabilizar, contudo, qualquer manifestação
de autonomia59.
Tal perspectiva integracionista é identificada também na Con-
venção n. 107 da OIT, notadamente no art. 2º, onde se lê a previsão de
políticas de proteção das populações interessadas e também para a inte-
gração progressiva na vida dos respectivos países. Raquel Yrigoyen60 re-
57 Ibidem, 2010, p.06.
58 Idem.
59 Ibidem, 2010, p.07.
60 Ibidem, 2010, p. 08.
152 José Ribas Vieira, Fabiana de Almeida Maia Santos, Gabriel Lima Marques, Rafael Bezerra de
Souza, Sérgio Bocayuva Tavares de Oliveira Dias

gistra, contudo, que o integracionismo receia o rompimento da unidade


nacional. É neste cenário que se situa o Estatuto do Índio (Lei 6.001/73),
ao relacionar em seu art. 4º critérios de classificação do indígena a partir
de seu grau de contato e integração com a “comunhão nacional” e o sis-
tema especial de tutela àqueles que o poder público tachar como “ainda
não integrados” (art. 7º do Estatuto do Índio).
Este quadro somente se altera mais recentemente, com o advento
do Constitucionalismo Pluralista, iniciado na década de 80, composto
de três ciclos com características próprias.
Em sua primeira fase, o constitucionalismo multicultural insti-
tucionaliza o conceito de diversidade cultural da sociedade, acompa-
nhado do reconhecimento de direitos individuais e coletivos, incluindo
aí direitos indígenas específicos. Não há mais referência à integração
das “populações interessadas”, mencionadas na Convenção 107 da OIT,
mas uma visão de que as diferenças culturais são valiosas em si mesmas,
por tal razão merecedoras de proteção. É neste estágio que se encontra
a Constituição do Brasil de 198861, o que de fato pode ser extraído do
caput de seu art. 231 e também da redação do parágrafo primeiro do
referido artigo, donde se retira a funcionalidade das “terras tradicional-
mente ocupadas” como instrumento de manutenção de usos, costumes
e tradições.
O ciclo seguinte inaugura o constitucionalismo pluricultural na
década de noventa, notadamente com o advento da Convenção 169
da OIT, que além de manter as conquistas do ciclo anterior, assegura
a oficialização de idiomas próprios, acesso a terras, consultas quanto à
tomada de decisões que afetem os povos indígenas e reconhecimento
de autoridades indígenas, seu direito costumeiro e sistemas de justiça
peculiares62.
No ponto, merece realce o art. 6º da Convenção. Ao estatuir a
necessidade de consultas aos povos interessados no caso da aplicação
de suas disposições, a norma não para por aí, pois especifica, no item

61 Idem, p. 08.
62 Ibidem, 2010, p. 09.
IMPASSES E ALTERNATIVAS EM 200 ANOS DE CONSTITUCIONALISMO LATINO- 153
AMERICANO

2 do referido artigo, “o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir


o consentimento acerca das medidas propostas”. Não obstante se tratar
de uma consulta, a redação do dispositivo autoriza concluir que a Con-
venção estabelece uma vinculação ao resultado expressado pelos povos
interessados. Deste modo, o direito à autodeterminação é fortalecido, ao
menos no que diz respeito à aplicação da própria convenção.
Outro traço característico está previsto no art. 1º item 2 da Con-
venção ao estabelecer o critério da autodeterminação para definição da
“identidade indígena ou tribal”. Não há mais espaço para a classifica-
ção oficial das populações indígenas segundo um parâmetro de maior
ou menor integração à comunidade nacional. Como a Convenção 169
da OIT foi formalmente internalizada no Brasil por meio de promul-
gação63 – Decreto nº 5.051/2004 – torna-se evidente a revogação das
regras previstas no Estatuto do Índio, acima sumariadas, viabilizando,
pois, o reconhecimento de diferentes culturas, independentemente de
ato do poder público.
Quanto à autonomia coletiva indígena, esta fase do constitucio-
nalismo encontra respaldo expresso em dispositivos peculiares de di-
versas constituições andinas da década de 90, as quais reconhecerem a
autoridade das comunidades ou povos indígenas, suas normas próprias
para solução de conflitos e a prerrogativa de administrar sua justiça,
com expressa ressalva de que as decisões não podem resultar contrárias
às respectivas constituições e às leis64, havendo também variações sobre
a competência territorial da jurisdição indígena, assim como sobre as
matérias passíveis de julgamento.
A definição da competência da jurisdição indígena foi um dos
pontos mais sensíveis deste constitucionalismo pluricultural. Raquel
Yrigoyen65 realça que na Colômbia, não obstante a inicial compreen-
são de que a competência da jurisdição indígena fixava-se pelo crité-

63 Sem embargo da discussão doutrinária sobre a imediata aplicação interna de Tratados de Di-
reitos Humanos após a ratificação, independentemente de qualquer decreto, com fundamento
no parágrafo 1º do art. 5° da Constituição.
64 YRIGOYEN, 2010, p. 17.
65 Ibidem, 2010, pp.18-19.
154 José Ribas Vieira, Fabiana de Almeida Maia Santos, Gabriel Lima Marques, Rafael Bezerra de
Souza, Sérgio Bocayuva Tavares de Oliveira Dias

rio territorial, independentemente da matéria e das pessoas envolvidas,


houve um recuo da Corte constitucional, que passou exigir comprovada
diversidade cultural do envolvido no processo para reconhecer a com-
petência da jurisdição indígena. Contrariou-se, portanto, o critério de
autodeterminação linhas acima referido. Tal visão restritiva também se
repetiu no Peru, Venezuela e na Bolívia, no período precedente à atual
constituição.
O passo seguinte é o constitucionalismo plurinacional, inaugu-
rado com os processos constituintes mais recentes do Equador e, prin-
cipalmente, da Bolívia. É nesta fase que ocorre a refundação do Esta-
do para inclusão das nações originárias indígenas como sujeitos com
direito à autodeterminação,66 revertendo-se a exclusão histórica destes
povos na formação da estrutura do Estado67. Nesta linha, além do reco-
nhecimento da diversidade cultural, já existente na fase pluricultural,
dentre outras previsões, o art. 30 da constituição da Bolívia reconhece
o exercício de sistemas jurídicos, políticos e econômicos próprios, bem
como a incorporação das instituições indígenas na estrutura do Estado,
superando-se, pois, o monismo jurídico, tal como realçado em linhas
anteriores.
O mais notável traço característico deste constitucionalismo plu-
rinacional é, sem dúvida, a institucionalização da jurisdição indígena,
dotada da mesma hierarquia atribuída à jurisdição ordinária (art. 179,
II da constituição boliviana), afastando-se, pois, a possibilidade de que
esta última funcione como instância de revisão da primeira. A compe-
tência da jurisdição indígena é definida no art. 191 da carta fundamen-
tal boliviana segundo critério pessoal, para o qual basta envolvimento
de algum indígena na demanda, critério material, na forma estabelecida
pela lei de deslinde jurisdicional, e territorial.
A solução de conflitos de competência envolvendo a jurisdição
66 Confira-se o teor do art. 2º da constituição da Bolívia: “dada a existência pré-colonial das
nações e povos indígenas originários e camponeses, e seu domínio ancestral sobre os territó-
rios, se garante sua livre determinação no marco da unidade do Estado, através do direito a
autonomia, ao autogoverno, ao respeito a sua cultura, ao reconhecimento de suas instituições
e a consolidação de suas entidades territoriais, conforme esta constituição e a lei”.
67 YRIGOYEN, 2010, p. 22.
IMPASSES E ALTERNATIVAS EM 200 ANOS DE CONSTITUCIONALISMO LATINO- 155
AMERICANO

indígena é definida pelo Tribunal Constitucional Plurinacional, confor-


me previsão do art. 202, II da constituição boliviana. No ponto, cabe o
registro de que a própria composição desta Corte de Justiça é pensada
para controvérsias desta natureza, nas quais se descortina um possível
choque entre culturas,68 pois há exigência de que parte de seus mem-
bros tenham origem indígena (art. 197, I), valendo ressaltar que todos
os juízes são eleitos segundo um critério de plurinacionalidade, o que
viabiliza o ingresso de um número maior de membros de comunidades
indígenas de acordo com sua representatividade eleitoral.
Embora não resulte expresso do texto constitucional boliviano,
principalmente por faltar previsão no art. 202, o Tribunal Plurinacional
reconhece a possibilidade de operar como instância revisora de decisões
tomadas pela jurisdição indígena. Tal foi a compreensão da sentença
constitucional plurinacional 1422/2012, proferida em 24 de setembro
de 2012,69 caso em que foi deferida a reforma de sanção similar a um
banimento aplicado pela justiça indígena sobre membros de uma fa-
mília, não obstante o ilícito tenha sido praticado por apenas um deles.
Segundo a fundamentação, a ação de liberdade, prevista no art. 125 da
Constituição, legitima tal atuação da Corte, que analisa o teor da decisão
da justiça indígena conforme parâmetros de um “viver bem”, dentre os
quais, um exame de proporcionalidade,70 decisivo para o desfecho do
julgamento.
De fato, o art. 190, II da Constituição boliviana prevê que a jus-
68 A título de exemplo, um terceiro não pertencente a uma dada comunidade indígena, que não
se identifica com os usos e costumes utilizados no processamento da demanda, segundo a
cultura local.
69 Disponível em: <http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/destaquesNews-
letter.php?sigla=newsletterPortalInternacionalDestaques&idConteudo=241307>. Acesso em:
19/06/2013.
70 Eis o trecho da fundamentação: “Como quarto elemento do teste de paradigma do viver bem,
o controle plural de constitucionalidade deverá estabelecer a proporcionalidade da decisão
assumida pela jurisdição indígena originária e camponesa, e neste caso, deverá ponderar a na-
tureza e a gravidade dos fatos colocados na decisão em relação a magnitude da sanção imposta.
Ademais, nesta análise de proporcionalidade, para sanções graves, deverá também se ponderar
a decisão assumida em relação a estrita necessidade da mesma, ou seja, para sanções graves,
o teste de paradigma do viver bem, implicará em assegurar que a decisão foi absolutamente
necessária para o marco da inter e intra culturalidade, resguardando-se os bens jurídicos supe-
riores ameaçados pela conduta sancionada”.
156 José Ribas Vieira, Fabiana de Almeida Maia Santos, Gabriel Lima Marques, Rafael Bezerra de
Souza, Sérgio Bocayuva Tavares de Oliveira Dias

tiça indígena deve respeitar direitos e garantias nela previstos, contudo,


a decisão em questão dá mais ênfase ao juízo de proporcionalidade da
penalidade aplicada, descuidando de identificar alguma garantia cons-
titucional que poderia servir de anteparo à pena que acabou por passar
da pessoa do ofensor.
Quanto ao tema, cabe lembrar a posição de Clavero71, no sentido
de que o Tribunal Plurinacional não deve reformar as decisões sob o
pretexto de exercer uma função garantista, devolver a matéria para nova
apreciação da jurisdição indígena, pois a centralização de decisões finais
no Tribunal Constitucional estaria no sentido inverso da consolidação
de um Estado Plurinacional72.

4. O ESTADO NO NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-A-


MERICANO: refundação ou ruptura?

Boaventura de Sousa Santos, conhecido sociólogo português,


vem acompanhando as mudanças ocorridas no sul há várias décadas.
Importante esclarecer que o professor entende como sul, a América La-
tina, a Ásia e a África e, como norte, a Europa e América do Norte. Em
geral, Santos tem como pontos centrais em suas obras, abordar sobre as
teorias criadas pelo norte e as consequentes realidades emergentes do
sul, bem como sua diversidade cultural e processos políticos heterodo-
xos73. Em sua obra, Santos74 verifica até que ponto as transformações que
vêm ocorrendo há várias décadas, interferem na estrutura institucional
e na organização do Estado moderno, segundo o autor, a formação mais
estável produzida pelo ocidente.
Neste item, trataremos do tema da refundação do Estado, tema
este que se encontra contido na obra “Refundación del Estado en Amé-

71 CLAVERO. B. Tribunal Constitucional em Estado Plurinacional: el reto constituyente de Bo-


lívia. Revista Española de Derecho Constitucional, nº 94. pp. 37-38
72 Ibidem, 2012, p. 40.
73 SANTOS. B. S. 2010. Refundación Del Estado en América Latina: perspectivas desde una epis-
temologia del Sur. Buenos Aires: Antropofagia. 128 p. p. 11.
74 Ibidem, 2010, p. 67.
IMPASSES E ALTERNATIVAS EM 200 ANOS DE CONSTITUCIONALISMO LATINO- 157
AMERICANO

rica Latina: perspectivas desde una epistemologia del Sur”, em contra-


posição ao que o autor chama de ruptura. Infere-se que a chamada re-
fundação, parte de novas bases, tais como a valorização à biodiversidade
e à sociodiversidade, que passam a ser identificadas constitucionalmen-
te como bens da comunidade e da coletividade, além de serem conside-
radas prerrogativas para o futuro75.
Neste novo modelo, destaca-se ainda o chamado Estado plurina-
cional, impulsionado pela recuperação da soberania popular e que tem
como mote, fomentar a participação direta dos cidadãos e da sociedade
civil organizada, no tocante à produção do Direito, como também, no
controle e na gestão da administração. Para que isso aconteça, as novas
constituições estabelecem instituições paralelas de controle, baseadas
na participação do povo. Cite-se como exemplo, o poder cidadão na Ve-
nezuela, o controle social na Bolívia e o quinto poder, no Equador. Cabe
ressaltar, que nesse novo modelo de Estado, enfatiza-se a subjetividade
histórico-política do povo (com a heterogeneidade que lhe é peculiar),
de modo que “como comunidade aberta de agentes constituintes, os ci-
dadãos tanto decidem os delineamentos efetivos do pacto social, como
contratam e consentem o modo de governar o Estado, no Estado”76.
Ademais, vale ainda lembrar, que duas são as vertentes de Estado
apresentadas pelo sociólogo77: “Estado-comunidade-ilusória” e “Estado
de veias fechadas”. O primeiro, ele define como o conjunto de reformas
recentes as quais buscam devolver alguma centralidade ao Estado na
economia e nas políticas sociais. Santos critica esse modelo e aponta
alguns riscos, tais como, políticas de redistribuição de riqueza por meio
de transferências diretas e focadas em grupos sociais mais vulneráveis;
forte inversão nas políticas de educação; especial enfoque na adminis-
tração pública, seu desempenho, seu tamanho, e na simplificação e des-
burocratização dos serviços; dentre outros. Tais objetivos, para o autor,

75 MELO. M. P. 2013. As Recentes Evoluções do Constitucionalismo na América Latina: neo-


constitucionalismo? In: WOLKMER. A. C. E MELO. M. P. Constitucionalismo Latino-Ameri-
cano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá. 218 p. p.77.
76 Ibidem, 2013, p.76.
77 SANTOS, 2010, pp. 67-68
158 José Ribas Vieira, Fabiana de Almeida Maia Santos, Gabriel Lima Marques, Rafael Bezerra de
Souza, Sérgio Bocayuva Tavares de Oliveira Dias

acabam por converter interesses privados em políticas públicas, e tor-


nam invisíveis e intocados os fundamentos do poder.
Por outro lado, quanto ao Estado de veias fechadas, observa-se
que a refundação do Estado moderno exprime as possibilidades – e
também os limites – da imaginação política do fim do capitalismo e do
colonialismo, característicos dos últimos séculos. Nota-se que o Esta-
do moderno passou por ordens constitucionais distintas: Estado libe-
ral, Estado social de direito, Estado colonial ou de ocupação, Estado
soviético, Estado nazi-fascista, Estado burocrático-autoritário (Estado
de exceção), Estado desenvolvimentista, Estado de apartheid, Estado
secular, Estado religioso e Estado de mercado. Apesar de distintos, to-
dos possuem em comum: um conceito monolítico e centralizador de
poder; a criação e o controle de fronteiras; a distinção entre nacionais e
estrangeiros (e até diferentes categorias de nacionais); a universalidade
das leis mesmo com as exclusões, discriminações e exceções que elas
mesmas impõem; uma cultura, uma etnia, uma religião ou uma região
privilegiada; entre outros. Todavia, quando os movimentos indígenas
levantam a bandeira da refundação do Estado, na América Latina e pelo
mundo, fazem isso pelo sofrimento histórico, conhecido por todos78.
Dando continuidade ao seu trabalho, Boaventura79 ainda salienta
sete dificuldades para a implementação da refundação do Estado: a difi-
culdade em se transformar radicalmente uma instituição que possui mais
de 300 anos; a grande duração do Estado moderno, o que leva a refunda-
ção a ser uma luta social, cultural, de mudança de símbolos, de menta-
lidades, de hábitos e de subjetividades, e não apenas uma luta política; a
tese não pode ser levantada apenas pelos grupos oprimidos, mas também,
pelos demais; a exigência de ser mais que uma demanda civilizatória, de-
vendo ter um diálogo intercultural que movimente diferentes universos
culturais e conceitos distintos de tempo e de espaço; a modificação nos
campos social, da cultura, do espaço e da economia; os que entendem que
a refundação significa criar algo novo, o que encontra rejeição por parte

78 Ibidem, 2010, p. 69.


79 Ibidem, 2010. p. 70.
IMPASSES E ALTERNATIVAS EM 200 ANOS DE CONSTITUCIONALISMO LATINO- 159
AMERICANO

dos indígenas que de forma distinta entendem que refundar é, na verda-


de, retomar formas que precedem a conquista e que apesar da repressão,
sobreviveram, ainda que de modo deficitário; e por último, o peso do fra-
casso da refundação do Estado Soviético na política emancipadora.
Sem embargo, os movimentos indígenas da América Latina são
conscientes das dificuldades e entendem que a refundação do Estado
somente ocorrerá após o fim do predomínio dos grandes sistemas de
dominação e exploração, ou seja, do capitalismo e do colonialismo. Des-
te modo, constata-se por fim, que em se tratando de América Latina, a
refundação do Estado na perspectiva de Boaventura, está mais avançada
somente na Bolívia e no Equador. Contudo, o autor considera relevante
o estudo dessa temática pela academia, uma vez que considera o conti-
nente latino-americano como uma área de avançada rejeição anticapi-
talista e anticolonialista80.
Assim sendo, refundar, implica superar o velho constitucionalis-
mo moderno, que tinha como escopo constituir um Estado, uma nação,
com as seguintes características: espaço geopolítico homogêneo onde
as diferenças étnicas, culturais, religiosas ou regionais fossem suprimi-
das ou desconsideradas; com uma fronteira bem determinada para se
diferenciar do exterior; organizado por um conjunto integrado de insti-
tuições centrais cuja cobertura fosse visível em todo o território. Diante
disso, surge como alternativa a adoção de um constitucionalismo dito
de transformação, cujas dimensões se exprimem pelos seguintes pilares:
plurinacionalidade; territorialidade nova – também chamadas de au-
tonomias assimétricas; pluralismo jurídico; democracia intercultural e
novas subjetividades individuais e coletivas - indivíduos, comunidades,
nações, povos, nacionalidades. Tais pilares, conclui Santos81, podem cer-
tamente garantir a realização de políticas anticapitalistas e anticoloniais,
superando como consequência instituições caducas que ainda hoje per-
sistem na organização política latino-americana.

80 Ibidem, 2010, p. 71.


81 Ibidem, 2010, pp. 71-72.
160 José Ribas Vieira, Fabiana de Almeida Maia Santos, Gabriel Lima Marques, Rafael Bezerra de
Souza, Sérgio Bocayuva Tavares de Oliveira Dias

CONCLUSÃO

Constatou-se ao longo do desenvolvimento do trabalho, um con-


junto de transformações político-sociais que culminaram no novo perfil
do constitucionalismo latino-americano. Esse desenho político, traduz
como categorias centrais, arranjos diferenciados do constitucionalismo
de um modo geral. Entretanto, percebe-se que há um certo quadro de
incerteza de que concepções pura e simplesmente de redefinição do
Estado, fundamentadas em parâmetros pluralistas, sejam aptas à rom-
per com traços contínuos de desigualdade social e de caducidade de
instituições mal adaptadas. Portanto, resta-nos cristalino, que somadas
às mudanças de caráter legal, urgem necessárias tanto uma disposição
política em fazer valer novas concepções, tais como a autodeterminação
dos povos indígenas, quanto à reformulação, na base, das instituições
político-jurídicas dos Estados latino-americanos. Eis aqui o desafio ain-
da a ser vencido por esse novel modelo constitucional que se propõe
transformador.

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163

O SIMBOLISMO NO JULGAMENTO
CONSTITUCIONAL: UMA ANÁLISE DO CASO
ELLWANGER

Felipe Magalhães Bambirra1


Carolina Meire de Faria2

1. INTRODUÇÃO

A lei pode ser entendida como símbolo, elemento capaz de me-


diar a relação entre sujeito e realidade, linguagem que é, e figura ao lado
da religião, da moral, dos costumes, dentre outros âmbitos dos quais
emerge normatividade, como parte incindível do ethos e da cultura3. O
que se almeja, neste trabalho, é elaborar um discurso racional sobre este
espaço simbólico4, tendo em vista especificamente os aspectos funcio-
nais da norma jurídica.
A partir dos estudos de Kindermann e Neves, pretende-se pre-
cisar determinadas funções simbólicas que a norma pode exercer, para
além de sua função jurídica, seja no momento de elaboração legal ou
1 Mestre e Doutor em Direito (UFMG). Professor no Programa de Pós-Graduação Interdisci-
plinar em Direitos Humanos (UFG) e nas Faculdades Alves Faria (GO). E-mail: fmbambirra@
gmail.com.
2 Advogada, especialista em Direito Constitucional (IDDE), mestranda em Filosofia (UFMG).
E-mail: carolinameirefaria@gmail.com.
3 “Afirmar que o ethos é co-extensivo à cultura significa afirmar a natureza essencialmente axio-
gênica da ação humana, seja como agir propriamente dito (práxis), seja como fazer (poíesis)”,
cf. LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Ética & Direito. São Paulo: Loyola, 2002, p. 33.
4 LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Escritos de Filosofia III: Filosofia e Cultura. São Paulo:
Loyola. 1997, p. 94.
164 Felipe Magalhães Bambirra, Carolina Meire de Faria

constitucional, seja propriamente durante a aplicação da lei pelo Poder


Judiciário, é dizer, no julgamento.
Assim, buscar-se-á salientar as diferenças entre um simbolismo
legal e um simbolismo constitucional para, em seguida, analisar, em
um caso específico – o julgamento de Ellwanger, em que houve Reper-
cussão Geral reconhecida, ou seja, entendeu-se ser temática de especial
relevância jurídica, política, social ou econômica – o discurso utilizado
para aplicação da norma no plano concreto, destacando-se os elementos
que permitem perceber a sua função simbólica, quiçá em detrimento da
aplicação jurídico-normativa.

2. DA LEGISLAÇÃO À CONSTITUCIONALIZAÇÃO SIMBÓLICA

A palavra símbolo possui ampla dispersão semântica, e a sua uti-


lização em campos epistemológicos diversos – como a psicanálise, filo-
sofia, antropologia e linguística – tende a aumentar a sua plurivocidade,
o que pode vir a dificultar o rigor discursivo5. De um modo geral, e utili-
zando-se da linguagem comum, corrente, pode-se adotar uma definição
segundo a qual símbolo será todo e qualquer elemento capaz de trans-
mitir um significado6, em regra com o objetivo de se fazer compreender,
de forma imediata ou não7, uma visão sobre a realidade. São símbolos,
assim, sinais, imagens, gestos, pinturas, ações, textos etc, desde que car-
regado de significado para o seu destinatário.
O sentido que se utilizará neste trabalho, entretanto, é diverso. A
lei é sem dúvida um símbolo, pois se compõe de textos, falas, sinais etc.,

5 C.f. crítica de Umberto Eco às inúmeras classificações à respeito do símbolo e do signo utili-
zadas pelas mais diversas ciências em ECO, Umberto. Semiótica e filosofia da linguagem. Trad.
Mariarosaria Fabris e José Luiz Fiorin. São Paulo: Ática, 1991.
6 Geertz apud FERNANDES, Gabriela da Silva Ramos. A relação entre poder político e sím-
bolos: uma questão de estratégia. Anais do XV encontro regional de história da Associação
Nacional de História. ANPUH: Rio de Janeiro, 2012, p. 3. Disponível em: <http://www.en-
contro2012.rj.anpuh.org/resources/anais/15/1338410115_ARQUIVO_TextoAnpuhparapu-
blicacao.pdf>. Acesso em 09 de junho de 2016.
7 Cf. sentido de latência nas obras de Psicanálise e Psicologia, para melhores aprofundamentos.
BOCK, Ana Maria Mercês Bahia. FURTADO, Odair. TEIXEIRA, Maria de Lourdes Trassi.
Psicologias: uma introdução ao estudo da psicologia. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
O SIMBOLISMO NO JULGAMENTO CONSTITUCIONAL: UMA ANÁLISE DO CASO 165
ELLWANGER

que objetivam, numa perspectiva jusfilosófica, a hierarquização de va-


lores (bens jurídicos) e a regulamentação da ação humana segundo esta
hierarquização, ou até mesmo rede de decisões sobre a práxis humana.
Em sentido técnico-jurídico, a lei – ou a norma – busca regular a ex-
pectativa da expectativa, ou seja, o que os demais podem legitimamente
esperar do comportamento do outro, tendo o direito como parâmetro
regulatório.
Quando se fala de uma legislação simbólica, entretanto, deseja-se,
aqui, ressaltar uma característica determinada em relação à função que
a norma-símbolo exerce. Ao invés de efetivamente pretender regular ex-
pectativas, ela acaba exercendo função diversa, não propriamente afeta
ao sistema jurídico, e, geralmente, ligada ao campo da política, que assu-
me o primeiro plano, de forma mais expressivas que a sua juridicidade.
A legislação simbólica

aponta para o predomínio, ou mesmo hipertrofia, no que se


refere ao sistema jurídico, da função simbólica da atividade
legiferante e do seu produto, a lei, sobretudo em detrimento
da função jurídico-instrumental8.

Desta maneira, afirma-se que determinada lei possui apenas uma


função simbólica quando esvaziada de seu caráter instrumental-jurídi-
co, é dizer, o que está ‘subentendido’ prevalece em relação à objetivida-
de, escrita ou falada. Para se ter em conta este caráter simbólico, é ne-
cessária a análise metódica, consistente em se avaliar os efeitos práticos
que uma lei desempenha em determinada sociedade. Se há uma sobre-
posição do caráter jurídico-normativo das leis pelo politico-simbólico,
estaremos diante de um caso de legislação simbólica, mesmo que em
um primeiro momento este efeito não se faça expresso9.
As constituições são locus privilegiado para a análise do “gêne-
ro” legislação simbólica, pois suas normas apresentam, funções latentes
8 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p.
23.
9 NEVES, A constitucionalização simbólica..., cit., p. 30.
166 Felipe Magalhães Bambirra, Carolina Meire de Faria

- de natureza político-simbólica – por vezes mais fortes, do ponto de


vista social, que a sua função normativo-jurídica - reguladora de rela-
ções de força coercitiva10. Dentre as principais características da norma
constitucional, pode-se destacar a sua textura aberta, que lhe permite
funcionar como vetor interpretativo e horizonte para as demais nor-
mas infraconstitucionais e infralegais. Interessante exemplo é o art. 7º
da CF/88, que contem parte significativa dos direitos fundamentais de
cunho social, relativos ao trabalhador. Revelam um alto grau simbóli-
co de valores retores da sociedade brasileira. São, além de norma cuja
garantia se espera ver transmudada em eficácia social, também parte
da constelação axiológica, política e social que representa, ou preten-
dem representar a sociedade brasileira. Sua juridicidade constitucional
é inegável, contudo, analisada apenas no nível social-pragmático, perce-
bemos que há uma ausência de concretude a seus dispositivos – seja em
relação ao salário mínimo, à segurança do trabalho e mesmo em relação
ao trabalho infantil – uma vez que são necessários atos posteriores – le-
gislativos e executivos (políticas públicas) – imprescindíveis à sua plena
satisfação. Nada obstante, visto da perspectiva simbólica, os valores e di-
retrizes ali consagrados são da maior importância, e certamente levados
em consideração na tomada de decisão governamental.
Há constitucionalização e constituição simbólica quando esta-
mos diante da ausência ou enfraquecimento da função jurídico-norma-
tiva da constituição, e, como efeito colateral, assiste-se à “hipertrofia da
função político-simbólico”11.
Nada obstante a identidade de função legislação e constituição-
simbólica, seus efeitos práticos serão mais profundos e abrangentes,
pois a constituição, principalmente a constituição brasileira, de caráter
dirigente, buscar corresponder às expectativas e exigências de um povo
carente de direitos, sejam eles de cunho liberal ou social. Adota-se e
incorpora-se determinado discurso, mas não se sabe se há efetivamente
condições de possibilidade de cumprir as promessas feitas.

