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EFLCH-UNIFESP

Filosofia da Arte e Estética


Tarcísio Hayashi Valente - 112896

Sei que nada será como antes amanhã 1


Em, 1941 Pier Paolo Pasolini escreve uma carta a um amigo relembrando um episódio
durante a II Guerra Mundial, em que se embrenharam em uma floresta durante a noite e, lá,
puderam experimentar uma pausa, um respiro em meio à tensão que perpassava o período, ao
observar o lampejo dos vagalumes em meio à escuridão. É a partir desta carta que Georges Didi-
Huberman reflete sobre a possibilidade de experiência na contemporaneidade, o assunto principal
de Sobrevivência dos vagalumes. Em uma construção dialética, o filósofo francês traz autores de
argumentação pessimista para, em seguida, contrapô-los a partir de reflexões cuidadosas e
detalhistas das leituras discutidas por seus interlocutores ou pelo próprio autor. Sabendo que Didi-
Huberman é um grande leitor de Aby Warburg, pode-se pensar no livro como um painel do Atlas
Mnemosyne, em que as imagens são dispostas lado a lado, para que a proximidade revele o espaço
existente entre elas e, assim, mostre as tensões geradas pelas forças opostas que atuam sobre um
mesmo objeto. As ideias no texto se orientam por um movimento pendular, tal como as imagens
lidas por Warburg. O que pretendo nesta resenha é, de algum modo, percorrer o livro como se fosse
uma constelação de imagens.
Para mostrar a sobrevivência das imagens, Didi-Huberman inicia seu painel com a grande
luz do Paraíso de Dante, contraposta à pequena luz emitida pelos vagalumes no Inferno. Na Divina
Comédia observamos as luzes do Paraíso contrapostas aos brilhos intermitentes dos vagalumes. É
pelo lampejo errático dos vagalumes - e não pela grande luz do Paraíso - que se dá a continuidade
da prancha para o que me parece ser a imagem central do painel: a carta de Pasolini citada no
começo deste texto. Nesta carta o cineasta narra uma experiência vivida em meio à guerra, na qual
se embrenhou em um bosque com um grupo de amigos e lá avistaram os vagalumes, que remeteram
Pasolini a reflexões sobre o amor, a amizade, a despreocupação, alegria e inocência da juventude.
Em meio às trevas da guerra, as pequenas luzes despertam em Pasolini estes pensamentos, em uma
operação próxima à que Walter Benjamin identifica a imagem da felicidade em Proust2. A partir
desta experiência ativada pelas pequenas luzes, Pasolini coloca o fascismo como a grande luz que
elimina as demais. Há aqui a justaposição com a imagem de Dante, na qual o Paraíso é o lugar da
grande luz e o inferno é o espaço que cabe à resistência dos vagalumes. A tensão entre as imagens

