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Arthur Danto O FILÓSOFO COMO ANDY WARHOL

“‘Warhol, disse Victoria pomposamente, ‘o Warhol inicial, antes do tiro’ – ‘Onde estaria a América sem
Andy Warhol?’ Eu disse. ‘Ele deixou sua marca na cultura americana... Inventou superstars e toda aque-
la droga. As coisas não terminaram na lata de sopa de tomate. Andy Warhol foi um gênio. Ele – o que
ele tinha, era como uma grande antena de rádio. Funcionava em todas as vibrações cósmicas. Ele ape-
nas fazia as coisas, acho que não sabia a metade delas. Ele era um desses idiotas engenhosos, penso.
Suas pinturas são muito vagas, Vick. Não consigo fazer uma leitura delas.”
Thom Jones, “The Pugilist at Rest”.

Há uma passagem penetrante em To the lighthouse de Virginia Woolf,


na qual o filósofo, Mr. Ramsay, contempla com uma melancólica complacência
o poder e os limites da sua mente. Compreendendo o pensamento como se este
se encontrasse numa espécie de profundidade e ordenado em uma certa ordem
pelas letras do alfabeto, Mr. Ramsay assim reflete:
“A sua mente esplêndida não tinha nenhum tipo de dificuldade em per-
correr aquelas letras uma por uma, segura e minuciosamente, até que ele
alcançasse, digamos, a letra Q. Ele atingiu o Q. Muito poucas pessoas em toda a
Inglaterra haviam alcançado a letra Q.... Mas depois do Q? O que se segue?
Depois do Q há um vasto número de letras da qual a última é dificilmente visível
aos olhos mortais, mas reluz vermelha à distância. Z somente é alcançada por um
único homem uma só vez em uma geração. Então, se ele conseguisse alcançar o
R, já seria uma grande coisa. Aqui ao menos estava o Q. E o Q estava garantido.
O Q ele poderia demonstrar...
Mas ouvia as pessoas comentarem que ele era um fracasso – o R estava além dele.
Ele nunca alcançaria o R.”
É difícil deixar de especular acerca do fato de que Andy Warhol
estivesse aludindo a essa passagem (Barbara Rose uma vez me contou que ele
era um homem bem mais literato do que deixava perceber) no título da sua
publicação de 1975, The Philosophy of Andy Warhol (From A to B and Back
Again). Pode-se pensar que um filósofo que vai do A ao B e necessita começar
novamente não parece ser mesmo um filósofo (apesar do fundador da fenome-
nologia, Edmund Husserl, se autodenominar um perpétuo iniciante). “From A
to B and Back Again” 1 adequa-se à imagem de um tipo de tolo, que Warhol 1. Literalmente traduzido
procurou projetar como um traço de sua persona – a imagem de um daqueles como “De A a B e Retornan-
do Novamente”, porém a
“pin headed gum chewers” (estúpidos mastigadores de chicletes), como um tradução perde o jogo do
crítico não simpatizante da pop certa vez chamou aquela geração de artistas palíndromo das iniciais das
que havia recém-invadido as galerias de Nova Iorque, antes dominadas pelos palavras na frase em inglês –
“From A to B and Back
grandes nomes do Expressionismo Abstrato. Mas apresentar-se, em uma
Again”. (N. do T.)
primeira instância, como possuindo toda uma filosofia teria soado com uma
nota de incongruência cômica, junto a um corpus artístico que consistia em

Vista da instalação “Warhol”, Stable Gallery, New York, 1964. Danto 99


Arthur Danto O FILÓSOFO COMO ANDY WARHOL

“‘Warhol, disse Victoria pomposamente, ‘o Warhol inicial, antes do tiro’ – ‘Onde estaria a América sem
Andy Warhol?’ Eu disse. ‘Ele deixou sua marca na cultura americana... Inventou superstars e toda aque-
la droga. As coisas não terminaram na lata de sopa de tomate. Andy Warhol foi um gênio. Ele – o que
ele tinha, era como uma grande antena de rádio. Funcionava em todas as vibrações cósmicas. Ele ape-
nas fazia as coisas, acho que não sabia a metade delas. Ele era um desses idiotas engenhosos, penso.
Suas pinturas são muito vagas, Vick. Não consigo fazer uma leitura delas.”
Thom Jones, “The Pugilist at Rest”.

Há uma passagem penetrante em To the lighthouse de Virginia Woolf,


na qual o filósofo, Mr. Ramsay, contempla com uma melancólica complacência
o poder e os limites da sua mente. Compreendendo o pensamento como se este
se encontrasse numa espécie de profundidade e ordenado em uma certa ordem
pelas letras do alfabeto, Mr. Ramsay assim reflete:
“A sua mente esplêndida não tinha nenhum tipo de dificuldade em per-
correr aquelas letras uma por uma, segura e minuciosamente, até que ele
alcançasse, digamos, a letra Q. Ele atingiu o Q. Muito poucas pessoas em toda a
Inglaterra haviam alcançado a letra Q.... Mas depois do Q? O que se segue?
Depois do Q há um vasto número de letras da qual a última é dificilmente visível
aos olhos mortais, mas reluz vermelha à distância. Z somente é alcançada por um
único homem uma só vez em uma geração. Então, se ele conseguisse alcançar o
R, já seria uma grande coisa. Aqui ao menos estava o Q. E o Q estava garantido.
O Q ele poderia demonstrar...
Mas ouvia as pessoas comentarem que ele era um fracasso – o R estava além dele.
Ele nunca alcançaria o R.”
É difícil deixar de especular acerca do fato de que Andy Warhol
estivesse aludindo a essa passagem (Barbara Rose uma vez me contou que ele
era um homem bem mais literato do que deixava perceber) no título da sua
publicação de 1975, The Philosophy of Andy Warhol (From A to B and Back
Again). Pode-se pensar que um filósofo que vai do A ao B e necessita começar
novamente não parece ser mesmo um filósofo (apesar do fundador da fenome-
nologia, Edmund Husserl, se autodenominar um perpétuo iniciante). “From A
to B and Back Again” 1 adequa-se à imagem de um tipo de tolo, que Warhol 1. Literalmente traduzido
procurou projetar como um traço de sua persona – a imagem de um daqueles como “De A a B e Retornan-
do Novamente”, porém a
“pin headed gum chewers” (estúpidos mastigadores de chicletes), como um tradução perde o jogo do
crítico não simpatizante da pop certa vez chamou aquela geração de artistas palíndromo das iniciais das
que havia recém-invadido as galerias de Nova Iorque, antes dominadas pelos palavras na frase em inglês –
“From A to B and Back
grandes nomes do Expressionismo Abstrato. Mas apresentar-se, em uma
Again”. (N. do T.)
primeira instância, como possuindo toda uma filosofia teria soado com uma
nota de incongruência cômica, junto a um corpus artístico que consistia em

Vista da instalação “Warhol”, Stable Gallery, New York, 1964. Danto 99


2. Uma espécie de tiras de quadrinhos, latas de sopa, caixas de Brillo2, e os tipos de imagens que conceito de filme. Refiro-me ao seu filme de 1964, Empire, sobre o qual
“bom-bril”. (N. do T.) os críticos estavam dispostos a tratar como estereótipos da falta de razão, de alguém poderia divagar, sob o equívoco que promete o título, como sendo uma
gosto e de pensamento própria da cultura popular americana, submersos daquelas sagas de colonização ou fortuna, em que uma nação ou um magnata
demais na banalidade para se equipararem até mesmo ao kitsch. Pois o kitsch, constrói um império. O filme realmente tem uma duração épica, mas é marca-
ao menos, tem a presunção de que seu público não distingue classe ou do por uma total ausência de incidentes, e o título é um trocadilho com o
seriedade artística. Na escala das imagens, Warhol permanecer no A: B teria Empire State Building, que vem a ser o seu único ator, fazendo o de costume,
parecido muito além do seu alcance, tanto quanto o R para a “mente esplêndi- a saber, nada. Imagine que alguém, inspirado em Warhol, fosse fazer um filme
da” do Mr. Ramsay. chamado Ou um/ Ou outro (Either/Or) , “baseado”, tal como promete o título,
Pelo menos desde a exposição das Brillo Boxes (e outras coisas) de na obra-prima do célebre filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard. Conceda
Warhol na Stable Gallery em Manhattam à rua 74 Leste, na primavera de 1974, que o filme seja tão extenso quanto Empire (ou ainda mais longo, se quiser) e
tenho sentido que ele possuía uma inteligência filosófica de uma grandeza consista em nada além da página de rosto do livro. Deve haver aqui, pensa o
extasiante. Ele não tocava alguma coisa sem com isso também tocar as fron- produtor, uma piada familiar aos conhecedores dos aforismos secretos de
teiras do pensamento, pelo menos do pensamento sobre arte. O texto de 1975, Kierkegaard que nos permite ponderar a ambigüidade implícita no conceito de
assim como o seu volume anexo PoPism: The Warhol´s 60s, faísca com obser- livros, que existem tanto como objetos físicos, com determinada cor, tamanho
vações conceituais e testemunhos carregando numa linguagem de aforismos e peso, quanto como objetos significantes, que possuem um certo conteúdo e
picante. (“Tão cheio de espinhos e secretas especiarias, que você me fez espirrar são apresentados em uma dada linguagem passível de uma tradução, o que não
e gargalhar”, diz Nietzsche no seu “written and painted thoughts”, em Beyond faz sentido com objetos físicos. Essa ambigüidade transfere-se imediatamente
Good and Evil). Estou aqui me referindo à própria arte que os críticos de para o conceito de alguma coisa ser baseada em algo. Tome um dos seus aforis-
Warhol consideraram irracional e falsa. Diferente deles, porém, acredito que mos: “O que os filósofos têm a dizer sobre a realidade é normalmente tão desapon-
entre as grandes contribuições de Warhol para a história da arte está o fato de tador quanto uma vitrine em que se lê um letreiro dizendo ‘Passa-se Roupas Aqui’.
que ele colocou a prática artística no nível de uma autoconsciência filosófica Se você entrasse com as suas roupas para ser passadas ali se sentiria um idiota,
jamais atingida. Hegel havia proposto que a arte e a filosofia, em seus termos, porque era apenas o letreiro que estava sendo comercializado”. Os dois modos de
são dois “momentos” do Espírito Absoluto. (A religião era um terceiro). Em existência de um letreiro, pode-se dizer, são: um retângulo de compensado com
certo sentido, se ele estiver certo, deve haver uma identidade básica entre eles, tinta na sua superfície, que custa tanto na loja onde se faz e vende letreiros; e
e Hegel acreditava que a arte preencheria o seu destino histórico e espiritual um emblema que dá informações para clientes potenciais – para que possam,
quando a sua prática fosse revelada como um certo tipo de filosofia em movi- por exemplo, levar as suas roupas para ser passadas no lugar onde o letreiro,
mento. Que alguém tão astuto como Warhol escolhesse disfarçar a sua profun- por convenção, sinaliza que aquela é a atividade que ali se comercializa. Esses
da seriedade por trás do que, nos anos sessenta, era considerado eclético traz, são também os dois modos de existência de um livro – como alguma coisa ven-
logicamente, uma certa adequação alegórica. De qualquer modo, devo neste dida por peso, por assim dizer; e como algo denso de sabedoria.
ensaio tentar revelar alguns fragmentos da estrutura filosófica da arte de É essa ambigüidade que torna o filme Ou um/Ou outro (Either/Or) um
Warhol. Juntamente, procurarei relacionar esta abordagem com algumas das tipo de brincadeira, ou, o que importa, o Empire, um tipo de brincadeira. A
suas circunstâncias culturais bem como da história da arte. Mas o meu ensaio mesma ambigüidade, de fato, gerou certas obras paradigmáticas de Warhol – tal
difere do exercício da história da arte no sentido em que pretendo identificar a como o exemplo característico das Brillo Boxes, que enquanto trabalhos de arte,
importância da arte em questão, não em termos da arte que influenciou (ou possuem todos os tipos de direitos e privilégios que meras caixas de Brillo sis-
pela qual foi influenciada), mas em termos do pensamento que ela nos trouxe tematicamente não têm, não sendo, portanto, arte. Vejamos em seguida o que
à consciência. O que quer que Warhol tenha feito, “ele fez como um filósofo poderiam ser duas brincadeiras à la Kierkegaard/ Warhol:
faria”, escreveu Edmund White em um tributo à sua memória. Ele violou todas “Um homem vê o que parece ser uma embalagem de sabão comum
as condições tidas como necessárias a uma obra de arte mas, ao fazer isso, re- numa vitrine e, precisando transportar alguns livros, entra e pergunta ao caixa
velou a essência da arte. E como continua White, tudo isso era “exibido sob a se pode pegá-la. Acontece que a loja era, na verdade, uma galeria de arte, e o
guisa de humor e de um cinismo propositado, como se fosse um químico que con- caixa um marchand, que responde: “Aquilo é um trabalho de arte, vale no
3. Apud Andy Warhol: duzisse o mais delicado dos experimentos no final de uma galeria de tiro ao alvo” 3. momento trinta mil dólares.”
A Retrospective. New Quero ilustrar meu argumento com o exemplo de um dos filmes de “Um homem vê o que parece ser uma das Brillo Boxes de Warhol no
York: Kyneston McShine/
MoMA, 1989, p. 441.
Warhol, o qual, qualquer que seja a sua cotação na história do cinema, possui que aparenta ser uma galeria de arte e pergunta o preço ao marchand, que era
uma contribuição sem precedentes a fazer a nossa compreensão filosófica do na verdade um vendedor. O mesmo diz ao homem que pode pegá-la, pois esta-