10 NEVES, A constitucionalização simbólica..., cit., p. 29.


11 NEVES, A constitucionalização simbólica..., cit., p. 96.
O SIMBOLISMO NO JULGAMENTO CONSTITUCIONAL: UMA ANÁLISE DO CASO 167
ELLWANGER

As peculiaridades do simbolismo constitucional provocam efei-


tos concretos no mundo prático, podem, de um lado, ser inspiração
para o exercício de cada um dos poderes – legislar, executar e julgar – e,
assim, concorrer para a efetividade normativa. Contudo, esta não pode
ser a única característica da lei ou Constituição, pois isso resultaria na
ameaça de eliminação, por substituição, de juízos normativos por juízos
morais, abrindo espaço para a arbitrariedade.
Kindermann12, de modo categorial, especificou algumas hipó-
teses de função político-simbólico latente da norma – as quais Neves
reconheceu presente também nas Constituições13 – que geralmente con-
vivem com a sua baixa eficácia jurídica: 1) a lei ou constituição existe
para confirmar valores sociais com prevalência à normatividade; ou 2) a
norma serve para demonstrar a capacidade de ação do Estado; e, ainda,
3) pode a lei ou a constituição ‘adiar a solução de conflitos sociais atra-
vés de compromissos dilatórios’14.
Examinaremos, no próximo tópico, cada uma das categorias
elencadas com maiores detalhes.

2.2. FUNÇÕES DA LEGISLAÇÃO E CONSTITUICIONALIZAÇÃO


SIMBÓLICAS

2.2.1. Prevalência de valores sociais

A perspectiva social ocorre quando a eficácia jurídica não tem


tanta importância quanto a eficácia valorativa. Opera como um instru-
mento de rotulação de grupos, geralmente defensores de valores ou pro-
posições opostas, utilizando o resultado da discussão legislativa como
reafirmação de uma identidade, reforçando a imagem do grupo vitorio-
so. O embate é, portanto, meramente valorativo ou sociológico, confor-
me afirma Gusfield15, que analisou tal fenômeno no período da lei seca
12 NEVES, A constitucionalização simbólica..., cit., p. 29.
13 NEVES, A constitucionalização simbólica..., cit., p. 29.
14 NEVES, A constitucionalização simbólica..., cit., p. 33.
15 NEVES, A constitucionalização simbólica..., cit., p. 33-34.
168 Felipe Magalhães Bambirra, Carolina Meire de Faria

nos Estados Unidos, de 1920-1933. Ele demonstrou que a lei seca não
surge para garantir eficácia normativamente, nem para regular condutas
– efetivamente proibir a vende e uso de álcool – mas como proposta de
glorificação de um grupo em detrimento de outro. Ou seja, a afirmação
do valor do nativo protestante, contra o valor do grupo do imigrante
católico, que tinha o habito de beber álcool. O resultado foi o rótulo e a
separação dos dois grupos, acentuando suas diferenças, elemento forte
que permeou a visão que os nacionais americanos tinham do imigrante
até algumas décadas atrás.
Geralmente, tais casos podem ser observados em assuntos de
complexidade temática legislativa. No Brasil, percebemos tal fato, de
forma análoga, nas hermenêuticas das esferas religiosas e em seus corre-
lativos contrários nos temas das pautas complexas como: células tronco,
aborto, união homoafetiva, dentre outras16. É perceptível que o valor de
uma escolha como essa altera não só a conduta social, mas afeta direta-
mente o modo como os dogmas e a percepção identitária de grupos no
contexto coletivo: como glória ou padecimento valorativo perante a lei
e a sociedade.
A escolha, obviamente, gera efeitos no mundo jurídico, porém, a
discussão que o tema gera, e que a lei revela, está para além da legítima
regulação de expectativas.

2.2.2. Capacidade de ação pelo Estado

Nesta hipótese, o Estado, motivado por um apelo popular, preci-

16 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Distrito Federal. Procurador Geral da República e Pre-
sidente da República, Congresso Nacional. Acórdão n. ADI 3510. Relator: Min. Ayres Britto.
Tribunal Pleno. Data da decisão: 29/05/2008. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/pagina-
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Janeiro. Acórdão n. ADPF 132. Relator: Min. Ayres Britto. Tribunal Pleno. Data da decisão:
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O SIMBOLISMO NO JULGAMENTO CONSTITUCIONAL: UMA ANÁLISE DO CASO 169
ELLWANGER

sa agir diante de uma situação de desconforto ou emergência, fruto de


ineficácia normativa. Cria-se uma lei álibi17, que pode estar ancorada na
esfera legislativa ou administrativa, para afastar críticas de falhas estru-
turais, reforçando-se a confiança na figura estatal.
Tal foi o caso do princípio da celeridade processual, constitucio-
nalizado com a Emenda nº 45/2004. O direito a um procedimento célere
já é garantido constitucionalmente, sendo absolutamente desnecessária,
do ponto de vista técnico-jurídico, a criação de uma reforma constitu-
cional, adicionando-se uma garantia fundamental ao rol do art. 5º, para
esta finalidade. Ademais, pode ser observado que, não raro, quando se
observa uma falha na concretização e fruição de direitos, e clama-se
pela atuação estatal para a correção do problema, a saída da reforma
legislativa é reivindicada – como em relação à criminalidade e dimi-
nuição da menoridade penal. Trata-se, em suma, de álibi criado para se
justificar a não efetividade do sistema normativo já posto, como se ele
não fosse adequado à resolução da questão.
O Estado se investe de poderes para que possa realizar o seu fim,
juridicamente estabelecido, qual seja, dar concreção ao direito de modo
pleno, fazer valer a norma democraticamente forjada, utilizando-se de
inúmeros recursos postos a sua disposição. Apontar para a falha na nor-
ma em-si significa criar um pretexto para se eximir da efetivação do di-
reito, que, no mais das vezes, é falho no plano concreto por razões estru-
turais profundas, como falta de vontade e conflitos políticos, problemas
de prioridade na alocação dos recursos disponíveis, incapacidade para
agir, e até mesmo falta de conhecimento do que pode realmente ser feito
para se equacionar a questão.

2.2.3. Compromissos dilatórios pelo Estado

Além de reafirmar valores de grupos, ou se eximir da obrigação


de garantir efetividade à norma, poderá ainda o Estado, por meio da

17 KINDERMANN, Harald, apud NEVES, A constitucionalização simbólica..., cit., p. 36.


170 Felipe Magalhães Bambirra, Carolina Meire de Faria

legislação simbólica, firmar compromissos18 através da lei, para discutir


futuramente problemas sociais que ainda não quer, ou não é capaz de
solucionar.
A lei é criada, nesses casos, sem se observar a estrutura cor-
respondente que lhe garantirá efetividade, funcionando apenas como
resposta à alguma deficiência, não possuindo efeitos no mundo jurí-
dico-normativo, nem social. Geralmente, surge quando não há possi-
bilidade de harmonização entre direitos políticos diferentes. Porém,
diversamente do que ocorre com a confirmação de valores de grupos,
não há, aqui, a figura do vencido, pois o efeito que a norma produzirá
é nulo, enquanto naquele caso, o valor do grupo norteará os efeitos
sociais e jurídicos.
Um exemplo típico de compromissos dilatórios feitos pelo Esta-
do através de ato legislativo encontra-se na Declaração Universal dos
Direitos Humanos, documento que, embora possua caráter de soft law,
com baixa vinculatividade normativa, constitui-se como marco para os
direitos humanos e inspiração para a criação de normas de efeitos ju-
rídico-normativo. A Declaração não possui, por si só, obrigatoriedade
jurídica, nem eleva direitos de grupos, mas por demonstrar a intenção
de proteção dos direitos humanos, há uma elevação de seu status de
efetividade extranormativa e social, revelando-se altamente simbólica.

3. JULGAMENTO CONSTITUCIONAL SIMBÓLICO: ESTUDO


DO CASO SIEGFRIED ELLWANGER

Do mesmo modo que se pode destacar uma função simbólica no


âmbito legislativo e constitucional, também é possível, na esfera de atua-
ção do Poder Judiciário, principalmente quando se trata da Suprema
Corte – uma das vozes que comporão o discurso no plano do acopla-
mento estrutural entre Direito e Política, verificado na Constituição –
identificar julgamentos com alta carga de simbolismo, até mesmo exer-
cendo as funções apresentadas no último capítulo.

18 NEVES, A constitucionalização simbólica..., cit., p. 41.


O SIMBOLISMO NO JULGAMENTO CONSTITUCIONAL: UMA ANÁLISE DO CASO 171
ELLWANGER

Como proposta de análise, selecionamos, como representativo


desta questão, o caso Seiegfried Ellwanger, cuja Repercussão Geral fora
conhecida devido ao caráter de relevância jurídica, social política19. O
caso adotado é o discutido no Habeas Corpus n. 82.42420 impetrado
junto ao STF em 2002, e com repercussão midiática internacional, por
abordar conflito entre a liberdade de expressão versus preconceito/ra-
cismo.
Antes de iniciar a discussão será necessário, porém, traçar um
breve histórico do caso21.

3.1. RESUMO DO CASO ELLWANGER

Em novembro de 1991, o Ministério Publico Estadual – e os


assistentes de acusação, a Federação Israelita do Rio Grande do Sul e um
membro do movimento popular antirracismo – ofereceu a denuncia
contra Siegfried Ellwanger, alegando que este, na condição de editor e
sócio da Revisão Editora Ltda, incitava conteúdos literários antissemita
e discriminatório. As obras a que se referiam na denúncia eram aquelas
em que Ellwanger atuava como editor, ou escritor: O judeu internacio-
nal, de Henry Ford; A história secreta do Brasil, volume 1 e Brasil: colô-
nia de banqueiros, ambos de Gustavo Barroso; Os protocolos dos sábios
de Sião, de Gustavo Barroso; Hitler: culpado ou inocente? de Sérgio Oli-
veira; Os conquistadores do mundo: os verdadeiros criminosos de guerra,

19 Cf. verbete Repercussão Geral in BRASIL. Glossário Jurídico do Supremo Tribunal Federal.
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/glossario/verVerbete.asp?letra=R&id=451>.
Acesso em: 06 de julho de 2016.
20 Optamos, em todas as citações relativas ao HC 82.242/RS, em referenciar o número de página
como a página do arquivo eletrônico (PDF) disponível no sítio do STF, conforme link infor-
mado. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rio Grande do Sul. Habeas Corpus n.82.424/RS.
Relator: Min. Maurício Correa. Tribunal Pleno. Data da decisão: 17/09/2003. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=79052>. Acesso em
27 de maio de 2016.
21 PINHEIRO, Douglas Antonio Rocha.As margens do caso Ellwanger: visão conspiracionista da
História, ecos tardios do integralismo e judicialização do passado.2013. 281 fl.Tese (Doutorado
em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de Brasilia, Brasília. Disponível em: <repo-
sitorio.unb.br/bitstream/10482/13810/1/2013_DouglasAnt%C3%B4nioRochaPinheiro.pdf>
Acesso em 26 de fevereiro de 2017.
172 Felipe Magalhães Bambirra, Carolina Meire de Faria

de Louis Marschalko e Holocausto: judeu ou alemão? Nos bastidores da


mentira do século22, de autoria de Siegfried Ellwanger.
Quatro anos depois, ou seja, em 1995, a decisão da juíza substi-
tuta da 8ª Vara Criminal de Porto Alegre, entendeu pela absolvição de
Ellwanger, fundamentando a sentença na liberdade de expressão, re-
conhecendo que as obras em questão tratavam de uma revisão históri-
ca do Holocausto. O Ministério Público não se manifestou a respeito,
cabendo a inconformidade aos assistentes de acusação, que levaram
o pleito através da apelação ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul (TJRS). Este tribunal, por sua vez, reformou a decisão um ano de-
pois, condenando Ellwanger a dois anos de reclusão, com suspensão
condicional, incurso nas penas de induzimento e prática de racismo
(Lei 7.716/89, art. 20, com redação dada pela Lei 8081/90)23, ressal-
tando que se trata de crime imprescritível e inafiançável (art. 5º, XLII
da CF/88). A defesa de Ellwanger tentou reverter a decisão por meio
de Recurso Extraordinário, cujo prosseguimento foi negado. Assim, o
Habeas Corpus de n. 15.155 foi interposto junto ao Superior Tribunal
de Justiça em 2000, tendo como fundamentação o afastamento do cri-
me de racismo aplicado, com base no caput do art. 20 da Lei 7.716/89,
com redação dada pela Lei nº 8.081/90, uma vez que o dispositivo
foi criado para atender aos crimes de racismo contra negros, e, além
disso, os judeus não seriam considerados pela Antropologia (e pelos
próprios judeus em geral) como raça, tese não acolhida pelo STJ. Se-
gundo PINHEIRO,

A intenção concreta de tal argumentação era desconstituir


o caráter imprescritível do ato praticado por Ellwanger e,
por consequência, extinguir sua punibilidade. Afinal, entre a
oferta da denúncia e o acórdão condenatório do Tribunal de

22 BRASIL. Estado do Rio Grande do Sul. Oitava Vara Criminal de Porto Alegre. Autos do pro-
cesso crime comum n. 01391013255/5947. Autor: Ministério Público Estadual. Réu: Siegfried
Ellwanger. Porto Alegre, 1991, in: PINHEIRO, Às margens do caso Ellwanger... cit., p. 2-3.
23 BRASIL. Lei n. 7.716 de 05 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito
de raça ou cor. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm>. Acesso
em: 27 de junho de 2016.
O SIMBOLISMO NO JULGAMENTO CONSTITUCIONAL: UMA ANÁLISE DO CASO 173
ELLWANGER

Justiça haviam transcorrido mais de quatro anos e onze me-


ses. Assim, a princípio, a condenação em dois anos ensejaria
a extinção da punibilidade pela ocorrência da prescrição da
pena em concreto – benefício inviabilizado quando os atos
praticados por Ellwanger foram tipificados como racismo24.

Contudo, foram vencedores os votos contrários à concessão do


Habeas Corpus, pelo mesmo entendimento proferido em sede recursal
do TJRS. Em seguida, foi impetrado o Habeas Corpus de n. 82.426 em
2002, que inicialmente fora acatado pelo ministro-relator, à época, Mi-
nistro Moreira Alves, quem, observando a fundamentação da defesa,
extinguiu a punibilidade de Ellwanger. Mais tarde, porém, houve o voto
divergente do Ministro Mauricio Correa, relator posterior do caso de
repercussão geral. A posição da Corte não foi unânime, havendo uma
divergência de três votos favoráveis à concessão do Habeas Corpus con-
tra oito, negando-o.
Para deixar claro, o tipo penal incriminador possuía a seguinte
redação:

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar, pelos meios de comu-


nicação social ou por publicação de qualquer natureza, a
discriminação ou preconceito de raça, por religião, etnia ou
procedência nacional.
Pena: reclusão de dois a cinco anos.

O foco da discussão se deu, como demonstrado abaixo, se a hi-


pótese de prática, induzimento ou incitação de discriminação ou pre-
conceito por religião (judaica) seria também considerado crime de “ra-
cismo”, que é imprescritível, de acordo com a Constituição Federal, e,
ainda, se seria possível discriminação em razão de “raça” aos judeus, que
é um povo cujo elo conjuntivo se dá, sobretudo, em razão de uma crença
religiosa – e não por outros elementos, como o étnico.

24 PINHEIRO, Às margens do caso Ellwanger..., cit., p. 20.


174 Felipe Magalhães Bambirra, Carolina Meire de Faria

3.2. ANÁLISE DOS VOTOS

Segundo PINHEIRO, ao nos atentarmos à ementa do Acórdão,


o qual contém toda uma síntese de um debate extenso de mais de 500
páginas – percebemos duas palavras nada ingênuas e muito reveladoras
do caso em questão, são elas “fatos históricos incontroversos” e “conse-
qüências históricas dos atos em que se baseiam”:

tais indícios parecem apontar para uma tentativa judicial ou


de definição do que seja uma pesquisa histórica, ou de restri-
ção da maneira como o historiador pode metodologicamente
lidar com o seu ofício – problemas que motivam a presente
investigação25.

Ou seja, segundo o autor, esses indicativos parecem ressaltar um


tipo de apropriação por parte do STF do que seria a “metodologia ade-
quada à pesquisa histórica, quanto a narrativa dita incontroversa de fatos
passados”26. E, portanto, para além do debate jurídico sobre o alcance de
um delito tal como o racismo. PINHEIRO, em elaborado estudo sobre as
ligações políticas que orbitaram esse caso, destaca o tumulto documental
em primeira instância27, o modo como o dito revisionismo das obras se
aproximou do nazismo durante o desenvolvimento das teses processuais28,
e, por fim, como as ligações dos amicus curie29 aos autores dos livros ditos
antissemitas30 influenciaram a formulação dos votos dos ministros.

3.2.1. Votos contrários à concessão do Habeas Corpus

O Ministro Maurício Corrêa apontou que o termo racismo não

25 PINHEIRO, Às margens do caso Ellwanger..., cit., p.22-23.


26 PINHEIRO, Às margens do caso Ellwanger..., cit., p.23.
27 PINHEIRO, Às margens do caso Ellwanger..., cit.,p.105.
28 PINHEIRO, Às margens do caso Ellwanger..., cit., p. 106.
29 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS….cit., p. 359.
30 PINHEIRO, Às margens do caso Ellwanger..., cit., p. 25-26.
O SIMBOLISMO NO JULGAMENTO CONSTITUCIONAL: UMA ANÁLISE DO CASO 175
ELLWANGER

pode apenas ser qualificado a partir de um critério biológico e com a


definição do mapeamento do genoma humano, a sustentar que, cien-
tificamente, não existem distinções entre os homens31, uma vez que “a
divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo político-
social originado da intolerância dos homens.”32 Salientou o contexto do
nacional-socialismo33, indicando que por que, nesse momento, os ju-
deus foram tratados como uma raça, e entendeu que o antissemitismo é
uma forma de racismo34, concluindo, por fim, que, “pregar a restauração
dessa doutrina, ainda que por vezes sob o disfarce do ‘revisionismo’….é
praticar racismo”35 Indicou ainda a posição dos tratados internacio-
nais sobre a temática racista, salientando a posição nacional de repúdio
sobre as políticas de segregação.36 Entendendo configurado o crime de
racismo, denegou a concessão de Habeas Corpus.
Em certa medida, os votos contra o remédio constitucional que
se seguiram adotaram a argumentação presente no exaustivo voto do
Ministro Maurício Correa, e utilizam-se de fundamentação bastante
semelhante37, variando vez ou outra o dispositivo legal utilizado, ou in-
cluindo alguma tese breve sobre a ponderação entre direitos fundamen-
tais38 e os limites da liberdade de expressão39.

3.2.2. Votos a favor da concessão do Habeas Corpus

O Habeas Corpus teve apenas como fim, segundo o relator ori-


ginário, Ministro Moreira Alves, discutir o delito de discriminação ou
preconceito, e, portanto, questionar o alcance do tipo penal previsto no

31 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p. 233-235.


32 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p.235.
33 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p.238-242.
34 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p.244.
35 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p.244.
36 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p. 248-252.
37 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p. 230, 309-324, 352-362, 366-424, 425-431, 432.
38 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p. 307, 333,345.
39 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p. 303-304, 363.
176 Felipe Magalhães Bambirra, Carolina Meire de Faria

art. 20 da Lei 8.801/90 e a sua imprescritibilidade. Acolhida a tese de


que a imprescritibilidade do crime de racismo previsto na constituição
seria mais restrito, não englobando preconceitos oriundos de religião ou
afinidades políticas, por exemplo, diante do lapso temporal, ocorreria a
prescrição e em consequência, a extinção da pena para o paciente40.
A argumentação do voto foi no sentido de que nem todas as con-
dutas previstas como discriminação e preconceito, nestas leis, são consi-
deradas racismo e, portanto, seriam imprescritíveis41, não cabendo “[à]
legislação ordinária dar o entendimento que lhe aprouver sobre o signi-
ficado de ‘racismo’”42 mas tão somente tipificar as condutas e quantificar
a pena para estes casos. Não caberia a extensão da imprescritibilidade
para delitos que não foram expressos como tal pelo legislador, obede-
cendo-se a exegese constitucional.43Assim, o ponto central seria deter-
minar o alcance da expressão racismo. Segundo o Ministro, os judeus
não são uma raça, e os autores-judeus se consideram “um povo com
desenvolvida civilização religiosa. Somos comunidade com religião no
seu núcleo essencial”44. “Há judeus negros, brancos, de nacionalidades
diversas”. Se não pertencem a uma raça, pode haver o crime de discri-
minação contra eles, mas isso não significa que seja racismo45, que é im-
prescritível. Defendeu, ainda, que o elemento histórico é essencial à in-
terpretação deste dispositivo legal, sendo certo que o constituinte estava
se referindo à discriminação feita contra os negros.46 Assim, considerou
o crime prescrito, diante do recebimento da denuncia em 14/11/91 e o
acórdão que reformou a sentença absolutória em 31/10/96, decorrendo
assim, mais de quatro anos, concedeu ao final, o Habeas Corpus.
O Ministro Carlos Ayres Britto, pela análise do art.5º, XLLI, ‘d’,
da CF/88, realizou uma distinção de conduta do tipo penal, salientando

40 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p. 209.


41 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p. 210.
42 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p. 209-210.
43 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p. 270-275.
44 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p. 219.
45 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p. 215-216.
46 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p. 211-215.
O SIMBOLISMO NO JULGAMENTO CONSTITUCIONAL: UMA ANÁLISE DO CASO 177
ELLWANGER

que “induzimento e incitação não passam de formas de prática” e que


o ato de publicação e divulgação de um livro47 se encerra no campo da
reflexão48. Caso houvesse a aproximação do delito pela redação da Lei
n. 8.081/90, que proíbe as formas de comercialização de livros, deveria
ser aplicado o §2º do art. 654 do CPP, uma vez que tal lei não existia à
época da denúncia e por isso não deveria ser aplicada ao caso.49 Não vis-
lumbrou incitamento a práticas a partir do conteúdo dos livros referidos
nos autos50, efetivamente afirmando que leu alguns deles, mas não todos
(pois não estavam disponíveis), e que o autor não falava diretamente
contra os judeus, o que teria deixado bem claro, mas contra o “sionismo
internacional”, ideologia que até mesmo os judeus se colocam contra51.
Prezou, assim, pela atipicidade da conduta do paciente. Salientou que
racismo também se refere a raças de cor52.
O Ministro Marco Aurélio Mello, tratou da eficácia de direitos
fundamentais, e do principio da ponderação de valores53. Discorreu so-
bre o direito à liberdade de expressão54, destacando-o para o caso, as-
severando que o paciente quis fazer uma revisão histórica dos fatos, ou
seja “escrever e difundir a versão da história vista com seus próprios
olhos”55 e não afirmar a superioridade da raça alemã56, o que configura-
ria antissemitismo. Ademais, não percebeu “perigo iminente do exter-
mínio do povo judeu” a partir do conteúdo do livro57, fato concreto para

47 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p. 471.


48 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p. 479.
49 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p. 472.
50 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p. 349.
51 Afirma em seu voto que: “Qualquer citação sobre Sionismo ou referências sobre judeus in-
ternacionais não deverá ser considerada contra as pessoas que professam a religião judaica,
que residem e trabalham pacificamente conosco e que cada vez menos aprovam os atos dos
primeiros, por deixá-los em constante preocupação”, BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS...,
cit., p. 321.
52 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p.496-498.
53 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p.544-545, 560, 570.
54 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p.541, 550-552.
55 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p.558.
56 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p.562.
57 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p.563.
178 Felipe Magalhães Bambirra, Carolina Meire de Faria

deflagrar uma limitação a liberdade de expressão, lado outro porque o


Brasil não se constitui historicamente como de tradição repulsiva a essa
cultura. Comparou, ainda, que um dos livros editados pelo paciente, de
Gustavo Barroso - que teve uma cadeira na Academia Brasileira de Le-
tras e, ainda, foi um dos integrantes da Ação Integralista Brasileira, vale
mencionar –, sempre foi comercializado no Brasil, até os dias atuais,
sem qualquer restrição. Ainda, citou diversos julgados da Corte Cons-
titucional Alemã (Bundesverfassungsgericht), em que se deu prevalência
à liberdade de expressão, inclusive de livro que culpava os aliados pela
guerra.
A despeito de notável preconceito contra os judeus por parte do
paciente, o ministro entendeu que proibir um livro de viés ideológico é
ser contrário à democracia e favorável à censura58. Indicou, ainda, que
os livros de conteúdo antissemita não tem recepção e influência sobre o
pensamento da sociedade brasileira, devido ao seu processo histórico, o
que não se daria no caso do preconceito contra os negros e nordestinos,
que sofrem de problemas discriminatórios enraizados no país.59

3.3. O SIMBOLISMO JUDICIAL NO CASO ELLWANGER

Em situação semelhante, Neves aponta o uso simbólico da legis-


lação, na Alemanha:

A onda anti-semítica que se propagou na Alemanha em


1959-60, com frequentes violações de cemitérios judeus e si-
nagogas, levou, por exemplo, a uma reforma juridicamente
desnecessária do § 130 do Código Penal Alemão (StGB), a
qual, porém, demonstrava simbolicamente a prontidão do
Estado em responder à ‘indignação’ pública pelas desordens
anti-semíticas60.

58 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p.564.


59 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p.567, 574.
60 NEVES, A constitucionalização simbólica..., cit., p. 38.
O SIMBOLISMO NO JULGAMENTO CONSTITUCIONAL: UMA ANÁLISE DO CASO 179
ELLWANGER

No casso Ellwanger, o Ministro Marco Aurélio fez referência, de


forma explícita em seu voto, à teoria do simbolismo constitucional61,
aduzindo que, neste caso,

à medida que [a Corte] venha a relativizar a garantia da


liberdade de expressão, enquadrando como manifestação
racista o livro de autoria do paciente, bem como as pu-
blicações de que fora editor, terminar por praticar função
simbólica, implementando uma imagem política correta
perante a sociedade. Estaríamos, então, diante de uma hi-
pótese de ‘Jurisprudência Simbólica’, sobressaindo a defesa
do pensamento antinazista, quando em jogo se faz, isto sim,
a liberdade de expressão, de pensamento, enfim, de opinião
política62 (grifamos).

