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Confraria de Artes Liberais


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CURSO DE LÓGICA

AULA III

OS PREDICÁVEIS.

§ 1.Porfírio e a Isagoge

1. A Isagoge de Porfírio. – Seguindo o plano traçado para o curso, após termos tratado
dos antepredicamentos, trataremos dos chamados predicáveis, para depois voltar ao livro das
categorias. Como já dissemos, a Isagoge é um daqueles livros que foram incluídos pela
tradição no Órganon, embora não sejam de Aristóteles. O próprio nome Isagogé (εἰσ-αγωγή,
intro-dução) já revela essa pretensão. É uma introdução às Categorias escrita por Porfírio ao
seu discípulo Cisaórios.

2. Porfírio. – Porfírio, cujo nome próprio era Malco (“rei”), foi um filósofo neoplatônico
nascido em 233 ou 234 d.C. na cidade portuária de Tiro, na Fenícia, no atual território do
Líbano. Estudo em Alexandria, com Orígenes, e em Atenas, com Longino Cássio gramático e
retórico por quem foi nomeado Porfírio (em grego, “púrpura”, corante real pelo qual Tiro era
famosa). Aos 30 anos, foi a Roma se tornar discípulo de Plotino, de quem escreveu uma
famosa biografia que costuma ser posta como prefácio das Enéadas, também organizada pelo
discípulo. Escreveu cerca de setenta e sete obras, entre as quais, além da Vida de Plotino,
constam a Isagoge, a Vida de Pitágoras, Sobre a abstinência de comida animal e Contra os
Cristãos, em quinze volumes.

§ 2. Os predicáveis em gênero.

“Se alguém te pusesse a questão que te pus há pouco: ‘O que é a forma?’ e


respondesses ‘Rotundidade.’, e, então, então, ele te dissesse o que eu disse: ‘É a
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rotundidade forma ou uma forma?’, certamente lhe dirias que é uma forma,
não?”. (Mênon, 74 b)

“Quando quer que uma pessoa, em primeiro lugar, percebe somente o que é
comum a várias coisas, ela não deve desistir até perceber as diferenças nelas, na
medida em que essas existem nas várias coisas; e, reciprocamente, quando toda
sorte de diferenças (διαφορὰς) são percebidas em um grande número de objetos,
ela não deve se desencorajar, nem parar até ter reunido todas essas coisas
relacionadas em um gênero (γένους) em razão de sua essência (οὐσίᾳ)”.
(Político, 285 b)

3. Importância dos predicáveis. – Por mais deficiente que seja o ensino da gramática
hoje, os bons alunos, ao menos, saem da escola com algumas noções elementares de
gramática – funções sintáticas, classes gramaticais. No entanto, não se pode dizer o mesmo da
lógica. Uma dessas noções, absolutamente fundamental para a lógica clássica e realmente
fundamental para a meditação metódica é a dos predicáveis. Os chamados cinco predicáveis:
gênero, diferença, espécie, próprio e acidente. Antes, porém, de defini-los, é importante que
façamos um pequeno exercício de reconhecimento empírico.

4. Exercício de reconhecimento. – O predicado em cada uma dessas orações é gênero,


diferença, espécie, próprio ou acidente?

i) A lógica é uma arte.


ii) A arte de Caravaggio é a pintura.
iii) Estou disperso.
iv) O homem fala.
v) A estudiosidade é relativa ao desejo de conhecimento.
vi) O marxismo é uma cultura.
vii) A ética tem fim prático.
viii) Bucéfalo é um cavalo.
ix) O amor é paciente.
x) Carlos é juiz.

Uma técnica para descobrir o modo de predicação é se questionar a que questão essa
oração responde. São as questões:
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i) A que gênero de coisas o sujeito pertence?


ii) O que diferencia o sujeito essencialmente (genérica ou especificamente)?
iii) O que o sujeito é especificamente?
iv) O que lhe é próprio?
v) O que lhe acontece?

5. Que são os predicáveis. – Na primeira aula, quando falamos sobre a simples apreensão
e, particularmente, quando distinguimos as operações do intelecto das operações da
imaginação, vimos que o objeto sobre o qual das operações intelectuais são as formas
inteligíveis, que são universais, na medida em que se multiplicam em vários entes materiais.
Quando eu penso sobre o rio, ou sobre a humildade, não estou pensando sobre uma coisa
concreta, mas sobre muitas.