100 Danto Danto 101


2. Uma espécie de tiras de quadrinhos, latas de sopa, caixas de Brillo2, e os tipos de imagens que conceito de filme. Refiro-me ao seu filme de 1964, Empire, sobre o qual
“bom-bril”. (N. do T.) os críticos estavam dispostos a tratar como estereótipos da falta de razão, de alguém poderia divagar, sob o equívoco que promete o título, como sendo uma
gosto e de pensamento própria da cultura popular americana, submersos daquelas sagas de colonização ou fortuna, em que uma nação ou um magnata
demais na banalidade para se equipararem até mesmo ao kitsch. Pois o kitsch, constrói um império. O filme realmente tem uma duração épica, mas é marca-
ao menos, tem a presunção de que seu público não distingue classe ou do por uma total ausência de incidentes, e o título é um trocadilho com o
seriedade artística. Na escala das imagens, Warhol permanecer no A: B teria Empire State Building, que vem a ser o seu único ator, fazendo o de costume,
parecido muito além do seu alcance, tanto quanto o R para a “mente esplêndi- a saber, nada. Imagine que alguém, inspirado em Warhol, fosse fazer um filme
da” do Mr. Ramsay. chamado Ou um/ Ou outro (Either/Or) , “baseado”, tal como promete o título,
Pelo menos desde a exposição das Brillo Boxes (e outras coisas) de na obra-prima do célebre filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard. Conceda
Warhol na Stable Gallery em Manhattam à rua 74 Leste, na primavera de 1974, que o filme seja tão extenso quanto Empire (ou ainda mais longo, se quiser) e
tenho sentido que ele possuía uma inteligência filosófica de uma grandeza consista em nada além da página de rosto do livro. Deve haver aqui, pensa o
extasiante. Ele não tocava alguma coisa sem com isso também tocar as fron- produtor, uma piada familiar aos conhecedores dos aforismos secretos de
teiras do pensamento, pelo menos do pensamento sobre arte. O texto de 1975, Kierkegaard que nos permite ponderar a ambigüidade implícita no conceito de
assim como o seu volume anexo PoPism: The Warhol´s 60s, faísca com obser- livros, que existem tanto como objetos físicos, com determinada cor, tamanho
vações conceituais e testemunhos carregando numa linguagem de aforismos e peso, quanto como objetos significantes, que possuem um certo conteúdo e
picante. (“Tão cheio de espinhos e secretas especiarias, que você me fez espirrar são apresentados em uma dada linguagem passível de uma tradução, o que não
e gargalhar”, diz Nietzsche no seu “written and painted thoughts”, em Beyond faz sentido com objetos físicos. Essa ambigüidade transfere-se imediatamente
Good and Evil). Estou aqui me referindo à própria arte que os críticos de para o conceito de alguma coisa ser baseada em algo. Tome um dos seus aforis-
Warhol consideraram irracional e falsa. Diferente deles, porém, acredito que mos: “O que os filósofos têm a dizer sobre a realidade é normalmente tão desapon-
entre as grandes contribuições de Warhol para a história da arte está o fato de tador quanto uma vitrine em que se lê um letreiro dizendo ‘Passa-se Roupas Aqui’.
que ele colocou a prática artística no nível de uma autoconsciência filosófica Se você entrasse com as suas roupas para ser passadas ali se sentiria um idiota,
jamais atingida. Hegel havia proposto que a arte e a filosofia, em seus termos, porque era apenas o letreiro que estava sendo comercializado”. Os dois modos de
são dois “momentos” do Espírito Absoluto. (A religião era um terceiro). Em existência de um letreiro, pode-se dizer, são: um retângulo de compensado com
certo sentido, se ele estiver certo, deve haver uma identidade básica entre eles, tinta na sua superfície, que custa tanto na loja onde se faz e vende letreiros; e
e Hegel acreditava que a arte preencheria o seu destino histórico e espiritual um emblema que dá informações para clientes potenciais – para que possam,
quando a sua prática fosse revelada como um certo tipo de filosofia em movi- por exemplo, levar as suas roupas para ser passadas no lugar onde o letreiro,
mento. Que alguém tão astuto como Warhol escolhesse disfarçar a sua profun- por convenção, sinaliza que aquela é a atividade que ali se comercializa. Esses
da seriedade por trás do que, nos anos sessenta, era considerado eclético traz, são também os dois modos de existência de um livro – como alguma coisa ven-
logicamente, uma certa adequação alegórica. De qualquer modo, devo neste dida por peso, por assim dizer; e como algo denso de sabedoria.
ensaio tentar revelar alguns fragmentos da estrutura filosófica da arte de É essa ambigüidade que torna o filme Ou um/Ou outro (Either/Or) um
Warhol. Juntamente, procurarei relacionar esta abordagem com algumas das tipo de brincadeira, ou, o que importa, o Empire, um tipo de brincadeira. A
suas circunstâncias culturais bem como da história da arte. Mas o meu ensaio mesma ambigüidade, de fato, gerou certas obras paradigmáticas de Warhol – tal
difere do exercício da história da arte no sentido em que pretendo identificar a como o exemplo característico das Brillo Boxes, que enquanto trabalhos de arte,
importância da arte em questão, não em termos da arte que influenciou (ou possuem todos os tipos de direitos e privilégios que meras caixas de Brillo sis-
pela qual foi influenciada), mas em termos do pensamento que ela nos trouxe tematicamente não têm, não sendo, portanto, arte. Vejamos em seguida o que
à consciência. O que quer que Warhol tenha feito, “ele fez como um filósofo poderiam ser duas brincadeiras à la Kierkegaard/ Warhol:
faria”, escreveu Edmund White em um tributo à sua memória. Ele violou todas “Um homem vê o que parece ser uma embalagem de sabão comum
as condições tidas como necessárias a uma obra de arte mas, ao fazer isso, re- numa vitrine e, precisando transportar alguns livros, entra e pergunta ao caixa
velou a essência da arte. E como continua White, tudo isso era “exibido sob a se pode pegá-la. Acontece que a loja era, na verdade, uma galeria de arte, e o
guisa de humor e de um cinismo propositado, como se fosse um químico que con- caixa um marchand, que responde: “Aquilo é um trabalho de arte, vale no
3. Apud Andy Warhol: duzisse o mais delicado dos experimentos no final de uma galeria de tiro ao alvo” 3. momento trinta mil dólares.”
A Retrospective. New Quero ilustrar meu argumento com o exemplo de um dos filmes de “Um homem vê o que parece ser uma das Brillo Boxes de Warhol no
York: Kyneston McShine/
MoMA, 1989, p. 441.
Warhol, o qual, qualquer que seja a sua cotação na história do cinema, possui que aparenta ser uma galeria de arte e pergunta o preço ao marchand, que era
uma contribuição sem precedentes a fazer a nossa compreensão filosófica do na verdade um vendedor. O mesmo diz ao homem que pode pegá-la, pois esta-

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va mesmo prestes a jogá-la fora, ela havia ficado na vitrine temporariamente fotografia de Ansel Adams dos Montanhas Rochosas (Rockies) imobiliza a pai-
após ser aberta.” sagem de um jeito que chega a torná-la um símbolo natural de eternidade; essa
Talvez a metade dos visitantes da Stable Gallery tivesse se decep- fotografia é uma imagem parada de um objeto parado4. Ainda assim, percebe- 4. No inglês “still”, também
cionado com o fato de que algo tão rente à realidade pudesse ser apresentado mos que ela não mostra mais o congelamento do que as fotografias de Cartier- entendido como morto,
petrificado, eternizado.
como arte, sem que nenhuma diferença perceptual relevante os distinguisse. E, Bresson evidenciam o movimento. Imagens paradas não mostram nem o con- (N. do T.)
talvez, a outra metade estivesse exultante com o fato de que certas coisas gelamento, nem o movimento. Pense, a título de comparação, na diferença
mostradas como arte pudessem estar tão aderidas à realidade que as duas fos- entre uma fotografia preto-e-branco e uma fotografia colorida. Uma fotografia
sem indistinguíveis mediante quaisquer diferenças perceptuais. No início dos preto-e-branco pode ser tirada de um objeto preto-e-branco – uma zebra, por
anos 60 era universalmente aceito que a arte teria que ser algo sublime e mis- exemplo. Mas ela não mostra nem o pretume nem a brancura do objeto, ape-
terioso (para poucos), que estabelecesse o contato das pessoas com uma reali- nas a diferença (ela se limita a mostrar somente a diferença). Pois tudo o que
dade igualmente misteriosa e sublime. A realidade à qual a arte de Warhol sabemos em uma fotografia preto-e-branco é que o que aparece em preto pode-
remetia não era nem misteriosa nem sublime, mas banal. Isso era percebido ria ser vermelho e o que aparece em branco poderia ser rosa. Uma fotografia
como fascinante ou degradante, dependendo da posição em que se estivesse em colorida de um objeto preto-e-branco realmente mostra o branco e o preto do
relação a uma série de questões concernentes à realidade comercial americana, objeto. Conseqüentemente, a fotografia preto-e-branco, como a fotografia para-
aos valores e virtudes do lugar-comum, ao papel e ao ‘chamado’ do Artista, ao da, é essencialmente mais abstrata do que a sua contrapartida colorida.
sentido e ao propósito da arte. Para mim, o interessante das Brillo Boxes é que Warhol subtraiu tudo da imagem em movimento que pudesse ser
se apropriaram de uma indagação filosófica sobre a relação entre arte e reali- erroneamente tomado como propriedade essencial do filme. De modo que o
dade, e a incorporaram, questionando, com efeito, por que, se elas são arte, as que restou era filme puro. O que aprendemos é que em uma imagem em movi-
caixas de Brillo no supermercado, que não têm nenhuma diferença perceptível mento é o filme mesmo que se movimenta, e não necessariamente o seu obje-
delas, não o são. No mínimo, a Brillo Box deixou claro que não se podia mais to, que provavelmente se mantém parado. A arte de Warhol, no filme e em ou-
pensar em distinguir arte de realidade baseando-se na percepção, pois essa tros espaços, incide imediatamente nas fronteiras definidoras do medium e
suposição estava eliminada. conduz essas fronteiras a uma consciência conceitual. O que faz dele um
Mais adiante devo voltar a esse assunto, antes porém quero explicar o artista, entretanto, é que ele realmente faz arte e não se contenta em imaginá-
que faz, finalmente, com que Empire seja, tão filosoficamente, um filme. Os la, seguindo o meu modelo em Ou Um/Ou Outro (Either/Or). Sentar para assis-
filósofos, desde os tempos mais remotos, preocuparam-se em estabelecer tir uma sessão inteira de Empire, por todas as suas oito ou mais horas, em que
definições – definições de justiça, de verdade, de conhecimento, de arte. O que nada além de nada acontece, produz o efeito colateral de tornar a experiência
implica identificar as condições essenciais para que algo seja uma instância da do tempo palpável, através de um experimento sensorial de privação. Nós não
arte, do conhecimento, da verdade, da justiça. Obviamente, a primeira coisa temos consciência do tempo nas imagens em movimento dos filmes comuns,
que nos ocorre ao tentarmos estabelecer uma definição da imagem em movi- porque muita coisa acontece sem que haja tempo para que o tempo mesmo
mento, em oposição à imagem parada, é que a primeira mostra, enquanto a últi- venha a ser um objeto da consciência. O tempo normalmente fica à parte das
ma não, as coisas em movimento. Uma imagem parada (vamos nos restringir à nossas experiências, de modo que, como dizemos, nós “matamos o tempo”,
fotografia) pode nos mostrar coisas que sabemos estar em movimento, como na procurando por distrações.
famosa imagem de Cartier-Bresson do homem saltando uma poça, mas não Em Empire, o tempo não é morto, mas restaurado à consciência.
pode mostrá-las em movimento. Uma imagem em movimento da mesma cena Geralmente, nos filmes mais comuns, o tempo é um tipo de tempo narrativo,
mostraria a trajetória que faria o homem. Desse modo, o esperançoso filósofo de modo que um século pode passar no período em que se assiste a um filme
do filme poderia supor que algo fora resolvido. Porém, Empire demonstra que de duas horas. O tempo narrativo e o tempo real de Empire são o mesmo. O
algo pode ser um filme em movimento e não mostrar movimento. Nada no filme tempo no filme e o tempo do filme são o mesmo. Não há, assim como acontece
se modifica de modo relevante, e no entanto, visto que o filme foi rodado por com Brillo Box, nenhuma interessante diferença perceptiva entre os dois.
oito horas seguidas, alguma coisa poderia irrelevantemente ter se modificado: Finalmente, com Empire nos tornamos conscientes das propriedades
a luz em uma janela pode ter sido acesa ou apagada, um avião pode ter passa- materiais do filme, dos arranhados, da granulação, das luminosidades aciden-
do, o entardecer realmente caído. Mas nada disso é essencial quando se pensa tais, e, acima de tudo, da passagem ante nossos olhos da monótona fita. Penso
que o filme inteiro foi feito sem que nada se mexesse ou se modificasse. Nessa que Warhol tinha uma atitude quase que mística em relação ao mundo: tudo
altura, fica claro que somente imagens em movimento conseguem mostrar o nele tinha um peso equivalente, era tudo igualmente interessante. Talvez, do
congelamento do mesmo modo que o movimento. Paradigmaticamente, uma mesmo jeito, o filme diga algo sobre a mente humana, que sob condições de

