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RESUMO
Esta comunicação pretende abordar a obra da artista Mira Schendel partindo do
pressuposto de que os espaços em branco, vazios ou transparentes encontrados em seus
trabalhos criam zonas de atividade, transitoriedade e transformação. A partir dessa noção,
propomos uma relação com a noção de vazio existente na arte e no pensamento japonês,
enxergando nesses espaços potencialidade, mediação, passagem, comunicação.
PALAVRAS-CHAVE
Mira Schendel; vazio; arte japonesa.
ABSTRACT
This communication intends to approach the Mira Schendel's work assuming the blank
space, the empty place and the transparent elements found in your works create activity,
transience and transformation zones. From that idea will be proposed a relation with the
notion of empty place present in japanese culture, seeing empty place as a place of
potentiality, mediation, passage, communication.
KEYWORDS
Mira Schendel; empty place; japanese art.
É o que Mira Schendel diz em carta ao crítico Gay Brett. O comentário a refere-se, a
princípio, aos trabalhos que ela estava produzindo naquele período, as Monotipias
(1964–1967). Ao observar os exemplares desta série podemos notar o que Mira
quer dizer com “estimular”, existiria uma tensão muito grande que ocorreria entre o
desenho e o branco do papel que o rodeia, uma tensão que parece promover as
qualidades de um e de outro, do espaço ocupado e do espaço não ocupado.
Se essa declaração da artista soa enigmática, o que ela diz em seguida parece
chegar ao âmago da questão: “o vazio não é símbolo vicário do não-ser”. A partir
dessa ideia, apontaremos uma relação com o vazio presente na arte e no
pensamento japonês e a abertura que esse vazio se abre para o encontro e o
diálogo.
A relação que Mira parece promover entre os espaços ocupados e os espaços não-
ocupados pode ser notada desde algumas pinturas mais antigas até seus últimos
trabalhos produzidos. Sua produção pictórica inicia-se em quadros figurativas,
embora seja uma figuração comedida, econômica nos elementos; e se
desenvolvendo dissolvendo tais figuras até chegar a uma pintura marcada pelo
espaço vazio. A mobilização espacial proposta por Mira valorizaria o espaço vazio,
entendendo que o espaço vazio não seria a instituição do nada, mas uma condição
para a existência de todas as coisas. Dessa forma, os espaços ocupados e os não-
ocupados, o cheio e o vazio, seriam vistos em pé de igualdade, seriam instâncias
que não se hierarquizariam, mas que se complementariam.
Em um depoimento1, Mira diz: “Os trabalhos ora apresentados [as Monotipias] são
resultado de uma tentativa até agora frustrada de surpreender o discurso no
momento da sua origem”. Valendo-se de uma técnica em que transferia a tinta óleo
para o papel japonês usando uma placa de vidro como mediador, Mira prostrava-se
diante do papel em branco e, assim, buscava imortalizar o intervalo existente entre o
Porém, Mira percebeu que esses desenhos ainda traziam uma temporalidade na
medida em que existia uma prevalência de sequência de leitura. Ainda no mesmo
depoimento: “A sequência das letras no papel imita o tempo [...]. São simulações do
tempo vivido e não captam a vivência do irrecuperável, que caracteriza esse tempo”.
A solução para este impasse pode ser vista na série Objetos Gráficos (1969). Os
desenhos parecem os mesmos daqueles presentes nas Monotipias, mas agora,
cobrindo a folha de papel, existem duas placas de acrílico. O objeto é suspenso,
permitindo que o público circule ao redor da obra. De volta à fala de Mira:
O “entre” pode ser visto em outra obra de Mira Schendel, Ondas Paradas de
Probabilidade (1969). A obra foi apresentada pela primeira vez para a X Bienal de
São Paulo, conhecida como a Bienal do Boicote, e apresentava 4.800 fios de nylon
presos no teto. Os fios de nylon caiam do teto como uma cortina e preenchiam todo
um espaço expositivo. Na exposição “Mira Schendel”, que ocorreu no segundo
semestre de 2014 na Pinacoteca do Estado de São Paulo, a instalação foi
reconstruída e ocupou quase toda uma das galerias do museu, deixando apenas um
estreito caminho para que o público a contornasse. Dependendo da iluminação em
que a galeria se encontrasse e a posição em que um indivíduo se colocasse diante
da instalação, os fios, muito finos e transparentes, desapareceriam. É quase um
ausente-presente, um invisível-visível. Existiria aqui um jogo entre o visível e o
invisível, o cheio e o vazio, um movimento entre essas duas instâncias, de uma para
outra. Seria a busca de mostrar a “visibilidade do invisível”, de mostrar que “o lado
atrás da transparência está na sua frente e que o ‘outro mundo’ é este”.2
A segunda declaração dada por Mira nessa mesma carta à Guy Brett relaciona
esses trabalhos ao zen. Sua pouca definição, seu aspecto transitivo, sua vivência no
entre, o esvaziamento, seria por essa via que Mira relacionaria seu trabalho ao zen.