Sem entrarmos em questões metafísicas sobre o modo de ser dessas formas inteligíveis
(se elas subsistem fora das coisas materiais), podemos notar que de algum modo essa forma
inteligível se identifica com o sujeito do qual ela é predicado. Eu digo, por exemplo: o
jacarandá é uma árvore. Por um lado, jacarandá e árvore não são a mesma coisa, porque
existem árvores que não jacarandás; por outro lado, o jacarandá e a árvore são a mesma coisa.
Por isso dizemos: há uma identidade de certo modo. E é essa certa identidade que é o
fundamento da predicabilidade dessa forma: ela pode ser predicada de várias coisas. O
universal é essa forma que é em muitos e por isso pode ser dita de muitos (in multiset de
multis).

6. Quantos e quais são os predicáveis. –Os predicáveis, como vimos, são cinco: o
gênero, a diferença, a espécie, o próprio e o acidente. Eram chamados de quinquevoces,
πέντεφωναί (péntephonái). O predicável ou exprime a essência do sujeito (exprime o que ele
é) ou algo que não é da essência da coisa; é essencial ou acidental. Se exprime a essência, ou a
exprime toda, ou parte dela. O predicável que exprime toda a essência da coisa é a espécie. Se
exprime a parte, ou exprime a parte determinável (gênero), ou a parte determinante
(diferença). O predicável que exprime algo de fora da essência, ou exprime algo de fora da
essência mas dela decorrente necessariamente (próprio), ou algo contingente (acidente).
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7. Utilidade. –A consciência da distinção entre os predicáveis é útil de inúmeras formas.


Exemplificativamente: (i) é útil para compreender um fenômeno saber a que gênero pertence;
(ii) é útil para definir uma coisa saber o gênero e a diferença; (iii) se sei que algo é uma
propriedade, vou buscar as razões dela na essência da coisa; (iv) se sei que algo é um
acidente, vou buscar causas extrínsecas; (v) para saber se algo pertence a um gênero, vou ver
se as propriedades do gênero nela se verificam; (vi) para mostrar que um predicado é um
acidente, vou procurar casos em que a coisa não tenha aquele predicado; (vii) se sei que algo é
um predicável essencial, sei que não é possível fazer uma demonstração daquilo, porque a
demonstração tem como ponto de partida a definição; (viii) para organizar uma exposição, é
útil falar primeiro do genérico e depois do específico.

8. A divisão dos predicáveis segundo Francisco Suárez (Disputationes Metaphysicae,


disp. 6, s. VIII).

“Cinco predicáveis são suficientes. – Considerando, pois, o universal enquanto é


comparado aos inferiores, é dividido retamente em cinco membros. A razão desta
divisão pode ser brevemente assinalada assim: pois o que é um em muitos, ou
antes, predicável de muitos, pode exprimir algo essencial deles ou algo de fora de
sua essência; se é essencial, por sua vez, ou exprime toda a essência, e assim é o
universal específico, que somente pode ser comum a indivíduos que diferem em
número, porque somente os indivíduos podem convir em toda sua essência; ou
exprime somente parte da essência; e isso pode ocorrer de dois modos. Do
primeiro, de modo que seja como algo material e potencial, e assim é constituído
o universal genérico, que, enquanto tal, diz respeito necessariamente a diversas
espécies, porque aquela conveniência em uma natureza genérica, que é
fundamento dessa universalidade, nem é na essência total da coisa, nem em seu
último grau formal constitutivo e determinativo, senão em certo grau potencial,
determinável por várias diferenças. Do segundo, pode ocorrer que o universal
exprima parte essencial por modo de forma constituinte da sua unidade formal, e
assim é constituído o universal da diferença e é dito ser predicado in quale quid,
porque funciona [se habet] ao modo de forma constituinte da quididade. Este
modo de universalidade e de predicação pode ser às vezes comum a coisas que
diferem em espécie, mas às vezes somente a coisas que diferem em número, como
é patente nas diferenças últimas e subalternas. A razão é que tal modo de
constituição por diferença essencial não exclui por si diferenças ulteriores também
essencialmente constitutivas e que distinguem as essências específicas, nem, por
si, as requer; donde, por ser isso acidental ao dito universal, também lhe ocorre
que os inferiores em que se encontra diferem em espécie ou em número. Como se
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pode adaptar tudo isso ao que disse Porfírio no capítulo sobre a diferença e qual
foi sua opinião sobre esse ponto, é assunto que se deve deixar para os comentários
dialéticos. Finalmente se o universal ou predicável está fora da essência, pode
estar essencialmente vinculado à essência e dimanar dela; e este é chamado
próprio, mas, se convém contingentemente e totalmente acidentalmente, é
chamado acidente, o quinto predicável.”.

§ 3. Predicáveis em espécie.