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va mesmo prestes a jogá-la fora, ela havia ficado na vitrine temporariamente fotografia de Ansel Adams dos Montanhas Rochosas (Rockies) imobiliza a pai-
após ser aberta.” sagem de um jeito que chega a torná-la um símbolo natural de eternidade; essa
Talvez a metade dos visitantes da Stable Gallery tivesse se decep- fotografia é uma imagem parada de um objeto parado4. Ainda assim, percebe- 4. No inglês “still”, também
cionado com o fato de que algo tão rente à realidade pudesse ser apresentado mos que ela não mostra mais o congelamento do que as fotografias de Cartier- entendido como morto,
petrificado, eternizado.
como arte, sem que nenhuma diferença perceptual relevante os distinguisse. E, Bresson evidenciam o movimento. Imagens paradas não mostram nem o con- (N. do T.)
talvez, a outra metade estivesse exultante com o fato de que certas coisas gelamento, nem o movimento. Pense, a título de comparação, na diferença
mostradas como arte pudessem estar tão aderidas à realidade que as duas fos- entre uma fotografia preto-e-branco e uma fotografia colorida. Uma fotografia
sem indistinguíveis mediante quaisquer diferenças perceptuais. No início dos preto-e-branco pode ser tirada de um objeto preto-e-branco – uma zebra, por
anos 60 era universalmente aceito que a arte teria que ser algo sublime e mis- exemplo. Mas ela não mostra nem o pretume nem a brancura do objeto, ape-
terioso (para poucos), que estabelecesse o contato das pessoas com uma reali- nas a diferença (ela se limita a mostrar somente a diferença). Pois tudo o que
dade igualmente misteriosa e sublime. A realidade à qual a arte de Warhol sabemos em uma fotografia preto-e-branco é que o que aparece em preto pode-
remetia não era nem misteriosa nem sublime, mas banal. Isso era percebido ria ser vermelho e o que aparece em branco poderia ser rosa. Uma fotografia
como fascinante ou degradante, dependendo da posição em que se estivesse em colorida de um objeto preto-e-branco realmente mostra o branco e o preto do
relação a uma série de questões concernentes à realidade comercial americana, objeto. Conseqüentemente, a fotografia preto-e-branco, como a fotografia para-
aos valores e virtudes do lugar-comum, ao papel e ao ‘chamado’ do Artista, ao da, é essencialmente mais abstrata do que a sua contrapartida colorida.
sentido e ao propósito da arte. Para mim, o interessante das Brillo Boxes é que Warhol subtraiu tudo da imagem em movimento que pudesse ser
se apropriaram de uma indagação filosófica sobre a relação entre arte e reali- erroneamente tomado como propriedade essencial do filme. De modo que o
dade, e a incorporaram, questionando, com efeito, por que, se elas são arte, as que restou era filme puro. O que aprendemos é que em uma imagem em movi-
caixas de Brillo no supermercado, que não têm nenhuma diferença perceptível mento é o filme mesmo que se movimenta, e não necessariamente o seu obje-
delas, não o são. No mínimo, a Brillo Box deixou claro que não se podia mais to, que provavelmente se mantém parado. A arte de Warhol, no filme e em ou-
pensar em distinguir arte de realidade baseando-se na percepção, pois essa tros espaços, incide imediatamente nas fronteiras definidoras do medium e
suposição estava eliminada. conduz essas fronteiras a uma consciência conceitual. O que faz dele um
Mais adiante devo voltar a esse assunto, antes porém quero explicar o artista, entretanto, é que ele realmente faz arte e não se contenta em imaginá-
que faz, finalmente, com que Empire seja, tão filosoficamente, um filme. Os la, seguindo o meu modelo em Ou Um/Ou Outro (Either/Or). Sentar para assis-
filósofos, desde os tempos mais remotos, preocuparam-se em estabelecer tir uma sessão inteira de Empire, por todas as suas oito ou mais horas, em que
definições – definições de justiça, de verdade, de conhecimento, de arte. O que nada além de nada acontece, produz o efeito colateral de tornar a experiência
implica identificar as condições essenciais para que algo seja uma instância da do tempo palpável, através de um experimento sensorial de privação. Nós não
arte, do conhecimento, da verdade, da justiça. Obviamente, a primeira coisa temos consciência do tempo nas imagens em movimento dos filmes comuns,
que nos ocorre ao tentarmos estabelecer uma definição da imagem em movi- porque muita coisa acontece sem que haja tempo para que o tempo mesmo
mento, em oposição à imagem parada, é que a primeira mostra, enquanto a últi- venha a ser um objeto da consciência. O tempo normalmente fica à parte das
ma não, as coisas em movimento. Uma imagem parada (vamos nos restringir à nossas experiências, de modo que, como dizemos, nós “matamos o tempo”,
fotografia) pode nos mostrar coisas que sabemos estar em movimento, como na procurando por distrações.
famosa imagem de Cartier-Bresson do homem saltando uma poça, mas não Em Empire, o tempo não é morto, mas restaurado à consciência.
pode mostrá-las em movimento. Uma imagem em movimento da mesma cena Geralmente, nos filmes mais comuns, o tempo é um tipo de tempo narrativo,
mostraria a trajetória que faria o homem. Desse modo, o esperançoso filósofo de modo que um século pode passar no período em que se assiste a um filme
do filme poderia supor que algo fora resolvido. Porém, Empire demonstra que de duas horas. O tempo narrativo e o tempo real de Empire são o mesmo. O
algo pode ser um filme em movimento e não mostrar movimento. Nada no filme tempo no filme e o tempo do filme são o mesmo. Não há, assim como acontece
se modifica de modo relevante, e no entanto, visto que o filme foi rodado por com Brillo Box, nenhuma interessante diferença perceptiva entre os dois.
oito horas seguidas, alguma coisa poderia irrelevantemente ter se modificado: Finalmente, com Empire nos tornamos conscientes das propriedades
a luz em uma janela pode ter sido acesa ou apagada, um avião pode ter passa- materiais do filme, dos arranhados, da granulação, das luminosidades aciden-
do, o entardecer realmente caído. Mas nada disso é essencial quando se pensa tais, e, acima de tudo, da passagem ante nossos olhos da monótona fita. Penso
que o filme inteiro foi feito sem que nada se mexesse ou se modificasse. Nessa que Warhol tinha uma atitude quase que mística em relação ao mundo: tudo
altura, fica claro que somente imagens em movimento conseguem mostrar o nele tinha um peso equivalente, era tudo igualmente interessante. Talvez, do
congelamento do mesmo modo que o movimento. Paradigmaticamente, uma mesmo jeito, o filme diga algo sobre a mente humana, que sob condições de

102 Danto Danto 103


privação sensorial encontrará interesse nos detalhes ou diferenças mais sutis e parece ir de encontro com as latas de sopa de Warhol e outros dos seus traba-
marginais. O filme é feito com os equipamentos mais simples, zero de inter- lhos, mas, na verdade, tinha todo um significado diferente. A palavra “com-
venção e nada de edição. Tem antes a ver com o sentido, a materialidade, e, posição” tem algum tipo de associação pois se refere ao modo como os artistas
enfim, mistério. Que ele, como o próprio Brillo Box – como quase tudo que combinam formas no espaço pictórico. E as manchas preto-e-branco se pare-
Warhol toca – devesse ter a forma de uma brincadeira filosófica corrobora uma cem com as composições all-over de Jackson Pollock, que recebeu grandes elo-
conjuntura de Wittgenstein de que seria concebível que um trabalho filosófico gios da crítica. Todo o trabalho tem uma série de alusões sutis ao mundo da
consistisse somente de piadas. Contudo, devem ser os tipos certos de piada. Há arte, e é sob todos os sentidos uma peça de “arte sobre arte”, como o trabalho
uma distância astronômica entre as brincadeiras warholianas e as frases mesmo se tornou conhecido. É como aquela pintura de Lichtenstein na qual
anedóticas que Richard Prince, por exemplo, incorpora nas suas pinturas. ele satiriza a veneração da espessa e sinuosa pincelada de tinta que emblema-
Definitivamente, as piadas de Warhol não são engraçadas. Havia, pelo tizou o Expressionismo Abstrato. A zombaria é uma das armas de agressão civi-
que me lembro, um espírito de brincadeira na Stable Gallery há quase 30 anos lizada, e o trabalho de Lichtenstein é recheado de alusões internas ao mundo
atrás. Mas as caixas exibidas não foram produzidas nesse espírito. Penso que da arte.
tão pouco Warhol seria capaz de brincar. Sua seriedade parecia ser quase de Estou inclinado a pensar que as brincadeiras de Warhol eram comple-
outro mundo. Há uma história famosa de uma discussão em uma festa em Long tamente de outra ordem, menos a ver com ataques internos às pretensões do
Island com William de Kooning. “Você é um assassino da beleza” dizia de mundo da arte. Antes, ele indagava sobre onde estaria a distinção entre arte,
Kooning que, é claro, odiava Warhol por tirar da arte tudo o que a tornava alta ou baixa, e realidade. Essa foi, de certo modo, uma questão que impulsio-
divertida. Fica fácil compreender o seu julgamento que assim prosseguia: “você nou a filosofia de Platão em diante, e enquanto seria absurdo supor que Warhol
é mesmo um assassino da risada”. Afinal, quem vai ao cinema por motivações gerou o tipo de metafísica sistemática que procura definir o lugar da arte na
filosóficas? Algum dia uma pessoa com talento escreverá um livro sobre estilos totalidade das coisas, ele demonstrou, de um modo que acredito nunca ter sido
de humor artístico, comparando, ao longo de sua trajetória, de Kooning e alcançado antes, como a forma da questão filosófica deve ser. E, fazendo isso,
Warhol. Uma pesquisa desse tipo, tão incidental, serviria para iluminar as pro- ele invalidou alguns milênios de investigações indevidamente conduzidas.
fundas diferenças entre a série Woman feita por de Kooning e as Marylins de Gostaria de propor a hipótese de que foram as imagens da pop que o habili-
Warhol. O ato de pintar e o ato de amar eram como que afins para de Kooning. taram a fazer isso.
Warhol, uma pessoa bem menos primordial, achava que a essência das mu- Há uma famosa seção das Investigações Filosóficas de Wittgenstein na
lheres consistia nas suas imagens que formavam a “consciência” comum do qual o autor procura discutir a própria idéia de definições filosóficas, indagan-
sexo feminino. A arte e o humor desses dois homens são determinados por essa do se elas podem ser alcançadas e se há algum propósito em atingi-las.
diferença. Wittgenstein usa o exemplo dos jogos, e nos pede para tentar imaginar como
Eu quero adentrar um pouco mais no profundo suporte filosófico da pareceria a definição de um certo “jogo”. Ele nos pede para “olhar e ver”, e
atividade central de Warhol, como integrante da fase clássica da arte pop no então, quando consentirmos, veremos que não existem propriedades
início dos anos 1960. Há uma série de questões que devem ser respondidas abrangentes, compartilhadas por todos os jogos e somente pelos jogos. Posto de
antes que tenhamos um entendimento histórico completo desse movimento outro modo, os jogos formam um tipo de “família”, da qual os seus membros
extraordinário e, em particular, do que significou toda aquela apropriação de compartilham algumas, mas não todas as propriedades. Ainda segundo
imagens veiculadas comercialmente na cultura de massa. Freqüentemente era Wittgenstein, todos sabemos o que é um jogo, e não temos dificuldades em
sugerido, mesmo pelos próprios artistas da época, que a sua intenção era rasu- reconhecer alguma coisa como tal sem a ajuda de uma definição. Então, qual
rar, se não obliterar as fronteiras entre alta e baixa cultura, desafiando, com seria o objetivo de levar isso adiante? Seus seguidores não demoraram em
logotipos comerciais, painéis com tiras de HQ, anúncios de jornais e revistas, aplicar essa estratégia à arte, onde, por uma razão similar, sugeriram que obras
as distinções estabelecidas e reforçadas pelas instituições do mundo da arte – de arte formam uma família ao invés de uma classe homogênea, que não há
a galeria, com seu decor e o estilo afetado do pessoal; a coleção; a moldura propriedades comuns ou peculiares aos trabalhos de arte, e, de qualquer
entalhada e dourada; o mito romântico do artista. maneira, todos nós sabemos quais são obras de arte sem a ajuda de uma
A despeito de todas essas convenções e generalidades, devem ser definição. A conclusão, argumentam esses filósofos, era de que a longa busca
feitas diferenças entre os artistas pop. Em 1962, por exemplo, R. Lichtenstein por definições era equivocada.
pintou um trabalho que se parecia com um manual de composições monu- É contra esse panorama histórico que as Brillo Boxes de Warhol me
mentalizado, um daqueles do tipo mais familiar, com matizados preto-e-branco parecem ter algo significativo a dizer. Uma fotografia de Warhol entre suas
na capa e uma etiqueta em que se lê “composição”. Iconograficamente ele caixas parece indistinguível de uma fotografia de um funcionário entre as