Parece-nos que, de fato, houve um desempenho simbólico da


atuação judicial do STF neste caso, como modo de judicialização do
passado, afirmando a imagem do Estado protetor das minorias e garan-
tidor dos direitos sociais, bem como a imagem da Corte como garanti-
dora de direitos humanos e fundamentais, o que ocorre vez por outra,
mas, salienta-se, deve ser evitado, pois se descuida da função jurídica
do órgão. Trata-se, portanto, da primeira hipótese de simbolismo ana-
lisada neste trabalho, é dizer, para confirmar valores sociais – e manter
uma imagem socialmente adequada do STF –, com prevalência à nor-
matividade.
Tal percepção se dá, primeiro, porque há pouquíssimas análises
das obras publicadas nos respectivos votos. Aliás, o Ministro Ayres Bri-
to, que mais detidamente refletiu e fez referência a trechos, afirmou não
ter percebido a intenção de racismo nas obras. Outro ponto que vale
destacar é a perpetuação da comercialização de várias outras obras edi-
tadas por Ellwanger, que podem ser adquiridas em livrarias e sebos pelo
Brasil – até mesmo pela Amazon.com, como A História Secreta do Brasil
61 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p. 585.
62 BRASIL, Habeas Corpus n.82.424/RS..., cit., p. 586.
180 Felipe Magalhães Bambirra, Carolina Meire de Faria

e O Protocolo dos Sábios de Sião, livros editados apontados como antis-


semitas – como sustentado no voto. A falta de análise do caso concreto
demonstra falha técnica processual e certo descuido com a facticidade
do caso. Pinheiro, ainda, afirma o seguinte:

Com igual descuido metodológico, os julgadores que utiliza-


ram o critério da causalidade única para negar historicida-
de à obra de Ellwanger basearam sua fundamentação numa
apropriação reducionista e descontextualizada de Marc Blo-
ch, fazendo com que o próprio parâmetro utilizado de afe-
rição de historicidade se mostrasse igualmente monista. A
tese apontou, assim, como o uso de conceitos históricos pelo
Judiciário sem o devido rigor científico pode acabar repre-
sentando um ataque ao devido processo legal, à autonomia
do campo simbólico-histórico, à hermenêutica constitucio-
nal e à própria ordem democrática63.

Igualmente, do ponto de vista dos princípios do Direito Penal –


com destaque para a taxatividade, a exigir lei certa – é imprescindível
que o agente tenha consciência da ilicitude do ato que comete. Na hi-
pótese, pela leitura dos votos, ficou claro que a questão era polêmica,
pois dependia da extensão semântica do termo “racismo” para espécies
discriminatórias que não lida com a noção comum, popular, de “raça”.
Em situações como esta, é razoável que as Cortes apontem seu entendi-
mento e fixem o precedente, mas, ao mesmo tempo, absolvam o pacien-
te, face à incerteza da lei, à anterior insegurança jurídica, e à potencial
consciência da ilicitude – excludente de culpabilidade.
Em análise diversa, que parte de outros pressupostos, mas sobre
o mesmo caso, Brum64 destaca que tal julgamento acorreu dentro das

63 PINHEIRO, Às margens do caso Ellwanger…, cit., p. 6.


64 BRUM, Guilherme Valle. O intuicionismo em Rawls, o emotivismo em MacIntyre e a técnica
decisória da ponderação entre princípios constitucionais: comentários sobre o caso Ellwanger.
Universitas/JUS, v. 23, n. 1, p. 79-93, jan./jun. 2012. Disponível em <http://www.publicacoe-
sacademicas.uniceub.br/index.php/jus/article/view/1867/1639>. Acesso em 08 de junho de
2016, p. 6.
O SIMBOLISMO NO JULGAMENTO CONSTITUCIONAL: UMA ANÁLISE DO CASO 181
ELLWANGER

regras jurídicas, porém, conforme demonstra, as regras de sopesamen-


to de princípios, utilizada por vários Ministros, apenas serviu para en-
cobrir os elementos volitivos individuais, intuitivos e emocionais, dos
Ministros, corrobora, de certo modo, a carga simbólica do julgamento.
A análise feita de dois votos diametralmente opostos, com a mesma fun-
damentação (ponderação), nos faz perceber que, não obstante a decisão
fundamentar-se exclusivamente em aspectos jurídico-normativos, ou-
tros elementos não normativos estão igualmente presentes:

os resultados, como visto, foram absolutamente diferentes.


O ministro Gilmar Mendes entendeu que, depois de pon-
derados os princípios candidatos a incidir na espécie, o da
dignidade do povo judeu seria prevalecente, enquanto o mi-
nistro Marco Aurélio concluiu ser o princípio da liberdade
de expressão o vencedor na ponderação. Não é difícil cons-
tatarmos que a técnica decisória foi utilizada para dar uma
roupagem – diga-se assim – de racionalidade às intuições
sobre a justiça de cada julgador. A estrutura dos votos dos
ministros foi muito parecida. De início, um relato de alguns
aspectos históricos, sociológicos e filosóficos justificadores
do valor moral eleito. Depois, uma aproximação desse va-
lor com a situação sub judice. Gilmar Mendes desenvolveu
circunstâncias que apontariam ser o ato do paciente, efetiva-
mente, um crime de racismo praticado contra a comunidade
dos judeus, seja ela classificada ou não como raça, no senti-
do estrito da expressão, potencializando o valor dignidade
da pessoa humana. Marco Aurélio, por sua vez, traçou uma
linha argumentativa valorizadora da liberdade de expressão,
concluindo assim pela inexistência de delito penal. Por fim,
quando da aproximação de suas convicções sobre tais valores
morais ao caso concreto, ambos optaram pelo mesmo cami-
nho para cobrir suas intuições com as vestes de princípios
jurídicos: o iter procedimental da ponderação65.

65 BRUM, O intuicionismo... cit., op. cit., p. 8.


182 Felipe Magalhães Bambirra, Carolina Meire de Faria

Podemos ainda asseverar que os votos, apesar de se mencionar a


doutrina de Robert Alexy, não explicitaram o percurso da ponderação,
destacando a adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido
estrito, seguida da efetiva ponderação – como ocorre recorrentemente
em julgados66. Ou seja, acaba-se citando uma teoria, mas não efetiva-
mente aplicando-a – o que, entretanto, foge da análise que ora fazemos.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A cultura é um processo complexo, constituído por símbolos,


compreensões, narrativas, normas e valores, e o fenômeno jurídico só
pode ser dela destacado para fins de análise, ou seja, segmentação e re-
corte da realidade, na esperança de melhor se compreendê-la. O direito,
visto somente enquanto direito, é uma abstração – o que significa, lite-
ralmente, separar do extrato, do ser-aí em sua completude e comple-
xidade. Considerando esta realidade (no sentido de uma Wirklichkeit,
efetividade) do direito, separamos o que seria uma função simbólica da
norma, e aquilo que seria, funcionalmente, direito, no sentido de atuar
como estabilizador de expectativas de conduta.
Buscamos analisar, tendo em vista os aspectos simbólicos – da
lei, da constituição e, por que não, de julgamentos – levantados por Kin-
dermann e Neves, a atuação do STF no caso Ellwanger, de ampla reper-
cussão, em que se discutiram questões relevantes, como a liberdade de
expressão, a proteção a minorias, a discriminação e o racismo. Nosso
esforço foi o de apontar os aspectos simbólicos desse julgamento, sem
querer, com isso, sugerir o acerto ou desacerto do julgado. Fica patente,
sobretudo em casos difíceis, a dificuldade de se analisar um “fato” de
modo estritamente técnico, puro e mecânico, tendo em vista a influên-
cia de outros elementos da cultura, que designamos como “simbólicos”,
por se situarem na margem do direito.
A lei, a constituição e decisões jurídicas possuem este caráter
66 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica, e Teorias Discursi-
vas – Da possibilidade à necessidade de respostas concretas em direito. 3. Ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2009, p. 177-189.
O SIMBOLISMO NO JULGAMENTO CONSTITUCIONAL: UMA ANÁLISE DO CASO 183
ELLWANGER

simbólico, vivo, que norteia as relações sociais. Isto não significa, por
outro lado, que o Direito possa prescindir de seu código próprio, de
seus procedimentos, do conteúdo fático levado à análise, sob pena de
infringência a este mesmo Código e seu enfraquecimento, levando, em
casos extremos, até mesmo a sua corrupção, invadido pela moral, pela
economia, enfim, por discursos de outros sistemas sociais, sem que se-
jam adequadamente recepcionados, integrados pelo Direito.

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187

CONCEPÇÕES DE CIDADANIA E TENSÕES


CONTEMPORÂNEAS ENTRE O PÚBLICO E O
PRIVADO: UMA INTRODUÇÃO À TEMÁTICA

Fernanda Busanello Ferreira1

1. Nota de abertura

Esse texto foi produzido a fim de auxiliar os discentes ingressan-


tes na graduação em direito a compreender as bases das concepções de
cidadania em suas diversas fases. Nele apresentam-se, de uma maneira
simplificada, os primórdios do conceito e as dimensões de cidadania
liberal, comunitária e republicana, apontando uma possibilidade da
concepção de cidadania que deverá impulsionar o século XXI: o devir
cidadania local/global.

2. Introdução

A contemporaneidade se apresenta num contexto histórico ca-


racterizado por profundas mudanças e transformações na forma da hu-
manidade compreender e articular os espaços econômicos, políticos e
culturais. Encaram-se novos desafios sociopolíticos, tecnológicos e eco-
nômicos cujos problemas associados geram indefinições acerca de suas
soluções, havendo quem aponte a sociedade futura como a sociedade
1 Pós-Doutora pelo Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos da
Universidade Federal de Goiás (PPGIDH/UFG). Doutora em Direito pela Universidade Fede-
ral do Paraná (UFPR). Professora do PPGIDH e do Curso de Direito da UFG/REJ.
188 Fernanda Busanello Ferreira

da ignorância2. Este fato advém, dentre outros fatores, da mudança pela


qual a sociedade passa, tornando-se mais complexa3 na contempora-
neidade.
Vivencia-se uma nova realidade social e para enfrentá-la faz-se
necessário a reestruturação ou reformulação de conceitos e categorias,
diferentes dos existentes - que se mostram insuficientes para compreen-
der e para que se tomem decisões na atualidade. Este texto busca articu-
lar o conceito de cidadania em busca de um melhor enfrentamento da
questão pública e privada.
Para tanto, num primeiro momento, será analisada a ideia
da cidadania tal como foi elaborada na antiguidade e na moder-
nidade, isto significa, observar as transformações que a noção de
cidadania sofreu em sua intrínseca relação com a polis e o Estado-
Nacional.
Num segundo momento, será avaliada a desestruturação ou
insuficiência da noção de cidadania estrita ao Estado-Nacional para
enfrentar as complexidades emergentes de uma sociedade mais glo-
balizada. Procurar-se-á neste tópico observar em que medida os fenô-
menos dessa nova forma de sociedade obriga que haja uma transmu-
tação ou revisão nas maneiras tradicionais de solucionar os problemas
sociais.
Num terceiro momento, far-se-á uma incursão nas dimensões
da cidadania liberal, comunitária e republicana até chegar-se ao devir
cidadania global. Ainda, partindo da construção da dicotomia público
e privado, será evidenciada a crise de sentido que os conceitos sofrem
diante do novo cenário em que uma cidadania mais ativa exige uma
nova relação entre as dimensões públicas e privadas para se realizar em
plenitude.
A contemporaneidade, como a entendemos, está à deriva, em

2 MAYOS, Gonçal. Dificultades para el “emporadamiento” de la “sociedade del conocimiento”.


In. MAYOS, Golçal et al. La sociedade de la ignorancia. Barcelona: Península, 2011, p. 18
3 Por complexidade, entende-se excesso de possibilidades. LUHMANN, Niklas. Sociologia do
direito I. Rio de Janeiro: Tempo Universitário, 1983, p. 45.
Concepções de Cidadania e tensões contemporâneas entre o público e o privado: uma introdução à 189
temática

busca de novos significados4. Neste texto tentar-se-á dar algumas ex-


plicações conceituais sobre a gênese de determinadas semânticas com o
objetivo de que possamos assim melhor enfrentar os vazios conceituais
atuais, produto das transformações históricas.

3. A ideia de cidadania: na antiguidade e na modernidade

O homem passou por vários estágios até chegar ao que é hoje,


foi nômade, formou as primeiras civilizações e passou por uma série de
guerras para conquistar territórios. Todavia, foi na Grécia Antiga que
se ouviu falar pela primeira vez na polis e que se concebeu o cidadão.
Desde então, cada povo, em cada período, internalizou um conceito de
cidadania; cada cultura restringia ou dava acesso a cidadãos pré-esta-
belecidos. A dimensão da cidadania na antiguidade apresenta pontos
diversos, mas também pontos comuns em relação à cidadania na mo-
dernidade, sobretudo os excluídos que tiveram nominações diversas
com o passar dos anos.

3.1. A ideia de cidadania antiga

Em tempos de luta para fixar territórios emerge a polis que remete


à ocupação das terras conquistadas por invasores, os quais reduziam
os vencidos à escravidão. A cidadania grega pertencia a um conjunto
de reduzidos cidadãos ativos, excluindo-se o restante do dêmos - termo
atribuído a povo ou a território - considerados desqualificados. Enfa-
tiza Arendt que os gregos eram plenamente conscientes de que a polis
dependia de um número restrito de cidadãos para a sua sobrevivência5.
Os cidadãos gregos constituíam-se em uma minoria, que se sepa-
rava dos demais desfrutando de privilégios, sustentados pelo regime es-

4 A sociedade moderna “depende inexoravelmente de si, é deixada, como escreveu Luhmann, a


si mesma, sem alternativas”. O direito na sociedade de risco. Trad. Guilherme Figueiredo Leite
Gonçalves. Opinião Jurídica. Fortaleza: Faculdade Christus, ano 3, n. 5, vol. 1, jan./jul 2005, p.
383-393, p. 387.
5 AREDNT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 52.
190 Fernanda Busanello Ferreira

cravocrata. Somente os cidadãos dispunham de todos os direitos sendo


que, conforme Bertaso:

os gregos justificaram, por longo período, a igualdade de seus


cidadãos nos privilégios que desfrutavam em relação a mete-
cos, mulheres e escravos, em Atenas, e a hilotas e piriecos, em
Esparta, estes, principalmente, na composição da estrutura
social que construíram, jamais tiveram acesso aos direitos da
cidade6.

Na Grécia Antiga, a cidade era definida como uma instituição


que assegurava a cidadania para uma minoria de indivíduos que consti-
tuíam a polis (o lugar do político). A cidadania emergiu numa sociedade
que paradoxalmente ergueu-se baseada no escravismo e na exclusão de
mulheres, crianças e estrangeiros. De fato, a cidadania, na democracia
grega, era possível em razão da existência dos não-cidadãos7, sendo que
para Bertaso:

a dimensão cívica da cidadania grega estava voltada à manu-


tenção da polis e da democracia, como condição dessa pró-
pria cultura. Ao cidadão cabia manter a defesa, a unidade e a
concórdia interna a qualquer preço. A democracia grega não
soube conviver com o conflito e a diversidade interna: o es-
tranho, o “outro”, foi combatido permanentemente. A cidade
tinha seu limite simbolizado por suas muralhas; em seu inte-
rior, somente os cidadãos possuíam voto e vez. Já em Roma,
os cidadãos estiveram a serviço do poder; basicamente, re-
corriam a seus benefícios. O dever cívico do “soldado-cida-
dão” romano se constituía em defender e ampliar o Império8.

A cidadania romana, diferentemente da grega, iniciava com o


6 BERTASO, João Martins. Devir-Cidadania: as (im)possibilidades na leitura freudiana. Disser-
tação (Mestrado em Direito), Florianópolis: UFSC, 1998, p. 11.
7 Ibid., p. 10.
8 Ibid., p. 21.
Concepções de Cidadania e tensões contemporâneas entre o público e o privado: uma introdução à 191
temática

serviço militar, tendo passado por períodos de avanços e recuos no que


tange ao número de incluídos e aos direitos que os cidadãos incorpora-
vam participando dos negócios públicos. Em sua fase inicial, abrangeu
um número restrito de pessoas, estando excluídos, segundo Dal Ri Jú-
nior9, “as mulheres, as crianças, os apátridas e os estrangeiros”, tal como
no regime grego, sendo que “o cidadão romano tinha basicamente duas
obrigações em relação ao Estado: o pagamento dos tributos e o servi-
ço militar” 10. Assim, quando a plebe passou a fazer parte do exército
romano, adquiriu por consequência a cidadania. Funari avalia as (in)
congruências entre a cidadania grega e romana e a importância da ex-
periência romana para o conceito moderno de democracia da seguinte
forma:

para muitos estudiosos do século XX a República romana foi


encarada como uma oligarquia corrupta, uma aristocracia
endinheirada, comparada negativamente com a Atenas de-
mocrática do século V a.C. Nas últimas décadas, entretanto,
estudiosos têm mostrado que a vida política romana era me-
nos controlada pela aristocracia do que se imaginava e, de
certa maneira, Roma apresentava diversas características em
comum com as modernas noções de cidadania e participação
popular na vida social. Os patriarcas fundadores dos Esta-
dos Unidos tomaram como modelo a constituição romana
republicana, com a combinação do Senado e Câmara (no lu-
gar das antigas assembleias). A invenção do voto secreto, em
Roma, tem sido considerada a pedra de toque da liberdade
cidadã. O Fórum pode ser considerado o símbolo maior de
um sistema político com forte participação da cidadania. Lá,
os magistrados defendiam seus pontos de vista e tentavam
conseguir o apoio dos cidadãos. O poder dependia desse
apoio, a tal ponto que grupos rivais competiam pelo controle

9 DAL RI JUNIOR, Arno. Evolução história e fundamentos políticos - jurídicos da cidadania.


In. Cidadania e nacionalidade: efeitos e perspectives: nacionais regionais-globais. DAL RI JÚ-
NIOR; Arno; OLIVEIRA, Odete Maria de (Orgs.). Ijuí: UNIJUÍ, 2002, p. 30.
10 Ibid., p. 36.
192 Fernanda Busanello Ferreira

dos lugares que os cidadãos se reuniam. Os romanos tinham


um conceito de cidadania muito fluido, aberto, aproximan-
do-se do conceito moderno de forma decisiva11.

Diversamente dos gregos, que não se desvinculavam da polis, “os


romanos abriram a República aos conquistados, desde que estes estives-
sem dispostos a fazer parte de seu exército de cidadãos e lutar em defesa
de suas fronteiras e interesses”12, assim as forças do conquistado torna-
vam-se forças do Império de Roma. No entanto, apenas uma minoria
beneficiou-se das conquistas militares de Roma, o que culminou numa
imensa crise social causada pela desigualdade social13.
Já na Idade Média, a sociedade era tida como naturalmente es-
tratificada, consolidando direitos para alguns e deveres para a grande
maioria. Não havia um código de direitos uniforme para disciplinar as
relações entre nobres e súditos, entre homens livres e escravos, entre a
baronagem e os príncipes. Todavia, consoante Bertaso, “encontrava-se,
nas cidades medievais, exemplos de cidadania restrita a localidades” 14.
Os direitos, nesse período, eram concedidos aos que detives-
sem vínculos com propriedades imobiliárias ou assemelhados a es-
tes hierarquicamente. Não eram, portanto, privilégios dos súditos
ou dos que eram dependentes economicamente. O mundo medieval
era permeado por preconceitos discriminatórios. Os regulamentos
locais diziam quem deveria ocupar que função e restringiam empre-
gos aos habitantes da localidade, excluindo-se os demais. Seguiu-se

11 FUNARI, Pedro Paulo. A cidadania entre os romanos. In.: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla
Bassanezi (Orgs.). História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2003, p 76.
12 BERTASO, Op. Cit., p. 24-25.
13 Conforme Guarinello “o fechamento da cidade-estado implicava, necessariamente, a defini-
ção do outro e sua exclusão. E o outro não era apenas o estrangeiro, mas muitos dos habitantes
do próprio território das cidades-estado. Eles participavam da sociedade com seu trabalho
e recursos, mas não se integravam ao conjunto de cidadãos. Este é um ponto crucial, cuja
importância aumentou com o crescimento de várias cidades-estado, por expansão econômica
ou militar. Muitas delas, sobretudo as maiores e mais poderosas, como Atenas, Esparta ou
Roma, abrigavam vasta população não-cidadã, completamente excluída do corpo de cidadãos”.
GUARINELLO, Norberto Luiz. Cidades-Estado na Antigüidade Clássica. In. PINSKY, Jaime;
PINSKY, Carla Bassanezi (Orgs.). História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2003, p. 35.
14 BERTASO, Op. cit., p. 32.
Concepções de Cidadania e tensões contemporâneas entre o público e o privado: uma introdução à 193
temática

mantendo os privilégios de poucos às custas do sacrifício de muitos,


sempre submissos.
Desde a Grécia até a era medieval, a dominação de quem possuía
direitos sobre o escravo, o súdito ou o vassalo era tida como natural,
sendo que:

desde seus primeiros momentos, a cidadania mostra-se am-


bivalente: ao mesmo tempo em que representa uma proposta
de liberdade, igualdade e autonomia, fecha-se em privilégios,
garantida por uma seletividade discriminatória, que viabiliza
a relação escravocrata e de domínio de alguns sobre a maio-
ria, atingindo a regulação social15.

Durante toda a Antiguidade havia o entendimento de que as desi-


gualdades de classes sociais pertenciam à condição humana, justifican-
do-se assim a exclusão de direitos de cidadania a diversos segmentos da
sociedade. O cidadão da antiguidade devia obedecer às leis da cidade e
sua presença ensejou na radical separação entre os considerados cida-
dãos e os não-cidadãos: súditos, metecos, escravos, estrangeiros. Dessa
forma, o cidadão obedecia às leis da cidade, o não-cidadão obedecia à
vontade daquele. Na era medieval pouca coisa mudou. A cidadania so-
mente adquiriu novo significado com o advento dos direitos humanos
pelas lutas sociais da Revolução Francesa, baseada em outro fundamen-
to que não o direito natural.

3.2 A cidadania moderna

Com a passagem para a modernidade emergiu a concepção de


cidadania constituída no âmbito dos direitos do homem, que teve como
marco inicial a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de
1789. O modelo de cidadania baseado no envolvimento dos indivíduos
a seus pertences, expressão dos diferentes status, que vigorou até o pe-

15 Ibid., p. 33.
194 Fernanda Busanello Ferreira

ríodo medieval, foi substituído por aquele modelo individualista de li-


berdade subjetiva, que se consolidou a partir da ideologia liberal por
ocasião de Revolução Francesa. A partir desse evento, a ideia de cida-
dania foi tomada como referencial à democracia, consubstanciada nos
valores de liberdade, igualdade e fraternidade: um modelo de cidadania
tutelado pelo Estado Nacional, que reunia a capacidade de sua realiza-
ção a partir de um rol de direitos fundamentais.
A modernidade foi marcada pelas lutas da classe burguesa contra
a opressão dos monarcas. Os indivíduos passaram a reivindicar para si
o direito à liberdade, concretizando-se, posteriormente, os direitos civis.
Neste sentido, refere Bertaso que “a cidadania veio no bojo das lutas
pela liberdade e igualdade, numa tensa relação tanto com os poderes do
Estado quanto com os da sociedade”16. Assim, estabeleceu-se através da
lei a igualdade formal dos sujeitos, que passaram a ter direitos e deveres.
A cidadania se constitui a partir de um fator sociológico em que “ocor-
reu o desancoramento da condição de cidadão do patamar econômico,
foi deslocado para o status pessoal, onde os direitos, civis amparados
nas teorias do contrato, e os direitos políticos, desincorporados dos pro-
prietários de imóveis, (Marshall, 1967) formam a primeira geração de
direitos” 17.
A cidadania, então, se afirmou, neste primeiro momento da mo-
dernidade, pelo exercício de direitos civis e políticos que as pessoas,
constituídas como sujeitos de direitos, passaram a exercer no âmbito
do Estado Nacional. Nesta perspectiva, o Estado surge como forma de
organização social, alicerçado em sua soberania, e vincula a cidadania
aos nacionais.
Os direitos de cidadania emergem estando intimamente relacio-
nados com o surgimento do Estado-Nação. A respeito dessa correlação
preceitua Vieira que:

16 BERTASO, João Martins. A cidadania moderna: a leitura de uma transformação. In. Arno Dal
Ri Junior; Odete Maria de Oliveira (org.). Cidadania e nacionalidade: efeitos e perspectives:
nacionais regionais-globais. Ijuí: UNIJUÍ, 2002, p. 406.
17 Ibid., p. 420.
Concepções de Cidadania e tensões contemporâneas entre o público e o privado: uma introdução à 195
temática

o Estado Moderno, com sua perspectiva espacial, priorizou


a população dentro de seu território nacional, dotando-a de
uma identidade básica e de uma poderosa ideologia, o nacio-
nalismo. Após séculos de lutas, a noção monárquica de súdi-
to foi substituída pelo princípio democrático da cidadania,
com base nos direitos e deveres do cidadão18.

Foi, contudo, apenas mais tarde, com o surgimento dos direitos


sociais advindos das lutas do proletariado contra a opressão a que esta-
vam submetidos, que o exercício da cidadania passou a ter também o
sentido de minimizar a desigualdade social. Nesse momento “passaram
a ser considerados como do indivíduo, enquanto integrante do grupo
social, os direitos sociais dos trabalhadores, os referentes à educação,
entre outros”19. Dessa forma, ampliou-se o status de sujeitos de direitos
para sujeitos coletivos de direitos e passou-se a exigir um Estado in-
terventor para se viabilizar a cidadania social. O Estado, então, deveria
intervir para implementar os direitos sociais e possibilitar o exercício da
cidadania.
Seguiu-se a isso o deslocamento do sujeito universal e abstrato
para o homem nas suas diversas maneiras de ser, dando lugar a sujeitos
envolvidos concretamente em sociedade, como a criança, o velho, entre
outros e estendeu-se a titularidade de direitos a grupos como o de pro-
teção ao meio-ambiente. De acordo com Bobbio, “a passagem ocorreu
do homem genérico - do homem enquanto homem - para o homem
específico, ou tomado na diversidade de seus diversos status sociais” 20.
Aumentaram assim os “status a ser guarnecidos pelo Direito” 21
sendo que “as novas demandas sociais, os sujeitos coletivos e os novos
direitos ampliam a participação, bem como a realização da cidadania”
22
. Contudo, embora os novos direitos tenham um caráter universal, sua

18 VIEIRA, Liszt. Cidadania e globalização. Rio de janeiro: Record, 2002, p. 27.


19 BERTASO. A cidadania*, Op. Cit., p. 421.
20 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campos, 1992, p. 69.
21 BERTASO. A cidadania*, Op. Cit., p. 421.
22 Ibid., p. 423.
196 Fernanda Busanello Ferreira

efetivação exigiu também a participação do Estado, o que se exigiu con-


traprestações financeiras que nem todos os países estavam em condi-
ções de oferecer.
Fato é que a ideia de cidadania na modernidade transitou da no-
ção de indivíduo para a de sujeito de direitos, passou pelo surgimento
dos entes coletivos que transcenderam o indivíduo até chegar aos novos
sujeitos de direito para que então a realização da cidadania se tornasse
mais ampla. Por sua trajetória, verifica-se que a dinâmica da cidadania
está estritamente ligada ao surgimento dos direitos humanos na moder-
nidade, sendo que “apesar da dicotomia, ainda afirmada entre direitos
humanos e direitos do cidadão, a concepção moderna de cidadania ci-
vil, política, social e solidária, vai tornando-se sinônimo do conjunto
dos direitos humanos” 23.
O cidadão moderno emergiu sob a consciência do Direito, como
sujeito de direitos. Dessa forma, a possibilidade da cidadania foi instituída
através da lei, a qual concedeu aos seus nacionais a cidadania como forma
de participação na sociedade, regulada pelo Estado. Nesta perspectiva, a
cidadania, enquanto possibilidade de exercício de direitos, ficou restrita
ao Estado Nacional, limitando-se ao âmbito de seu território. A igualdade
de direitos, nesse contexto, gerou um processo de discriminação e exclu-
são dos não nacionais, aos quais a cidadania foi negada.

3.3 A cidadania e o Estado Nacional

Desde a Revolução Francesa, a cidadania tem seu exercício inti-


mamente ligado ao Estado Nacional. Passou-se a considerar que os in-
divíduos teriam seus direitos à cidadania assegurados, justamente, por
pertencerem ao território de um Estado-nação. Admitiu-se, pois, que
todo cidadão teria que ser um nacional e, desse modo, os direitos de ci-
dadania somente exercer-se-iam no âmbito interno do Estado Nacional.
A relação entre cidadania e Estado Nacional alicerçou-se no conceito
tradicional da cidadania.

