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PUC-SP
São Paulo
2017
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
São Paulo
2017
Banca Examinadora
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Ao Pedro Augusto, que me traz “vislumbres de totalidade na
finitude”, por meio da poesia cotidiana.
AGRADECIMENTO ESPECIAL
À Mary Jane Paris Spink, orientadora e fonte de inspiração, pela direção cuidadosa e
oportuna, que permitiu os voos da imaginação nos processos de produção, criação e
aprendizagem.
À querida Jacqueline Brigagão que, não apenas acompanhou essa pesquisa desde seus
contornos iniciais, mas ajudou a construí-la por meio de suas experientes e cuidadosas
contribuições, fazendo parte da minha história de maneira especial. Obrigada pelo
exemplo de educadora e pesquisadora.
Aos professores e às professoras do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia
Social da PUC de São Paulo, em especial à professora Maria Cristina Vicentin, pelas
preciosas contribuições na banca de qualificação.
Aos professores e às professoras do curso de Obstetrícia da Universidade de São Paulo,
pela formação crítica e singular. Agradeço, de modo especial, à professora Elizabete
Franco Cruz – de quem ouvi falar de Foucault pela primeira vez – pela docência
engajada e comprometida.
Às companheiras e aos companheiros do Núcleo de Estudos sobre Práticas Discursivas
no Cotidiano, pelas trocas e aprendizados compartilhados, pelos momentos de
descontração, pelo acolhimento caloroso e sincero. As contribuições de cada um e uma
de vocês estão refletidas nesta pesquisa.
À Marlene, secretária do Programa de Psicologia Social, pelo apoio fundamental nas
questões burocráticas.
À Claudete Kiselar, pelo exemplo de maternidade singular.
À minha família: aquelas e aqueles que me precedem, cujas trajetórias são também a
minha. Agradeço pelos percursos traçados, mesmo que tortuosos.
Ao Pedro, meu companheiro, pela relação de amor, cuidado, companheirismo e
admiração que sustentou o processo dessa dissertação. “E sigamos juntos”.
Agradeço, também, à família da qual passei a fazer parte a partir daquele feliz encontro
em maio de 2012. Obrigada pelo afeto, pela acolhida gentil e pelo carinho. Trude, Silvio
e Ana Beatriz, agradeço de maneira especial pelos sonhos de um mundo melhor
compartilhados.
Àqueles e àquelas cuja amizade se mantém intensamente presente mesmo na distância
espacial e temporal. Obrigada pela elegante compreensão nos momentos em que estive
ausente.
“O sexo não é uma fatalidade; ele é uma possibilidade de
aceder a uma vida criativa”
(Michel Foucault)
MORTELARO, P. K. Versões de aborto voluntário em projetos de lei:
(im)possibilidades de superação do statu quo. Dissertação (Mestrado em Psicologia
Social). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: São Paulo, 2017.
RESUMO
Esta pesquisa tem como objetivo central identificar as versões de aborto voluntário
presentes no processo legislativo por meio da análise de dois projetos de lei específicos
que têm por foco a descriminalização ou a criminalização da prática nos casos já
previstos por lei: o PL 882/2015 e o PL 478/2007, respectivamente. Para entendermos
as condições que possibilitam a criminalização da interrupção da gestação, utilizaremos
as teorizações de Michel Foucault acerca da biopolítica e do dispositivo da sexualidade,
uma vez que nos permitem compreender a emergência do processo de politização da
maternidade a partir do imperativo da vida. Para atingir o objetivo de pesquisa,
empregamos a abordagem teórico-metodológica da psicologia discursiva desenvolvida
no Núcleo de Estudos sobre Práticas Discursivas no Cotidiano: direitos, riscos e saúde
(NUPRAD), que se inscreve no âmbito de uma postura construcionista. Em um
primeiro momento, realizamos uma sistematização dos projetos de lei concernentes ao
aborto apresentados no período de 2007 a 2017. Em seguida, foi feita uma análise da
justificativa dos dois projetos de lei selecionados, buscando as versões de aborto
voluntário neles presentes. Três versões foram identificadas: o aborto como assassinato,
o aborto como problema de saúde pública e o aborto como direito feminino que, por sua
vez, contempla o direito à autodeterminação reprodutiva e o direito à vida. Versões que
estabelecem entre si relações de oposição, mas também se associam e completam,
dependendo de seu uso.