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privação sensorial encontrará interesse nos detalhes ou diferenças mais sutis e parece ir de encontro com as latas de sopa de Warhol e outros dos seus traba-
marginais. O filme é feito com os equipamentos mais simples, zero de inter- lhos, mas, na verdade, tinha todo um significado diferente. A palavra “com-
venção e nada de edição. Tem antes a ver com o sentido, a materialidade, e, posição” tem algum tipo de associação pois se refere ao modo como os artistas
enfim, mistério. Que ele, como o próprio Brillo Box – como quase tudo que combinam formas no espaço pictórico. E as manchas preto-e-branco se pare-
Warhol toca – devesse ter a forma de uma brincadeira filosófica corrobora uma cem com as composições all-over de Jackson Pollock, que recebeu grandes elo-
conjuntura de Wittgenstein de que seria concebível que um trabalho filosófico gios da crítica. Todo o trabalho tem uma série de alusões sutis ao mundo da
consistisse somente de piadas. Contudo, devem ser os tipos certos de piada. Há arte, e é sob todos os sentidos uma peça de “arte sobre arte”, como o trabalho
uma distância astronômica entre as brincadeiras warholianas e as frases mesmo se tornou conhecido. É como aquela pintura de Lichtenstein na qual
anedóticas que Richard Prince, por exemplo, incorpora nas suas pinturas. ele satiriza a veneração da espessa e sinuosa pincelada de tinta que emblema-
Definitivamente, as piadas de Warhol não são engraçadas. Havia, pelo tizou o Expressionismo Abstrato. A zombaria é uma das armas de agressão civi-
que me lembro, um espírito de brincadeira na Stable Gallery há quase 30 anos lizada, e o trabalho de Lichtenstein é recheado de alusões internas ao mundo
atrás. Mas as caixas exibidas não foram produzidas nesse espírito. Penso que da arte.
tão pouco Warhol seria capaz de brincar. Sua seriedade parecia ser quase de Estou inclinado a pensar que as brincadeiras de Warhol eram comple-
outro mundo. Há uma história famosa de uma discussão em uma festa em Long tamente de outra ordem, menos a ver com ataques internos às pretensões do
Island com William de Kooning. “Você é um assassino da beleza” dizia de mundo da arte. Antes, ele indagava sobre onde estaria a distinção entre arte,
Kooning que, é claro, odiava Warhol por tirar da arte tudo o que a tornava alta ou baixa, e realidade. Essa foi, de certo modo, uma questão que impulsio-
divertida. Fica fácil compreender o seu julgamento que assim prosseguia: “você nou a filosofia de Platão em diante, e enquanto seria absurdo supor que Warhol
é mesmo um assassino da risada”. Afinal, quem vai ao cinema por motivações gerou o tipo de metafísica sistemática que procura definir o lugar da arte na
filosóficas? Algum dia uma pessoa com talento escreverá um livro sobre estilos totalidade das coisas, ele demonstrou, de um modo que acredito nunca ter sido
de humor artístico, comparando, ao longo de sua trajetória, de Kooning e alcançado antes, como a forma da questão filosófica deve ser. E, fazendo isso,
Warhol. Uma pesquisa desse tipo, tão incidental, serviria para iluminar as pro- ele invalidou alguns milênios de investigações indevidamente conduzidas.
fundas diferenças entre a série Woman feita por de Kooning e as Marylins de Gostaria de propor a hipótese de que foram as imagens da pop que o habili-
Warhol. O ato de pintar e o ato de amar eram como que afins para de Kooning. taram a fazer isso.
Warhol, uma pessoa bem menos primordial, achava que a essência das mu- Há uma famosa seção das Investigações Filosóficas de Wittgenstein na
lheres consistia nas suas imagens que formavam a “consciência” comum do qual o autor procura discutir a própria idéia de definições filosóficas, indagan-
sexo feminino. A arte e o humor desses dois homens são determinados por essa do se elas podem ser alcançadas e se há algum propósito em atingi-las.
diferença. Wittgenstein usa o exemplo dos jogos, e nos pede para tentar imaginar como
Eu quero adentrar um pouco mais no profundo suporte filosófico da pareceria a definição de um certo “jogo”. Ele nos pede para “olhar e ver”, e
atividade central de Warhol, como integrante da fase clássica da arte pop no então, quando consentirmos, veremos que não existem propriedades
início dos anos 1960. Há uma série de questões que devem ser respondidas abrangentes, compartilhadas por todos os jogos e somente pelos jogos. Posto de
antes que tenhamos um entendimento histórico completo desse movimento outro modo, os jogos formam um tipo de “família”, da qual os seus membros
extraordinário e, em particular, do que significou toda aquela apropriação de compartilham algumas, mas não todas as propriedades. Ainda segundo
imagens veiculadas comercialmente na cultura de massa. Freqüentemente era Wittgenstein, todos sabemos o que é um jogo, e não temos dificuldades em
sugerido, mesmo pelos próprios artistas da época, que a sua intenção era rasu- reconhecer alguma coisa como tal sem a ajuda de uma definição. Então, qual
rar, se não obliterar as fronteiras entre alta e baixa cultura, desafiando, com seria o objetivo de levar isso adiante? Seus seguidores não demoraram em
logotipos comerciais, painéis com tiras de HQ, anúncios de jornais e revistas, aplicar essa estratégia à arte, onde, por uma razão similar, sugeriram que obras
as distinções estabelecidas e reforçadas pelas instituições do mundo da arte – de arte formam uma família ao invés de uma classe homogênea, que não há
a galeria, com seu decor e o estilo afetado do pessoal; a coleção; a moldura propriedades comuns ou peculiares aos trabalhos de arte, e, de qualquer
entalhada e dourada; o mito romântico do artista. maneira, todos nós sabemos quais são obras de arte sem a ajuda de uma
A despeito de todas essas convenções e generalidades, devem ser definição. A conclusão, argumentam esses filósofos, era de que a longa busca
feitas diferenças entre os artistas pop. Em 1962, por exemplo, R. Lichtenstein por definições era equivocada.
pintou um trabalho que se parecia com um manual de composições monu- É contra esse panorama histórico que as Brillo Boxes de Warhol me
mentalizado, um daqueles do tipo mais familiar, com matizados preto-e-branco parecem ter algo significativo a dizer. Uma fotografia de Warhol entre suas
na capa e uma etiqueta em que se lê “composição”. Iconograficamente ele caixas parece indistinguível de uma fotografia de um funcionário entre as

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caixas do supermercado. Com que licença podemos supor que podemos dife- A questão que inevitavelmente se coloca a seguir consiste na origina-
renciar uma obra de arte de um objeto meramente utilitário? Um é feito de lidade de Warhol nessa questão, já que a precedência de Marcel Duchamp pro-
compensado e o outro de caixa de papelão, mas pode a diferença entre arte e jeta uma certa sombra sobre todos os subseqüentes esforços de delimitar as
realidade residir numa diferença que “poderia ser de outro modo”? No final, fronteiras da arte. Ao se escrever sobre Warhol, não se pode escapar da questão
parece haver uma “semelhança de família” bem mais marcada entre as Brillo da relação entre o que ele fez com a Brillo Box e o que foi alcançado com os
Boxes e as caixas de Brillo do que, digamos, entre estas primeiras e qualquer readymades de Marcel Duchamp. “O deleite estético é o inimigo a ser derrota-
outra obra de arte paradigmática que se escolha – A Ronda Noturna por exem- do” – diz Duchamp com relação a esse gênero de trabalho, pois os readymades,
plo, que de fato parece ter tantas semelhanças com as caixas de Brillo quanto segundo ele, foram escolhidos precisamente pela sua falta de interesse visual.
com as Brillo Boxes. Apesar de tudo, experts do mundo da arte desse período Na maioria das vezes, Duchamp não tentou expor seus readymades (claro que
estavam prontos para consentir às Brillo Boxes alguma categoria menos digna com algumas notórias exceções). Tanto que, em uma noite de nevasca, ele
do que “escultura”, tornando-as assim sujeitas às taxas de alfândega, quando adentrou o apartamento dos Arensberg em Nova Iorque carregando uma pá de
uma galeria procurou importá-las para o Canadá. O ponto é que a diferença neve, que era o trabalho Em Antecipação ao Braço Partido, 1915, na minha
entre arte e realidade não é como a diferença entre camelos e dromedários, opinião uma performance relativamente privada para um grupo pequeno e
onde podemos contar as corcovas. Uma coisa não pode ser um camelo que se extremamente sofisticado cujos membros apreciavam e talvez mesmo vene-
pareça com um dromedário, mas uma coisa pode ser uma obra de arte que se rassem Duchamp como um novo tipo de artista e pensador. A “exceção notória”
parece exatamente com algo real. O que torna algo arte pode ser quase invisí- é certamente A fonte, que Duchamp planejou expor em 1917 com a Sociedade
vel, talvez apenas o modo como foi concebido e o que alguém quis que ele fosse. dos Artistas Independentes no Grand Central Palace. Aquela mostra era para
A Brillo Box faz pela arte o que Empire faz pelo filme. Ele força a ter sido um tipo de “Salão dos Independentes” e, conseqüentemente, não deve-
reflexão sobre o que faz algo arte quando isso não corresponde ao olhar, assim ria ter nenhum júri ou conceder qualquer premiação. Mesmo assim, a obra foi
como o filme demonstra o quão pouco é preciso para que algo seja um filme. rejeitada sumariamente pela comissão de organização com o argumento de que
Ver Empire como um filme é arquivar como não essencial muito do que os qualquer obra de arte era aceitável, mas aquela não era uma obra de arte. E o
teóricos supõem ser central no filme, tudo o que Warhol majestosamente sub- “trabalho” foi despachado e levado para a Galeria Stieglitz 291, onde foi
traiu. Edmund White colocou isso perfeitamente: fotografado pelo mestre (junto com o que parecia ser um cartão de entrada
“Andy tomou todas as definições concebíveis da palavra arte para desafiá- amarrado com arame). Stieglitz era particularmente sensível ao fato de alguma
la. A arte revela o traço da mão do artista: Andy optou pela serigrafia. Um tra- coisa não ser arte, tanto que uma de suas maiores lutas era conseguir que a
balho de arte é um objeto único: Andy surgiu com os múltiplos. Um pintor pinta: fotografia fosse aceita como arte. É bem verdade que Duchamp estava criti-
Andy fez cinema. A arte é divorciada do comercial e do utilitário: Andy se espe- cando a concepção de arte dos Independentes, mas, a meu ver, aquilo era tam-
cializou nas latas de sopa Campbell e Notas de Dólar. A pintura pode ser defini- bém uma performance precoce, tanto que a própria A Fonte desapareceu quan-
da em contraste com a fotografia: Andy recicla meras fotografias. Um trabalho de do a 291 fechou, no mês em que ela havia sido fotografada. Evidentemente
arte é o que um artista assina, prova do seu trabalho criativo, de suas intenções: ninguém veio pegá-la e, na cena que imagino, um empregado a jogou fora como
5. Idem, ibidem. Andy assinava qualquer objeto” 5. uma peça sobrando do encanamento. O seu objetivo tinha sido atingido, e foi
Esta lista poderia ser prorrogada indefinidamente. Com certeza, o sublinhado com o artigo da efêmera revista de Duchamp The Blind Man, de-
modo de Warhol era uma via negativa. Ele não nos disse o que era a arte. Mas dicada ao “Caso R. Mutt”, (este sendo o nome com o qual Duchamp havia assi-
ele abriu caminho para aqueles cujo trabalho fosse providenciar teorias filosó- nado o trabalho). Talvez Duchamp tivesse pensado na possibilidade de repor
ficas. É difícil supor que a intenção de Warhol fosse limpar o que estava des- outro urinol quando fosse necessário, o que se mostrou improvável, já aquele
gastado e dar espaço a uma teoria da arte adequada. De certo “modo” talvez seja modelo particular de urinol saíra de linha e nem mesmo o MoMA, com todos
impossível dizer mesmo quais eram suas intenções. White, com efeito, o os seus recursos, foi capaz de encontrar uma duplicata exata para a mostra
chamou de “um brilhante idiota”. O narrador na história de Thom Jones diz: “High and Low” de 1990.
“Eu não acho que ele soubesse nem a metade disso”. O nome de Warhol é asso- Duchamp talvez tenha sentido que, exceto na ocasião específica da
ciado à frivolidade, glamour, publicidade, e os torna grandes. O incrível dos exposição dos Independentes, expor os readymades seria incoerente com o sua
seus feitos é que como um mero filho dos contos de fadas, aparentemente sem agenda antiestética. Nem mesmo o grupo Arensberg era indiferente às consi-
par entre os seus intimidados irmãos, Warhol fez as mais profundas descober- derações estéticas, e estava inclinado a pensar que o que Duchamp estava
tas conceituais, e produziu exemplares de pura arte que estranhamente se pare- fazendo era desfamiliarizar o urinol, revelando seus méritos estéticos inerentes
cem exemplos da realidade pura. e mesmo os seus paralelos formais com a escultura de Brancusi, da qual eles