23 Ibid., p. 423.
Concepções de Cidadania e tensões contemporâneas entre o público e o privado: uma introdução à 197
temática

A concepção de cidadania denominada tradicional, como produ-


to histórico, desenvolveu-se conjuntamente com a formação do Estado-
Nação, advindo da Revolução Francesa de 1789. Conforme Pinsky “a
cidadania instaura-se a partir dos processos de lutas que culminaram
na Declaração dos Direitos Humanos, dos Estados Unidos da Améri-
ca do Norte, e na Revolução Francesa. Esses dois eventos romperam o
princípio de legitimidade que vigia até então, baseado nos deveres dos
súditos, e passaram a estruturá-lo a partir dos direitos do cidadão” 24.
Desde então, passou-se a identificar a cidadania com o conceito de na-
cionalidade, isto é, como o fato de se pertencer a uma nação. A natureza
política da cidadania surgiu e difundiu-se assim ligada à constituição
dos Estados nacionais. De acordo com Guarinello “pensar a cidadania
no âmbito de nosso próprio Estado-nacional ou globalmente é um im-
perativo imposto pela realidade que vivemos”25.
A identificação entre nacionalidade e cidadania era implícita,
pois embora “a população de um Estado compreende os estrangeiros,
são estes excluídos do conceito de povo, que se liga ao de cidadania” 26.
A cidadania expressa na modernidade a situação jurídica de uma pessoa
em relação a determinado Estado, a cidadania, refere Andrade, “generi-
camente, é, pois, um vínculo jurídico que liga o cidadão ao Estado, de-
limitando o seu círculo de capacidade: o conjunto de direitos (políticos)
e obrigações perante o Estado” 27.
Os direitos de cidadania são, nesta perspectiva, direitos exercidos
no interior de um Estado-Nação. Aponta Vieira28 que tradicionalmente

24 PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (Orgs.). História da cidadania. São Paulo: Contexto,
2003, p. 10.
25 GUARINELLO, Op. Cit., p. 29. Complementa Guarinello que “a cidadania nos Estados-nacio-
nais contemporâneos é um fenômeno único na História. Não podemos falar de continuidade
do mundo antigo, de repetição de uma experiência passada enem mesmo de um desenvol-
vimento progressivo que unisse o mundo contemporâneo ao antigo. São mundos diferentes,
sociedades distintas, nas quais pertencimento, participação e direitos têm sentidos diversos”.
Id.
26 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Cidadania: do direito aos direitos humanos. São Paulo:
Ed. Acadêmica, 1993, p. 18.
27 Ibid., p. 28.
28 VIEIRA, Op. Cit., p. 221.
198 Fernanda Busanello Ferreira

“o Estado nacional é o lar da cidadania”. A cidadania, nessa concepção,


vincula-se à ideia de direitos individuais e de pertença a uma comuni-
dade particular. Contudo, “a cidadania fundada na nacionalidade tor-
nou-se um obstáculo à igualdade e liberdade de todos os indivíduos” 29.
Pense-se, por exemplo, na situação dos refugiados sírios, entre outros.
O potencial da cidadania não pode se realizar completamente na con-
temporaneidade na medida em que se limitou a estrutura do poder do
cidadão no espaço estatal e tão-somente nele.
Originariamente concebeu-se a concepção de nação com a pre-
tensão de unir-se pela cultura, território e história de um povo, forman-
do um vínculo jurídico-político com seus nacionais. Contudo, acabou a
nação servindo a interesses de grupos pertencentes a elites dominantes,
o que gerou frustração da cidadania. Ressalta Bertaso que “a cidada-
nia clássica, baseada na nacionalidade, sempre excluiu os não-cidadãos
dos direitos da cidadania, constituindo fator de desigualdade em rela-
ção a estrangeiros” 30. De fato, neste período, a cidadania nacional era a
única capaz de conferir direitos e um status legal e os estrangeiros não
encontravam aí nem um espaço para serem recepcionados de forma a
poderem exercer direitos instituídos aos cidadãos nacionais. Essa visão
de exclusividade nacional excluía os estrangeiros e os imigrantes dos
benefícios da cidadania.
Durante muito tempo coube ao Estado-nação a proteção dos di-
reitos básicos dos indivíduos e a promoção de funções econômicas e so-
ciais, para isso o Estado possuía soberania, a qual excluía outros atores,
estatais ou comunidade internacional31. No entanto, observa-se que a
soberania nacional começa a perder força. Verifica-se que o conceito de
soberania nacional está esvaziando-se, abalado pela formação de insti-
29 Ibid., p. 240-241.
30 BERTASO. A cidadania*, Op. Cit., p. 440.
31 Nestes termos, explica Baumann que “nos tempos modernos, a nação era a “outra face” do
Estado e a arma principal em sua luta pela soberania sobre o território e sua população. Boa
parte da credibilidade da nação e de seu atrativo como garantia de segurança e de durabilidade
deriva de sua associação íntima com o Estado e- através dele – com as ações que buscam cons-
truir a certeza e a segurança dos cidadãos sobre um fundamento durável e confiável, porque
coletivamente assegurado”, BAUMAN, Zigmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2001, p. 211.
Concepções de Cidadania e tensões contemporâneas entre o público e o privado: uma introdução à 199
temática

tuições supranacionais32. Este fato acarreta o enfraquecimento também


da vinculação entre cidadania e Estado. A desvalorização da cidadania
clássica tem provocado uma ruptura do estreito vínculo entre Estado e
nação.
Um dos responsáveis pelo enfraquecimento do Estado Nacional
é o processo de globalização, cujos impactos transformadores atingem
inclusive a autonomia decisória dos países, restringindo-a. De acordo
com Vieira “além disso, a importância crescente da dimensão econô-
mica e social na vida moderna vem enfraquecendo os laços políticos
da cidadania. Os interesses econômicos materiais passam, em muitos
casos, a prevalecer sobre os direitos cívicos do cidadão”33.
O paradigma Estado-nação, baseado em laços territoriais, vem
sendo abalado principalmente pela formação de instituições suprana-
cionais, cujo exemplo mais evidente é a União Europeia, mas não o úni-
co. Em verdade, a cidadania nacional deixou de ser a única forma de
proteção aos direitos. Segundo Vieira “a cidadania nacional não é mais a
única a conferir direitos e um status legal: as instituições européias estão
em processo de constituir uma nova cidadania, que se desprende do Es-
tado-nação” 34. O conceito de cidadania, na perspectiva de estatalidade
e exclusividade, perde sua conotação histórica, indicando a necessidade
de surgimento de uma concepção mais ampla.
Vieira, ainda, vislumbra a possibilidade do alargamento do con-
ceito de cidadania, remetendo-se a momentos históricos anteriores,
para o autor “assim como a cidadania foi historicamente estendida aos
não-proprietários, aos trabalhadores, às mulheres, aos jovens, não há
razão para negar hoje sua extensão aos estrangeiros residentes no país, e
até mesmo sua extensão à natureza e ao meio ambiente’35. Hoje falamos
em ampliá-la aos refugiados etc.

32 BAMBIRRA, Felipe Magalhães. O Sistema Universal de Proteção dos Direitos Humanos e Fun-
damentais. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG, 2014, Tese (Doutorado em Direi-
to).
33 VIEIRA, Liszt. Op. Cit., p. 236.
34 Ibid., p. 240.
35 Id.
200 Fernanda Busanello Ferreira

A cidadania, então, deverá se desvincular da nacionalidade, de-


vendo ser estendida aos estrangeiros, oportunizando a estes proteção
social e acesso aos serviços públicos, sob pena de provocar exclusão
social. A cidadania nacional deverá ser transformada, abrindo-se para
forças transnacionais rumo a uma sociedade global. A respeito do fe-
nômeno da globalização e as implicações à cidadania afirmam Clovis
Gorczevski e Nuria Belloso Martin que:

os arautos da globalização prenunciaram que a nova ordem


mundial caminharia de forma iniludível para a formação de
uma aldeia global. Exageros a parte, efetivamente deve-se re-
conhecer que o processo de globalização rompeu barreiras
estatais e como uma das consequências deste fenômeno sur-
ge o multiculturalismo, que nos leva a questionar quem é ci-
dadão no contexto atual, onde as comunidades rapidamente
transformaram-se de nacionais, monoculturais, monoétnicas
e monorreligiosas para comunidades globais, multiculturais,
multiétnicas e multirreligiosas36.

Todavia, há que se observar, conforme Vieira que “passar do na-


cional para a comunidade internacional é perder força na defesa dos
direitos” 37. Portanto, enquanto não forem criadas instituições interna-
cionais capazes de, efetivamente, proteger os direitos humanos na esfera
internacional, acredita o autor, o Estado-nação ainda será o principal
agente político na esfera internacional. Atualizando essa fala, temos que
concordar que mesmo diante da existência de um sistema internacional
de proteção de direitos humanos (sistema ONU) e de sistemas regionais
de proteção de direitos humanos, como os sistemas europeu, africano e
interamericano, pode-se dizer que o Estado ainda tem exercido um re-
levante papel em termos jurisdicionais, havendo, porém, cada vez mais
36 GORCZEVSKI, Clovis Gorczevski; MARTIN, Nuria Belloso. À guisa de uma justificação. In.
GORCZEVSKI, Clovis Gorczevski; MARTIN, Nuria Belloso. A necessária revisão do conceito
de cidadania: movimentos sociais e novos protagonistas na esfera pública democrática. Santa
Cruz do Sul: EDUNISC, 2011, p. 16.
37 VIEIRA, Liszt. Op. Cit., p. 237.
Concepções de Cidadania e tensões contemporâneas entre o público e o privado: uma introdução à 201
temática

espaços para outros entes atuarem na defesa de direitos humanos no


plano internacional (a exemplo das ONGs que têm atuado diretamente
na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, entre outros).
A cidadania no seu conceito clássico, contudo, fica ameaçada en-
quanto se mantiver limitada ao espaço territorial de uma nação. Tudo
indica que se está caminhando para a dissolução dos laços jurídicos e
políticos que ligam os sujeitos de direito exclusivamente ao Estado, pois
não se concebe mais na atualidade processos discriminatórios como o
da cidadania subordinada apenas à nação. Para se garantir direitos ple-
nos aos cidadãos globais, a nacionalidade não deverá mais fundamentar
o instituto da cidadania.
Dito isto, cabe-nos situar as dimensões de cidadania liberal, co-
munitária e republicana no contexto em que emergiram para então pen-
sar o momento atual. Pretende-se, ainda, problematizar as concepções
de cidadania que deverão impulsionar o século XXI (devir cidadania
local/global) e traçar algumas consequências de uma cidadania amplia-
da frente à dicotomia público/privado, a título exemplificativo.

4. As dimensões de cidadania: liberal, comunitária e republicana

As lutas que culminaram no reconhecimento tanto dos direitos


humanos quanto da cidadania, na forma como é concebida no país, ti-
veram origem no Ocidente, cujo primeiro marco notável foi a Revolução
Francesa de 1789. As ideias que irradiaram daquele momento histórico
transformaram os paradigmas existentes e possibilitaram a articulação
dos sujeitos em busca de novas demandas.
O Estado advindo da Revolução Francesa estruturou-se, con-
soante o ideário do período, como um Estado capitalista - liberal. Aten-
dendo ao anseio da classe burguesa, comerciante, abriu-se espaço para
o capitalismo sem, todavia, intervir na liberdade individual. Dessa ma-
neira emergiu, no Ocidente, a dimensão de cidadania liberal a qual foi
alicerçada nos direitos civis, refletindo os impasses da época - de uma
igualdade meramente formal. Conforme leciona Vieira “o liberalismo é
202 Fernanda Busanello Ferreira

a teoria dominante nos países industrializados, especialmente, anglo-


saxões” 38, o qual tem ênfase no indivíduo de modo a centrar os direitos
de liberdade inerentes a cada e toda pessoa. Dessa forma, conclui o ju-
rista que “o cidadão é concebido, pela teoria liberal, como um indivíduo
dotado de liberdade e responsável pelo exercício de seus direitos. A ci-
dadania encontra-se, assim, estreitamente relacionada à imagem públi-
ca do indivíduo como cidadão livre e igual” 39.
Ao abordar o discurso da cidadania à luz da matriz político-ideo-
lógica liberal Andrade40 afirmou ser imprescindível revelar sua roupa-
gem individualista, uma vez que a crença no indivíduo - sua valorização
e defesa – alicerça a concepção de cidadania do período. Refere a autora
que “o liberalismo revela uma concepção de cidadania ‘individual’, cons-
truída na defensiva contra o poder, quer do Estado, quer dos indivíduos,
na sociedade” 41. O individualismo-liberal evoca um discurso em que a
liberdade é relacionada à ausência de restrições. É maior a liberdade do
indivíduo quanto maior o seu poder de locomoção sem encontrar obs-
táculos. O Estado não se apresenta para proteger tais direitos, os quais
são vistos, ao contrário, como direitos concedidos para opor ao Estado
em defesa do cidadão. A cidadania liberal foi concebida, portanto, como
uma liberdade negativa. Neste sentido, para Mondaini:

a cidadania liberal foi um primeiro – e grande – passo para


romper com a figura do súdito que tinha apenas e tão so-
mente deveres a prestar. Porém, seus fundamentos universais
(‘todos são iguais perante a lei’) traziam em si a necessidade
histórica de um complemento fundamental: a inclusão dos
despossuídos e o tratamento dos ‘iguais com igualdade’ e dos
‘desiguais com desigualdade’. Para tal fim, por uma ‘liberda-
de positiva’, é que virá à tona nos séculos vindouros a luta
por igualdade política e social, tarefa árdua a ser conquistada

38 Ibid., p. 37
39 Id.
40 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Op. Cit., p. 95.
41 Ibid., p. 111.
Concepções de Cidadania e tensões contemporâneas entre o público e o privado: uma introdução à 203
temática

não mais pelos liberais, mas regularmente contra eles, pelas


forças democráticas e socialistas. Uma luta contínua que não
cessa até o tempo presente.42

Pelo seu caráter individualista, a cidadania, em sua concepção li-


beral, serviu para a implementação do domínio do mercado capitalista.
O cidadão foi forjado como o único agente responsável pelo seu pro-
gresso individual uma vez que era tido como livre e igual aos demais, ao
menos no plano formal. Tal discurso tornou-se hegemônico, universa-
lizando-se. No entanto, como destaca Andrade “a cidadania liberal não
pode ser dogmatizada como a única realização possível da cidadania” 43.
Uma concepção comunitarista da cidadania será evocada como
contraponto ao mal-estar gerado pelo declínio dos laços de solidarieda-
de entre os cidadãos, bem como da dificuldade de conceber um destino
único, dois dos grandes males da modernidade, na visão de Vieira, re-
forçados pela concepção liberal. A cidadania em sua dimensão comu-
nitária emerge, então, diferenciando-se daquela gestada no liberalismo
por apoiar-se em valores comunitários, uma vez que:

assumindo posição oposta ao liberalismo, o comunitarismo


prioriza a comunidade, sociedade ou nação, invocando a so-
lidariedade e o senso de um destino comum como pedra de
toque da coesão social. Na perspectiva comunitarista, a so-
ciedade sustenta-se pela ação e apoio dos grupos, contraria-
mente às decisões atomistas do indivíduo no âmbito liberal.
Seu principal objetivo consiste em construir uma comuni-
dade baseada em valores centrais, como identidade comum,
solidariedade, participação e integração44.

Na visão comunitarista os indivíduos são percebidos como


membros de unidades maiores que si mesmos, “dessa forma, os comu-
42 MONDAINI, Marco. O respeito aos direitos dos indivíduos. In.: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla
Bassanezi (orgs.). História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2003, p. 131.
43 ANDRADE, Op. Cit., p. 121.
44 VIEIRA, Liszt. Op. Cit., p. 39.
204 Fernanda Busanello Ferreira

nitaristas aceitam mais facilmente restrições às liberdades individuais


motivadas por valores socialmente compartilhados ou por precauções
paternalistas” 45. Ademais, a cidadania perde seu caráter apenas de per-
tencimento e adquire também um status de uma atividade prática. En-
quanto a comunidade política, numa acepção liberal, é instrumental aos
esforços individuais, para os comunitaristas, ela fundamenta uma iden-
tidade coletiva, limitada territorialmente. O direito deveria ser, nessa
perspectiva, a expressão da cultura do povo, exprimindo o ethos social
e, como pondera Sarmento:

o comunitarismo não deixa de reconhecer o pluralismo que


tem lugar no mundo contemporâneo. Pelo contrário, ele tam-
bém se baseia no pluralismo, mas não de visões individuais
acerca do bem, como no liberalismo, e sim de concepções
culturais adotadas por cada comunidade. A defesa do plu-
ralismo, para o comunitarismo, não importa na necessidade
de proteção da autonomia de cada indivíduo de fazer as suas
escolhas de vida no âmbito da sociedade em que vive, mas
sim no reconhecimento da legitimidade de que comunida-
des diferentes se organizem e pautem a sua vida comum de
formas diversas, de acordo com os seus respectivos valores e
tradições46.

Enquanto o liberalismo apresenta um homem abstrato e desen-


raizado, o comunitarismo o coloca no âmbito da intersubjetividade e
enraizamento social. Passou-se, contudo, da dimensão comunitarista,
que limitava a cidadania à comunidade, para a dimensão republicana de
cidadania, a qual criou uma identidade política coletiva, sendo um plus
a mais da versão anterior.
A cidadania em sua dimensão republicana se constituiu como
uma versão da cidadania liberal. Porém, aquela decorria da vontade ge-

45 SARMENTO, Daniel; NETO, Cláudio Pereira de Souza. Direito Constitucional: teoria, história
e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 248.
46 Id.
Concepções de Cidadania e tensões contemporâneas entre o público e o privado: uma introdução à 205
temática

ral, subordinando os interesses privados à ideia de bem comum, desen-


volvendo-se num plano muito mais coletivo do que individual.
Enquanto na dimensão liberal os indivíduos objetivavam a pros-
peridade individual, sendo livres para exercerem direitos - desde que
não violassem a lei ou interferissem na liberdade dos outros-, na visão
republicana, contudo, enfatizava-se mais a participação política, uma
vez que se atribui papel central à inserção do indivíduo na comunidade
política. E conforme Sarmento:

no modelo republicano, o cidadão está enraizado em uma


cultura pública que o estimula à participação ativa na vida
da comunidade. O cidadão, neste quadro, não tem apenas
direitos, mas também deveres em relação à sua comunidade
política. Dá-se ênfase às ‘virtudes republicanas’ dos cidadãos.
Deles se espera alguma orientação para o interesse público;
a atuação pautada não apenas nos interesses individuais de
cada um ou das suas facções, mas voltada também para o
bem comum (grifos do autor)47.

A dimensão republicana constituiu-se, portanto, numa cidadania


participativa, inserindo o indivíduo na comunidade política. Na con-
cepção republicana o ideário da liberdade, ainda que negativa, incluiu
a participação política e a virtude cívica no conceito alargando a con-
cepção anterior. “Enquanto o foco do comunitarismo está no respeito
às tradições e valores compartilhados, no republicanismo ele se desloca
para a participação na coisa pública” 48.
A concepção de que o poder pertence ao povo e o estímulo à
participação cidadã nas decisões e deliberações é característica central
da dimensão republicana de cidadania. E, como indica Sarmento “o
governo democrático, caracterizado pela participação popular perma-
nente na vida política, seria justamente o mais vocacionado para prote-
ger as liberdades básicas. Isso porque uma cidadania ativa mantém-se
47 Ibid., p. 254.
48 Ibid., p. 255.
206 Fernanda Busanello Ferreira

permanentemente vigilante”49, o que exige um novo tipo de cidadão,


mais atuante, mais informado, mais engajado, um cidadão que ainda se
está formando na contemporaneidade. Contudo, adverte Sarmento “em
nome do republicanismo, não se deve asfixiar o direito de cada pessoa
de eleger os seus próprios planos de vida e de viver de acordo com eles,
desde que não ofenda direitos alheios” 50. Ainda que voltado para o inte-
resse público e para o bem comum, o cidadão republicano não pode ser
desprovido de valores e interesses individuais.
Em suma, na dimensão liberal enfatizou-se o individualismo
dificultando a construção de uma solidariedade social. Por sua vez,
no comunitarismo, os laços étnicos e culturais limitaram a cidadania
à comunidade. Já a dimensão republicana, surgida do pacto social e
fundamentada na vontade geral, criou uma identidade política cole-
tiva, mas limitou a participação dos cidadãos à vontade da maioria,
ou seja, privilegiou o corpo político em detrimento da autonomia da
vontade individual. O que importa para esse texto é observar que to-
das essas dimensões, nas suas variadas facetas, são alicerces para se
pensar a possibilidade do nascimento de uma nova cidadania, o que
ainda está por vir.

4.1 As concepções de cidadania para o século XXI (devir cidadania


local/global)

As concepções de cidadania, como se tem demonstrado, vêm


se transformando em razão das mudanças históricas que provocam
na sociedade o desejo por novas demandas, acarretando a instauração
de novos valores sociais. Dessa forma também emergiu o século XXI,
apontando para o desenvolvimento de uma nova concepção de cida-
dania que abarcará as dimensões locais e globais, promovendo uma ar-
ticulação dos valores das localidades com aqueles universais. Pouco a
pouco, a visão da cidadania nacional que se consagrou historicamente

49 Id.
50 Ibid., p. 257.
Concepções de Cidadania e tensões contemporâneas entre o público e o privado: uma introdução à 207
temática

na modernidade vai se esgotando, na medida em que vai se consolidan-


do o devir cidadania global na pós-modernidade51.
Embora os direitos de cidadania exerçam-se tradicionalmente,
na modernidade, no interior de um Estado-Nação, a relação cidadão e
Estado vai enfraquecendo pela insurgência de três acontecimentos que
ganham destaque na contemporaneidade, quais sejam, “(a) os Direi-
tos Humanos Internacionais – os direitos do indivíduo não são mais
protegidos apenas pelo Estado-nação; (b) as migrações em massa, que
mudam a composição da população, que deixa de ser homogênea; (c) a
globalização - a informação e a comunicação não estão mais confinadas
às fronteiras nacionais” 52.
A sociedade se complexificou, na atualidade, vivenciando proble-
mas para além daqueles restritos aos Estados nacionais o que impulsio-
na a readequação dos institutos. Neste sentido, Vieira observa que “a
intensificação e a aceleração das interconexões globais e regionais em
curso geram consequências transformadoras na democracia política e
na cidadania democrática de base territorial” 53.
O Estado-nação como ente privilegiado na proteção dos cidadãos
começa a sofrer interferências internacionais, além das projetadas no
âmbito nacional. A soberania nacional perde força. “Um bom exemplo
é a União Europeia, onde existe a possibilidade de apelar ao Conselho
Europeu, por cima dos Estados” 54. Exemplos mais recentes são os siste-
mas regionais de proteção dos direitos humanos que se configuram com
órgãos supranacionais.
Além disso, “a globalização que vai se configurando a partir dos
princípios (ideais) neoliberais enseja a ruptura na relação cidadão-Esta-
do Nacional” 55, exigindo uma nova articulação de uma cidadania local
e global, simultaneamente. Isso enseja o surgimento de um novo cida-
dão, que pensa globalmente, sendo que:
51 PINSKY. Op. Cit., p. 12.
52 VIEIRA, Liszt. Op. Cit, p. 221.
53 Id.
54 Ibid., p. 221-222.
55 BERTASO, João Martins. Op. Cit., p. 169.
208 Fernanda Busanello Ferreira

a participação do cidadão na preservação da vida e dos re-


cursos para as gerações futuras, remete a uma espécie de
cidadania voltada para a defesa de todas as formas de vida,
ou seja, o gozo e o exercício dos direitos implicaria no dever
cívico de devolver o meio ambiente e a vida preservados às
gerações futuras. A cidadania partiria dos vínculos, não ne-
cessariamente com o Estado e com a Norma, mas com prin-
cípios (plurais culturais mínimos), que, embora partindo de
ações localizadas, conectar-se-iam com a defesa cívica de um
sistema de produção e com a preservação da vida em nível
planetário56.

A cidadania, então, dimensionar-se-ia também para se


realizar num plano global, vindo a exigir a democratização dos
espaços mundiais para o que contribuiu a universalização dos
direitos humanos. O conceito de cidadania na contemporanei-
dade:

trata de superar a concepção juridicista de cidadania, con-


cebida no âmbito do Estado Liberal de Direito, ou seja, de
uma ideia legalista e de exclusividade da cidadania. Tal idéia
dimensionou e ideologizou a construção das condições de
negação do outro, do estrangeiro, por (des)equiparação. E
justificou a seletiva participação na vida política do Estado,
desidratando o potencial político do cidadão, restringindo-o
a capacidade de votar e de ser votado. Assim, por essa via, o
Estado pode selecionar, na forma da lei, aqueles que pode-
riam exercer os direitos políticos e participar do exercício do
poder social instituído, dizendo diferente, daqueles que po-
deriam desfrutar dos benefícios da vida comunitária. Porém,
com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e, em
especial, com o advento dos novos direitos advindos funda-
mentalizados na Constituição Federal de 1988, não é mais
56 Ibid., p. 150.
Concepções de Cidadania e tensões contemporâneas entre o público e o privado: uma introdução à 209
temática

possível a sustentação de tal ideia de cidadania, reduzida a


dimensão juridiscista estatalista57.

Além da consolidação dos direitos humanos que ocorreu num


plano nacional e num plano global, para Vieira58, “a globalização eco-
nômica-financeira, social e cultural enfraquece de tal modo o Estado
que este não pode mais defender direitos e deixa de ser o lugar básico da
cidadania”. Todavia, destaca o autor, “não se pode esquecer que a cida-
dania enfatiza a idéia de igualdade contra a desigualdade econômica e
social. Nesse sentido, o padrão da cidadania é ainda o Estado-nação”59.
Muito embora haja uma tendência de transformação da cidadania na-
cional em razão de forças transnacionais, “abrindo caminho para a cria-
ção de uma sociedade civil emergente” 60, a exemplo dos movimentos
ecologistas, o conceito ainda não se transmutou por completo, sendo
um devir. A cidadania global, portanto:

repousa, assim, na noção de sustentabilidade, fundada na


solidariedade, na diversidade, na democracia e nos direitos
humanos, em escala planetária. Com raízes locais e consciên-
cia global, as organizações transnacionais da sociedade civil
emergem no cenário internacional como novos atores polí-
ticos, atuando, em nome do interesse público e da cidadania
mundial, no sentido de construir uma esfera pública transna-
cional fertilizada pelos valores da democracia cosmopolita61.

O devir cidadania global, assim concebido, deverá partir da


reconstrução do modo pelo qual se tem efetuado ações no plano
mundial. Os novos cidadãos, além de realizar a cidadania em ní-

57 BERTASO, João Martins. Os direitos humanos como política da cidadania. In. Direitos Cultu-
rais: revista do programa de pós-graduação em Direito. EDIURI: Santo Ângelo, v. 1, n. 1. (dez
2006), 2007, p. 11-26, p. 12.
58 VIEIRA, Liszt. Op. Cit., p. 222.
59 Id.
60 Id.
61 Ibid., p. 253.
210 Fernanda Busanello Ferreira

vel local, também teriam representatividade e responsabilidade na


esfera global. Tratam-se de novas “formas de participação e repre-
sentação em estruturas supranacionais e, simultaneamente, formas
mais ‘reduzidas em escala’, com incremento de poder em comuni-
dades locais” 62. O novo cidadão é um cidadão global e local. Nesta
linha de ideias, relevante, contudo, os questionamentos de Guari-
nello para quem:

a chamada globalização, bem como a crise da autonomia dos


Estados-nacionais, coloca-nos diante de problemas análogos
aos enfrentados pelas cidades-estado quando incorporadas
ao poder de um único e grande império. Como manter – e
essa é a questão essencial de nossos dias – a possibilidade
de ação coletiva num mundo em que as comunidades políti-
cas perdem, progressivamente, sua capacidade de ação e não
conseguem atender às demandas mínimas de seus concida-
dãos? Como manter comunidades políticas exclusivas num
mundo em que o capital se internacionalizou, mas não o
trabalho? Como construir, sem perder a capacidade de ação
coletiva, uma cidadania global? Será esta possível ou mesmo
desejável?63

Vista sob esse prisma a cidadania global tem potencial para


ser considerada um plus à cidadania local, acentuando a partici-
pação do cidadão num âmbito acima dos Estados nacionais. Para
tanto, o cidadão local deverá agir localmente, com respeito à esfera
global, inviabilizando-se desse modo todas as formas de atuação
que atentem contra o desrespeito aos direitos humanos, à ecologia
etc. Nascerá assim um novo cidadão para gerir a questão pública.
Mas, afinal, o que podemos nominar, contemporaneamente, como
sendo público?