The central aim of this research is to identify the versions of voluntary abortion present
in the legislative process through the analysis of two specific bills, which propose either
decriminalization or criminalization of such procedure even in the cases already
provided by law: bills number 882/2015 and 478/2007, respectively. To understand the
conditions that enable the criminalization of the ending of pregnancy, we will make use
of Foucault’s theory concerning biopolitics and the apparatus (“dispositif”) of sexuality,
since it allows us to conceive the rise of the process which politicizes maternity from
the perspective of the life-imperative. To reach the aforementioned aim, we employ the
theoretical-methodological approach from the discursive psychology, developed by the
Centre for Studies and Research of Discursive Practices in Quotidian: rights, risks and
health” (Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Práticas Discursivas no Cotidiano:
direitos, riscos e saúde - NUPRAD), also related to a constructionist attitude. In the first
place, we carried out a systematization of legislative bills with regard to abortion
proposed between 2007 and 2017. Next, an analysis of the justification of the two
selected bills was made, searching for the voluntary abortion versions contained in
them. Three versions were then identified: abortion as murder, abortion as a public
health problem and abortion as a women’s right, which, in turn, involves the right to
reproductive self-determination and the right to life. These versions establish between
themselves oppositions, but also combine and complement each other, depending on
their use.
APRESENTAÇÃO........................................................................................................12
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................99
REFERÊNCIAS...........................................................................................................104
ANEXOS.......................................................................................................................113
12
APRESENTAÇÃO
Buscamos, por meio dos elementos constitutivos das práticas discursivas, levar
em consideração a dinâmica da produção de sentidos, tendo em vista que os repertórios
históricos formados pelos termos que demarcam as possibilidades da construção de
sentidos em uma determinada matriz podem ser ressignificados por meio dos processos
de socialização e de interanimação dialógica (SPINK, 2010). Tal abordagem nos
permite levar em consideração a polissemia que decorre da ressignificação das
formações discursivas no contexto das experiências singulares, mesmo que estas sejam
constituídas em um solo normativo (SPINK; MENEGON, 2005). Para tanto, utilizamos
documentos de domínio público como fonte de informação, pois, conforme destaca
Spink, P. (1999), eles nos permitem acessar os sentidos em circulação, uma vez que
neles estão presentes os repertórios históricos, ressignificados no tempo vivido e no
tempo curto, onde se dá a dinâmica de produção de sentidos, de modo que condensam
posicionamentos em tempos diferentes. Os documentos analisados foram obtidos por
meio da ferramenta de busca de proposições da Câmara dos Deputados a partir do
descritor aborto. Selecionamos, para o primeiro momento da pesquisa, apenas as
proposições que visam modificar – seja aumentar ou diminuir – a penalização dos casos
de abortamento não previstos por lei, penalizar aqueles já previstos no Código Penal ou
modificar as condições para o acesso ao abortamento legal. Por fim, discutimos as
versões de aborto que os repertórios sobre aborto voluntário presentes nas justificativas
15
Por fim, nas considerações finais, buscamos estabelecer relações entre as três
versões, sejam de oposição ou de associação e dependência, tendo em vista que seus
modos de coordenação podem performar o aborto no cenário brasileiro.
17
“(...) reconhecer que método não é o meio de acessar algo, mas sim de
se (re)construir no que estudamos e pesquisamos.” (SPINK et al.
2014, p. 27)
1
Entretanto, ressalta Ibañez (2005), apesar de ser difícil compreender a atenção dada à linguagem sem
18
centrada na comparação das línguas e no estudo de sua evolução histórica, por meio de
Saussure e da instituição da linguística moderna, a qual viabilizou o estudo rigoroso da
língua por si mesma e em si mesma. A outra ruptura, iniciada por Gottlob Frege (1849-
1925) e por Bertrand Russell (1872-1970), fez com que o olhar da filosofia, voltado até
então para as questões metafísicas, se voltasse para o mundo das produções discursivas,
passível de ser objetivado e público.
Após o estímulo dado por esses autores, a importância da linguagem não parou
de crescer. Entretanto, a partir de algumas dificuldades técnicas e conceituais, as
premissas do empirismo lógico desmoronaram, restando apenas o estímulo dado à
ênfase na importância da linguagem. A partir de uma autocrítica, Wittgenstein abandona
a possibilidade de construir uma linguagem ideal e volta-se para a reflexão sobre a
linguagem comum, influenciando um grupo de filósofos da Universidade de Oxford,
entre os quais se destacavam Gilbert Ryle (1900-1976), John Austin (1911-960), Peter
Strawson (1919) e Paul Grice (1913-1988). Este grupo compartilhava com os logicistas
um repúdio à tradição cartesiana e o entendimento da necessidade de passar de uma
filosofia do pensamento para uma filosofia da linguagem, opunham-se, no entanto,
rigorosamente ao positivismo e ao cientificismo, bem como à pretensão de construir
uma linguagem formalmente perfeita. Estudavam a linguagem para entender seus
mecanismos e opunham-se a reduzir a linguagem a uma mera função de descrição e
representação do mundo, pelo contrário, compreendiam que a linguagem tem
propriedades performativas.