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caixas do supermercado. Com que licença podemos supor que podemos dife- A questão que inevitavelmente se coloca a seguir consiste na origina-
renciar uma obra de arte de um objeto meramente utilitário? Um é feito de lidade de Warhol nessa questão, já que a precedência de Marcel Duchamp pro-
compensado e o outro de caixa de papelão, mas pode a diferença entre arte e jeta uma certa sombra sobre todos os subseqüentes esforços de delimitar as
realidade residir numa diferença que “poderia ser de outro modo”? No final, fronteiras da arte. Ao se escrever sobre Warhol, não se pode escapar da questão
parece haver uma “semelhança de família” bem mais marcada entre as Brillo da relação entre o que ele fez com a Brillo Box e o que foi alcançado com os
Boxes e as caixas de Brillo do que, digamos, entre estas primeiras e qualquer readymades de Marcel Duchamp. “O deleite estético é o inimigo a ser derrota-
outra obra de arte paradigmática que se escolha – A Ronda Noturna por exem- do” – diz Duchamp com relação a esse gênero de trabalho, pois os readymades,
plo, que de fato parece ter tantas semelhanças com as caixas de Brillo quanto segundo ele, foram escolhidos precisamente pela sua falta de interesse visual.
com as Brillo Boxes. Apesar de tudo, experts do mundo da arte desse período Na maioria das vezes, Duchamp não tentou expor seus readymades (claro que
estavam prontos para consentir às Brillo Boxes alguma categoria menos digna com algumas notórias exceções). Tanto que, em uma noite de nevasca, ele
do que “escultura”, tornando-as assim sujeitas às taxas de alfândega, quando adentrou o apartamento dos Arensberg em Nova Iorque carregando uma pá de
uma galeria procurou importá-las para o Canadá. O ponto é que a diferença neve, que era o trabalho Em Antecipação ao Braço Partido, 1915, na minha
entre arte e realidade não é como a diferença entre camelos e dromedários, opinião uma performance relativamente privada para um grupo pequeno e
onde podemos contar as corcovas. Uma coisa não pode ser um camelo que se extremamente sofisticado cujos membros apreciavam e talvez mesmo vene-
pareça com um dromedário, mas uma coisa pode ser uma obra de arte que se rassem Duchamp como um novo tipo de artista e pensador. A “exceção notória”
parece exatamente com algo real. O que torna algo arte pode ser quase invisí- é certamente A fonte, que Duchamp planejou expor em 1917 com a Sociedade
vel, talvez apenas o modo como foi concebido e o que alguém quis que ele fosse. dos Artistas Independentes no Grand Central Palace. Aquela mostra era para
A Brillo Box faz pela arte o que Empire faz pelo filme. Ele força a ter sido um tipo de “Salão dos Independentes” e, conseqüentemente, não deve-
reflexão sobre o que faz algo arte quando isso não corresponde ao olhar, assim ria ter nenhum júri ou conceder qualquer premiação. Mesmo assim, a obra foi
como o filme demonstra o quão pouco é preciso para que algo seja um filme. rejeitada sumariamente pela comissão de organização com o argumento de que
Ver Empire como um filme é arquivar como não essencial muito do que os qualquer obra de arte era aceitável, mas aquela não era uma obra de arte. E o
teóricos supõem ser central no filme, tudo o que Warhol majestosamente sub- “trabalho” foi despachado e levado para a Galeria Stieglitz 291, onde foi
traiu. Edmund White colocou isso perfeitamente: fotografado pelo mestre (junto com o que parecia ser um cartão de entrada
“Andy tomou todas as definições concebíveis da palavra arte para desafiá- amarrado com arame). Stieglitz era particularmente sensível ao fato de alguma
la. A arte revela o traço da mão do artista: Andy optou pela serigrafia. Um tra- coisa não ser arte, tanto que uma de suas maiores lutas era conseguir que a
balho de arte é um objeto único: Andy surgiu com os múltiplos. Um pintor pinta: fotografia fosse aceita como arte. É bem verdade que Duchamp estava criti-
Andy fez cinema. A arte é divorciada do comercial e do utilitário: Andy se espe- cando a concepção de arte dos Independentes, mas, a meu ver, aquilo era tam-
cializou nas latas de sopa Campbell e Notas de Dólar. A pintura pode ser defini- bém uma performance precoce, tanto que a própria A Fonte desapareceu quan-
da em contraste com a fotografia: Andy recicla meras fotografias. Um trabalho de do a 291 fechou, no mês em que ela havia sido fotografada. Evidentemente
arte é o que um artista assina, prova do seu trabalho criativo, de suas intenções: ninguém veio pegá-la e, na cena que imagino, um empregado a jogou fora como
5. Idem, ibidem. Andy assinava qualquer objeto” 5. uma peça sobrando do encanamento. O seu objetivo tinha sido atingido, e foi
Esta lista poderia ser prorrogada indefinidamente. Com certeza, o sublinhado com o artigo da efêmera revista de Duchamp The Blind Man, de-
modo de Warhol era uma via negativa. Ele não nos disse o que era a arte. Mas dicada ao “Caso R. Mutt”, (este sendo o nome com o qual Duchamp havia assi-
ele abriu caminho para aqueles cujo trabalho fosse providenciar teorias filosó- nado o trabalho). Talvez Duchamp tivesse pensado na possibilidade de repor
ficas. É difícil supor que a intenção de Warhol fosse limpar o que estava des- outro urinol quando fosse necessário, o que se mostrou improvável, já aquele
gastado e dar espaço a uma teoria da arte adequada. De certo “modo” talvez seja modelo particular de urinol saíra de linha e nem mesmo o MoMA, com todos
impossível dizer mesmo quais eram suas intenções. White, com efeito, o os seus recursos, foi capaz de encontrar uma duplicata exata para a mostra
chamou de “um brilhante idiota”. O narrador na história de Thom Jones diz: “High and Low” de 1990.
“Eu não acho que ele soubesse nem a metade disso”. O nome de Warhol é asso- Duchamp talvez tenha sentido que, exceto na ocasião específica da
ciado à frivolidade, glamour, publicidade, e os torna grandes. O incrível dos exposição dos Independentes, expor os readymades seria incoerente com o sua
seus feitos é que como um mero filho dos contos de fadas, aparentemente sem agenda antiestética. Nem mesmo o grupo Arensberg era indiferente às consi-
par entre os seus intimidados irmãos, Warhol fez as mais profundas descober- derações estéticas, e estava inclinado a pensar que o que Duchamp estava
tas conceituais, e produziu exemplares de pura arte que estranhamente se pare- fazendo era desfamiliarizar o urinol, revelando seus méritos estéticos inerentes
cem exemplos da realidade pura. e mesmo os seus paralelos formais com a escultura de Brancusi, da qual eles

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eram admiradores. Estranhamente, isso não estava distante da intenção de dimensão quase sem paralelos na história da reflexão sobre a essência da arte.
Warhol, dada a sua propensão em encontrar, não tanto a beleza no banal, mas De fato, como eu tenho dito, ele não poderia ter efetuado esse avanço caso ele
o banal como beleza. Em certo sentido Warhol era realmente comovido pelas não estivesse tão envolvido com aqueles objetos que os “expressionistas abstratos
coisas corriqueiras, e isso é central para os seus projetos artísticos. Enquanto tentaram tão arduamente não notar”.
Duchamp, tanto quanto se pode confiar em qualquer coisa que tenha escrito Isso levanta uma questão mais profunda. Somente quando alguém
para o The Blind Man, reivindicou somente que R. Mutt estava procurando pensa o suficiente nesses objetos mais comuns – objetos “desprezados e rejeita-
colocar em debate “um novo fragmento do pensamento”. Talvez, entre outras dos” por qualquer um que tenha gosto, qualquer um interessado em “coisas ele-
coisas, ele estivesse usando o banal como um tipo de bomba contra o conceito vadas”, em arte como na alta cultura –, quando pensa, de fato, que eles são
fortificado de arte, o qual os Independentes achavam estar democratizando ao maravilhosos, iguais a qualquer obra de arte consagrada, somente então poderá
dispensar critérios de admissão, pois nunca havia lhes ocorrido que um “tra- aceitar tais coisas como arte. Ainda assim, independente de o quanto alguém é
balho de arte” chegaria a um conceito tão elástico quanto Duchamp demons- tocado por esses objetos comuns, e Warhol certamente era tocado, pensar que
trou. Mesmo assim, ele não havia ainda levantado a questão na vívida forma eles possam ser arte não seria comum até que aquilo se tornasse uma possibi-
warholiana. Talvez, ao entender que um urinol podia ser um objeto de arte, ele lidade real em relação à história da arte. Ele teve que estar apto para isso. “Nem
tenha antecipado a sentença de Warhol de que “qualquer coisa pode ser uma tudo é possível o tempo todo” é o grande e poderoso pensamento de Heinrich
obra de arte”. Não levantou, entretanto, a outra parte da questão, a saber: Por Wölfflin. Nós temos então que perguntar o que foi que fez Brillo Box possível
que todos os outros urinóis não eram obras de arte? Mas essa foi justamente a em 1964, quando foi de fato feito e exposto. Sempre foi possível para um tal
estupenda questão de Warhol: Por que a Brillo Box era uma obra de arte objeto existir. A pergunta é: o que foi necessário para que esse objeto pudesse
enquanto as caixas de Brillo comuns eram meras caixas de Brillo? (como uma ser arte?
nota de rodapé irônica, devo assinalar que a caixa de Brillo atual foi desenha- Eu vou iniciar considerando a dimensão negativa da pop arte: aquilo a
da por Steve Harvey, um expressionista abstrato da segunda geração que se que o movimento opunha-se. O alvo imediato eram as pretensões do que em
voltou para o design comercial). Além disso, o urinol é um objeto altamente car- Nova Iorque tomou sobre si o manto da arte erudita, para ser mais claro, o
regado de conotações, associado com algumas das fronteiras mais duramente Expressionismo Abstrato, com a sua celebração do Self, dos estados interiores
defendidas na sociedade moderna, a saber, as diferenças entre os sexos, a segre- que a pintura presumidamente tornou objetivos, e do próprio pigmento como o
gação do processo de eliminação do resto da vida, e um mais inteiro elenco de medium por excelência através do qual esses estados poderiam ser transcritos
associações tendo a ver com privacidade, saneamento, e coisas afins. Brillo externamente. Em um certo sentido, a pintura expressionista abstrata era um
Box, pelo contrário, não tem tanto trânsito com o proibido e o imperativo. Ele tipo de linguagem pictórica privada, que levava a um afastamento do público e
é público, banal, óbvio, e desinteressante. Era parte da personalidade de do político em favor de uma arte que fosse, nas palavras de Robert Motherwell,
Warhol (e não somente como artista) achar o desinteressante interessante e o “plástica, misteriosa e sublime”. Motherwell, cujas simpatias eram inerente-
ordinário extraordinário. “Este mundo não é maravilhoso?” era algo que, segun- mente européias, sentiu que, ao chegar nisso, a Escola de Nova Iorque (o rótu-
do Roy Lichtenstein me contou, Andy costumava dizer. O que ele gostava no lo foi dele) tinha ido muito além do que fora obtido pela Escola de Paris, da
mundo era o seu jeito de ser, exatamente do modo que os estetas achavam ofen- qual nenhum dos pintores, de acordo com Adolph Gotlieb e Mark Rothko
sivo. Filosoficamente, Wittgenstein havia uma vez dito “deixe o mundo exata- (numa famosa carta publicada no New York Times em 7 de junho de 1943) “é um
mente como ele se encontra”. Warhol, flexivelmente, fez mais do que deixar o pintor sublime, ou um pintor monumental, nem mesmo Miró”. E foram ainda
mundo em paz: ele o celebrou do jeito que ele era. “O artista Pop fez imagens mais longe ao dizer que: “Para nós, arte é uma aventura em um mundo desco-
que qualquer um descendo a Broadway podia reconhecer em um segundo – HQs, nhecido ... O mundo da imaginação é livre de imposições e violentamente oposto
mesas de piquenique, calças masculinas, celebridades, cortinas de chuveiro, ao senso comum”. O “mundo desconhecido” era, é claro, a esfera do incons-
geladeiras, garrafas de coca-cola – todas as grande coisas modernas que os ciente, que os artistas então procuravam acessar através de um ou outro meio
6. Idem, p. 416, 441. Expressionistas Abstratos tentaram tão arduamente não notar” 6. Certa vez ele de automatismo. Dore Ashton, no seu texto exemplar de 1972 sobre a Escola
disse “Pop art é um modo de gostar das coisas”. Então não era somente a sim- de Nova Iorque, articula magistralmente a mentalidade artística canônica
plicidade das coisas comuns que constituía a sua matéria subjetiva de trabalho? daqueles anos. Ela discute uma passagem de Jung cujas idéias tiveram um con-
A sua arte era um esforço para mudar as atitudes das pessoas com relação ao siderável impacto nas reflexões dos pintores de Nova Iorque, principalmente, é
mundo. Quase se pode dizer, parafraseando Milton, que ele buscou reconciliar claro, nas de Jackson Pollock. “Voltando-se contra o presente não satisfatório, o
os modos de comércio com aqueles que viviam no mundo por eles criado. grande anseio do artista alcança aquela imagem primordial do inconsciente, que
Apenas aconteceu que, ao fazer isso, ele fez uma descoberta filosófica de é a mais adequada para compensar a insuficiência e a unilateralidade do espíri-