62 Ibid., p. 260.
63 GUARINELLO, p. 46.
Concepções de Cidadania e tensões contemporâneas entre o público e o privado: uma introdução à 211
temática

5. A questão pública e privada: desafios contemporâneos

Como todo conceito contemporâneo o de devir-cidadania não


têm um significado nem conteúdo rígidos. Verifica-se que a cidadania
não se esgota mais no direito de voto e a outros direitos formais garan-
tidos por via externa - característica da cidadania tradicional, na qual o
Estado sempre foi o mediador por excelência de seu exercício. Por pro-
piciar a participação dos que antes estavam excluídos da vida política,
reconhecendo novos contextos, formas/possibilidades de participação
livres de quaisquer determinismos, podemos reconhecer que a nova ci-
dadania se trata de uma cidadania ampliada. De fato, a passagem da
sociedade antiga e moderna para a sociedade contemporânea auxiliou
na mutação do conceito de cidadania e acabou por exigir uma releitura
das questões públicas e privadas, em sua clássica dicotomia.
As expressões “público” e “esfera privada” contêm uma multipli-
cidade de significados, diferençando-se de acordo com as fases históri-
cas. Classicamente, o âmbito do que é público contrapõe-se ao privado.
De acordo com Habermas:

tratam-se de categorias de origem grega que nos foram trans-


mitidas em sua versão romana. Na cidade-estado grega de-
senvolvida, a esfera da pólis que é comum aos cidadãos livres
(koiné) é rigorosamente separada da esfera do oikos, que é
particular a cada indivíduo (idia). A vida pública, biospoli-
tikos, não é, no entanto, restrita a um local: o caráter público
constitui-se na conservação (lexis), que também pode assu-
mir a forma de conselho e de tribunal, bem como a de práxis
comunitária (práxis), seja na guerra, seja nos jogos guerrei-
ros64.

Na antiguidade grega, portanto, distinguia-se entre a polis e a oikia,


sendo que, “Aristóteles dizia que todo cidadão pertence a duas ordens de

64 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma cate-
goria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 15.
212 Fernanda Busanello Ferreira

existência, pois a polis dá a cada indivíduo, além de sua vida privada, uma
espécie de segunda vida, sua bios-politicós. Era a distinção entre a esfera
privada e a esfera pública” 65. Contudo, apenas alguns cidadãos eram tam-
bém cidadão políticos, a grande maioria era destituída de qualquer direito
de participação na vida pública, política. Trata-se, contudo, do nascimen-
to da distinção público e privada. A dimensão da casa era de índole pri-
vada, já a vida política era exercida no âmbito da Ágora, espaço público
por excelência. Foi nesse cenário que emergiu o também cidadão da an-
tiguidade grega em oposição aos não-cidadãos, os quais não possuíam o
direito de participar no espaço público, do qual foram alijados.
Convém frisar que a esfera política, pública, era considerada a
única esfera em que a liberdade se realizava de fato no mundo antigo
grego e segundo Hannah Arendt:

O desaparecimento do abismo que os antigos tinham que


transpor diariamente a fim de transcender a estreita esfera
da família e ‘ascender’ à esfera política é fenômeno essencial-
mente moderno. Esse abismo entre o privado e o público ain-
da existia de certa forma na Idade Média, embora houvesse
perdido muito da sua importância e mudado inteiramente
de localização. Já se disse com acerto que, após a queda do
Império Romano, foi a Igreja Católica que ofereceu ao ho-
mem um substituto para a cidadania antes outorgada exclusi-
vamente pelo governo municipal. A tensão medieval entre a
treva da vida diária e o grandioso esplendor de tudo o que era
sagrado, com a concomitante elevação secular para o plano
religioso, corresponde em muitos aspectos à ascensão do pri-
vado ao plano público da antiguidade. É claro que a diferença
é muito marcante; pois, por mais ‘mudana’ que se tornasse a
Igreja, o que mantinha coesa a comunidade de crentes era
essencialmente uma preocupação extraterrena66.

65 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão e domi-
nação. São Paulo: Atlas, 2003, p. 23.
66 ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2007, p. 43.
Concepções de Cidadania e tensões contemporâneas entre o público e o privado: uma introdução à 213
temática

Na sociedade feudal uma esfera pública separada da priva-


da, como setor próprio, não pode ser comprovada sociologicamente.
Arendt explica que, na verdade, um erro na interpretação da expressão
zoon logon ekhon - o homem é um animal político - traduzida como
“animal social”, bem como os textos de Tomás de Aquino que compa-
rou o chefe de família ao chefe do reino, levou à confusão entre as duas
esferas67. Na era medieval a confusão vigorou também porque tanto a
política quanto as relações familiares subordinavam-se ao divino e en-
quanto tais tornavam incompreensíveis a separação originária, grega,
entre a esfera privada e a pública. A liberdade como esfera da política e
do público não se manteve no período.
Para Habermas “a última configuração da representatividade
pública, ao mesmo tempo reunida e tornada mais nítida na corte dos
monarcas, já é uma espécie de reservado, em meio a uma sociedade que
ia se separando do Estado. Só então é que, num sentido especificamen-
te moderno, separam-se esfera pública e esfera privada” 68. A distinção
público/privado muito embora não faça parte do imaginário feudal, no
qual, contudo, se manteve a separação entre cidadãos e não-cidadãos,
diferenciando e estratificando as pessoas com base no instituto da pro-
priedade (divisão proprietários e não-proprietários), reemergiu e ga-
nhou novos contornos com a ascensão dos Estados Modernos.
Ao se dividir Estado e sociedade, já na modernidade, se separa,
de forma mais nítida que outrora, mais do que no mundo grego, a esfera
pública do setor privado. Como esclarece Ferraz Jr.:

a homogeneidade da esfera pública só pode ser garantida, en-


tão, como um conjunto – a sociedade – que se opõe a outro
conjunto de um só elemento – o indivíduo – que caracteriza-
rá a esfera privada. Como, porém, a esfera privada também
é social, a diferença entre ambas exigirá um elemento carac-
terizador novo, capaz de conformar o que é público e o que é
67 Ibid., p. 36.
68 HABERMAS, Jürgen. Op. Cit., p. 23.
214 Fernanda Busanello Ferreira

privado. Esse elemento novo é um artifício, um ente artificial,


como os produtos do trabalho, do fazer humano: o Estado69.

Pode-se dizer que a era moderna funda a dicotomia radical entre


o social e o individual, entre Estado e indivíduo. A generalização do so-
cial como noção comum à esfera do governo e da família permitirá uma
nova oposição que, pouco a pouco, caracteriza o público e o privado70.
Capella resume muito bem a questão:

as noções de ‘esfera pública’ e ‘esfera privada’ também for-


mam parte do vocabulário básico do mito político moder-
no. O conjunto das relações em que podem entrar as pessoas
se diferencia como segue: ou bem se trata de relações que
implicam unicamente aos indivíduos que entram nelas, e se
tratará então de relações privadas, ou mais propriamente de
‘relações da esfera privada’, ou bem se trata de relações que
implicam ao conjunto da coletividade, e se tratará neste caso
de relações políticas ou da ‘esfera pública’. Toda relação social
há de encaixar em um destes âmbitos (ou esferas) e somente
em um. As duas esferas se acham estritamente separadas. O
poder político, ou a ‘esfera pública’, não deve interferir em
nenhum âmbito concreto ou particular definido como priva-
do: unicamente pode determinar o marco geral das relações
privadas, sua ‘ordem pública’, por dizê-lo assim. E analoga-
mente, o privado ou particular se mostra como extrapolítico,
como irrelevante para o âmbito do público (grifo do autor)71.

A vida política das sociedades modernas é marcada pela clara e


radical separação dos domínios público e privado e pela clara conexão
entre cidadania e Estado. No período, criaram-se instituições da demo-
cracia representativa (e seus fundamentos de legalidade e legitimidade),

69 FERRAZ JR., Tércio. Op. Cit., p. 133.


70 Id.
71 CAPELLA, Juan Ramón. Fruto Proibido: uma aproximação histórico-teórica ao estudo do
direito e do estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 108.
Concepções de Cidadania e tensões contemporâneas entre o público e o privado: uma introdução à 215
temática

limitando o exercício do poder no domínio público. O privado, por sua


vez, não foi sujeito a esses estrangulamentos, mantendo-se distanciado
do público, como extrapolítico. Contudo, como sinalizou Arendt “no
mundo moderno, as duas esferas constantemente recaem uma sobre a
outra, como ondas no perene fluir do processo da vida” 72.
A contemporaneidade, por sua vez, novamente assistiu à trans-
mutação dos conceitos de público e privado a partir das chamadas “pu-
blicização do espaço privado” e “privatização do espaço público”. Como
explica Bobbio, a publicização do espaço privado “reflete o processo de
subordinação dos interesses do privado aos interesses da coletividade
representada pelo Estado que invade e engloba progressivamente a so-
ciedade civil” 73; já a privatização do espaço público “representa a revan-
che dos interesses privados através da formação dos grandes grupos que
se servem dos aparatos públicos para o alcance dos próprios objetivos”
74
. Dupas, discordando da afirmação anterior, afirma que “privatizou-se
o Estado e não se publicizou o privado” 75, referindo ainda que a abertu-
ra democrática perpassa “a reconstrução de um espaço público e a vol-
ta do debate político” 76. É nesse espaço, de necessária reconstrução do
espaço público como debate político, que o novo cidadão se constituirá
como cidadão global e local, num devir cidadania.
Tem-se, então, que o público e o privado, em sua distinção clássi-
ca, perderam o sentido diante da sociedade contemporânea, que requer
uma cidadania ampliada, exigindo uma visão cosmopolita do mundo,
no qual o que se passa na esfera íntima também merece ser problemati-
zado e reivindicado na esfera pública, especialmente para incrementar
as proteções à pessoa em sua dignidade humana e garantir a proteção
dos direitos humanos.

72 ARENDT, Hannah. Op. Cit., p. 42/43.


73 BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade: para uma teoria geral da política. Trad. Mar-
co Aurélio Nogueira. 6 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 27
74 Id.
75 DUPAS, Gilberto. Tensões contemporâneas entre o público e o privado. São Paulo: Paz e Terra,
2003, p. 80.
76 Ibid., p. 90-91.
216 Fernanda Busanello Ferreira

Otimistamente, Baumann acredita que há uma genuína opor-


tunidade emancipadora na contemporaneidade, “a oportunidade de
depor as armas, suspender as escaramuças de fronteiras empreendidas
para manter o estranho afastado, desmontar o minimuro de Berlim ere-
gido diariamente e destinado a manter distância, separar” 77. Da mesma
forma Giddens pontua que:

o século XXI será o campo de batalha em que o funda-


mentalismo se vai defrontar com a tolerância cosmopo-
lita. Num mundo em processo de globalização, em que a
transmissão de imagens através de todo o globo se tornou
rotineira, estamos todos em contato regular com outros
que pensam de maneira diferente, que vivem de maneira
diferente. Os cosmopolitas louvam e adotam esta com-
plexidade cultural. Os fundamentalistas consideram-na
perturbadora e perigosa. Quer se trate se religião, de iden-
tidade étnica ou de nacionalismo, refugiam-se numa tra-
dição renovada e purificada, e quantas vezes, também na
violência78.

O mundo é hoje, sem dúvidas, muito mais interdependente do


que era há um século e a natureza da sociedade mundial também não é
a mesma. Contudo, como toda medalha tem um reverso, os problemas
que prevaleceram e que se tem hoje de enfrentar – como os riscos eco-
lógicos globais e as ameaças terroristas– são agora muito mais graves; a
questão agora é, consoante Giddens: “como fomentar a democracia para
além do nível do Estado-nação?” 79. Esta é uma questão muito difícil de
responder do ponto de vista jurídico, pois como alude Santos “o direito
territorial ou o direito estatal é o direito do espaço da cidadania e, nas
77 BAUMAN, Zigmunt. O mal-estar na pós-modernidade. Trad. Mauro Gama etalli. Rio de ja-
neiro: Zahar, 1998, p. 46. OBS: Bauman não é um otismista, mas pareceu-nos otimista sua
afirmação.
78 GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Editora UNESP, 1991, p.
18.
79 GIDDENS, Anthony. O mundo na era da globalização. 3. ed. Lisboa: Editorial Presença, 2001,
p. 78.
Concepções de Cidadania e tensões contemporâneas entre o público e o privado: uma introdução à 217
temática

sociedades modernas, é o direito central na maioria das constelações de


ordens jurídicas” 80 (grifo do autor).
Diversos atores defendem os movimentos sociais como forma de
ataque, de uma nova política, neste novo tipo de sociedade. É neste sen-
tido também que Santos coloca a necessidade de uma “articulação entre
democracia representativa e democracia participativa” 81. Isto porque
os contornos de atuação dos campos e os papéis específicos do público
(Estado) e do privado (sociedade, cidadão) diluem-se numa efetiva de-
mocracia. Contudo:

a dicotomia estabelecida entre democracia representativa e a


participação está presente no debate do poder local. Ora de-
precia-se a validade dos mecanismos de representação e dei-
xa-se de lado qualquer possibilidade de revisá-los ou aper-
feiçoá-los, ora supervaloriza-se a participação dos diversos
grupos sociais, inclusive a direita, sem espaços de articulação
e mediação dos interesses envolvidos, levando ao paralelismo
de ações e ao corporativismo. Não se percebem os mecanis-
mos de participação como instrumentos de aprofundamento
e controle da representação 82.

A democracia aparece, assim, como um possível encaminha-


mento plural e consensual aos conflitos contemporâneos entre público
e privado, estabelecendo o diálogo entres os dois campos, mas ainda
pensada no âmbito dos Estados. Cabe lembrar, porém, que a expansão
da democracia está interligada com as mudanças estruturais da socie-
dade mundial. Além disso, nada se consegue sem luta. Parece-nos que
a melhoria da democracia em todos os níveis é um combate que vale a
pena travar, pois pode ser bem sucedido.

80 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na
transição paradigmática. São Paulo: Cortez, 2002, p. 299.
81 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade.
São Paulo: Cortez, 1997, p. 271.
82 TEIXEIRA, Elenaldo. O local e o global: limites e desafios da participação cidadã. São Paulo:
Cortez, 2001, p. 52.
218 Fernanda Busanello Ferreira

Por fim, o que está dito nas entrelinhas deste texto: o desafio ao
direito é enorme diante da nova sociedade e do devir-cidadania global,
sobretudo porque o direito contemporâneo ainda patina sob os pressu-
postos do Estado-Nacional. Ainda se estuda e aplica a extradição, ainda
se vota apenas nas fronteiras políticas, ainda depende-se das decisões
tomadas pelos governantes e as Constituições seguem legitimando a ex-
clusão “dos estranhos”.
Embora, de uma forma geral, os governados não têm vez nem voz
nos processos decisórios, diante da ameaça global devem dar as mãos
e reivindicar a abertura de espaços para que participem das decisões,
atuando assim na construção do futuro, escolhendo conjuntamente os
valores que desejam preservar e os riscos que querem correr. Estes são
os prováveis encaminhamentos das tensões entre o público e privado
na sociedade contemporânea, em que o cidadão deverá cada vez mais
participar das microquestões e ao Estado caberá deslocar sua soberania
para dialogar numa lógica transnacional.

6. Considerações Finais

Em relação à cidadania, na antiguidade, encontram-se três mo-


mentos que merecem referência: a cidadania grega, a cidadania roma-
na e a cidadania medieval. Na Grécia, consideravam-se cidadãos um
número reduzido de indivíduos que constituíam a polis, assim poucos
privilegiados tinham capacidade para exercer direitos. Em Roma, a si-
tuação não foi muito diferente, todavia, para ampliar o Império, con-
cedeu-se cidadania romana a um número maior de indivíduos. Houve
ainda muitos excluídos dos privilégios dos cidadãos. Na era medieval, a
cidadania continuou servindo como meio de dominação social, conce-
dendo direitos a poucos indivíduos, submetendo o restante ao sistema
de vassalagem. Na modernidade, momento em que teve início o proces-
so de incorporação de direitos humanos, as lutas sociais culminaram na
consagração do sujeito de direitos, estendendo-se a dimensão da cida-
dania a um aspecto nacionalista.
Concepções de Cidadania e tensões contemporâneas entre o público e o privado: uma introdução à 219
temática

A partir da Revolução Francesa, momento em que nasceu o Esta-


do Moderno, a ideia de cidadania começou a ampliar-se, encontrando
respaldo para sua realização nos limites territoriais do Estado a partir de
um rol de direitos fundamentais.
Das principais dimensões de cidadania, a dimensão liberal con-
tribuiu para fortalecer as liberdades individuais, já a dimensão republi-
cana assegurou a participação popular e o incremento da democracia,
através dos debates públicos das questões sociais ou coletivas. Ambas
as concepções, cada qual a seu modo, deixaram marcadas na cidadania
tanto a dimensão jurídica das garantias individuais quanto aquelas po-
líticas de cunho popular e coletivo, dando a este instituto o patamar de
qualidade que possui.
Na contemporaneidade ocorre uma transformação da questão
pública e privada, gerando uma crise nesta dicotomia. A diferen-
ciação moderna perde o sentido. O espaço público como lugar do
político e o espaço privado como lugar do apolítico perdem essa co-
notação.
Neste contexto, percebe-se que a cidadania, limitada ao ter-
ritório nacional, vem perdendo força com o advento de poderes su-
pranacionais, como é o caso dos blocos de Estados e dos sistemas de
proteção de direitos humanos que vão se constituindo e criando novos
espaços para os cidadãos exercerem seus direitos, ou seja, os novos
poderes supranacionais, como no caso da União Europeia, instituíram
um novo status de cidadania distinto do status de cidadão nacional,
dando a este instituto um novo impulso quanto às liberdades coletivas.
Por isso, a cidadania encontra no século XXI uma tendência a dimen-
sionar-se num plano global, vindo a contribuir para a universalização
dos direitos humanos, articulando a cidadania local com uma cidada-
nia global ou cosmopolita.
220 Fernanda Busanello Ferreira

7. Referências

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223

A CIDADANIA NA AMÉRICA LATINA:


UM OLHAR PARA AS NOVAS PRÁTICAS
EMANCIPATÓRIAS1

Raquel Fabiana Lopes Sparemberger2


Liziane Bainy Velasco3

INTRODUÇÃO

Este texto4 trata da cidadania na América Latina num contexto de


mudanças. Nesse sentido, em um primeiro momento aborda a Cidada-
nia no contexto da América Latina, levando-se em consideração a sua
formação ao longo da história; após expõe as novas tendências de cida-
dania a partir do estudo comparado entre as Constituições brasileira,
boliviana e equatoriana, discorrendo também sobre as suas identidades
1 Texto publicado originariamente na Revista Juris da Faculdade de Direito da FURG, v. 6, 2016.
2 Pós-Doutora em Direito pela UFSC, Doutora em Direito pela UFPR, professora adjunta do
Programa de Mestrado em Direito e do Curso de Graduação da Faculdade de Direito da Uni-
versidade Federal do Rio Grande-FURG. Professora do Mestrado em Direito da Fundação
Escola Superior do Ministério Público- FMP. Professora visitante na FURB-Blumenau. Coor-
denadora do Grupo de Pesquisa sobre o Constitucionalismo latino-americano e decoloniali-
dade da FURG e do IMIgracidadania da Furg. Professora Pesquisadora do CNPq e FAPERGS.
Email: fabiana7778@hotmail.com.
3 Mestranda em Direito e Justiça Social pela FURB. Foi bolsista de Ensino, Pesquisa, Extensão e
Monitoria da FURG.
4 O presente artigo tem por objetivo a exposição dos dados parciais obtidos através de uma
pesquisa bibliográfica durante a efetividade de bolsas de ensino, pesquisa, extensão e monito-
ria disponibilizadas pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Através dessa, foram
buscados dados a partir de um estudo comparado entre as Constituições do Brasil, da Bolívia
e do Equador, levando em consideração o contexto histórico e socioeconômico da América
Latina.
224 Raquel Fabiana Lopes Sparemberger, Liziane Bainy Velasco

e de como são garantidos e aplicados os Direitos Humanos nesses paí-


ses. Logo se apresentará experiências e desafios para concretizar o novo
constitucionalismo, de modo a incluir aquele considerado subalterniza-
do. Por fim, apresenta algumas considerações finais sobre tal temática.

1. A CIDADANIA NA AMÉRICA-LATINA: CONCEITO E HISTÓ-


RIA

Para que se possa compreender a cidadania na América Latina,


bem como a garantia e a aplicação dos Direitos Humanos, necessário é
discorrer sobre o caráter moderno/colonial do constitucionalismo, cujo
prega um discurso de civilização e progresso, ao mesmo tempo em que
encobre a lógica colonial de sujeição e exploração. É essa retórica que
estrutura o direito e o constitucionalismo contemporâneo em formato
de uma pirâmide jurídica, de modo que a Constituição está no topo. A
sua validade não parece ser oriunda do povo, pois a sua legitimidade
está na sua mera normatividade jurídica, na sua autonomia.
Esse conceito de constitucionalismo, que utiliza a lógica colonia-
lista, exploradora e genocida, será desconstruído nesse artigo para que
se possa sustentar o “novo” constitucionalismo latino-americano que
tem como base os processos de mobilização social e a inclusão daquele
sujeito que era considerado subalternizado. Através da descolonialida-
de, se tentará ressignificar a ideia de constituição, ou melhor, de um
“novo” constitucionalismo que não fará uso de categorias “universais”.
Pelas razões expostas, serão analisadas as Cartas da Bolívia e do Equa-
dor.
Para chegarmos ao ponto de observação da cidadania na América
Latina, é necessário voltar no tempo, para analisar brevemente a origem
do conceito de cidadania, por mais que esse não seja o objetivo deste
estudo, que vem da antiga Grécia. Os gregos compreendiam a cidadania
como uma forma de diferenciar os que faziam parte da sua população,
de modo que os que eram cidadãos podiam participavam da sociedade
com todos os recursos que eram permitidos, como a participação na
A Cidadania na América Latina: um olhar para as novas práticas emancipatórias 225

vida política. Já os que não eram cidadãos faziam parte de uma maioria,
composta por estrangeiros, escravos e povos submetidos. Iremos neste
artigo dar a devida atenção para o conceito moderno de cidadania. Ao
pretendermos conceituar a cidadania, devemos destacar uma particula-
ridade que o termo possui. Por ser ligado aos direitos que foram alcan-
çados pela luta da classe burguesa, que será tratado a seguir, o termo se
encontra em conjunto com os direitos humanos, políticos e civis.
A cidadania moderna nasce com a burguesia, que como a nova
classe emergente da época, composta por comerciantes, não se viam fa-
vorecidos com o sistema feudal e tinham em mente um novo projeto so-
cial a favor de acabar com um sistema servil e desigual que o feudalismo
exercia. Conforme Darcísio Côrrea5, “o Projeto de cidadania burguesa
do século XVIII surge sob a forma de direitos civis”, portanto, esse pro-
jeto acaba se vinculando à noção dos direitos humanos, principalmente
à questão da liberdade do comércio e do trabalho e também de uma
“igualdade humana básica da participação na sociedade, concretizada
através da aquisição de direitos”6. Assim começa a se notar a incompati-
bilidade do sistema feudal com a nova proposta burguesa no momento
em que os direitos do cidadão começam a ser expostos e assim rejeitan-
do a situação do sistema feudal existente.
Com o fim do sistema feudal, e assim, com a aquisição da cidada-
nia e dos direitos civis por toda a parte integrante de uma comunidade,
podia perceber uma nova desigualdade nascendo, a desigualdade do
sistema capitalista, que agora causava uma disparidade econômica entre
os homens. Marshall esclarece que apesar do sistema capitalista causar
uma disparidade econômica entre os membros de uma sociedade, a ci-
dadania e seu conjunto de direitos que carregava foi capaz de manter o
sistema capitalista, de uma forma que:

Davam a cada homem, como parte de seu status individual,


o poder de participar, como uma unidade independente, na
5 CÔRREA, Darcísio. A construção da cidadania: reflexões histórico-políticas. Ijuí, RS: Editora
UNIJUÍ, 1999, p. 211.
6 Ibid., p. 212.
226 Raquel Fabiana Lopes Sparemberger, Liziane Bainy Velasco

concorrência econômica, e tornaram possível negar-lhes a


proteção social como base na suposição de que o homem es-
tava capacitado a proteger a sim mesmo7.

O desenvolvimento da cidadania moderna foi de grande impor-


tância para os anos seguintes na questão de mais direitos para a socie-
dade. Direitos civis, políticos e econômico-sociais são os exemplos das
conquistas da sociedade na época. Darcísio Corrêa ainda destaca os di-
reitos políticos dá seguinte forma:

Se a cidadania civil universalizou os direitos de liberdade in-


dividual – direitos civis -, os direitos políticos, surgidos no
início do século XIX, inauguraram uma caminhada para um
status geral de cidadania política no sentido de estender ve-
lhos direitos a novos setores da população (direito de voto),
antes privilégio de uma classe economicamente forte8.

Após uma breve abordagem da origem da cidadania moderna,


que teve como local de nascimento a Europa, podemos partir para
a análise da cidadania na América Latina, sob a consciência de um
forte colonialismo e eurocentrismo que tomou os países latino-ame-
ricanos, é necessário observar como nessa época se teve uma quebra
da cultura local e a criação de uma tendência ao longo dos anos des-
ses países em introduzir em suas sociedades os modelos vindos do
velho continente.
A luz desta visão eurocêntrica em que os povos latino-america-
nos estavam passando, Flávia Soares Unneberg cita pontualmente:

Neste prisma, costumeira era a tendência de os países latino


-americanos “importarem” para suas Constituições previsões
legislativas de países europeus desenvolvidos, olvidando-se
das peculiaridades de que se revestem as realidades locais la-

7 MARSHALL, apud CORRÊA. Op. Cit., p. 213.


8 Ibid., p. 214.
A Cidadania na América Latina: um olhar para as novas práticas emancipatórias 227

tino-americanas, o que reforçava assimetrias entre os anseios


populares e a Carta Constitucional9.

Por ignorar as antigas experiências dos povos que ali já haviam


formado uma civilização, como os astecas, incas e maias, a cidadania na
América-Latina ficou vulnerável, na medida em que não se conseguia
obter os mesmos resultados que os direitos assim trazidos da Europa
e incorporados nas respectivas constituições. Antes de se incorporar o
modelo europeu nos países latino-americanos, a cidadania evoluía de
forma díspar, um exemplo é o caso da Colômbia, como cita Pochmann,
que teve a substituição no modo de produção, de economia de subsis-
tência para o sistema privatista-individual europeu10.
No século XVI, os colonizadores espanhóis implantaram o siste-
ma socioeconômico da encomienda, em que consistia na submissão dos
povos indígenas perante os colonos por meio da realização do trabalho
escravo.
O regime de escravidão foi mantido com o avançar da sociedade
colonial, assim, a mão de obra indígena cedeu lugar à dos negros captu-
rados na África. Mártin-Barbero concluiu que “a abolição da escravatu-
ra desencadeou a formação de classes sociais, com uma ampla migração
das zonas rurais para os novos centros urbanos na América Latina” 11.
Fleury12 alerta para a realidade latino-americana: a predominân-
cia da esfera política sobre a economia. Ou seja, a organização social foi
moldada pela prevalência dos interesses políticos das oligarquias, e não
pela circulação de bens e serviços.