1 Verso da canção Nada será como antes de Ronaldo Bastos e Milton Nascimento que coloca passado,
presente e futuro em tensão.
2MATOS, Olgária. Walter Benjamin e o zodíaco da vida. In: Benjaminianas: cultura capitalista e fetichismo
contemporâneo. São Paulo: Editora Unesp. p. 13-32.
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se evidencia quando vemos o Paraíso de Dante tomado pela grande luz, que em Pasolini, é o
fascismo. Ao mesmo tempo, vemos os vagalumes como sinal de esperança, uma possibilidade de
experiência sem culpa em Pasolini e também a sobrevivência das almas errantes no inferno de
Dante.
O pêndulo passa agora para o polo pessimista. Didi-Huberman nos leva então para 1975,
quando Pasolini retoma o tema dos vagalumes em um artigo entitulado O vazio do poder na Itália,
mas agora para decretar seu desaparecimento. Com o avanço do capitalismo, da adesão crescente
aos hábitos de uma sociedade burguesa, o cineasta vê o fascismo ganhar novas formas, agora
travestido de espetáculo. A violência física da guerra e do fascismo passa à violência simbólica, em
que a cultura de massa impede qualquer sobrevivência dos vagalumes, que agora representam as
culturas dos povos excluídos do grande jogo capitalista. Toda a sociedade aspira agora aos valores
da sociedade burguesa. Não se trata de uma resistência que não consegue fazer frente ao poder
totalitário, mas do desaparecimento da resistência, uma vez que esta passou para o outro lado.
Assim, não mais existem as pequenas manifestações dos vagalumes. A imagem anterior ganha
novos significados: nas trevas da guerra e do inferno, os vagalumes ainda emitiam algum sinal de
luz, que agora são encobertos completamente pelas luzes do neofascismo da sociedade de
espetáculo, nos termos de Guy Debord.
Didi-Huberman não se conforma com o tom apocalíptico de Pasolini. Por esta razão, vai
confrontar a morte dos vagalumes buscando suas sobrevivências. Parte então de Denis Roche, um
fotógrafo que, por sua vez, também desafia a morte anunciada por Pasolini. O que interessa aqui é
novamente movimentar o texto, que foi imobilizado no fim decretado por Pasolini. Roche entende o
ato de fotografar como uma busca, uma procura pelos vagalumes. Encontrados, eles podem
novamente desaparecer. Devemos então retomar a busca. O pêndulo em movimento se encontra
novamente no polo otimista. Os vagalumes rareiam, mas estão em algum lugar. Temos que procurá-
los, tal qual um fotógrafo busca o instante a ser fotografado. Didi-Huberman se atém à noção de
intermitência trazida da obra de Roche. O aparecimento e o desaparecimento, em uma “dança viva”
que recusa a imobilidade da morte dos vagalumes decretada por Pasolini. Em oposição a esta morte,
a sobrevivência, uma reaparição. Esta busca contínua representa, no texto de Didi-Huberman, o
desejo de avançar. A morte decretada por Pasolini não está nos vagalumes, mas no desejo de
procurá-los. Manter viva a busca pelos vagalumes é reativar a esperança abandonada por Pasolini. A
busca permanente pelos vagalumes transformada em um princípio, o “princípio esperança”
reivindicado por Didi-Huberman como um gesto político. Olhar o passado e não tê-lo como
encerrado, mas como ainda vivo no presente e com potência de transformação do futuro, tal como o
pensamento de Walter Benjamin com suas imagens dialéticas. Neste painel conjugado por Didi-
Huberman, seria como interrogar a imagem dos vagalumes, a ausência de suas luzes fracas, que
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pode representar morte, mas também desaparecimento. Imaginar a ausência como desaparecimento,
e não como morte, poderia nos remeter a imaginar qual seria o destino dos vagalumes e, assim, dar-
nos forças para empreender uma nova busca pelas pequenas luzes. É assim que Didi-Huberman
rompe com a imobilidade: entendendo o ato de imaginar como um modo de fazer política, de
resistir procurando sobrevivências.
Ainda que tenha rompido com a imobilidade de Pasolini, postulando a morte do desejo e
não a morte dos vagalumes, Didi-Huberman permanece inquieto. A resposta que encontrou, o
“princípio esperança”, deverá ser posta à prova, testada, para que continue em movimento. Para
tanto, o pêndulo se move novamente para o polo pessimista, atraído pelo pensamento de Giorgio
Agamben. Didi-Huberman indica pontos de contato com Agamben: este também não se quer