108 Danto Danto 109


eram admiradores. Estranhamente, isso não estava distante da intenção de dimensão quase sem paralelos na história da reflexão sobre a essência da arte.
Warhol, dada a sua propensão em encontrar, não tanto a beleza no banal, mas De fato, como eu tenho dito, ele não poderia ter efetuado esse avanço caso ele
o banal como beleza. Em certo sentido Warhol era realmente comovido pelas não estivesse tão envolvido com aqueles objetos que os “expressionistas abstratos
coisas corriqueiras, e isso é central para os seus projetos artísticos. Enquanto tentaram tão arduamente não notar”.
Duchamp, tanto quanto se pode confiar em qualquer coisa que tenha escrito Isso levanta uma questão mais profunda. Somente quando alguém
para o The Blind Man, reivindicou somente que R. Mutt estava procurando pensa o suficiente nesses objetos mais comuns – objetos “desprezados e rejeita-
colocar em debate “um novo fragmento do pensamento”. Talvez, entre outras dos” por qualquer um que tenha gosto, qualquer um interessado em “coisas ele-
coisas, ele estivesse usando o banal como um tipo de bomba contra o conceito vadas”, em arte como na alta cultura –, quando pensa, de fato, que eles são
fortificado de arte, o qual os Independentes achavam estar democratizando ao maravilhosos, iguais a qualquer obra de arte consagrada, somente então poderá
dispensar critérios de admissão, pois nunca havia lhes ocorrido que um “tra- aceitar tais coisas como arte. Ainda assim, independente de o quanto alguém é
balho de arte” chegaria a um conceito tão elástico quanto Duchamp demons- tocado por esses objetos comuns, e Warhol certamente era tocado, pensar que
trou. Mesmo assim, ele não havia ainda levantado a questão na vívida forma eles possam ser arte não seria comum até que aquilo se tornasse uma possibi-
warholiana. Talvez, ao entender que um urinol podia ser um objeto de arte, ele lidade real em relação à história da arte. Ele teve que estar apto para isso. “Nem
tenha antecipado a sentença de Warhol de que “qualquer coisa pode ser uma tudo é possível o tempo todo” é o grande e poderoso pensamento de Heinrich
obra de arte”. Não levantou, entretanto, a outra parte da questão, a saber: Por Wölfflin. Nós temos então que perguntar o que foi que fez Brillo Box possível
que todos os outros urinóis não eram obras de arte? Mas essa foi justamente a em 1964, quando foi de fato feito e exposto. Sempre foi possível para um tal
estupenda questão de Warhol: Por que a Brillo Box era uma obra de arte objeto existir. A pergunta é: o que foi necessário para que esse objeto pudesse
enquanto as caixas de Brillo comuns eram meras caixas de Brillo? (como uma ser arte?
nota de rodapé irônica, devo assinalar que a caixa de Brillo atual foi desenha- Eu vou iniciar considerando a dimensão negativa da pop arte: aquilo a
da por Steve Harvey, um expressionista abstrato da segunda geração que se que o movimento opunha-se. O alvo imediato eram as pretensões do que em
voltou para o design comercial). Além disso, o urinol é um objeto altamente car- Nova Iorque tomou sobre si o manto da arte erudita, para ser mais claro, o
regado de conotações, associado com algumas das fronteiras mais duramente Expressionismo Abstrato, com a sua celebração do Self, dos estados interiores
defendidas na sociedade moderna, a saber, as diferenças entre os sexos, a segre- que a pintura presumidamente tornou objetivos, e do próprio pigmento como o
gação do processo de eliminação do resto da vida, e um mais inteiro elenco de medium por excelência através do qual esses estados poderiam ser transcritos
associações tendo a ver com privacidade, saneamento, e coisas afins. Brillo externamente. Em um certo sentido, a pintura expressionista abstrata era um
Box, pelo contrário, não tem tanto trânsito com o proibido e o imperativo. Ele tipo de linguagem pictórica privada, que levava a um afastamento do público e
é público, banal, óbvio, e desinteressante. Era parte da personalidade de do político em favor de uma arte que fosse, nas palavras de Robert Motherwell,
Warhol (e não somente como artista) achar o desinteressante interessante e o “plástica, misteriosa e sublime”. Motherwell, cujas simpatias eram inerente-
ordinário extraordinário. “Este mundo não é maravilhoso?” era algo que, segun- mente européias, sentiu que, ao chegar nisso, a Escola de Nova Iorque (o rótu-
do Roy Lichtenstein me contou, Andy costumava dizer. O que ele gostava no lo foi dele) tinha ido muito além do que fora obtido pela Escola de Paris, da
mundo era o seu jeito de ser, exatamente do modo que os estetas achavam ofen- qual nenhum dos pintores, de acordo com Adolph Gotlieb e Mark Rothko
sivo. Filosoficamente, Wittgenstein havia uma vez dito “deixe o mundo exata- (numa famosa carta publicada no New York Times em 7 de junho de 1943) “é um
mente como ele se encontra”. Warhol, flexivelmente, fez mais do que deixar o pintor sublime, ou um pintor monumental, nem mesmo Miró”. E foram ainda
mundo em paz: ele o celebrou do jeito que ele era. “O artista Pop fez imagens mais longe ao dizer que: “Para nós, arte é uma aventura em um mundo desco-
que qualquer um descendo a Broadway podia reconhecer em um segundo – HQs, nhecido ... O mundo da imaginação é livre de imposições e violentamente oposto
mesas de piquenique, calças masculinas, celebridades, cortinas de chuveiro, ao senso comum”. O “mundo desconhecido” era, é claro, a esfera do incons-
geladeiras, garrafas de coca-cola – todas as grande coisas modernas que os ciente, que os artistas então procuravam acessar através de um ou outro meio
6. Idem, p. 416, 441. Expressionistas Abstratos tentaram tão arduamente não notar” 6. Certa vez ele de automatismo. Dore Ashton, no seu texto exemplar de 1972 sobre a Escola
disse “Pop art é um modo de gostar das coisas”. Então não era somente a sim- de Nova Iorque, articula magistralmente a mentalidade artística canônica
plicidade das coisas comuns que constituía a sua matéria subjetiva de trabalho? daqueles anos. Ela discute uma passagem de Jung cujas idéias tiveram um con-
A sua arte era um esforço para mudar as atitudes das pessoas com relação ao siderável impacto nas reflexões dos pintores de Nova Iorque, principalmente, é
mundo. Quase se pode dizer, parafraseando Milton, que ele buscou reconciliar claro, nas de Jackson Pollock. “Voltando-se contra o presente não satisfatório, o
os modos de comércio com aqueles que viviam no mundo por eles criado. grande anseio do artista alcança aquela imagem primordial do inconsciente, que
Apenas aconteceu que, ao fazer isso, ele fez uma descoberta filosófica de é a mais adequada para compensar a insuficiência e a unilateralidade do espíri-