9 UNNEBERG, Flávia Soares. Constitucionalismo Latino-Americano: tendências contemporâ-


neas. In: WOLKMER, Antônio Carlos; MELO, Milena Petters (Coord.). Editora Juruá, 2013,
p. 125.
10 POCHMANN, Marcio. Verbete riqueza e concentração de renda. In: SADER, Emir; JINK-
INGS, Ivana (Coord.). Enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe. São Paulo:
Boitempo, 2006, p. 1057.
11 MARTÍN-BARBERO, Jésus. Projetos de modernidade na América Latina. In: DOMINGUES,
José Maurício; MANEIRO, María (Org.). América Latina hoje: conceitos e interpretações. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 29.
12 FLEURY, Sônia. Estado sem cidadãos: seguridade social na América Latina. Rio de Janeiro: Ed.
Da Fiocruz, 1994, p. 135.
228 Raquel Fabiana Lopes Sparemberger, Liziane Bainy Velasco

A partir da metade do século XIX, em virtude da entrada do li-


beralismo econômico na América Latina, formou-se um modelo censi-
tário e restrito de cidadania política. De acordo com Wasserman, “dife-
rentemente do europeu, foi moldado por Estados de perfil autoritário,
comandados por oligarquias, cuja permanência no poder prevalecia em
detrimento da integração e participação dos demais grupos sociais, ali-
jados do processo político”13.
Com a ideia de sair desse modelo implantado pelo europeu, e que
causou grande interferência no modo político-social, trataremos no ca-
pítulo seguinte sobre a busca do passado Latino-Americano, a procura
da verdadeira identidade que foi totalmente ignorada pelo Europeu, e
que é um novo marco para a América-Latina, pois é visto como forma
de romper com um sistema que perdurou por séculos e não conseguiu
sustentar todas as demandas dos países do Novo Mundo.

2. “NOVA” CIDADANIA E O CONSTITUCIONALISMO LATINO


-AMERICANO

Dentre os séculos XVIII e XIX, surgem as primeiras constituições


modernas, em forma de documentos escritos, aprovados mediante um
procedimento solene e formal. Nesse momento, constitui-se um novo
modelo de estado, o estado-nação, que surge como contraposição ao
estado absolutista.
Com o decorrer do tempo, o constitucionalismo ocidental ga-
nhou status de universalidade epistêmica, que diz respeito à pretensão
dos cientistas e filósofos iluministas em considerarem-se sujeitos deten-
tores de uma racionalidade universal, produzindo discursos constitu-
cionais dados como verdadeiros que deveriam ser acatados por todas as
culturas e por todos os povos.
É justamente sob essa argumentação, de impor o que é melhor
para todos para que seja alcançada a realização plena da humanidade,

13 WASSERMAN, Cláudia. História Contemporânea da América Latina (1900-1930). 2. Ed. Porto


Alegre: Ed. Da UFRGS, 2004, p. 71.
A Cidadania na América Latina: um olhar para as novas práticas emancipatórias 229

que o constitucionalismo assume o seu caráter moderno/colonial oriun-


do da subalternização de tudo aquilo que não se enquadrava como sen-
do um modelo universal de constituição. No que tange à Colonialidade,
trata-se de uma lógica de dominação, exploração e controle do conhe-
cimento, frutos de uma racionalidade universal que justifica o tráfico de
escravos, a exploração dos indígenas e de suas terras.
Para romper com esse constitucionalismo tem-se um “novo”
constitucionalismo caracterizado pela presença de sujeitos e de sabe-
res entendidos como subalternizados pela universalidade epistêmica. O
“novo” constitucionalismo latino-americano tenta ressignificar a ideia
de constituição, assim viabilizando a descolonialidade constitucional.
Trata-se de uma constituição horizontal, que, de acordo com Spa-
remberger14 se diferencia do modelo de constitucionalismo moderno/
colonial por cinco motivos:

1. O “novo” constitucionalismo origina-se em lugares historica-


mente subalternizados, isto é, de lugares considerados infe-
riores se analisados pela lógica colonial do conhecimento, que
demonstram novas formas de compreender o mundo;
2. O texto constitucional é a expressão da voz das pessoas, dos
povos, da mobilização social, estando de acordo com a reali-
dade de quem faz parte daquela história e daquela cultura;
3. O “novo” constitucionalismo latino-americano não pretende
ser o único modelo para todos os povos do planeta, bem como
não visa construir-se separado do tempo e do espaço;
4. Esse “novo” constitucionalismo pretende recriar o Estado por
meio da construção de estados plurinacionais em que a socie-
dade civil participa da política, de modo a ter a liberdade para
expressar-se e para tomar decisões sobre questões importan-
tes para o seu Estado;

14 LOPES SPAREMBERGER, Raquel; KYRILLOS, Gabriela. Desafios coloniais e interculturais:


o conhecimento jurídico colonial e o subalterno silenciado. Contribuciones a lasCienciasSo-
ciales, Junio 2013. Disponível em: <http://www.eumed.net/rev/cccss/24/colonialidade.html>.
Acesso em: Outubro de 2013, p.16-17.
230 Raquel Fabiana Lopes Sparemberger, Liziane Bainy Velasco

5. O “novo” constitucionalismo latino-americano incorpora di-


versas epistemologias que ao longo dos anos foram silenciadas
e marginalizadas pelo constitucionalismo tradicional.

Enzo Bello, em sua obra A cidadania no constitucionalismo latino


-americano disserta sobre o novo constitucionalismo,

Esse é caracterizado por um processo de produção norma-


tiva oriundo da participação popular ativa, formando uma
série de novos mecanismos e espaços de deliberação que en-
volvem a sociedade civil. Tem-se um rol inusitado de direitos
fundamentais que, ao menos formalmente, contempla mino-
rias sociais, notadamente os grupos étnicos tradicionalmen-
te afastados do processo político e excluídos do sistema de
direitos quanto às suas demandas específicas15.

Essa participação popular ativa pode ser percebida nas consti-


tuintes de Bolívia (2006-2009) e na do Equador (2007-2008) que re-
sultaram a partir de processos de mobilização social e da instalação de
novos governos apoiados pelas maiorias populares.
É característica do “novo” constitucionalismo jurídico o reco-
nhecimento do pluralismo jurídico comunitário-participativo, além de
adequar o sistema judicial estatal na mesma hierarquia, respeitando a
jurisdição indígena. Isso é perceptível nos seguintes artigos:

Art. 179, I: La potestad de impartir justicia emana del Pue-


blo boliviano y se sustenta en los principios de independe-
cia, imparcialidad, seguridad jurídica, publicidad, probidad,
celebridad, gratuidad, pluralismo jurídico, interculturalidad,
equidad, servicio a la sociedad, participación ciudadana, ar-
monía social y respeto a losderechos. (Constituição da Bolí-
via, 2009)

15 Enzo Bello. Op. Cit., p. 27.


A Cidadania na América Latina: um olhar para as novas práticas emancipatórias 231

Art. 57. Se reconoce y garantizará a las comunas, comuni-


dades, pueblos y nacionalidades indígenas, de conformidade
con la Constitución y con los pactos, convenios, declaracio-
nes y demás instrumentos internacionales de derechos huma-
nos, los siguientes derechos colectivos: 10. Crear, desarrollar,
aplicar y practicar su derecho propio o consuetudinario, que
no podrá vulnerar derechos constitucionales, em particular
de las mujeres, niñas, niños y adolescentes. (Constituição do
Equador, 2008)

Percebe-se tanto na Constituição do Equador, quanto na Carta da


Bolívia uma busca pela transformação do constitucionalismo latino-a-
mericano que é, conforme Almeida,

fruto da reivindicação dos Outros por sua soberania e no-


vas formas de participação democráticas que os descubram,
a análise dos novos textos constitucionais deveria então re-
velar as mudanças – ou desejos de mudanças – substanciais
para o direito latino-americano, sobretudo porque é pensada
como a forma política que sintetizaria as aspirações da socie-
dade real - não a imaginada como associação de indivíduos
abstratos16.

A Constituição equatoriana é marcada pela democracia, pela in-


terculturalidade e pelo plurinacionalismo. É uma República que tem um
governo descentralizado para que a soberania emanada do povo possa
ser exercida pelos órgãos do poder público, bem como através das for-
mas de participação direta, também previstas nessa Carta.
No seu art. 6, a Constituição do Equador (2008) prevê que:

Todas lasecuatorianas y losecuatorianossonciudadanos y


gozarán de losderechos estabelecidos enlaConstitución. La

16 ALMEIDA, Marina Côrrea de. O novo constitucionalismo na América Latina: o descobrimen-


to do Outro pela via do Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo. Florianópolis, SC.
2013. Tese (Mestrado) – UFSC, Florianópolis, 2013, p. 89.
232 Raquel Fabiana Lopes Sparemberger, Liziane Bainy Velasco

nacionalidade ecuatorianaesel vínculo jurídico político de


las personas com el Estado, sinperjuicio de supertenencia a
alguna de las nacionalidades indígenas que coexistenenelE-
cuador plurinacional.

A nacionalidade equatoriana e, por consequência a cidadania, é


obtida mediante o nascimento ou por naturalização, não a perdendo
através do matrimônio ou divórcio, nem pela aquisição de outra na-
cionalidade. E ainda conforme a Carta do Equador, no seu art. 9: “Las
personas extranjeras que se encuentrem em elterritório ecuatorianoten-
dránlosmismosderechos y deberes que lasecuatorianas, de acuerdo com
laConstitución”.
Percebe-se mediante análise do texto constitucional equatoria-
no que esse se legitima pelo povo, sendo fruto de uma mobilização na-
cional e de uma consequente conquista de direitos de caráter coletivo,
principalmente os de relação à origem indígena e ao meio ambiente,
segundo o art. 85 da Constituição do Equador: “en la formulación, eje-
cución, evaluación y control de las políticas públicas y servicios públicos
se garantizará la participación de las personas, comunidade, pueblos y
nacionalidades”. Ressalta-se também o fato de a natureza ser considera-
da sujeito de direitos, devendo assim ser bem tratada e cuidada.
Dentre os direitos de “bem viver” (sumakkawsay) estão: os direi-
tos à água e à alimentação (arts. 12 e 13); ao meio ambiente (arts. 14 e
15); à educação (arts. 26 a 29); à habitação e “vivenda” (arts. 30 e 31) e à
saúde (art. 32), de modo a adotar uma espécie de cláusula para preser-
var os direitos das minorias sociais, denominada mientras tanto.
Inevitável é falar da colaboração do movimento indígena para o
reconhecimento dos povos indígenas como nações e pelo estabeleci-
mento de um estado plurinacional, com o intuito de garantir o autogo-
verno, a autonomia e a diversidade cultural. Por mais que a Constitui-
ção Equatoriana reconheça o Estado como pluricultural e multiétnico,
fala-se em carência de regulamentação legislativa e de falta de efe-
tividade no plano concreto no que tange, principalmente, a eficácia
A Cidadania na América Latina: um olhar para as novas práticas emancipatórias 233

da justiça indígena, que ainda não foi implementada pelo legislador


infraconstitucional. Assim como na Bolívia, o povo equatoriano ele-
geu em 2006 um presidente que participou de um movimento social
(Patria Altiva y Soberana – Alianza PAIS), tendo expressivo apoio dos
povos indígenas. Rafael Correa prometeu em sua posse realizar uma
“revolução cidadã”.
A Constituição Equatoriana de 2008 foi submetida à consulta
popular, sendo aprovada em referendo constitucional em 20/09/2008 e
entrando em vigor em 20/10 do mesmo ano, propondo uma nova forma
de convivência cidadã, baseada no princípio do bem-viver (sumakkaw-
say).
Já na Constituição Boliviana (2009), no seu art. 142, entende-se
que: “I. La ciudadanía boliviana implica el reconocimiento de los de-
rechos y los deberes estabelecidos en la Constitución, y enel resto del
ordenamento jurídico. II. La ciudadania boliviana se adquiere por naci-
miento o por naturalización”.
Na Bolívia, o processo constituinte e de democratização fui im-
pulsionado, a partir de 1999, pelo Movimientoal Socialismo (MAS),
constituído por militantes dos movimentos de mineiros e cocaleros. Essa
mobilização social expressava a necessidade de uma mudança que veio
a concretizar-se em 2005 com a eleição de um presidente da República
de etnia indígena, chamado Evo Morales, um ex-líder cocalero. Confor-
me Enzo Bello,

na mesma linha de Chávez, o intento inicial de Morales à


frente da presidência foi promover um movimento de ‘refun-
dação da República’, o que ensejou a elaboração de uma nova
Constituição em 2007, aprovada diretamente pelo povo, em
2009, mediante referendo17.

A Constituição Boliviana de 2009, então, institui um Estado Uni-


tário Social de Direito Plurinacional Comunitário, centrando o seu plu-

17 BELLO, Enzo. Op. Cit., p. 107.


234 Raquel Fabiana Lopes Sparemberger, Liziane Bainy Velasco

ralismo no reconhecimento da autonomia dos “povos indígenas origi-


nários”, de acordo com o art. 1 e o art. 290 da citada Carta:

Art. 1. Bolivia se constituyeenun Estado Unitario Social de


Derecho Plurinacional Comunitatio, libre, independiente,
soberano, democrático, intercultural, descentralizado y com
autonomías. Bolivia se funda enla pluralidade y el pluralismo
político, económico, jurídico, cultural u linguístico, dentro
delproceso integrador del país.

Art. 290. La autonomía indígena originaria campesina es-


laexpresióndelautogobierno como ejercicio de laautodeter-
minación de lasnaciones y lospueblos indígena originários, y
las comunidades campesinas, cuyapoblación comparte terri-
torio, cultura, historia, lenguas, y organización o intituciones
jurídicas, políticas, sociales y económicas propias.

Com relação aos novos direitos de cidadania, a Constituição


Boliviana prevê no art. 142, V, que são titulares dos direitos e deveres
de cidadania as mulheres e os homens que tenham nacionalidade bo-
liviana. Dentre as inovações, ressalta-se a inclusão das vertentes direta
e comunitária à democracia representativa, dando-se preferência para
a democracia direta e participativa, e a estrutura diferenciada do Po-
der Judiciário, constituída por uma Jurisdição ordinária; uma jurisdição
especial (agroambiental e indígena originária campesina); uma Justiça
Constitucional: tribunal constitucional plurinacional e um Controle ad-
ministrativo disciplinar de justiça18.
A jurisdição boliviana é regida principalmente pelo pluralis-
mo jurídico, pela interculturalidade e pela participação cidadã (art.
179). Cabe ainda lembrar que a jurisdição indígena não é submeti-
da ao controle de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional
Plurinacional.
Com relação à Constituição da República Federativa do Brasil de
18 Ibid., p. 109-111.
A Cidadania na América Latina: um olhar para as novas práticas emancipatórias 235

1988, cabe ressaltar que o constituinte brasileiro optou por um Esta-


do Democrático de Direito em uma sociedade pluralista, marcado pela
presença do princípio da dignidade da pessoa humana, por valores do
liberalismo e da socialdemocracia, como consta no art. 1º:

Art. 1. A República Federativa do Brasil, formada pela união


indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal,
constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos: [...] II – a cidadania; III – a dignidade da pes-
soa humana; [...] V – o pluralismo político.

Mesmo trazendo avanços, manteve o modelo estadocêntrico e


passivo de cidadania, de modo a não reconhecer o pluralismo jurídico
e possibilitando pouca abertura para o multiculturalismo. Além disso,
manteve a classificação tradicional do constitucionalismo europeu e
incluiu alguns relacionados ao meio ambiente e as relações de consu-
mo. Sobre as minorias étnicas se prevê uma proteção estatal da cultura
indígena, de competência privativa à União Federal (art. 22, XIV). De
acordo com Enzo Bello,

no seu Capítulo VIII, a Constituição conferiu tratamento


específico aos índios, reconhecendo-lhes ‘direitos originá-
rios’ sobre suas ‘terras tradicionalmente ocupadas’ (art. 231),
consideradas inalienáveis e indisponíveis (§ 4º), a serem uti-
lizadas em regime de posse permanente (§ 2º), com direito a
usufruto exclusivo das riquezas nelas existentes e garantida
sua participação nos resultados da lavra dos recursos ener-
géticos (§ 3º)19.

A Constituição Federal de 88 ainda dispõe sobre as “terras tradi-


cionalmente ocupadas pelos índios” no art. 20, XI, esclarecendo que são
bens da União Federal – bem como os recursos minerais existentes nes-
sas -, sendo competência do Congresso Nacional (art. 49, XVI) “auto-
19 Ibid., p 95.
236 Raquel Fabiana Lopes Sparemberger, Liziane Bainy Velasco

rizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos


hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais”.
Com relação à participação políticas dos cidadãos brasileiros, a
Constituição prevê um modelo de cidadania semidireta oriunda da de-
mocracia representativa (art.1º, parágrafo único), complementado por
mecanismos de democracia direta no processo legislativo, como o ple-
biscito, o referendo e a iniciativa popular, previstos no art. 1420. Cabe
ressaltar que prevalece, na prática, a democracia participativa, pois a
população foi consultada apenas duas vezes: por plebiscito em 1993 e
por referendo em 2005. Na maioria das vezes, a participação política no
Brasil ocorre através dos partidos políticos e dos sindicatos, uma reali-
dade que vem sendo modificada pela sociedade civil, principalmente
pelos movimentos sociais.
A cerca das formas de tutela jurisdicional dos novos direitos de
cidadania, o nosso Texto Constitucional manteve o sistema de jurisdi-
ção única (estatal/nacional) nos planos normativo e institucional, não
aderindo ao pluralismo jurídico. A tutela judicial dos indígenas deverá
ser feita perante a Justiça Federal (art. 109, XI) por meio do Ministério
Público Federal (art. 129, V) ou pelos próprios índios, individual ou
coletivamente, conforme o art. 232 da CF/88:

Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são


partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus di-
reitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos
os atos do processo.

Sobre o Brasil, conclui-se que foram poucas as mudanças signifi-


cativas que aconteceram após a promulgação da Constituição de 1988,
principalmente no que diz respeito ao plano legislativo, em manter o
defasado Estatuto do Índio (Lei 6.001/73), e à implementação dos direi-
tos indígenas que dependem de práticas político-administrativas. Além

20 Ibid., p. 96.
A Cidadania na América Latina: um olhar para as novas práticas emancipatórias 237

disso, o nosso Estado mantém um caráter monocultural e nacional 21


que de alguma maneira impede a concretização das concepções de plu-
ralismo jurídico e do Estado plurinacional e pluricultural.

3. EXPERIÊNCIAS E DESAFIOS DO NOVO CONSTITUCIONA-


LISMO: UM OLHAR PARA O OUTRO SUBALTERNIZADO

Para que se possa compreender o Outro subalternizado como su-


jeito, precisamos partir da noção de que o Direito também é um cam-
po cultural, ou seja, é o espaço onde se embatem distintos projetos de
sociedade, focando no encobrimento22 da sociedade latino-americana:
heterogênea e pluricultural, bem como sua diversidade de formas jurí-
dico políticas: o Pluralismo Jurídico23.
O encobrimento do outro subalternizado decorre do processo
moderno/colonial, tendo como princípio a invasão da terra que um dia
viria a ser a América Latina, responsável pela exclusão de muitos ‘rostos’
do espaço público hegemônico, sujeitos históricos que, oprimidos, pas-
saram a representar a ‘outra-face’ da modernidade24. Trata-se dos rostos
dos índios, dos negros, dos mestiços, dos trabalhadores rurais e dos tra-
balhadores industriais urbanos.
É através da descolonização da América Latina que se pretende
descobrir o Outro, mediante um projeto de “racionalidade ampliada”
em que a razão do Outro subalternizado tenha lugar e seja tão impor-
tante quanto às demais razões.
De acordo com Wolkmer25, pluralismo jurídico é a conjunção das
expressões latinas: plural (multiplicidade de elementos) e juridicus (re-
lacionado ao Direito) relacionando-se a mais de uma realidade, expres-

21 VERDUM apud BELLO, Enzo. Op. Cit., p. 95.


22 Conceito elaborado pelo filósofo Enrique Dussel (1994).
23 ALMEIDA, Marina Côrrea de. O novo constitucionalismo na América Latina: o descobrimen-
to do Outro pela via do Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo. Florianópolis, SC.
2013. Tese (Mestrado) – UFSC, Florianópolis, 2013, p. 8.
24 Id.
25 WOLKMER apud ALMEIDA, Op. Cit., p. 10.
238 Raquel Fabiana Lopes Sparemberger, Liziane Bainy Velasco

sando a coexistência de coisas ou elementos distintos, que não reduzem


entre si. Trata-se de uma condição que visa à equidade e a convivência
harmônica de todas as culturas e de todos os grupos sociais, agindo con-
tra o “individualismo e o estatismo”. Baseia-se na autonomia, na descen-
tralização, na participação, no localismo, na diversidade e na tolerância.
São várias as modalidades de pluralismo jurídico, entretanto,
conforme Almeida,

o principal núcleo para o qual converge o pluralismo jurídico


é a negação de que o Estado seja a fonte única e exclusiva de
todo o direito, priorizando a produção de outras formas de
regulamentação, geradas por instâncias, corpos intermediá-
rios ou organizações sociais providas de certo grau de auto-
nomia e identidade própria26.

Assim, optamos pelo Pluralismo Jurídico Comunitário-Parti-


cipativo como base teórica de análise da cultura legal que emerge na
América Latina no século XXI. Segundo Wolkmer27, está comprome-
tido com a participação de novos sujeitos, com a efetiva satisfação das
necessidades humanas e com o processo verdadeiramente democrático,
descentralizado, participativo e emancipatório de (re)produção jurídi-
co-social.
Esse novo constitucionalismo emerge de lutas populares, em
busca de uma Constituição que busque a verdadeira legitimidade, re-
conhecendo, ampliando e efetivando os direitos fundamentais nas reais
necessidades do povo. Viciano Pastor e Martínez Dalmáu analisam de
forma clara:

Sob esse aspecto, o novo constitucionalismo constitui-se em


uma teoria de avanço democrático da Constituição, no qual o
conteúdo desta deve expressar, nos limites de suas possibili-
dades, a vontade soberana de seu povo, o reconhecimento da

26 Ibid., p. 10.
27 Wolkmer, p. 209.
A Cidadania na América Latina: um olhar para as novas práticas emancipatórias 239

sua identidade, de sua consciência cultural, dos valores que


almejam preservar, e da sua melhor forma de organização
social e política, cuja pratica deverá ser alcançada por meio
de mecanismos de participação popular direta, da garantia
dos direitos fundamentais, do procedimento de controle de
constitucionalidade promovido pelos cidadãos e da criação
de regras que limitem os poderes políticos, econômicos, so-
ciais e culturais 28.

As Constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009) tiveram


uma grande inovação neste novo cenário, uma vez que ambas deram
voz aos grupos antigamente subalternizados e adotaram uma visão eco-
cêntrica, em que os direitos da Mãe Terra (Pachamama) e a cultura do
bem viver (SumakKawsay) estãoimplícitos nas Constituições citadas,
resgatando as raízes dos antigos povos pré-colombianos e incorporando
uma nova era anticolonialista.
O bem viver, segundo Germana de Oliveira Moraes e Raquel
Coelho Freitas29, requer uma profunda mudança de consciência, do
modo de o ser humano perceber e compreender a vida e nela conduzir-
se, a qual demanda a demolição de velhas estruturas, para que, em seu
lugar, se reconstrua uma novel civilização pautada no valor central da
vida em vez de endeusar a economia, como vem sendo feito ainda hoje
em dia. Sendo assim, busca-se uma convivência pacífica entre os seres
vivos, onde o ser humano deve frear os impulsos econômicos em prol de
um maior equilíbrio com a natureza.
Como maior exemplo de mudança, Moraes e Freitas30 também
destacam o primeiro julgamento em que se considera a natureza um
sujeito de direitos na nova Constituição equatoriana. Trata-se do
caso em que o rio Vilcabamba foi parte do processo e obteve senten-
ça em seu favor, pois o Governo da Provincial de Loja usou o rio para
28 PASTOR E DALMÁU apud MORAES, Germana de Oliveira; FREITAS, Raquel Coelho. Cons-
titucionalismo Latino-Americano: Tendências Contemporâneas. In: WOLKMER, Antônio
Carlos; MELO, Milena Petters (Coord.). Curitiba, Editora Juruá, 2013, p.107.
29 MORAES E FREITAS, Op. Cit., p.111.
30 Ibid., p. 116.
240 Raquel Fabiana Lopes Sparemberger, Liziane Bainy Velasco

depositar materiais de escavação provindos da construção da estrada


Vilcabamba-Quinara. Quando ocorreram chuvas em março e abril
de 2009, as enchentes se deram devido ao depósito do material jo-
gado no rio. O julgamento se deu pelo art.71 da Constituição equa-
toriana31e o Tribunal ordenou o cumprimento das recomendações
apresentadas pelo Subsecretário de Qualidade Ambiental, como: 1.
Realizar limpeza do solo contaminado por combustíveis; 2. provi-
denciar lugar para depositar o material resultante das escavações; 3.
Sinalizar o local da construção da estrada; 4. Apresentar em trinta
dias um plano de remediação e reabilitação das áreas afetadas no
rio e nas propriedades dos camponeses; 5. Estudo de impacto e per-
missões ambientais para construção da estrada.32. Estes casos ou si-
tuações demonstram que estamos vislumbrando mudanças no atual
cenário latino-americano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pondera-se, a partir da parcial pesquisa, que as Constituições


da República do Equador (2008) e do Estado Plurinacional da Bolívia
(2009) são bons exemplos de uma ruptura do modelo eurocêntrico,
dando voz aos que eram considerados subalternizados. Cabe lembrar-
se de um diferencial de ambas: a previsão legal de uma convivência ple-
na e pacífica entre seres humanos e a natureza (Pachamana). O “novo”
constitucionalismo latino-americano, ao ser analisado sob o prisma das
Constituições do Equador e da Bolívia, pode ser compreendido como
uma nova forma de sistema de freios e contrapesos, onde a Constituição
pode medir e frear os impulsos capitalistas, de modo que não se des-
31 “La naturaliza o Pacha Mama, donde se reproduce y realiza la vida, tienederecho a que se
respete integralmente su existência e elmantenimiento y regereacíon de sus ciclos vitales, es-
trutura, funciones y procesos evolutivos. Toda persona, comunidade, Pueblo o nacionalidade
podrá exigir a la autoridade pública elcumplimiento de losderechos de la naturaliza. Para apli-
car e interpretar estosderechos se observaranlos princípios estabelecidos em laConstitución,
em lo que proceda. El Estado incentivará a las personas naturales y jurídicas, y a loscolectivos,
para que protejanla naturaliza, y promoverá elrespeto a todos los elementos que forman um
ecossistema”.
32 MORAES E FREITAS, Op. Cit., p.118.
A Cidadania na América Latina: um olhar para as novas práticas emancipatórias 241

respeite o princípio do bem viver, bem como a consideração de que a


natureza é sujeito de direitos.
Identificam-se inovações institucionais e normativas nas Cartas
analisadas com relação às categorias tradicionais para o constitucio-
nalismo liberal, tais como: Estado, nação, democracia, sociedade civil,
direitos fundamentais, entre outras. Inevitavelmente, o conceito de ci-
dadania está transpassado por todos esses outros conceitos. Conforme
Bello33, “a ressignificação observada em relação à cidadania pode ofere-
cer uma visão mais ampla acerca do processo de circulação de modelos
jurídicos evidenciados nos países da América Latina, ao longo das últi-
mas décadas, no sentido de refundações nacionais”.
Essas inovações jurídicas são resultado de uma realidade regional
que não é passível de modificação pela aderência de um modelo teórico
estrangeiro. Diferente do que ocorre no modelo de constitucionalismo
liberal, a cidadania no novo constitucionalismo latino-americano assu-
me uma forma mais ativa e diversificada quanto aos atores políticos.
Percebe-se uma tentativa de abertura da participação política para a so-
ciedade civil que vem sendo garantida nas Constituições, enriquecendo
os Estados com instrumentos de uma democracia direta, tais como os
plebiscitos e os referendos.
A partir de uma nova forma de Estado, de caráter plurinacional
e/ou pluricultural, permitiu um avanço na teoria dos direitos humanos,
tendo como foco principal o conceito moderno de cidadania.
Em decorrência das transformações de demandas sociais em di-
reitos de cidadania, tem-se a possibilidade de reivindicação perante o
Judiciário. Uma das maiores inovações nas Constituições da Bolívia e
do Equador é a criação de uma jurisdição indígena com autonomia que
está atrelada à estrutura do Judiciário34. A formação de novos atores co-
letivos na política latino-americana proporciona que esses fiscalizem e
vetem medidas adotadas pelo Estado, além de poder reivindicar direitos
de seu interesse.