Mira Schendel era uma conhecedora da cultura oriental, tanto que utilizava
elementos dessa cultura para formular alguns dos seus trabalhos. Ada Schendel,
filha de Mira, relatou a Tanya Barson, uma das curadoras da exposição Mira
Schendel para a Pinacoteca do Estado de São Paulo, que muitas das escolhas que
sua mãe fazia para as suas obras, e também em sua vida pessoal, eram frutos do
uso do I Ching. O I Ching também aparece na obra de Mira como título de uma série
de pinturas. As doze pinturas que compõe a série mostram variações entre as cores
azul e dourado. Em um quadro, a cor azul ocupa maior espaço na tela, em outro é o
dourado. Essas variações parecem fazer referência às variações que ocorreriam
entre o yin e o yang. De acordo com a cosmologia chinesa, de onde o I Ching
provém, seria devido ao vazio existente entre esses dois polos que proporcionaria
tais variações. Ora o mundo estaria mais yin, ora estaria mais yang.
Existe uma imagem tipicamente zen-budista que revelaria a noção do vazio presente
nesta escola de pensamento: trata-se do ensô (em português, círculo). Este círculo
seria desenhado no papel com apenas um movimento de pincel embebido por
nanquim. O ensô não precisaria necessariamente ser um círculo perfeito, ele poderia
possuir imperfeições, a ideia do perfeito ou imperfeito não caberia aqui. Da mesma
forma poderíamos encontrar círculos abertos ou fechados, sem que isso implique
um juízo de valor.
O ensô revelaria a noção budista de que o nosso mundo, o mundo dos sentidos,
seria ilusório e distante da realidade espiritual. O branco encerrado dentro do círculo
se tornaria mais branco em contraste com o preto do desenho, o vazio presente na
folha de papel se tornaria mais presente devido ao ensô. “O círculo como símbolo do
espírito absoluto, como plenitude, como vazio do universo que a tudo envolve, e
como multiplicidade e oposição em sua duração, como essência búdica,
transcendente, fora do espaço e do tempo […]” (BRINKER, 1985, p. 33).
O zen-budismo foi algumas vezes encarado pelo ocidente cristão como uma escola
de pensamento niilista, porém, o pensamento zen valorizaria o vazio não
entendendo uma negatividade ou inatividade, mas transformação. Fica-se em
silêncio para falar, fica-se imóvel para agir. O vazio não seria visto como um espaço
para ser preenchido, mas como um espaço para ser valorizado, para ser vivenciado,
Handa nos oferece um exemplo do que seria uma arte de inspiração zen ao nos
falar de uma ceramista que buscou em sua arte tornar palpável a experiência zen.
De acordo com Handa, a ceramista produziu diversos objetos seguindo uma lógica
de produção que abarcava o acaso e a não intencionalidade. Os objetos de
cerâmica que saiam do forno tinham formas diversas das quais nenhuma ela
controlava ou projetava. Handa ressalta que o comportamento zen da ceramista
encontrava-se no fato de que era durante o processo de produção que ela ia
descobrindo aquelas formas. Ou seja, durante a produção das peças a mente da
ceramista se encontrava “vazia”, uma vez que a confecção dos objetos não
pressupunha qualquer tipo de intencionalidade, exceto o seu próprio fazer. É
possível perceber o mesmo posicionamento em relação à prática de meditação, que
não deve ser inicializada se a busca for outra que não a própria prática em si.
Quando questionada se a sua obra era uma obra de arte zen, a ceramista contra-
argumentava dizendo que ela não poderia chamar objetos de cerâmica de artefatos
zen se ela nem mesmo sabia o que estava produzindo.
Eugen Herrigel, no livro A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen, discutindo com o seu
mestre de arco e flecha a respeito de suas dificuldades em conseguir melhorar a sua
prática, ouviu a seguinte recomendação: “Desprendendo-se de si mesmo, deixando
para trás tudo o que tem e o que é, de maneira que ao senhor nada restará, a não
Herrigel, em O Caminho Zen, propõe ser a conexão a única via para tudo que existe
no mundo. E que o espaço vazio não seria nada além do próprio indivíduo, em sua
forma mutável. Em contato com o espaço vazio, o indivíduo perderia a sua
identidade e, assim, se tornaria um com o mundo.