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to da época. O artista apreende a imagem e no trabalho de resgatá-la do incons- símbolos palpáveis da vida cotidiana contra o mágico, o xamânico e o primiti-
ciente mais profundo ele a coloca em relação aos valores conscientes, para então vo. Os artistas pop celebraram as coisas que os expressionistas abstratos
transformar a sua forma até que ela possa ser aceitável pelos seus contemporâneos, achavam estúpidas demais.
7. ASHTON, Dore. The de acordo com suas capacidades” 7. Já que estamos falando de “espírito da época”, talvez valha a pena
New York School: a Gotlieb e Rothko haviam escrito o seguinte: “Somente é válido aquele parar e refletir sobre alguns paralelos entre o que Warhol e alguns dos maiores
cultural reckoning.
Nova Iorque: Vicking conteúdo subjetivo que contém o trágico e o eterno. É por isso que nós preferimos filósofos do período estavam fazendo. Estes, em grande parte sob a influência
Press, 1972, p. 124. a tipologia da arte arcaica e primitiva”. O pintor de Nova Iorque, em resumo, da filosofia tardia de Wittgenstein, estavam empreendendo um certo retorno à
tentou escapar à “insuficiência e unilateralidade do espírito da época” e assim linguagem ordinária e situando-a no centro da sua filosofia. Para ser mais claro,
também ajudar os seus contemporâneos. Isso seria atingido conectando-se com se tratava da linguagem dos supermercados, da creche, enfermaria e das ruas,
os poderosos conteúdos da mente inconsciente, onde eles poderiam tocar em a linguagem que todos conhecem e sabem como usar nas situações mais cor-
algo universal e “trágico”. Esses artistas eram leitores de Freud e de Jung, assim riqueiras que definem a vida comum. Isso requer algumas explicações.
como de muitos antropólogos, e as suas leituras foram na maioria das vezes No período durante e seguinte à Segunda Guerra Mundial, abordagens
trazidas pelos surrealistas, que tinham fugido de um continente em guerra para filosóficas voltadas ao senso comum e ao discurso comum eram desdenhadas –
formar uma comunidade encapsulada em Nova Iorque. Tão poderoso foi o nenhuma delas estava seguindo de modo adequado os propósitos louváveis da
impacto dos surrealistas no pequeno círculo de pintores de Nova Iorque que filosofia. O senso comum não fornecia uma leitura adequada do modo que o
Motherwell, em um dado momento, propôs chamar o que se estava fazendo de mundo realmente é, como o conhecemos a partir das descobertas da ciência. A
“Surrealismo Abstrato”. ciência, especialmente a física moderna, nos mostra como as coisas do senso
Voltando-se contra o proclamado heroísmo do Expressionismo comum são inconsistentes, e do mesmo modo falsas. Mas a linguagem
Abstrato, quase com um sentido de repulsão no início dos anos 60, artistas de ordinária, tal como a lógica moderna revelou, é propensa ao paradoxo e conse-
um vasto espectro no qual se incluíam a pop, o minimalismo, e o Fluxus, para qüentemente inadequada para descrever os propósitos da ciência. (Mesmo
citar alguns, não estavam simplesmente se opondo a um programa formal que Freud, mediante sua descoberta do inconsciente, acreditava ter nocauteado o
lidava com a pintura e o significado do gesto na pintura. Eles estavam toman- senso comum). A tarefa da filosofia era construir uma linguagem ideal,
do posição contra uma certa filosofia do artista, uma certa filosofia da razão, impecável, de modo a abarcar as verdades da ciência, e a lógica matemática
uma certa visão de sociedade e em muitos casos eles não compartilhavam a oferecia uma ferramenta magnífica para a sua reconstrução racional. A obra
idéia do “presente não satisfatório”, do qual os membros da Escola de Nova inicial de Wittgenstein, o Tractatus Logico-Philosophicus, era precisamente um
Iorque tentavam se alienar. esforço para elaborar uma linguagem ideal mediante a qual o que quer que
O Expressionismo Abstrato, se aceitarmos a formulação de Gotlieb e fosse legitimamente dizível pudesse ser dito.
Rothko, era de fato uma forma de crítica cultural; em particular uma impug- Tudo isso foi abruptamente alterado nos anos 1950, numa virada tão
nação dos valores de uma sociedade capitalista em prol de uma compreensão dramática quanto a que aconteceria, a partir daquela década, do
da natureza humana, mais verdadeira e mais primitiva, que incorporasse os Expressionismo Abstrato para a arte pop, e tão surpreendente quanto deve ter
conteúdos simbólicos do inconsciente. Os expressionistas queriam viver entre sido supor que artistas sérios um dia pintassem imagens do Pato Donald ou do
as “grandes coisas modernas” do jeito que os surrealistas viveram na sociedade Mickey Mouse. Não havia nada dentro da arte ou da filosofia que explicasse
americana, sem sequer se incomodar em aprender a língua. Ao mesmo tempo essa mudança – ela parecia ter se dado a partir de condições exteriores, a par-
em que eles estavam atentos para todas as culturas do mundo, eles deram as tir mesmo do “espírito da época”. De uma só vez o projeto de uma linguagem
costas para aquilo que era proclamado como kitsch, para usar a palavra que ideal pareceu tão inconsistente quanto as reivindicações da Escola de Nova
Greenberg tornou corriqueira no seu famoso ensaio de 1939, “Vanguarda e Iorque pareceram pretensiosas. Vejamos uma observação importante de um dos
8. In GREENBERG, C. kitsch” 8. E enquanto o Minimalismo e o Fluxus seguiram um caminho líderes do então chamado movimento da “linguagem ordinária”, o professor da
Collected Essays and reducionista, a pop – e com a pop, Warhol – afirmou tudo aquilo que o movi- Universidade de Oxford, J. L. Austin:
Criticism. vol. 1 -
Perception and
mento anterior havia rejeitado: o mundo das coisas ordinárias em detrimento “O nosso estoque comum de palavras incorpora todas as distinções que os
Judgement 1939-1944. do mundo desconhecido, os objetos que todos conheciam em um piscar de homens acharam que valia a pena traçar, e as conexões que eles acharam que 9. AUSTIN, J. L. “A plea
Chicago: John O’Brian/ olhos em oposição aos objetos oriundos das profundezas obscuras, que somente valia a pena fazer na vida de muitas gerações: estas realmente puderam ser mais for excuse”. In URMSON,
Chicago University Press, J. O. & VARNACK, G. J.
podiam se tornar presentes por meio de formas estranhas e desconhecidas; os numerosas, mais sonoras desde que passaram pelo longo teste de sobrevivência do
1986, p. 5-23. [Arte e (eds.). Philosophical
Cultura. Ensaios quadrinhos no contraponto ao trágico; e o mundo real em contrapartida à mais apto, e mais sutis, ao menos em todos as questões práticas e ordinárias, do Papers. Oxford: Claredon
Críticos. São Paulo: eternidade primordial e universal. E isso queria dizer que a pop afirmava os que algo que você ou eu possamos pensar em nossas poltronas em uma tarde” 9. Press, 1961, p. 130.
Ática, 1996, p. 22-39.]
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to da época. O artista apreende a imagem e no trabalho de resgatá-la do incons- símbolos palpáveis da vida cotidiana contra o mágico, o xamânico e o primiti-
ciente mais profundo ele a coloca em relação aos valores conscientes, para então vo. Os artistas pop celebraram as coisas que os expressionistas abstratos
transformar a sua forma até que ela possa ser aceitável pelos seus contemporâneos, achavam estúpidas demais.
7. ASHTON, Dore. The de acordo com suas capacidades” 7. Já que estamos falando de “espírito da época”, talvez valha a pena
New York School: a Gotlieb e Rothko haviam escrito o seguinte: “Somente é válido aquele parar e refletir sobre alguns paralelos entre o que Warhol e alguns dos maiores
cultural reckoning.
Nova Iorque: Vicking conteúdo subjetivo que contém o trágico e o eterno. É por isso que nós preferimos filósofos do período estavam fazendo. Estes, em grande parte sob a influência
Press, 1972, p. 124. a tipologia da arte arcaica e primitiva”. O pintor de Nova Iorque, em resumo, da filosofia tardia de Wittgenstein, estavam empreendendo um certo retorno à
tentou escapar à “insuficiência e unilateralidade do espírito da época” e assim linguagem ordinária e situando-a no centro da sua filosofia. Para ser mais claro,
também ajudar os seus contemporâneos. Isso seria atingido conectando-se com se tratava da linguagem dos supermercados, da creche, enfermaria e das ruas,
os poderosos conteúdos da mente inconsciente, onde eles poderiam tocar em a linguagem que todos conhecem e sabem como usar nas situações mais cor-
algo universal e “trágico”. Esses artistas eram leitores de Freud e de Jung, assim riqueiras que definem a vida comum. Isso requer algumas explicações.
como de muitos antropólogos, e as suas leituras foram na maioria das vezes No período durante e seguinte à Segunda Guerra Mundial, abordagens
trazidas pelos surrealistas, que tinham fugido de um continente em guerra para filosóficas voltadas ao senso comum e ao discurso comum eram desdenhadas –
formar uma comunidade encapsulada em Nova Iorque. Tão poderoso foi o nenhuma delas estava seguindo de modo adequado os propósitos louváveis da
impacto dos surrealistas no pequeno círculo de pintores de Nova Iorque que filosofia. O senso comum não fornecia uma leitura adequada do modo que o
Motherwell, em um dado momento, propôs chamar o que se estava fazendo de mundo realmente é, como o conhecemos a partir das descobertas da ciência. A
“Surrealismo Abstrato”. ciência, especialmente a física moderna, nos mostra como as coisas do senso
Voltando-se contra o proclamado heroísmo do Expressionismo comum são inconsistentes, e do mesmo modo falsas. Mas a linguagem
Abstrato, quase com um sentido de repulsão no início dos anos 60, artistas de ordinária, tal como a lógica moderna revelou, é propensa ao paradoxo e conse-
um vasto espectro no qual se incluíam a pop, o minimalismo, e o Fluxus, para qüentemente inadequada para descrever os propósitos da ciência. (Mesmo
citar alguns, não estavam simplesmente se opondo a um programa formal que Freud, mediante sua descoberta do inconsciente, acreditava ter nocauteado o
lidava com a pintura e o significado do gesto na pintura. Eles estavam toman- senso comum). A tarefa da filosofia era construir uma linguagem ideal,
do posição contra uma certa filosofia do artista, uma certa filosofia da razão, impecável, de modo a abarcar as verdades da ciência, e a lógica matemática
uma certa visão de sociedade e em muitos casos eles não compartilhavam a oferecia uma ferramenta magnífica para a sua reconstrução racional. A obra
idéia do “presente não satisfatório”, do qual os membros da Escola de Nova inicial de Wittgenstein, o Tractatus Logico-Philosophicus, era precisamente um
Iorque tentavam se alienar. esforço para elaborar uma linguagem ideal mediante a qual o que quer que
O Expressionismo Abstrato, se aceitarmos a formulação de Gotlieb e fosse legitimamente dizível pudesse ser dito.
Rothko, era de fato uma forma de crítica cultural; em particular uma impug- Tudo isso foi abruptamente alterado nos anos 1950, numa virada tão
nação dos valores de uma sociedade capitalista em prol de uma compreensão dramática quanto a que aconteceria, a partir daquela década, do
da natureza humana, mais verdadeira e mais primitiva, que incorporasse os Expressionismo Abstrato para a arte pop, e tão surpreendente quanto deve ter
conteúdos simbólicos do inconsciente. Os expressionistas queriam viver entre sido supor que artistas sérios um dia pintassem imagens do Pato Donald ou do
as “grandes coisas modernas” do jeito que os surrealistas viveram na sociedade Mickey Mouse. Não havia nada dentro da arte ou da filosofia que explicasse
americana, sem sequer se incomodar em aprender a língua. Ao mesmo tempo essa mudança – ela parecia ter se dado a partir de condições exteriores, a par-
em que eles estavam atentos para todas as culturas do mundo, eles deram as tir mesmo do “espírito da época”. De uma só vez o projeto de uma linguagem
costas para aquilo que era proclamado como kitsch, para usar a palavra que ideal pareceu tão inconsistente quanto as reivindicações da Escola de Nova
Greenberg tornou corriqueira no seu famoso ensaio de 1939, “Vanguarda e Iorque pareceram pretensiosas. Vejamos uma observação importante de um dos
8. In GREENBERG, C. kitsch” 8. E enquanto o Minimalismo e o Fluxus seguiram um caminho líderes do então chamado movimento da “linguagem ordinária”, o professor da
Collected Essays and reducionista, a pop – e com a pop, Warhol – afirmou tudo aquilo que o movi- Universidade de Oxford, J. L. Austin:
Criticism. vol. 1 -
Perception and
mento anterior havia rejeitado: o mundo das coisas ordinárias em detrimento “O nosso estoque comum de palavras incorpora todas as distinções que os
Judgement 1939-1944. do mundo desconhecido, os objetos que todos conheciam em um piscar de homens acharam que valia a pena traçar, e as conexões que eles acharam que 9. AUSTIN, J. L. “A plea
Chicago: John O’Brian/ olhos em oposição aos objetos oriundos das profundezas obscuras, que somente valia a pena fazer na vida de muitas gerações: estas realmente puderam ser mais for excuse”. In URMSON,
Chicago University Press, J. O. & VARNACK, G. J.
podiam se tornar presentes por meio de formas estranhas e desconhecidas; os numerosas, mais sonoras desde que passaram pelo longo teste de sobrevivência do
1986, p. 5-23. [Arte e (eds.). Philosophical
Cultura. Ensaios quadrinhos no contraponto ao trágico; e o mundo real em contrapartida à mais apto, e mais sutis, ao menos em todos as questões práticas e ordinárias, do Papers. Oxford: Claredon
Críticos. São Paulo: eternidade primordial e universal. E isso queria dizer que a pop afirmava os que algo que você ou eu possamos pensar em nossas poltronas em uma tarde” 9. Press, 1961, p. 130.
Ática, 1996, p. 22-39.]
110 Danto Danto 111
Torna-se possível substituir “sofá psicanalista” por poltrona e elaborar camente concebida enquanto estivesse naquela forma. O entendimento filosó-
a posição do artista pop contra o do Expressionismo Abstrato. Os expressio- fico começa quando se percebe que nenhuma propriedade visível distingue a
nistas abstratos certamente insistiram em que as suas pinturas não seriam sem realidade da arte em geral. E isso foi algo que finalmente Warhol demonstrou.
conteúdo mas, na verdade, teriam um conteúdo mais profundo. No entanto, Eu fico freqüentemente impressionado com a ironia de que alguém tão
como David Hockney certa vez assinalou, a superfície é profunda o suficiente. inverossímil como Warhol, que parecia tão pouco dotado de dons e poderes in-
Nada podia ser mais profundo ou mais significativo do que os objetos que nos telectuais no mundo das artes, tão “maneiro”, tão ligado na baixa cultura –
rodeiam, que são “mais numerosos, mais sonoros e mais sutis” do que todos os kitsch! – pudesse ter introduzido intuições filosóficas tão além daqueles seus
símbolos potenciais encontrados em uma sessão de análise junguiana, dos pares que liam Kant ou que arrotavam existencialismo, citavam Kierkegaard e
quais as pessoas comuns nada sabem, e considerando que os artistas estejam usavam o vocabulário mais complicado e erudito. Quando eu, em um ensaio
enganados ao supor saber mais. que publiquei na época da sua exposição retrospectiva póstuma no Museu de
Os termos da discussão certamente mudaram, tanto na arte como na Arte Moderna – MoMA, reivindiquei que ele era o mais próximo de um gênio
filosofia, desde o final dos anos 1950 e o início dos sessenta. Hoje a contro- filosófico que a arte do século vinte havia concebido, fui abordado com pouca
vérsia na filosofia tem a ver com a questão de se as nossas explicações aceitação pela grande maioria dos meus amigos, que o considerava num pata-
ordinárias da conduta humana – o que é pejorativamente chamado de “psi- mar intelectual muito abaixo. É certo que uma das contribuições de Warhol
cologia popular” – não constitui um barco furado teórico para uma compreen- para a cultura era um certo visual – do tipo ‘roupas de couro’, pálido, criança
são profunda de nós mesmos, e se isso não deve ser substituído pela linguagem noturna sem vida, monossilábico e “maneiro”, sem interesse pela “arte, beleza
da neuroinformática. As transformações das controvérsias do mundo da arte e riso”, para citar a trindade de de Kooning. Mas aquela persona era ela mesma
não são menos impactantes. Com a passagem dos anos sessenta, o mundo que um de seus trabalhos – um tipo de encarnação do artista dos tempos modernos.
Warhol rapsodiou no seu modo superficial, tal como a sociedade que ele incor- Ele atingiu o antípoda da persona proletária inventada do Cedar Bar: ele se
porou, foram alvo de várias formas de crítica cultural intensa. Houve o ressur- tornou o que ele fazia. Em uma entrevista publicada no mês da sua morte, Eva
gimento de um radicalismo de esquerda estimulado pela Guerra do Vietnã, e Hesse expressou sua total admiração por Warhol devido “a sua arte e sua vida
então uma procura por estilos de vida alternativos, distantes realmente dos con- serem a mesma” 10. Aquele jeito de ser era a unidade que ela desejava para si. De 10. NEMVER, Cindy.
geladores, pias brilhantes, deliciosas sopas quentes, tortas recheadas com qualquer modo não é necessário, para mostrar suas melhores acuidades filosó- “An interview with Eva
Hesse.” Art Forum. n. 7.
ketchup e enlatados da fase alta da pop. Warhol recebeu um tiro em 1968, no ficas, vestir tweeds e cotoveleiras e olhar para a obra por entre a fumaça do maio de 1970, p. 59-63.
tempo em que a sua própria estética havia sofrido uma certa evolução. “O cachimbo.
Warhol inicial, antes de levar um tiro...” era a transfiguração do lugar comum. O seu trabalho e a sua vida eram o mesmo porque ele transformou a
Com a passagem dos setenta, ele só era um tipo diferente de artista, mais sua vida na imagem da vida do artista, e foi capaz de unir as imagens que com-
obcecado com o glamour, a vida noturna e as dimensões mais escuras da cul- punham a substância da arte. Diferente de Duchamp, Warhol procurou traçar
tura gay. uma ressonância não tanto entre a arte e os objetos reais quanto entre a arte e
Mas já estou lá na frente da minha história. Tinha prometido dar algu- as imagens. O que foi o seu insight, como implica o aforismo de Kierkegaard, é
ma explicação sobre como a exaltação do ordinário ajudou a dar à arte uma que os nossos sinais e imagens são a nossa realidade. Vivemos em uma atmos-
consciência de sua natureza filosófica. Os expressionistas abstratos certamente fera de imagens, e estas definem a realidade da nossa existência. Quem ou o
se assumiram como metafísicos na pintura, e acreditaram que a sua arte conec- que quer que realmente tenha sido Marilyn Monroe não é tão importante quan-
tava-se com uma série de sentidos a que tinham acesso pelo inconsciente. Eles to as suas imagens, que definem uma certa essência feminina, que, quando
usaram a linguagem da filosofia com rebuscamento, e falaram com familiari- Marilyn era viva, condensava as atitudes masculinas em relação às mulheres e
dade sobre o Self, o noumênico, o Ding an sich. O mundo ordinário, como na as atitudes das mulheres em relação a si mesmas. Ela era as suas imagens no
grande tradição vinda de Platão, era menosprezado como inferior, como mero, cinema e nas revistas, e foi dessa forma que ela se tornou comum. Ela tornou-
como alheio à realidade com a qual supunham-se em contato. A relação entre se parte da nossa vida porque fazia parte de uma consciência compartilhada do
arte e realidade não poderia ser constituída nas estruturas que eles tornaram homem e da mulher modernos por todo o mundo. Nada que pudesse ser extraí-
possíveis. Só poderia ser quando se pudesse aceitar um objeto ordinário, i.e., do das profundezas do inconsciente poderia ter a chance de ter a magia e o
ver que alguma coisa poderia ser arte e ainda se parecer com um objeto poder de Marilyn.
ordinário, da mesma forma que os objetos ordinários se parecem entre si. Uma A arte de Warhol trouxe objetividade à mente cultural comum.
vez que isso foi possível, ficou imediatamente claro que a arte não era o que a Participar dessa mentalidade implica conhecer imediatamente o significado e a
teoria dos expressionistas abstratos havia promulgado e não poderia ser filosofi- identidade de certas imagens: conhecer, sem precisar perguntar, quem são