33 BELLO, Enzo. Op. Cit., p. 127.


34 Ibid., p. 128.
242 Raquel Fabiana Lopes Sparemberger, Liziane Bainy Velasco

A cidadania tornou-se um importante vetor de democratização


do Estado e da sociedade civil, sendo também catalisador de bandeiras
em termos de direitos, uma vez que o processo de mobilização política
desencadeia-se através dos movimentos sociais (sociedade civil e novos
sujeitos) pelo ímpeto de ter as suas reivindicações aceitas e de produzir
resultados em nível nacional.
Com isso, destaca-se a noção de bem-viver presentes nas Cons-
tituições boliviana e equatoriana (denominada suma qamaña, na Bo-
lívia, e sumakkawsay, no Equador) que inclui os direitos aos recursos
naturais, bem como os direitos indígenas de autonomia e os direitos de
diversidade étnica e cultural, dentre outros.

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245

A TOMADA DE CONSCIÊNCIA DAS VÍTIMAS


NA AMÉRICA LATINA: DO DESCOBRIMENTO
AO NEOLIBERALISMO.

Safira Orçatto Merelles do Prado1

1. INTRODUÇÃO.

No decorrer da década de setenta, a América Latina viu nascer


uma nova forma de se pensar a realidade, tendo como ponto de partida
os oprimidos da periferia. Surgia uma nova corrente filosófica, a Filo-
sofia da Libertação, que tem como meta libertar e emancipar todos os
latinos americanos do jugo do eurocentrismo.
Tal corrente filosófica refuta tudo aquilo que se havia pensado a
partir do centro, por se tratar de pensamentos totalitários que tinham a
intenção de anular o ser do outro latino americano.
O presente ensaio versa mais especificamente sobre o quinto ca-
pítulo da obra de Enrique DUSSEL, expoente do movimento da Filoso-
fia da Libertação, cuja obra denomina-se “Ética da Libertação na Idade
da Globalização e da Exclusão”. Neste capítulo, mais precisamente na

1 Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Especialista em Direito


Processual Civil pela PUC PR e em Direito Administrativo pelo Instituto Romeu Bacellar.
Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná. Integrante do Conselho
Editorial da Revista Direito do Estado em Debate, da Procuradoria Geral do Estado do Paraná.
Integrante do Conselho Editorial da Revista de Direito Administrativo. Professora de Direito
Administrativo na graduação do Centro Universitário Internacional - UNINTER. Professora
de Direito Constitucional nos cursos de Pós-Graduação da Universidade Positivo. Instrutora
de cursos voltados à Administração Pública e advogada administrativista militante.
246 Safira Orçatto Merelles do Prado

primeira mediação, DUSSEL trata da validade anti-hegemônica da co-


munidade das vítimas, procurando demonstrar a negação em relação
aos oprimidos a partir da história. Para isto, utiliza-se das lições de Bar-
tolomeu de LAS CASAS e do depoimento de Rigoberta Menchú.
Levando em consideração este contexto, o presente ensaio teve
como finalidade contribuir, ainda que de forma singela, para a discussão
a respeito de uma teoria filosófica para a América Latina, partindo dos
pressupostos históricos deste continente.

2. A AMÉRICA LATINA E A NEGAÇÃO.

2.1 O pensamento de LAS CASAS

O início do processo de negação na América Latina tem como


marco inicial o ano de 1492, com a descoberta do continente por Cristó-
vão Colombo. A conquista do novo mundo e as barbáries cometidas pe-
los espanhóis foram delineadas por Bartolome de LÃS CASAS na obra
“O Paraíso Destruído: Brevíssima relação da Destruição das Índias”2.
LÃS CASAS foi um sacerdote que no início da colonização espa-
nhola recebeu um dos primeiros lotes de índios para catequização. Ao
chegar na América Espanhola, começa a presenciar as mais absurdas
atrocidades cometidas contra os índios. No mesmo ano de sua chegada,
em 1511, assiste o famoso sermão do Padre Antonio de Montesinos, que
criticava ferrenhamente as brutalidades dos conquistadores.
Em 1513, LÃS CASAS acompanha os espanhóis na conquista de
Cuba. Recebe mais um lote de índios. No ano seguinte, em 1514, ainda
em Cuba, decide dedicar a sua vida à defesa dos índios. Retorna à Repú-
blica Dominicana e renuncia a todos os seus lotes de índios.
A partir de então, começa a viajar por diversas vezes para Es-
panha com a finalidade de advogar pela causa indígena. Em Madrid,
elaborou vários memoriais em defesa dos índios, obrigando a Corte e a
Igreja Espanhola a formar uma comissão para investigar o assunto. Esta

2 A edição utilizada para redação deste ensaio foi a da L&P Editores S/A, 6ª edição, 1996.
A TOMADA DE CONSCIÊNCIA DAS VÍTIMAS NA AMÉRICA LATINA: DO DESCOBRIMENTO 247
AO NEOLIBERALISMO

foi encaminhada para América Espanhola para apurar os fatos relatados


por LÃS CASAS.
Por óbvio, a referida investigação não trouxe os resultados espe-
rados por LÃS CASAS. Desta forma, continuou a sua peregrinação para
Espanha em defesa dos índios. Em uma de suas viagens, convence o Rei
Carlos a conceder uma região na Costa da Venezuela para realizar um
projeto de colonização pacífica. No entanto, seu projeto fracassou, pois,
a corte espanhola não colaborou financeiramente para o projeto, o que
resultou num verdadeiro boicote ao plano idealizado pelo sacerdote.
LÃS CASAS também foi ao México discursar em favor dos ín-
dios. Combateu colegas da própria Igreja, como o Frei Juan Cabedo,
que escreveu um tratado em favor da escravidão dos índios. Combateu
também o Vice-Rei, Dom Antônio de Mendoza, abertamente favorável
à escravidão indígena.
Entretanto, seu principal combate travou-se com Juan Sepúlve-
da, que era historiador e partidário da teoria aristotélica da servidão
natural. Tal debate gerou tamanha polêmica que a Igreja foi obrigada
a intervir. E ainda assim, a questão chegou aos tribunais. A partir deste
momento, LÃS CASAS passa a contar com o apoio de Francisco de VI-
TÓRIA3 em prol da causa indígena.
Os argumentos utilizados nos tribunais tornaram-se famosos.
Como por exemplo, o eloqüente discurso de Juan Gines SEPÚLVEDA,
com fundamento na teoria aristotélica da servidão natural e na inferio-
ridade dos povos:

e é por isso que as feras são domadas e submetidas ao impé-


rio do homem. Por essa razão, o homem manda na mulher,
o adulto na criança, o pai, no filho: isso quer dizer que os
mais poderosos e os perfeitos dominam os mais fracos e os
mais imperfeitos. Constata-se essa mesma situação entre os
homens; pois há os que, por natureza, são senhores e os que,
por natureza, são servos. Os que ultrapassam os outros pela

3 Teólogo tomista e professor de Direito da Universidade de Salamanca e que foi um dos juízes
escolhidos para julgar a questão proposta por Lãs Casas.
248 Safira Orçatto Merelles do Prado

prudência e pela razão, mesmo que não os dominem pela


força física, são, pela própria natureza, os senhores; por ou-
tro lado, os preguiçosos, os espíritos lentos, mesmo quando
têm a força física para realizar todas as tarefas necessárias,
são, por natureza, servos. E é justo e útil que sejam servos,
e vemos que isso é sancionado pela própria lei divina. Pois
está escrito no livro dos provérbios: ‘O tolo servirá ao sábio. ’
Assim são as nações bárbaras e desumanas, estranhas à vida
civil e aos costumes pacíficos. E sempre será justo e de acordo
com o direito natural que essas pessoas sejam submetidas ao
império de príncipes e de nações mais cultivadas e humanas,
de modo que graças à virtude dos últimos e à prudência de
suas leis, eles abandonam a barbárie e se adaptam a uma vida
mais humana e ao culto da virtude. E se recusam esse impé-
rio, é permissível impô-lo por meio das armas e tal guerra
será justa, assim como o declara o direito natural (...). Con-
cluindo: é justo, normal e de acordo com a lei natural que
todos os homens probos, inteligentes, virtuosos e humanos
dominem todos os que não possuem essas virtudes.4

Francisco VITÓRIA refutou a argumentação apresentada por


SEPÚLVEDA, ao afirmar que houve um desvirtuamento da teoria aris-
totélica com o intuito de legitimar o massacre indígena na América Es-
panhola:

Resta responder ao argumento segundo o qual os bárba-


ros são escravos por natureza, sob o pretexto de que eles
não são suficientemente inteligentes para se governarem a
si próprios. A esse argumento eu respondo que Aristóteles
certamente não quis dizer que os homens pouco inteligen-
tes sejam, por natureza, submetidos ao direito de um outro
e não tenham nenhum poder sobre si próprios nem sobre as
coisas exteriores. O que Aristóteles, na verdade, quis dizer é
que certos homens são chefes por natureza, a saber, aqueles

4 Op. cit., p. 22
A TOMADA DE CONSCIÊNCIA DAS VÍTIMAS NA AMÉRICA LATINA: DO DESCOBRIMENTO 249
AO NEOLIBERALISMO

que brilham pela inteligência. Ora, ele certamente não quer


dizer que esses homens podem tomar em mãos o governo
dos outros, sob o pretexto de serem mais sábios. Se há ho-
mens pouco inteligentes por natureza, Aristóteles não quer
dizer que seja permitido apropriar-se de seus bens e de seu
patrimônio, escravizá-los e pô-los à venda. Assim, admitindo
que esses bárbaros sejam tão tolos e obtusos como dizem,
nem por isso se lhes deve recusar um poder verdadeiro e nem
se deve contá-los entre os escravos legítimos. 5

Em 1552, Lãs Casas publica “Brevíssima relação de destruição da


Índias. Para se ter uma idéia do quão contundente é o relato de Lãs Ca-
sas sobre as atrocidades praticadas pelos colonizadores, segue a trans-
crição de um trecho da obra que retrata a situação vivida pelos índios:

Os espanhóis, com seus cavalos, suas espadas e lanças come-


çaram a praticar crueldades estranhas; entravam nas vilas,
burgos e aldeias, não poupando nem as crianças e os ho-
mens velhos, nem as mulheres grávidas e parturientes e lhes
abriam o ventre e as faziam em pedaços como se estivessem
golpeando cordeiros fechados em seu ardil. Faziam apostas
sobre quem, de um só golpe de espada, fenderia e abriria um
homem pela metade, ou quem, mais habitualmente e mais
destramente, de um só golpe lhe cortaria a cabeça, ou ainda
sobre quem abriria melhor as entranhas de um homem de
um só golpe. Arrancavam os filhos dos seios da mãe e lhes
esfregavam a cabeça contra os rochedos enquanto que outros
os lançavam à água dos córregos rindo e caçoando, e quando
estavam na água gritavam: move-te, corpo de tal?!6

Carlos Frederico Marés de SOUZA FILHO ressalta que a idéia


universal de LAS CASAS era baseada em um direito natural preexis-
tente e de inspiração divina, “mas tão amplo e profundo que mesmo os
5 Ibidem, p.22-23.
6 Ibidem, p. 30.
250 Safira Orçatto Merelles do Prado

infiéis, isto é, aqueles que desconheciam a divindade inspiradora, eram


por ele regidos. ” 7 Ou seja, a teorização proposta por LAS CASAS era de
inclusão e não de negação aos costumes e hábitos indígenas. O respeito
à diferença sempre foi essencial para o referido frei.
O mais importante é que LAS CASAS acreditava em uma convivên-
cia harmoniosa entre os espanhóis e os índios, sendo considerado como o
criador da corrente de pensamento chamada indigenista ou criticista.8
Desta forma, LÃS CASAS buscou assegurar os direitos dos indíge-
nas, reconhecendo as suas diferenças não como critério de exclusão e de-
sigualdade, mas exatamente ao contrário, as diferenças deveriam ser vistas
como fatores de igualdade e inclusão social. Este discurso é retomado por
Rigoberta MENCHÚ, em sua luta pelos povos indígenas guatemaltecos.

2.2 “Meu nome é Rigoberta Menchú e assim nasceu a minha consci-


ência”.

DUSSEL define Rigoberta MENCHÚ da seguinte forma: “a) mu-


lher dominada, b) pobre, da classe camponesa, c) maia, como etnia con-
quistada há 500 anos, d) de raça morena, e) de uma Guatemala periféri-
ca e explorada pelo capitalismo norte – americano. ”9
Em sua biografia10, considerado como o relato mais comovente
7 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito.
Curitiba: Juruá, 1998, 48-49.
8 Ibidem, p. 46.
9 DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação: na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis:
Vozes, 2002, p.420.
10 Antes mesmo da morte de seu irmão, Rigoberta começa a aprender a falar castelhano para li-
vrar-se do enclausuramento linguístico em que se encontrava. Ela passa a organizar movimen-
tos para lutar pelo reconhecimento de sua cultura; pela aceitação de sua alteridade; pelas terras
que são de direito dos índios; pela parcela de poder pertencente a eles. Rigoberta cria o Comitê
de Unidade Camponesa e adere à Frente Popular 31 de janeiro e passa a adotar novos meios
para dar sustentação a seus objetivos: a bíblia, os sindicatos e a língua espanhola. A partir deste
momento, podendo ser considerado como o da conscientização, toda a família de Rigoberta
passa a ser perseguida. Após diversas prisões, o pai de Rigoberta foi morto pelo exército du-
rante uma invasão camponesa à embaixada da Espanha. A mãe de Rigoberta foi sequestrada
para servir como “isca” para atrair os demais irmãos. Durante o período de confinamento, foi
violentada e torturada por diversas vezes. Ainda viva, foi abandonada no meio de uma floresta,
agonizando até a morte. Eis uma breve síntese de “Meu nome é Rigoberta Menchú e assim
nasceu a minha consciência”, de Elizabeth Burgos.
A TOMADA DE CONSCIÊNCIA DAS VÍTIMAS NA AMÉRICA LATINA: DO DESCOBRIMENTO 251
AO NEOLIBERALISMO

das dominações exercidas sobre os povos indígenas da Guatemala11, ela


relata os costumes indígenas, a vida em comunidade e a importância da
natureza para os índios; a morte de seu irmão mais novo, por desnutri-
ção nas fincas; a morte de suas amigas (uma por envenenamento e outra
por esquartejamento); trabalho de doméstica na cidade e a luta pelas
terras indígenas; a morte do irmão mais velho, que depois da tortura, foi
queimado em praça pública; as prisões de seu pai e a sua morte, causada
pelo exército; o sequestro de sua mãe, violentada, torturada e largada na
floresta, agonizando até morrer.
Em razão dos comoventes fatos apresentados em sua biogra-
fia, DUSSEL considera Rigoberta como sendo uma mártir da ne-
gação. Afirma o filósofo que o relato de Rigoberta significa num
primeiro momento a própria negação, visto que em momento al-
gum alguém lhe havia ensinado a apreciar a sua própria cultura, o
seu povo. Pelo contrário, sempre foram oprimidos e excluídos de
forma espantosa.
Segundo DUSSEL, a tomada da consciência só ocorre a partir da
autoafirmação e só a partir deste momento é que se inicia a luta pela
libertação com a conscientização de ser vítima: “Tal afirmação é fruto
de um processo dialético, onde a relação dominador-dominado, sistema
-exclusão são o horizonte de compreensão. ”12
A partir do testemunho de Rigoberta, é possível vislumbrar que
o “ponto de partida” é o outro, mas não o outro em razão da sua seme-
lhança, da “pessoa igual”, mas sim a partir da negação, da opressão, da
exclusão. “O novo ponto de partida se origina a partir da experiência
ética da ‘exposição’ no face-a-face: ‘Meu nome é Rigoberta Menchú’ ou
o ‘Eis-me aqui! ’ (abrindo a camisa e descobrindo o peito diante do pe-
lotão de fuzilamento) de Lévinas.”13

11 Em que pese muitos fatos de sua biografia serem contestados pelo escritor norte- americano
David Stoll em seu livro “Rigoberta Menchú e a história de todos os pobres da Guatemala”.
12 Ibidem, p. 421.
13 Idem.
252 Safira Orçatto Merelles do Prado

2.3 O Neoliberalismo e a continuidade da negação.

Além do fenômeno da Globalização, logo após a Segunda Grande


Guerra Mundial, o Neoliberalismo serviu de reação ao intervencionis-
mo e ao caráter prestacional do Estado de Bem-Estar.14 No entanto, tal
concepção consolidou-se efetivamente com o final da Guerra Fria e com
a queda do Comunismo Soviético. Desta forma, desapareceram os mo-
tivos que serviam de sustentáculo para manutenção do Estado Social, já
que ele servia de contraponto à política soviética.
A teorização proposta por Friedrich HAYEK, a partir de sua obra
“O Caminho para Servidão”, serviu de mote propulsor para a criação de
um movimento neoliberal, combativo às premissas do Estado de Bem
-Estar. Ele afirmava que se o capitalismo continuasse financiando este
modelo estatal, permaneceria uma profunda relação de dependência do
cidadão em relação ao Estado. Aquele não buscaria mais o emprego. A
conseqüência imediata seria a falência do sistema.15
Francis FUKUYAMA endossa a tese neoliberal ao afirmar que:
...
a democracia liberal continua a ser a única aspiração política
coerente que se espalha por diferentes regiões e culturas em
todo o mundo. Além disso, os princípios liberais na economia
– o <<mercado livre>> - alastraram e conseguiram produzir
níveis de prosperidade material sem precedentes, tanto nos
países industrializados como naqueles que, no final da segun-
da guerra, faziam parte do empobrecido Terceiro Mundo.16

14 Entretanto, nesta época o capitalismo intervencionista estava no auge (ao menos nos países
de primeiro mundo, em que efetivamente foi implementado o Estado de Bem-Estar Social.
Por isso é que as idéias de Hayek não pareciam muito verossímeis. Ele defendia que o novo
igualitarismo deste período, promovido pelo Estado de Bem-Estar destruía a liberdade dos
cidadãos e a vitalidade da concorrência, da qual dependia a prosperidade de todos. Enfim, a
desigualdade era necessária. ANDERSON, Perry. Balanço do Neoliberalismo. In: _______, et
al. Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. São Paulo: Paz e Terra, 1998.
p.10.
15 HAYEK, Friederich A. Direito, Legislação e Liberdade: uma nova formulação dos princípios
liberais de justiça e economia política. A miragem da justiça social. São Paulo: Visãok, 1985.
v.2, p.3.
16 FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Lisboa: Gradiva, 1992. p.15
A TOMADA DE CONSCIÊNCIA DAS VÍTIMAS NA AMÉRICA LATINA: DO DESCOBRIMENTO 253
AO NEOLIBERALISMO

Para Vivian Cristina LIMA, o Neoliberalismo vem servindo de


fundamento para o desprezo à justiça social e igualdade material entre
os homens, impedindo a identidade de tratamento e impondo a neces-
sidade de se adotar medidas afirmativas para a satisfação dos princípios
da igualdade e liberdade.17
Esse é o contexto da dimensão econômica na vida humana. Por
incrível que pareça, libertação é o mote propulsor do Neoliberalismo.
Mas esta libertação significa um “corte umbilical” do cidadão em rela-
ção ao Estado, o que, num contexto latino-americano, automaticamente
acaba o tornando refém do mercado. Desta forma, é possível vislumbrar
que as práticas preconizadas pelo Neoliberalismo não levam o cidadão a
uma autonomia e nem o considera como um fim em si mesmo, mas, tra-
ta-os como meio para obtenção do fim almejado pelo mercado: o lucro.
Conseqüentemente, como bem assinala Ana Cláudia FINGER:

países do capitalismo periférico como o nosso, seduzidos


pela onda neoliberal que propõe o encolhimento radical do
Estado, são levados ao aprofundamento da desigualdade e à
formação de uma classe de excluídos. Ocorre que estes in-
divíduos, sem a intervenção estatal, decididamente não têm
condições de sobreviver.18

Mas qual o papel da Ética da Libertação frente às práticas pre-


conizadas pelo Neoliberalismo? Como se opor às frontes do poder do
mercado?
Antes mesmo de se analisar o poder do mercado, talvez seja ne-
cessário indagar sob as formas de se contrapor ao poder. FOUCAULT
observa adiante que “uma das primeiras coisas a compreender é que o
poder não está localizado no aparelho de Estado e que nada mudará
17 LIMA, Vivian Cristina. Administração Pública Contemporânea: o usuário de serviço público
e a dignidade da pessoa humana. Curitiba, 2004. 216f. Dissertação (Mestrado em Direito do
Estado) – Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, p.33.
18 Serviço Público: um Instrumento de Concretização de Direitos Fundamentais. A&C Revista
de Direito Administrativo e Constitucional, nº11, jan/fev/mar.2003, p.159
254 Safira Orçatto Merelles do Prado

na sociedade se os mecanismos de poder que funcionam fora, abaixo,


ao lado dos aparelhos do Estado a um nível muito mais elementar, não
forem modificados. ” 19
Assim, segundo a ótica foucaultiana, as relações de poder se ma-
nifestam de múltiplas formas, não possuem localização nem sujeitos
específicos. “Existem relações de poder múltiplas que atravessam, ca-
racterizam e constituem o corpo social e que estas relações de poder não
podem se dissociar, se estabelecer nem funcionar sem uma produção,
uma acumulação, uma circulação e um funcionamento do discurso. ”20.
Só se pode exercer o poder através da produção da verdade, através do
discurso, ou seja, o poder produz discursos de verdade, em todas as
áreas, inclusive no direito. 21
DUSSEL afirma que neste ponto a Ética da Libertação tem muito
que aprender com FOUCAULT a partir de sua análise contextualizada
em “horizontes de factibilidade crítico-prática de subsistemas ou de ins-
tituições históricas”.22
Na Ética da Libertação, após identificação de quem foi excluído,
cabe aos integrantes da comunidade de comunicação hegemônica dar
lugar ao outro, não como igual, mas como um ser livre. Como já asseve-
rado, a Ética da Libertação parte dos afetados-excluídos da comunidade
de comunicação, tendo como momentos prévios: o descobrimento, pe-
las próprias vítimas, da opressão e da negação de sua cultura, para em
seguida se alcançar a tomada de consciência.
Ao realizar uma análise marxista da obra de DUSSEL, afirmam
Luasses dos SANTOS e Mariel MURARO que:

19 Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. 11ª ed. Rio de Janeiro:
Edições Graal. 1993, p.149-150.
20 Ibidem, p. 179-180.
21 Ao mesmo tempo que somos obrigados pelo poder a produzir a verdade, “estamos submeti-
dos à verdade também no sentido de que ela é lei e produz o discurso verdadeiro que decide,
transmite e reproduz (...) efeitos de poder. Afinal, somos julgados, condenados, classificados,
obrigados a desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de viver ou morrer em função
dos discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder. FOUCAULT, op.
cit.. p. 180.
22 Op. cit., p. 504.
A TOMADA DE CONSCIÊNCIA DAS VÍTIMAS NA AMÉRICA LATINA: DO DESCOBRIMENTO 255
AO NEOLIBERALISMO

a plena libertação depende de uma verdadeira práxis de li-


bertação, onde a vítima, ciente da negatividade de sua condi-
ção, transforma factivelmente a estrutura que torna possível
sua exploração, bem como cria novos instrumentos que ga-
rantam às vítimas participação no processo social, em con-
traposição à exclusão da maioria imposta pela Modernidade
e pelo capitalismo.23

Deste modo, a Ética da Libertação tem como principais destina-


tários os excluídos (os que acreditam que são por natureza escravos),
os oprimidos (explorados a partir de um sistema, como por exemplo, o
capitalismo), e os materialmente excluídos (não possuindo as condições
objetivas e subjetivas para o exercício da liberdade). Conseqüentemen-
te, é plenamente possível adequar a teorização proposta por DUSSEL a
mais uma das facetas da negação na América Latina, qual seja, a nega-
ção a partir do Neoliberalismo.

3. CONCLUSÕES.

Na mediação apresentada, DUSSEL trata do momento da crítica


formal, mas precisamente a validade anti-hegemônica da comunidade
das vítimas. A primeira mediação versa sobre a negação dos oprimidos.
Neste ponto, DUSSEL utiliza-se das lições de LAS CASAS e do depoi-
mento de Rigoberta Menchú.
Pelas lições de LAS CASAS, DUSSEL contextualiza a negação na
América Latina desde a época de seu descobrimento. E o depoimento
de Rigoberta Menchú é utilizado para demonstrar, em um primeiro ins-
tante, a auto-negação da própria vítima, para em seguida conscientizar-
se desta sua condição.
Rigoberta aprende a falhar castelhano para sair do exílio lingüís-
tico em que se encontrava. Em seguida, inicia um movimento pela li-

23 MURARO, Mariel; SANTOS, Luasses Gonçalves dos. Uma visão de Marx a partir da filosofia
da Libertação de Enrique Dussel. In : http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=204da-
255aea2cd4a [acesso em 03/11/2016], p. 15
256 Safira Orçatto Merelles do Prado

bertação de seu povo, de sua cultura. Aqui é possível vislumbrar uma


nova construção da validade crítica, a partir da simetria de uma nova
comunidade consensual. Ou seja, vislumbra-se uma nova validade in-
tersubjetiva para as vítimas. Isto porque as vítimas, excluídas, oprimi-
das, negadas, descobrem que uma “verdade” encobria acesso à realida-
de, até então desconhecido. Esta verdade DUSSEL denomina de utopia
possível de libertação.
A comunidade das vítimas, a partir de sua intersubjetividade críti-
ca, deve começar a imaginar a utopia. Mas esta imaginação deve se dar de
forma transcendental ao sistema, já que no atual não é possível encontrar
alternativa. Portanto, é necessário pensar em um novo mundo, onde seja
factível a concretização de instrumentos de participação social.
Uma nova América Latina, liberta de sua negação colonizado-
ra, de sua negação cultural, de sua negação econômica permeada pelo
Neoliberalismo. Uma nova América Latina que possibilite aos excluídos
a possibilidade de viver.