9. Observações preliminares. – As noções dos predicáveis particulares não estão


absolutamente ausentes da nossa cultura. No entanto, como indica a equivocidade de seus
nomes, são confundidos de muitos modos. Por isso, como convém, antes de apresentar a
definição de cada um, tentarei remontar ao seu significado original. Os nomes muitas vezes
são como rios, cuja fonte é alta e pura, mas em seu curso temporal se tornam cada vez mais
baixos e poluídos.

10. Gênero. – Gênero vem do grego “génos” (γένος; pronuncia-se guênos).


Etimologicamente, significa família, clã, a multidão de homens (“seres humanos”)
quedescendem de um ancestral comum, como os Atridas descendem de Atreu, ou os Pelidas
de Peleu. É a gens romana. Algumas pessoas de mais idade ainda falam: “de que gente tu
és?”. O termo gênero é aparentado com geração, genital etc.

Por analogia, gênero passou a significar aquela forma inteligível comum a várias
espécies, que são, então, como irmãos (primos e irmãos). É importante apreciar a analogia:
ora confundir simbolicamente as coisas, ora distingui-las analiticamente, a fim de saber
articular suas semelhanças e diferenças. Então, o gênero é como uma família: o gênero dos
animais; o gênero das cores, que são irmãs entre si etc. Os predicáveis também, de certo
modo, são cinco irmãos.

Em definição rigorosa, o gênero é o que é predicado in quid de vários que diferem


especificamente. Ser predicado de vários é comum a todos os predicáveis. In quid é comum
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ao gênero e à espécie e distingue-os dos demais. “Que diferem especificamente” distingue da


espécie.

São parônimos de gênero o geral e o genérico.

11. Espécie. – Espécie vem do latimspecies e traduz o grego éidos (εἶδος). Ambos os
termos são relativos à visão e significam etimologicamente a forma, ou beleza externa, de
cada coisa (acepção conserva no termo “especioso”). Por analogia, significa aquela forma
inteligível que compreende toda a essência da coisa e que é comum aos vários indivíduos da
espécie. Duas explicações convergentes do termo: por um lado, como já dissemos, há uma
analogia entre a forma visível e a forma inteligível (como o uso de “forma” indica). “Forma
visível” já é uma ampliação da noção simples de forma, a figura da coisa, isto é, os limites de
sua quantidade. Por analogia, a forma inteligível é os limites essenciais (de seu esse, daquilo
que ela é e pode ser). A outra explicação é que a espécie já é mais imaginável que o gênero.
Há uma diferença entre eu dizer “imagina um homem” e “imagina um animal”.

Mas mesmo no âmbito lógico, “espécie” tem dois sentidos: o de mero correlativo de
gênero e o de predicável. Como mero correlativo de gênero, dizemos que ser vivo e animal
estão numa correlação de gênero e espécie.

Como predicável, a espécie define-se como o que é predicado in quid de vários que
diferem em número.

Confundem-se, no uso comum, espécie, forma, modo (ou ainda: modalidade), tipo.
Como vimos, forma tem o significado primário de figura, os limites qualitativos da
quantidade; por analogia de proporcionalidade, significa aquela forma essencial, os limites da
do ser, isto é, do que a coisa é e pode ser. Espécie é a forma específica. Modo é como se fosse
a espécie de um análogo. O todo análogo não se divide em espécie, mas em modos. O tipo é
um conceito peculiar: tipos sociais (democracia liberal, despotismo esclarecido, governo
teocrático), tipos humanos (o filósofo, o evangélico, o conserva), tipos de relações sociais
(casamento, empréstimo). Podemos falar de tipos ideais, de tipos médios.
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12. Diferença. – Diferença é um termo muito equívoco. Em primeiro lugar, diferença é


qualquer característica, predicado, pelo qual uma coisa se distingue de outra, ou mesmo uma
coisa de si mesma: “Estás diferente!”. Em um sentido mais estrito, é algo de inseparável, pelo
qual a coisa se distingue das outras: o homem é diferente, porque ele fala. No sentido mais
estrito, diferença é aquilo por que uma coisa difere essencialmente de outra, como a
racionalidade. A diferença pode ser vista enquanto constitutiva da espécie ou enquanto
divisiva do gênero.

Convém, ainda, distinguir o diferente do diverso. Diferentes são as coisas que tem um
gênero em comum. Diversas são as coisas heterogêneas, de gêneros diversos. A partir disso,
podemos começar a entender a distinção entre o todo análogo, que se divide em modos, do
gênero, que se divide em espécies. Os modos são coisas diversas, enquanto as espécies são
diferentes.