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Torna-se possível substituir “sofá psicanalista” por poltrona e elaborar camente concebida enquanto estivesse naquela forma. O entendimento filosó-
a posição do artista pop contra o do Expressionismo Abstrato. Os expressio- fico começa quando se percebe que nenhuma propriedade visível distingue a
nistas abstratos certamente insistiram em que as suas pinturas não seriam sem realidade da arte em geral. E isso foi algo que finalmente Warhol demonstrou.
conteúdo mas, na verdade, teriam um conteúdo mais profundo. No entanto, Eu fico freqüentemente impressionado com a ironia de que alguém tão
como David Hockney certa vez assinalou, a superfície é profunda o suficiente. inverossímil como Warhol, que parecia tão pouco dotado de dons e poderes in-
Nada podia ser mais profundo ou mais significativo do que os objetos que nos telectuais no mundo das artes, tão “maneiro”, tão ligado na baixa cultura –
rodeiam, que são “mais numerosos, mais sonoros e mais sutis” do que todos os kitsch! – pudesse ter introduzido intuições filosóficas tão além daqueles seus
símbolos potenciais encontrados em uma sessão de análise junguiana, dos pares que liam Kant ou que arrotavam existencialismo, citavam Kierkegaard e
quais as pessoas comuns nada sabem, e considerando que os artistas estejam usavam o vocabulário mais complicado e erudito. Quando eu, em um ensaio
enganados ao supor saber mais. que publiquei na época da sua exposição retrospectiva póstuma no Museu de
Os termos da discussão certamente mudaram, tanto na arte como na Arte Moderna – MoMA, reivindiquei que ele era o mais próximo de um gênio
filosofia, desde o final dos anos 1950 e o início dos sessenta. Hoje a contro- filosófico que a arte do século vinte havia concebido, fui abordado com pouca
vérsia na filosofia tem a ver com a questão de se as nossas explicações aceitação pela grande maioria dos meus amigos, que o considerava num pata-
ordinárias da conduta humana – o que é pejorativamente chamado de “psi- mar intelectual muito abaixo. É certo que uma das contribuições de Warhol
cologia popular” – não constitui um barco furado teórico para uma compreen- para a cultura era um certo visual – do tipo ‘roupas de couro’, pálido, criança
são profunda de nós mesmos, e se isso não deve ser substituído pela linguagem noturna sem vida, monossilábico e “maneiro”, sem interesse pela “arte, beleza
da neuroinformática. As transformações das controvérsias do mundo da arte e riso”, para citar a trindade de de Kooning. Mas aquela persona era ela mesma
não são menos impactantes. Com a passagem dos anos sessenta, o mundo que um de seus trabalhos – um tipo de encarnação do artista dos tempos modernos.
Warhol rapsodiou no seu modo superficial, tal como a sociedade que ele incor- Ele atingiu o antípoda da persona proletária inventada do Cedar Bar: ele se
porou, foram alvo de várias formas de crítica cultural intensa. Houve o ressur- tornou o que ele fazia. Em uma entrevista publicada no mês da sua morte, Eva
gimento de um radicalismo de esquerda estimulado pela Guerra do Vietnã, e Hesse expressou sua total admiração por Warhol devido “a sua arte e sua vida
então uma procura por estilos de vida alternativos, distantes realmente dos con- serem a mesma” 10. Aquele jeito de ser era a unidade que ela desejava para si. De 10. NEMVER, Cindy.
geladores, pias brilhantes, deliciosas sopas quentes, tortas recheadas com qualquer modo não é necessário, para mostrar suas melhores acuidades filosó- “An interview with Eva
Hesse.” Art Forum. n. 7.
ketchup e enlatados da fase alta da pop. Warhol recebeu um tiro em 1968, no ficas, vestir tweeds e cotoveleiras e olhar para a obra por entre a fumaça do maio de 1970, p. 59-63.
tempo em que a sua própria estética havia sofrido uma certa evolução. “O cachimbo.
Warhol inicial, antes de levar um tiro...” era a transfiguração do lugar comum. O seu trabalho e a sua vida eram o mesmo porque ele transformou a
Com a passagem dos setenta, ele só era um tipo diferente de artista, mais sua vida na imagem da vida do artista, e foi capaz de unir as imagens que com-
obcecado com o glamour, a vida noturna e as dimensões mais escuras da cul- punham a substância da arte. Diferente de Duchamp, Warhol procurou traçar
tura gay. uma ressonância não tanto entre a arte e os objetos reais quanto entre a arte e
Mas já estou lá na frente da minha história. Tinha prometido dar algu- as imagens. O que foi o seu insight, como implica o aforismo de Kierkegaard, é
ma explicação sobre como a exaltação do ordinário ajudou a dar à arte uma que os nossos sinais e imagens são a nossa realidade. Vivemos em uma atmos-
consciência de sua natureza filosófica. Os expressionistas abstratos certamente fera de imagens, e estas definem a realidade da nossa existência. Quem ou o
se assumiram como metafísicos na pintura, e acreditaram que a sua arte conec- que quer que realmente tenha sido Marilyn Monroe não é tão importante quan-
tava-se com uma série de sentidos a que tinham acesso pelo inconsciente. Eles to as suas imagens, que definem uma certa essência feminina, que, quando
usaram a linguagem da filosofia com rebuscamento, e falaram com familiari- Marilyn era viva, condensava as atitudes masculinas em relação às mulheres e
dade sobre o Self, o noumênico, o Ding an sich. O mundo ordinário, como na as atitudes das mulheres em relação a si mesmas. Ela era as suas imagens no
grande tradição vinda de Platão, era menosprezado como inferior, como mero, cinema e nas revistas, e foi dessa forma que ela se tornou comum. Ela tornou-
como alheio à realidade com a qual supunham-se em contato. A relação entre se parte da nossa vida porque fazia parte de uma consciência compartilhada do
arte e realidade não poderia ser constituída nas estruturas que eles tornaram homem e da mulher modernos por todo o mundo. Nada que pudesse ser extraí-
possíveis. Só poderia ser quando se pudesse aceitar um objeto ordinário, i.e., do das profundezas do inconsciente poderia ter a chance de ter a magia e o
ver que alguma coisa poderia ser arte e ainda se parecer com um objeto poder de Marilyn.
ordinário, da mesma forma que os objetos ordinários se parecem entre si. Uma A arte de Warhol trouxe objetividade à mente cultural comum.
vez que isso foi possível, ficou imediatamente claro que a arte não era o que a Participar dessa mentalidade implica conhecer imediatamente o significado e a
teoria dos expressionistas abstratos havia promulgado e não poderia ser filosofi- identidade de certas imagens: conhecer, sem precisar perguntar, quem são

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Marilyn, Elvis, Liz e Jackie, sopa Campbell e Brillo, ou, atualmente, depois da “apenas olhe a superfície”.
morte de Warhol, Madonna e Bart Simpson. Ter que perguntar a quem essas Há mais nisso do que isso. Ele transformou o mundo que nós com-
imagens pertencem é declarar a própria distância em relação à cultura. Isso fez partilhamos em arte, e se tornou parte desse mundo. E porque somos as ima-
de Warhol um artista público e abrangente em relação à cultura que ele tornou gens que compartilhamos com todas as outras pessoas, ele se tornou parte de
objetiva. Existem, com isso, duas formas de morte – o encerramento da vida e nós. Por isso ele deve ter dito que se você quiser saber quem é Andy Warhol,
obsolescência das próprias imagens. Quando ninguém reconhece quem está na olhe para dentro. Ou melhor, olhe para fora. Você, eu, o mundo que compar-
fotografia, somente então aquele sujeito da fotografia se torna irrevogavelmente tilhamos, somos todos da mesma matriz.
morto. Ter fama verdadeira na vida moderna significa ter uma imagem reco-
nhecida por outras pessoas que nunca conheceram nada além dessa imagem.
Ter verdadeira imortalidade é atingir uma imagem que ultrapasse a duração de
si, e que continue a fazer parte da mente comum indefinidamente – como
Charles Chaplin, ou JFK, ou mesmo o próprio Warhol. Os seus auto-retratos
são retratos da sua imagem e, conseqüentemente, tanto mais ou menos seus
quanto os retratos que fez de Marilyn sejam “realmente” dela.
Fazer com que sua imagem faça parte da mente comum, no sistema do
mundo de Warhol, é se tornar um astro: um astro de cinema, de rock, da políti-
ca, uma estrela da estante do supermercado, ou, o que já é mais raro, um astro
da arte. Jackson Pollock se tornou um astro da arte, talvez o primeiro na
América, de acordo com o artigo que a revista Life dedicou a ele em 1949.Todo
mundo guardou a sua face reluzente, mas o que é mais importante, todo mundo
em todo lugar podia imediatamente reconhecer um Pollock. De Kooning, muito
mais considerado em alguns círculos da crítica do que Pollock, nunca chegou
a ser um astro. O rosto soberbo de Picasso o tornou uma espécie de astro, mas
Braque, muito mais bonito, nunca chegou a ser um. Não existem estrelas entre
os nossos contemporâneos, ninguém que todo mundo reconheça, exceto talvez
Cindy Sherman. Na celebrada taxonomia de Greenberg, as estrelas são kitsch
porque a sua existência acontece na mente comum. Isso torna os astros da arte
kitsch, mesmo que a sua arte seja de vanguarda. Essa mistura de categorias,
sem dúvida, contribui para que Warhol seja abordado com suspeitas, se não
com desdém, pelos críticos da alta arte na América, que acharam difícil aceitar
aquele kitsch avant-garde como efetivamente algum tipo de contribuição.
Warhol inventou uma forma de retratar que especificava o modo como
as estrelas apareciam. Todos os que retratou tornavam-se instantaneamente
glamourosos através das inconfundíveis imagens warholianas: Liza Minnelli,
Barbra Streisand, Albert Einstein, Mick Jagger, Leo Castelli. A galerista Holly
Solomon, que encomendou o seu retrato, comentou sobre como Warhol a
transformou em “uma estrela hollywoodiana”. Mas, estranhamente, havia uma Originalmente publicado em DANTO, Arthur. Philosophizing Art. Selected Essays. Berkeley:
igualdade entre os objetos: assim como a coca-cola bebida por Liz Taylor não é University of California Press, 2001, p. 61-83.
melhor do que aquela bebida pelo mendigo na esquina, Chairman Mao não é
menos estrela do que Bianca Jagger, e os travestis pretos latinos da série de Arthur Danto é professor emérito da Universidade de Colúmbia e crítico de arte da revista The Nation.
gravuras Ladies and Gentlemen não são menos – ou mais – glamourosos do que É autor, entre outros, dos livros The Abuse of Beauty e After the End of Art.
Truman Capote ou Lana Turner... ou a Deth Star não é diferente do esqueleto
humano. É assim que alguém se percebe nos seus quinze minutos de fama. “Se Tradução: Nara Beatriz Milioli Tutida.
você quiser saber tudo sobre Andy Warhol”, ele dizia numa entrevista de 1967,

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Marilyn, Elvis, Liz e Jackie, sopa Campbell e Brillo, ou, atualmente, depois da “apenas olhe a superfície”.
morte de Warhol, Madonna e Bart Simpson. Ter que perguntar a quem essas Há mais nisso do que isso. Ele transformou o mundo que nós com-
imagens pertencem é declarar a própria distância em relação à cultura. Isso fez partilhamos em arte, e se tornou parte desse mundo. E porque somos as ima-
de Warhol um artista público e abrangente em relação à cultura que ele tornou gens que compartilhamos com todas as outras pessoas, ele se tornou parte de
objetiva. Existem, com isso, duas formas de morte – o encerramento da vida e nós. Por isso ele deve ter dito que se você quiser saber quem é Andy Warhol,
obsolescência das próprias imagens. Quando ninguém reconhece quem está na olhe para dentro. Ou melhor, olhe para fora. Você, eu, o mundo que compar-
fotografia, somente então aquele sujeito da fotografia se torna irrevogavelmente tilhamos, somos todos da mesma matriz.
morto. Ter fama verdadeira na vida moderna significa ter uma imagem reco-
nhecida por outras pessoas que nunca conheceram nada além dessa imagem.
Ter verdadeira imortalidade é atingir uma imagem que ultrapasse a duração de
si, e que continue a fazer parte da mente comum indefinidamente – como
Charles Chaplin, ou JFK, ou mesmo o próprio Warhol. Os seus auto-retratos
são retratos da sua imagem e, conseqüentemente, tanto mais ou menos seus
quanto os retratos que fez de Marilyn sejam “realmente” dela.
Fazer com que sua imagem faça parte da mente comum, no sistema do
mundo de Warhol, é se tornar um astro: um astro de cinema, de rock, da políti-
ca, uma estrela da estante do supermercado, ou, o que já é mais raro, um astro
da arte. Jackson Pollock se tornou um astro da arte, talvez o primeiro na
América, de acordo com o artigo que a revista Life dedicou a ele em 1949.Todo
mundo guardou a sua face reluzente, mas o que é mais importante, todo mundo
em todo lugar podia imediatamente reconhecer um Pollock. De Kooning, muito
mais considerado em alguns círculos da crítica do que Pollock, nunca chegou
a ser um astro. O rosto soberbo de Picasso o tornou uma espécie de astro, mas
Braque, muito mais bonito, nunca chegou a ser um. Não existem estrelas entre
os nossos contemporâneos, ninguém que todo mundo reconheça, exceto talvez
Cindy Sherman. Na celebrada taxonomia de Greenberg, as estrelas são kitsch
porque a sua existência acontece na mente comum. Isso torna os astros da arte
kitsch, mesmo que a sua arte seja de vanguarda. Essa mistura de categorias,
sem dúvida, contribui para que Warhol seja abordado com suspeitas, se não
com desdém, pelos críticos da alta arte na América, que acharam difícil aceitar
aquele kitsch avant-garde como efetivamente algum tipo de contribuição.
Warhol inventou uma forma de retratar que especificava o modo como
as estrelas apareciam. Todos os que retratou tornavam-se instantaneamente
glamourosos através das inconfundíveis imagens warholianas: Liza Minnelli,
Barbra Streisand, Albert Einstein, Mick Jagger, Leo Castelli. A galerista Holly
Solomon, que encomendou o seu retrato, comentou sobre como Warhol a
transformou em “uma estrela hollywoodiana”. Mas, estranhamente, havia uma Originalmente publicado em DANTO, Arthur. Philosophizing Art. Selected Essays. Berkeley:
igualdade entre os objetos: assim como a coca-cola bebida por Liz Taylor não é University of California Press, 2001, p. 61-83.
melhor do que aquela bebida pelo mendigo na esquina, Chairman Mao não é
menos estrela do que Bianca Jagger, e os travestis pretos latinos da série de Arthur Danto é professor emérito da Universidade de Colúmbia e crítico de arte da revista The Nation.
gravuras Ladies and Gentlemen não são menos – ou mais – glamourosos do que É autor, entre outros, dos livros The Abuse of Beauty e After the End of Art.
Truman Capote ou Lana Turner... ou a Deth Star não é diferente do esqueleto
humano. É assim que alguém se percebe nos seus quinze minutos de fama. “Se Tradução: Nara Beatriz Milioli Tutida.
você quiser saber tudo sobre Andy Warhol”, ele dizia numa entrevista de 1967,

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