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259

O DIREITO DOS QUILOMBOLAS,


ETNICIDADE E O CONSTITUCIONALISMO
EM UM ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Marilson Santana1

O sentido jurídico específico de ser quilombola no Brasil se inse-


riu na esfera pública brasileira a partir do marco constitucional de 1988.
Até esta data, ainda que o problema da escravidão persistisse, parecia
que a subjetividade jurídica do quilombola era invisível para os juristas
de nossa tradição republicana anterior. Apresentar a contemporaneida-
de de tal identidade passou a depender ora de um esforço político do
movimento negro, ora da prática de antropólogos ou de partícipes do
ambiente das ciências humanas ou sociais, restritos a um universo aca-
dêmico ou político bastante específico. Entretanto, ainda mesmo depois
da Constituição Federal de 1988, a afirmação da existência de territórios
de quilombos, quilombolas, comunidade negra rural, remanescentes de
quilombos ou de outro sinônimo representativo dessa forma de vida,
contou com certa desconfiança da esfera pública brasileira. Suspeita-se
que se passou a enxergar tais identidades com aqueles mesmos olha-
res exóticos de um estrangeiro no Brasil do século XIX. Na verdade, o
discurso e a argumentação mais convincente em torno destes grupos
étnicos só compreendiam o horizonte do passado heróico na estraté-
gia de Palmares ou de lutas históricas similares. Os olhares exóticos se
1 Marilson Santana é Professor Assistente da Faculdade Nacional de Direito da Universidade
Federal do Rio de Janeiro- FND/UFRJ. Doutor em Ciências Sociais pela PUC-RJ. Mestre em
Direito e Estado pela UnB. Graduado pela Faculdade de Direito da Bahia (UFBA).
260 Marilson Santana

reproduziam, ampliando a invisibilidade mesmo quando trabalhos da


historiografia recente apontavam para um horizonte2.
A constitucionalização do direito quilombola não se furtou, po-
rém, a recolher um olhar historicista menos arqueológico e escavador.
Consagrou-se no imaginário e na simbologia da Constituição Federal
de 1988, um sentido jurídico-historicista para expressão “remanescen-
tes de quilombos”, presente no art. 68 dos Atos das Disposições Cons-
titucionais Transitórias- ADCT. Como certos estudos antropológicos
apontam, a “remanescência” revela que o legislador constituinte en-
tendeu quilombo como algo do passado3 e tendia a compreender que
tal territorialidade jamais teria uma nova atualidade significativa, res-
valando-se numa situação de transitoriedade facilmente resolvida pela
sua insuficiência quantitativa. Se o imaginário é forjado no paradigma
da luta de Palmares e, por conseguinte, no ideário de “negros fugidos”,
há de se pensar em poucos “remanescentes de quilombos” no Brasil de
hoje.
Entretanto, alguns ativistas do movimento negro, do movimento
social rural, historiadores, antropólogos, geógrafos e juristas, nas últi-
mas duas décadas, vem tentando recontar essa “história” como um fato
do presente ainda que desligado das tradições de luta do passado. Talvez
essa abundante preocupação recente, apareça como o retorno do “recal-
que” aparentemente esquecido por boa parte da história constitucional
republicana. Reaparece, entretanto, como o mais forte e intricado sin-
toma demandante de tratamento. É possível que tal visão mal tratada
da história escravista brasileira tenha contato com a aliança da “ação da
inteligentzia jurídica nas assessorias e consultorias dos parlamentares”
que disputaram a escrita da Constituição de 1988 e que influenciaram
2 Optei, em algumas situações, por citar apenas o ano da obra. Há títulos que não podem, para
fins desse artigo, terem apenas uma frase ou parágrafo citados, mas, antes, a obra inteira. REIS,
J.J e GOMES, F.S. Liberdade por um fio. História dos quilombos no Brasil. São Paulo: Cia das
Letras, 1996.
3 Cf. ALMEIDA, A.W. B. de. Quilombos: sematologia redefinida em face de novas identidades.
In. Frechal Terra de Preto: Um quilombo transformado em reserva extrativista. São Luiz: Pro-
jeto Vida de Negro, SMDH/CCN-MA, 1996 (mimeo). ALMEIDA, A.W. B. O quilombo e as
novas etnias. In: O’Dwer, E. C. Quilombos: identidade étnica e territorrialidade. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2002.
O direito dos quilombolas, etnicidade e o constitucionalismo em um estado democrático de direito 261

profundamente pela leitura da “Carta Portuguesa de 1976 e a filosofia


do direito alemã” 4.
Contudo, com o desenvolvimento de uma “nova história”, recons-
truiu-se outro sentido para a “remanescência”, reabriu-se novamente
um enigma a se decifrar no seu entorno. Esquecidos até do mundo rural
brasileiro, em lugares de difícil acesso, vivendo eles a partir do que pro-
duziam, em sua própria subsistência, mas conservando-se de geração
para geração, “os remanescentes de quilombos” forjaram involuntaria-
mente laços que os uniam entre si. Buscaram se diferenciar da sociedade
em geral, revelando-se como quilombo contemporâneo.
A concepção jurídico-historicista que toma como ponto de par-
tida a consulta feita pelo Conselho Ultramarino Português de 1740 à
Coroa Portuguesa e diz ser quilombo “toda habitação de negros fugidos
que passem de cinco, em parte desprovida, ainda que não tenham ran-
chos levantados nem se achem pilões”,passa a cada dia para o desbo-
tamento. Os territórios quilombolas ocupados, também denominados
“terras de preto”, “mocambo”, ”quilombolas”, “calhambolas” ou “comuni-
dades negras rurais” não se limitaram ao território brasileiro, ganhan-
do configuração em quase toda América Latina. Em resumo a palavra
quilombo, historicamente, significou povoação, aglomerado e, no senso
comum, passou a designar o lugar para onde iam os negros fugitivos das
senzalas no período da escravidão. No sentido contrário, a antropologia
social ofertou uma argumentação que nos retirasse da chave de leitura
de negros fugidos para a de grupos étnicos 5.
Jogados, assim, para debaixo do tapete jurídico das repúblicas
constitucionais brasileiras anteriores até reaparecerem no apagar das
luzes do ultimo processo constituinte de 1988, as comunidades negras
rurais remanescentes de quilombos parece não ter sido assimiladas pelo
processo radical de urbanização do país. Não se misturaram totalmente
às comunidades indígenas ou se transformaram plenamente em “cam-
poneses” ou homens rurais sindicalizados. Por pouco não ficaram de
4 WERNECK VIANNA, L.(org.). A judicializaçao da política e das relações sociais no Brasil. Rio
de Janeiro: Editora Revan, 1999, p.41.
5 ALMEIDA, A.W. B. de. Op. Cit. (mimeo), p.4.
262 Marilson Santana

fora de uma formalização e materialização de seus direitos e de um re-


conhecimento mais efetivo de seu território e de sua identidade cultural
como tal. Não aderiram nem às formas de ação do sindicalismo rural
de oposição dos anos de 1980, nem se enquadraram nos moldes de uma
luta pela terra, como aquela radicalizada pelo Movimento de Trabalha-
dores Rurais Sem Terra-MST a partir dos anos de 1990. Porém, a “re-
descoberta jurídica” dos quilombos no final do século XX parece ser um
dos casos raros de juridicidade provocando a luta política de um novís-
simo movimento social. Inverte-se um sentido que parecia óbvio em
nações modernas quando as ideias de conquistas históricas e políticas
se refletiam automaticamente nos textos formais de direito ou de car-
tas. Além disso, afronta-se, até agora, o sentido de uma “constituciona-
lização simbólica” 6, pois a organização quilombola colocou na agenda
política brasileira a urgência na “efetivação” de direitos constitucionais
culturais antes entendidos apenas como que albergados por aqueles dis-
positivos referentes ao art. 215 e 216, demonstrando a necessidade de
sua efetivação.
E aí várias questões se colocam para o cidadão brasileiro pre-
tensamente quilombola. O direito das comunidades remanescentes
de quilombos disposto no art. 68 da ADCT pode se limitar ao regime
de propriedade, em analogia, com os dispositivos referentes à reforma
agrária? Quais seriam os efeitos e consequências disso para aqueles pro-
prietários privados que dispõem de justo título de propriedade e boa fé,
mas possuem incidência de territorialidade quilombola em suas terras?
Se se tem no direito constitucional, público ou agrário elementos que
definem os índices de produtividade de uma determinada propriedade
rural, permitindo a sua desapropriação tanto para fins sociais quanto
para fins ambientais (as duas hipótese colocadas como desapropriações
para fins de reforma agrária), seria a etnicidade o critério de interpre-
tação e pressuposto fático de desapropriação referente à terra quilom-
bola, ativando uma limitação implícita da propriedade por sua função
cultural? Um “estatuto” jurídico próprio para os remanescentes de qui-

6 NEVES, M. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007.


O direito dos quilombolas, etnicidade e o constitucionalismo em um estado democrático de direito 263

lombos parece implicar reconhecê-los como destinatários de direitos


diferenciados no conteúdo e na legitimidade de exercício. Um rol de
direitos adequados (ou a serem adequados) ao procedimento formal e
material do sistema jurídico. Dispositivos expressos ou implícitos, capa-
zes de gerar segurança nesses sujeitos de direitos a ponto dos mesmos
não ficarem sem amparo social e estatal numa situação de conflito. A
construção desse suposto estatuto, implícito na Constituição, decorre-
ria não só da especificação de normas constitucionais em novas leis ou
novos diplomas normativos, mas, sobretudo, de uma nova leitura gera-
dora de sentido de validade e força, inserta numa integridade histórica
de princípios. Com isso se quer afirmar não um novo direito, mas uma
nova interpretação posta na relação entre constitucionalismo e inven-
ção democrática de direitos.
Entende-se, por aqui, o constitucionalismo  visto  como prática
social discursiva estabelecida nos processos de aquisição construtiva da
linguagem do direito, articulada no âmbito de especialistas, mas nem
por isso reduzida ao “gueto” dos juristas. Nota-se, contudo, a presença
de (i) um constitucionalismo hegemônico vertical - de cima para bai-
xo e (ii) um constitucionalismo não-hegemônico- horizontal -de baixo
para cima. O primeiro exercido no centro do poder judiciário a partir
de um controle de constitucionalidade concentrado nas decisões do Su-
premo Tribunal Federal-STF. O segundo entendido a partir do gozo da
liberdade, da igualdade e da solidariedade no âmbito da política e das
relações sociais.
Aquilo que  se chamaria de constitucionalismo não-hegemôni-
co horizontal se pauta na : (a) compreensão de Peter Härbele em a So-
ciedade Aberta dos Intérpretes da Constituição, em  que todos os destina-
tários de direitos fundamentais são também seus autores, e, portanto o
sistema constitucional é um sistema aberto, submetido a uma pluralida-
de de interpretações; e no (b) construtivismo judicial de Dworkin7, que
trazido para a realidade do Brasil e da América Latina reforça o controle

7 DWORKIN, R. O império do Direito. Trad. Jeferson Luiz Camarco. São Paulo: Martins Fontes,
1999.
264 Marilson Santana

difuso, obrigando os juízes civilistas a se reportarem sistematicamente


à história constitucional do país. Nenhum direito fundamental pode ser
“levado a sério” apenas quando chega ao Supremo Tribunal Federal ou a
Tribunais superiores e; (c) na intersubjetividade da ética do discurso de
Habermas8 que corrige os excessos da abertura de (a), reconstrói e sub-
mete ao crivo da argumentação democrática o esforço “hercúleo” de (b)
e pode se complementar com o empirismo da sociologia e antropologia
jurídica que investiga o relacionamento dos movimentos sociais e iden-
tidades culturais com a produção do direito. Assim, o constitucionalis-
mo horizontal não hegemônico resiste em ser plenamente especializa-
do, é intersubjetivo, intercultural, e não tem pretensão de definitividade,
pois sobrevive com o referido pano de fundo da invenção democrática
dos direitos – e - da possibilidade de correção difusa elaborada nas co-
marcas judiciais do país. A legitimidade de tal constitucionalismo, rea-
firma-se, decorre de demandas de movimentos sociais ou grupos or-
ganizados da sociedade civil que exigem uma nova leitura para os seus
direitos fundamentais. Uma leitura deste constitucionalismo pode ser
otimizada pela percepção de uma crescente judicialização das relações
sociais no Brasil, pois que não se exclui daquela tensão substancialista
entre o eixo Habermas-Garapon, enquanto o eixo Dworkin-Cappelletti
permite perceber que o “constitucionalismo comunitário toma a consti-
tuição como um conjunto de valores compartilhados por uma determi-
nada comunidade jurídica” 9.
O  constitucionalismo hegemônico precisa incluir no seu rol de
destinatários a linguagem de um constitucionalismo não-hegemônico.
A partir de conflitos, o constitucionalismo horizontal pode verticalizar
algumas de suas práticas, assimilando “standards” principiológicos e
normativos do constitucionalismo vertical. De outro modo,o consti-
tucionalismo vertical pode aprender a linguagem do mundo da vida,
da sociabilidade e da política de uma maneira menos formalista e des-
compassada da demanda livremente formulada na esfera pública. Essa
8 HABERMAS, J. Direito e Democracia: entre a factidade e validade, v. I. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997a.
9 WERNECK VIANNA, Op. Cit., p. 39.
O direito dos quilombolas, etnicidade e o constitucionalismo em um estado democrático de direito 265

bipartição pode ser vista como reflexo de que as “‘duas’ democracias da


Constituição – a da representação e a da participação, mesmo que essa
última esteja ali como dependente da mediação do direito- não estão em
oposição, nem formal nem substantivamente”.10 Assim, da reconstrução
que Habermas11 faz do construtivismo de Dworkin12 no capítulo V do
“Direito e Democracia- entre facticidade e validade”, nas entrelinhas, po-
de-se perceber que ele vê o “juiz hércules” como muito solitário e pas-
sivo para entender a participação e a representação democrática numa
conexão interna com o direito. Não conta com as alianças possíveis de se
fazer na esfera pública por meio da audiência de grupos sociais diversos,
o que seria uma construção menos solitária do direito na democracia.
Essa audiência não precisa ser concretamente posta. Um juiz sintoniza-
do com as discussões de seu tempo tem subsídio para justificar e ade-
quar suas decisões de modo mais democrático sem colocar em risco seu
saber.
A questão também estaria em saber o que o pluralismo político,
mais amplo num ambiente de constitucionalismo aberto e reconstruído,
permite dizer, em termos constitucionais, sobre o direito de minorias e
grupos específicos. Traduzindo para o universo deste singelo trabalho,
seria, por exemplo, o fato de saber tanto o que o executivo pode decre-
tar - constitucionalmente sobre a aquisição de propriedade quilombola
a partir da etnicidade; quanto que o poder judiciário pode constituir
como direito de propriedade de uma comunidade remanescente de qui-
lombos com a edição de sentenças judiciais. Se não há uma caracteri-
zação dos quilombos contemporâneos como movimentos sociais clássi-
cos, qual seria o seu modo de ação frente à administração pública e ao
acesso à justiça de forma a obter a aquisição da propriedade sem com-
prometer a sua identidade étnica? Esse conflito histórico, acima apon-
tado, entre controle difuso e concentrado da constitucionalidade pare-
ce ter se diluído quando a maioria dos juízos singulares aderem a um
10 Idem, p. 44.
11 HABERMAS, J. Direito e Democracia: entre a factidade e validade, v. I. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997b.
12 DWORKIN, Op. Cit.
266 Marilson Santana

constitucionalismo ditado pela Corte Constitucional máxima do país.


Uma ou outra decisão singular se demonstra como exceção a essa regra,
conforme se percebe na decisão proferida na Ação Civil Pública-ACP nº
93.4026-0/1993 e mais recentemente na ACP nº 2002.51.11.000118-2 (o
famoso “caso da Ilha de Marambáia no Rio de Janeiro). Por outro lado, o
Supremo Tribunal Federal- STF- ainda não se manifestou plenamente13
sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade- Adin nº 3239 proposta
pelo então Partido da Frente Liberal-PFL (atual Partido Democratas-
DEM), em desfavor da edição do Decreto 4887/03. Esta norma disci-
plina administrativamente o procedimento de titulação das terras de
remanescentes de quilombos.
Retomando e encaminhando a dimensão teórica do problema,
nota-se que a reconstrução de um discurso da etnicidade no Estado De-
mocrático de Direito implica abertura para diferença e para o reconhe-
cimento do direito à diferença como outro complementar da igualdade.
Demanda-se que os sistemas do mercado e do estado não colonizem o
mundo da vida dos grupos étnicos e que grupos étnicos não restrinjam
direitos fundamentais de seus membros individuais em nome de uma
confusão entre a autocompreensão da autonomia com soberania. Po-
rém, não se sabe até que ponto a “invasão do direito na política e na so-
ciabilidade” 14 também se opera no âmbito da etnicidade. Eis o que, em
última análise, pretende-se descobrir. Neste sentido,vale ressaltar que
o procedimentalíssimo de Habermas só se portou frente ao debate das
questões étnicas e de minorias nas respostas às críticas ao seu trabalho,
publicado no Brasil sob o título da “A Inclusão do outro”, Nesta obra, po-
de-se identificar o diálogo dele com Axel Honneth15. Diálogo também
travado com diversos autores do comunitarismo, multicultarismo e do
direito à diferença. Todos eles reclamavam da teoria procedimental uma
discussão social e política além do direito.

13 Não houve tempo de inserir aqui a discussão em torno dos votos do Ministro do Relator Celso
Peluso e do voto divergente da Ministra Rosa Weber.
14 WERNECK VIANNA. Op. Cit., p.23.
15 HONNETH, A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Editora 34:
São Paulo, 2003.
O direito dos quilombolas, etnicidade e o constitucionalismo em um estado democrático de direito 267

Nos processos judiciais e administrativos de reconhecimento


(e determinação) de direitos de comunidades indígenas e remanescen-
tes de quilombos tem-se a presença do antropólogo social como perito.
A prova pericial antropológica tem sido o elemento fático que permi-
te ao juiz ou ao órgão do Poder Executivo decidir sobre a titulação de
terras quilombolas no âmbito administrativo ou judicial, ainda que no
plano político o movimento negro tenha defendido a simples autode-
claração de uma comunidade determinada. A montagem daqueles ar-
gumentos especificamente “técnicos” e probatórios, contudo, leva em
consideração etnografias balizadas não só por uma dimensão do saber
especializado do antropológo social em suas diversas matizes, mas
principalmente pela interpretação judicial construída a partir da teoria
das etnicidade de Fridrick Barth16. Os laudos antropológicos elaborados
neste marco teórico atuam densamente no convencimento de juizes em
conflitos sociais intensos como se pôde verificar na disputa da comu-
nidade quilombola de Rio das Rãs no Estado da Bahia com um grupo
empresarial da agroindústria de algodão17.
A teoria da etnicidade de Barth18 tem se firmado como um com-
ponente central para a produção de diversas interpretações etnogáficas.
Propõe ele redesenhar os contornos do sentido de raça, etnia e nação,
com chaves para a definição de etnicidade que passam categoricamente
pelos conceitos de “fronteira” e “origem comunal”. É possível perceber e
adiantar que as fronteiras simbólicas implicam questões caras às noções
universalistas de direitos humanos e soberania popular, porque a seus
limites são estabelecidos como divisórias culturais que resignificam o
parentesco como marcada diferença de um grupo diante de outro ou
da sociedade em geral. Mais especificamente, as fronteiras étnicas se
colocam no interior de um Estado ou na confluência de mais de um
deles, provocando situações de estabilidade ou instabilidade política e

16 BARTH, Fredrik, Poutinghat, P &JOCELYNE Streiff-Fenart. Teorias da Etnicidade seguido de


Grupos Étnicos e suas Fronteiras. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.
17 CARVALHO, J.J. (org). O quilombo de Rios das Rãs: histórias, tradições, lutas. Salvador: Edu-
fba-Ceao, 1995.
18 BARTH, Fredrik, Poutinghat, P &JOCELYNE Streiff-Fenart, Op. cit., et. seq.
268 Marilson Santana

reagindo muitas vezes a um conceito de nação virtualizado ou imagi-


nariamente constituído. Assim, tem-se sistemas sociais multiétnicos e
interações sociais entre grupos étnicos que demarcam fronteiras num
ambiente próprio do Estado. A teoria da etnicidade pressupõe a revisão
das noções clássicas de Estado e nação, não no sentido de eliminá-las
abruptamente, mas sim na perspectiva de remodelar as suas nomeações.
Os grupos étnicos podem estabelecer distinções de “nós/eles”, sem abdi-
car da sua condição decidadania plena.
As fronteiras sócio-simbólicas de um grupo étnico, em suma, são
erigidas em função da comunicação e interação dos componentes do
grupo e da solidariedade. São também sociais, na medida em que se
definem a partir dos traços organizativos que permitem aos indivíduos
estabelecerem simbolismos capazes de definir quem pertence ao grupo
e quem se identifica com o seu modo de viver, ser e se comportar19. Tal
crença, por sua vez, sustenta as argumentações de filiação e compartil-
namento de traços culturais mais evidentes como cor, religião, língua ou
atributos “sobrenaturais”- então naturalizados- muitas vezes descritos
numa narrativa mítica. Esse sentimento de origem e pertença se grava
também por “negociação estratégica” ou diplomática de suas identida-
des em situação de conflito.
Como um reflexo da etnicidade no debate filosófico-político e
jurídico, encontramos a consistente construção político-liberal de Will
KYMLICKA20. Em sua teoria sobre o multiculturalismo, Kymlicka apro-
funda a questão do relacionamento dos direitos de grupos étnicos com
o Estado. Ele verifica que esses tipos de “exercício” coletivo e grupal de
direito não podem se “desadequar” dos direitos individuais. Assim, não
há como discutir exercício de direito de minorias sem o pano de fundo
da diversidade cultural21. As sociedades democráticas modernas impli-
cam relacionamento íntimo entre liberdade e cultura, entendida esta em
um sentido amplo que envolve uma série de atividades como educação,

19 Idem, p.196.
20 KYMLICKA, W. Multicultural Citzenship. New York: Oxford Univerity Press, 1995.
21 Idem, p.121.
O direito dos quilombolas, etnicidade e o constitucionalismo em um estado democrático de direito 269

religião, economia e outras práticas institucionalizadas. Por isso, propõe


ele um repensar do liberalismo clássico e das teorias que pesam a liber-
dade e a igualdade em termos não multiculturais.
Isso parece indicar uma certa oposição radical entre o pensamento
de Habermas e Kymlicka. Quer-se dizer que poderiam as idéias de “pa-
triotismo constitucional” não se conciliarem com a idéia de “cidadania
multicultural”. Nota-se, porém, o oposto. Nem o pensamento de Haber-
mas é cego à diferença advinda do pluralismo social contemporâneo, nem
Kymlicka é partidário de uma “guetificação” das culturas sem amparo
constitucional. Há não uma postura intermediária, mas nítida noção de
que a cidadania pressupõe tanto o respeito a direitos individuais igualitá-
rios quanto a sua inserção em identidades coletivas. O próprio Habermas22
assevera isso em expressa referência a Kymlicka. Percebe-se que o tema
requisita uma teoria do direito capaz de assimilar novas sociabilidades e
identidades. A posição de Habermas não é intermediária, mas assimila-
dora de uma subjetividade jurídica multicultural. Discrepa ele, o enten-
dimento de um direito subjetivo como uma propriedade a ser adquirida,
mas de algo a ser discursivamente exercido. Em sentido diferente, CAR-
DOSO DE OLIVEIRA23 também atravessa essa polêmica no âmbito da
antropologia social e jurídica, mas, ainda que estabeleça um diálogo com
o procedimentalismo, aposta em solução diversa, já que acentua o valor
do multiculturalismo, especialmente para tratar de questões de direito de
grupo como aqueles cuja titularidade é atribuída a minorias de qualquer
natureza. Para ele, as ideias de civismo ou patriotismo constitucional pa-
recem não cobrir as demandas de consideração e reconhecimento morais
que os indivíduos requerem na convivência social que buscam realizar,
contemplando não só a forma e o procedimento, mas a substância dos
direitos. Ainda, segundo esse autor, não se pode desprezar, em nome de
um patriotismo cívico ou constitucional, os valores locais e a sociabilida-

22 HABERMAS, J. A inclusão do outro – estudos de teoria política. São Paulo: Edições Loyola,
2002. p. 249.
23 CARDOSO DE OLIVEIRA, L.R. Direito Legal e insulto moral: dilemas da cidadania no Brasil,
Quebec e EUA. Rio de Janeiro: Relume Dumará/ Núcleo de Antropologia Política, 2002.
270 Marilson Santana

de existencial24. No campo do direito, Michel Rosenfeld25 traz esse dis-


curso substancialista com sua teoria das “identidades constitucionais”, em
pluralismo abrangente cujas críticas à teoria do discurso são rebatidas no
“Apêndice a facticidade e validação” o procedimentalismo responde se re-
colocando também no âmbito de um pensamento pós-metafísico avesso
a essencialismos e à restrição de pressupostos formais26 (HABERMAS27)
O procedimentalismo habermasiano não se propõe a explicar
juridicamente “a gramática moral dos conflitos sociais” no sentido de
Honneth (1996), todavia não deixa de lado a questão das identidades
coletivas especificas frente ao paradigma do Estado Democrático de Di-
reito. O direito das minorias e das identidades coletivas é também ex-
plicado pelo pensamento habermasiano, quando também avalia a “luta
por reconhecimento no Estado Democrático de Direito”. Com isso, Ha-
bermas entende que no constitucionalismo moderno, o cidadão pode se
ligar a uma Constituição de modo racional e se tornar membro de uma
comunidade de direito, na qualidade de “portador de direito subjetivo”
e como “pessoa de direito”. Em sua concepção, os direitos individuais
atribuídos nessas qualidades não são violados em nome de relações de
reconhecimento mútuo. Por isso ele coloca para si o problema formu-
lado na expressão que interroga: “Será que uma teoria dos direitos de
orientação tão individualista pode dar conta de lutas por reconheci-
mento nas quais parece tratar-se sobretudo de articulação e afirmação
de identidades coletivas?”28.
As críticas severas de Habermas à proposta comunitarista, acaba
por se inserir no ideário do “paternalismo” do Estado Social por não
compreender a “equiprocedência das autonomias pública e privada”29,
conclui que no Estado Democrático de Direito deve-se buscar um res-

24 Idem, p.67.
25 ROSENFELD, M. A identidade do sujeito constitucional. Trad. Menelick de Carvalho Netto.
Belo Horizonte. Mandamentos, 2003.
26 HABERMAS. A inclusão Op. Cit., p. 326-336.
27 Idem.
28 Ibidem, p. 229.
29 Ibidem, p. 234.
O direito dos quilombolas, etnicidade e o constitucionalismo em um estado democrático de direito 271

peito aos “contextos de vida” dos quais se originam, sem perder de vista
a possibilidade de universalização de direitos individuais30. Assim, esse
autor, assim como Kymlycka31 (1995), diferencia as lutas de movimentos
sociais, como o feminismo, da luta de minorias. E distingue entre essas
minorias, as nacionais das minorias étnicas (e aqui se pode situar os
quilombos distantes das populações indígenas), mas dispõe todas no
universo da luta política por reconhecimento32. Para ele, torna-se pro-
blemático, contudo, a adequação dessa demanda de identidades cole-
tivas com direitos coletivos, pois a estrutura do direito, na perspectiva
democrática é individualista.
Com referência aos grupos étnicos que se formam a partir de
uma eticidade coletiva, tal estrutura não pode ser garantida com a
existência de direitos coletivos no sentido do Estado-Social, nem pode
se fechar na redoma individualista do liberalismo, mas deve se conver-
ter em uma estrutura de direito individual que paradoxalmente garan-
ta a possibilidade de exercício de um modo de viver e fazer coletivo.
Habermas reconstrói a possibilidade de exercício de direitos coletivos
ainda que de maneira temporária33 e é neste sentido que se pretende
verificar a dimensão do direito dos quilombos enquanto grupos étni-
cos não só nessa perspectiva de horizonte teórico, mas no âmbito da
análise de processos administrativos e judiciais que dizem respeito a
titulação das terras.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, A.W. B. de. Quilombos: sematologia redefinida em face de


novas identidades. In. Frechal Terra de Preto: Um quilombo transfor-
mado em reserva extrativista. São Luiz: Projeto Vida de Negro, SMDH/
CCN-MA, 1996 (mimeo).

30 Ibidem, p. 238.
31 KYMLICKA, W. Op. Cit.
32 HABERMAS, A inclusão Op. Cit., p. 38.
33 Idem, p. 250.
272 Marilson Santana

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