Existe um elemento cultural genuinamente japonês que lidaria com a ideia de vazio
como um espaço de atividade. No livro “MA: Entre-espaço da Arte e Comunicação
no Japão”, Michiko Okano nos apresenta Ma como uma qualidade da cultura
japonesa que estaria presente no quotidiano tempo o suficiente para ter-se
entranhado em cada aspecto do pensamento e da vida nipônica. Seria um elemento
tão comum a todos que por muitos anos os japoneses não veriam necessidade de
Isobel Whitelegg, no artigo Mira Schendel: rumo a uma história do diálogo 8, propõe
que a produção artística de Mira seja narrada como uma história do diálogo, uma
vez que a autora entende ser a interlocução uma das características principais da
artista. A interlocução apontada por Whitelegg não se restringe aos seus pares, os
artistas, mas a diversos outros intelectuais que tiveram muita importância para a
construção crítica da obra de Mira e também aos indivíduos que se colocavam à
experiência dos seus trabalhos. Whitelegg aponta que obras como, por exemplo,
Objetos Gráficos viviam em verdadeiros interstícios porque não se encaixavam em
nenhuma categoria artística, não era desenho, não era pintura, não era escultura,
mas ao mesmo tempo conversava como cada uma dessas categorias. Seria um
híbrido que habitaria esse “lugar entre” tão importante para a arte contemporânea
brasileira naquele momento. Hélio Oiticica e Lygia Clark, nessa época, estavam
propondo trabalhos no mesmo caminho, o que os colocava em conversa com Mira
Schendel.
Para Whitelegg, a qualidade de interstício era o que fascinava na obra de Mira, por
ocupar no mundo um lugar difuso, um lugar entre diferentes estruturas e diferentes
significações e reflexões. A relação com filósofos como Vilém Flusser também é
apontada pela autora como digna de nota. Como ela nos mostra, o interesse de
Flusser pela obra de Mira estava calcada nas experiências da artista com a
linguagem, buscando tanto encontrar seu fim como sua origem. Mira e Flusser foram
amigos próximos, trocavam cartas, debatiam temas importantes aos dois. De acordo
com Geraldo Souza Dias, o contato entre Mira e Flusser foi muito importante para o
desenvolvimento da obra de ambos. Flusser: “O que chamamos de ‘eu’, é um nó de
relações”.9
Notas
1
Depoimento gravado para o Departamento de Pesquisa e Documentação de Arte Brasileira da Fundação
Armando Álvares Penteado em 19 de agosto de 1977, presente no livro “León Ferrari e Mira Schendel: o alfabeto
enfurecido”. p. 58.
2
Anotação de Mira em seu diário presente no artigo "A visibilidade do invisível em Mira Schendel" escrito por
Márcia Erthal para o Jornal do Comércio, 6 de outubro de 2006.
3
MORAIS, Frederico. Droguinhas e um trenzinho: a metafísica de Mira Schendel. O Globo, Rio de Janeiro, 5
mai. 1983.
4
DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: do espiritual à corporeidade. São Paulo: CosacNaify, 2009. p. 215..
5
Em seu livro, Sônia Salzstein chama as Droguinhas de “esculturas de ar” (1996, p. 16), enquanto Geraldo
Souza Dias se refere à série como “desenhos no espaço” (2009, p. 216). João Masao Kamita, no texto “Mira
Schendel: o desafio do visível” para a revista “Gávea” (1991, n.2, p.35), refere-se às Droguinhas como
“estruturas em transição”.
6
PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO (São Paulo, SP) Mira Schendel: catálogo. São Paulo, 2014. p.
239
7
Ibdem.
Referências
BRINKER, Helmut. O Zen na Arte da Pintura. São Paulo: Pensamento, 1991.
CHENG, François. Cinco Meditações sobre a Beleza. São Paulo: Editora Triom, s/d.
DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: do espiritual à corporeidade. São Paulo: CosacNaify,
2009.
HERRIGEL, Eugen. A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen. São Paulo: Editora Pensamento,
1975.
KAMITA, João Masao. Mira Schendel: o desafio do visível. Gávea, Revista de História da
Arte e Arquitetura, n. 2, 1991. p. 30 – 37.
MARQUES, Maria Eduarda. Mira Schendel. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
NAVES, Rodrigo. Mira Schendel: o mundo como generosidade. León Ferrari e Mira
Schendel: o alfabeto enfurecido. São Paulo: Cosac Naify, Nova York: Museu de Arte
Moderna, 2010.
PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO (São Paulo, SP) Mira Schendel: catálogo. São
Paulo, 2014.
SALZSTEIN, Sônia (org.). No vazio do mundo: Mira Schendel. São Paulo: Marca d’Água,
1996.
______. Mira Schendel forja mundo do nada. O Estado de São Paulo, São Paulo, 14 de
setembro de 1996.
WHITELEGG, Isobel. Mira Schendel: rumo à história de um diálogo. Arte & Ensaios, Rio de
Janeiro, ano XIV, n.14, edição especial, 2007.