A diferença é aquilo que é predicado in quale quid (essencialmente, mas in quale) de


vários que diferem especificamente. É aquilo por que a espécie excede seu gênero. É aquilo
que divide coisas que são colocadas sob um mesmo gênero. É aquilo por que os singulares
difere especificamente entre si. É aquilo porque uma espécie é distinta de outra e é sua parte
essencial.

13. Próprio. –O próprio (proprium; ἴδιον, ídion), no uso ordinário, é aquilo que distingue
uma coisa das outras; o que não é comum a outras coisas. Nesse sentido, parece se confundir
com a diferença. “Propriedade”, por sua vez, que é o substantivo abstrato derivado do adjetivo
“próprio” parece se confundir com atributo, predicado.

Podemos distinguir quatro significados do próprio: (i) o que pertence acidentalmente


somente a uma espécie, mas não a toda ela, como ser gramático; (ii) o que pertence
acidentalmente a todos de uma espécie, mas não somente a ela, como ser bípede; (iii) o que
pertence acidentalmente a todos de uma espécie e somente a ela, mas não sempre, como
encanecer; (iv) o que pertence acidentalmente a todos de uma espécie, somente a ela, e
sempre, como a faculdade de rir, ao homem, e a de relinchar, ao cavalo. Este último é o
próprio predicável.
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O próprio define-se como o predicável de muitos acidental e necessariamente.

O próprio distingue-se dos predicados essenciais, porque a sua ligação com o sujeito
demanda um por quê. Se digo que a soma dos ângulos internos do triângulo é igual a dois
retos, essa afirmação exige um porquê. O mesmo não acontece se digo que o triângulo tem
três lados. O único porquê que posso dar é o por definição. O bom pastor dá a vida por suas
ovelhas.

14. Acidente. –O acidente (accidens; συμβεβηκός, symbebekós). Etimologicamente,


symbebekós é o que vai com algo, o con-veniente. Accidens é o que cai junto de algo. No
grego, pelo prefixo syn-, e no latim, pelo prefixo ad-, se representa algo que supõe outro. O
grego acentua a idéia de algo que acompanha, e o latim acentua a idéia de algo casual,
contingente.

Na aula passada, quando tratamos dos antepredicamentos, distinguimos de modo breve


a substância do acidente. No contexto dos predicáveis, porém, acidente não tem o mesmo
significado. Por isso, os escolásticos distinguiam o acidente predicamental (compreendido
por oposição à substância) do acidente predicável (compreendido por oposição aos demais
predicáveis). O determinante no acidente predicamental é aquela nota de acompanhar algo.
Todo acidente, por sua essência, exige um quê no qual ele exista.

O determinante, porém, no acidente predicável, é a nota da casualidade. É essa nota que


distingue o acidente predicável do próprio. O acidente é aquilo que vai e vem sem a
corrupção do sujeito, que pode ser ou não ser.

§ 6. Resumo e Exercício.

15. Resumo.
I. Os predicáveis são as formas inteligíveis enquanto podem ser predicadas de várias coisas
(sujeitos).
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II. Os predicáveis dividem-se, em razão da identidade com o sujeito, em essenciais e


acidentais, enquanto se identificam enquanto uma essência ou enquanto um todo acidental (o
todo composto da substância com seus acidentes). Os predicáveis essenciais dividem-se em
totais (espécie) e parciais, enquanto exprimem toda a essência da coisa (ainda que
confusamente) ou parte dela. Os predicáveis essenciais parciais dividem-se em gênero e
diferença, enquanto exprimem a parte determinável ou a parte determinante. Os predicáveis
acidentais dividem-se em necessários (próprio) ou contingentes (acidentes), enquanto se
seguem da essência da coisa ou não.
III. Os predicáveis têm muitas utilidades. Para a ciência demonstrativa, que demonstra
verdades certas a partir de premissas per se notae, são úteis, porque as premissas per se notae
são aquelas em que se afirmam predicados essenciais ou se negam predicados opostos aos
essenciais, e as verdades certas demonstradas são aquelas em que se predicam propriedades.
Para a ciência dialética, que põe à prova as opiniões, são úteis, de muitos modos, por
exemplo: (i) para encontrar a definição de algo (unívoco), é útil primeiro procurar seu gênero
e depois sua diferença; (ii) para saber se um predicado é de fato próprio e, portanto,
necessariamente dito do sujeito, é útil buscar sua razão na essência da coisa; (iii) para saber se
uma coisa pertence a um gênero, é útil buscar se os próprios do gênero se verificam na coisa.

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