estagnado. Não é um filósofo do dogma - estável - mas sim do paradigma. Em nosso painel, a
imagem que temos é a do apocalipse proclamado por Agamben como a ausência de experiência. O
que caracteriza o nosso tempo é a destruição da experiência. O apocalipse de Agamben reverbera a
morte dos vagalumes de Pasolini, dado o seu caráter definitivo, sem espaço para qualquer
sobrevivência. É esse caráter totalizante da profecia de Agamben que Didi-Huberman enxerga como
problemático. Em seus escritos, Agamben se atém às grandes luzes dos regimes e de suas glórias e
deixa de olhar para as pequenas luzes. Assim, sua análise nos entrega um horizonte, uma abertura
que se estende ao infinito, totalizante, que não permite fragilidades ou intermitências. Tal como em
Pasolini, Didi-Huberman critica a ausência de dialética em Agamben. Ambos deixam de olhar para
o povo, para o lado oprimido, de onde viriam as luzes intermitentes. Concentram suas análises nas
luzes que cegam e ofuscam e, assim, ficam eles mesmos sem enxergar os vagalumes. Daí suas
análises pessimistas.
Movendo o pêndulo para o polo otimista, Didi-Huberman volta a buscar potência nas
imagens dialéticas de Walter Benjamin. É deste a frase “a experiência caiu de cotação” e é baseado
nela que Agamben constrói sua teoria apocalíptica sobre o fim da experiência. Didi-Huberman
transforma esta frase em um ostinato e, a cada repetição, revela o caráter transitório da queda de
experiência, oposto ao definitivo lido por Agamben. Não se trata da inexistência da experiência,
mas de sua perda gradual. Este ponto me parece importante para dirimir quaisquer aspectos de
inocência por parte de Didi-Huberman que possam ter surgido ao longo deste texto. Quando busca
o otimismo, não se trata de um otimismo ingênuo. Didi-Huberman nunca perde de vista o
recrudescimento do mundo, a queda da experiência, a escassez dos vagalumes. O que está em jogo
para ele é procurar as luzes, ainda que durante a queda. A queda em si é experiência, é ainda
movimento. Não nos é possível definir quando a queda cessará, ou quando atingiremos o chão.
Devemos então seguir buscando os vagalumes. Desta forma, Didi-Huberman formula uma ideia de
resistência da experiência: a experiência indestrutível, pois não se finda, apesar de tudo. O
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otimismo de Didi-Huberman é, mais precisamente, uma forma de organizar o pessimismo e não se
deixar cegar pelas luzes ofuscantes.
A conclusão de Sobrevivência dos vagalumes não poderia ser diferente: Didi-Huberman
aglutina imagens. Dos sonhos de Charlotte Beradt durante o III Reich vê-se a experiência interior,
uma outra história, que pouco conhecemos. Não se tratam de sonhos despreocupados, mas sonhos
que permitiram a escrita de uma história contada a partir das pequenas experiências, que
contrastaria com a grande história que conhecemos. Os sonhos se tornariam assim uma nova forma
de aprender e conhecer o mundo, para, de alguma forma, contar a história a contrapelo, como
pretendeu Benjamin. É conferindo valor a estas outras formas de narrar, procurando em lugares
inesperados, que podemos criar novas experiências durante a queda. Quando tornamos uma
narrativa fechada em uma passagem dialética, que concatena outros pontos que não estão à plena
vista, rompendo com a imobilidade. Buscar a experiência em lugares incomuns, seguir os rastros.
Das imagens de Bataille em A experiência interior, Didi-Huberman recupera o sujeito da
experiência como “olhos que procuram foco”, ou seja, que estão ativos durante a queda.
Interessante notar que Didi-Huberbam converge com Agamben neste ponto. Para este, ser
contemporâneo é justamente interrogar o tempo presente, e não simplesmente aderir
indiscriminadamente às suas tendências. É a isto que nos convoca Didi-Huberbam, quando requer
uma postura ativa à busca de experiências durante a queda do valor daquela. A ironia é que
Agamben parece ter aderido à ideia de fim da experiência no mundo contemporâneo por não
enxergar todas as suas partes, como indica Didi-Huberman. Assim, Sobrevivência dos vagalumes
nos convoca tanto para buscarmos sobrevivências que nos rodeiam, como para sermos nós mesmos
sobrevivências de nossa época, capazes de conjugar passado, presente e futuro nos intervalos das
grandes luzes do espetáculo.

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