essa transformação no século XX descrita acima, talvez seja útil recordar que já no período medieval
podemos encontrar alguns ingredientes que teriam podido propiciar um “giro linguístico” antes de seu
estado definitivo. Trata-se da famosa disputa entre os escolásticos a respeito dos “universais”. No interior
dessa disputa, os “nominalistas” sustentavam a tese da inexistência fática dos universais, argumentando
que tudo aquilo que existe o faz de uma forma particular e que de nada adianta buscar referências
existenciais por trás de categorias gerais. Um universal, nesse sentido, seria apenas uma abstração cuja
existência só se materializa por meio da linguagem e cuja realidade é resultado dos usos que fazemos
dela. A partir de considerações desse tipo, os nominalistas esboçavam uma linha de pensamento no
interior da qual a linguagem exerce um papel especial na elaboração de nossa visão do mundo.
19
emergem outros antagonismos em torno da indagação sobre aquilo que fornece a base
que dá condição à formação das ideias. Dá-se, portanto, além da cisão entre sujeito e
objeto, a cisão entre alma e corpo: de um lado, a razão, de origem divina, coloca-se
como fonte de conhecimento e cerne de toda inteligibilidade; de outro, o corpo, fonte de
ilusões provocadas pela sensibilidade. A partir do pensamento de Kant emergirá a chave
para uma nova formulação da subjetividade, uma vez que será superada a análise do
espírito cindido entre razão e sensibilidade. Nesse sentido, o espírito passa a ser visto
como composto por um sujeito transcendental, condição a priori do conhecimento, e
um sujeito empírico. As ideias, portanto, seriam conformadas por meio da experiência
empírica, que por sua vez parte de um marco não empírico estabelecido pelas
“categorias a priori de nosso entendimento” (IBAÑEZ, 2005; FERREIRA, 2007).
utilizadas para as explicar são construções sociais que também acabam por performar a
própria realidade. Devemos destacar, entretanto, que tais construções não são ficções
desenfreadas, ou seja, descontextualizadas: certas condições delimitam as possibilidades
dentro dos processos de construção da realidade. Por fim, a postura construcionista
implica desfamiliarizar-se da objetividade implícita na retórica da verdade, por meio da
crítica à verdade como conhecimento absoluto. Trata-se, portanto, de compreender a
verdade como construção social e histórica que se dá em uma matriz de condições de
possibilidade (SPINK & FREZZA, 1999).
Spink & Frezza (1999) destacam que tal postura acerca do conhecimento pode
ser alvo de contestação e críticas, principalmente em relação ao relativismo e
reducionismo linguístico que, a princípio, lhe parecem inerentes. Um posicionamento
construcionista é, em certos sentidos, relativista, pois, se a realidade é construção
histórica, ela não pode ser invariante. Entretanto, se a pesquisa desde uma perspectiva
construcionista implica na necessidade de examinar o que entendemos como fatos à luz
dos pressupostos epistemológicos que nos permitem atribuir a eles o caráter de
convenções socialmente construídas e historicamente localizadas, torna-se necessário
explicitar nossos posicionamentos políticos e éticos em relação a tais fatos, uma vez que
a pesquisa enquanto prática discursiva, produz efeitos e também constrói e transforma a
realidade. A reflexividade, portanto, coloca-se como um contraponto a um certo
relativismo. Quanto ao reducionismo linguístico, se considerarmos o aspecto
performativo da linguagem para as abordagens construcionistas, de fato, ela assume
papel importante na construção da realidade. Isso não significa, todavia, que a realidade
possa ser reduzida a um substrato linguístico (SPINK & FREZZA, 1999).
Dessa maneira, a linguagem é entendida como prática social e deve ser pensada
na interface entre seus aspectos performativos e sua matriz de condições de produção,
entendida tanto no contexto social e interacional, ou seja, nos microprocessos de
produção de sentidos, quanto no contexto foucaultiano de construções históricas. Assim,
desdobram-se dois níveis de análise distintos.
longa história e, a partir de uma concepção temporal tríplice – que engloba o tempo
longo, o tempo vivido e o tempo curto – estão inclusos no domínio do tempo longo.
Nessa perspectiva, este último é o lugar da construção dos conteúdos culturais que
foram parte dos discursos de uma dada época, permitindo que nos familiarizemos com
os conhecimentos produzidos e reinterpretados por diferentes domínios do saber
(SPINK & MEDRADO, 1999). Segundo Spink (2010), os repertórios são colocados em
movimento nos processos de interanimação dialógica. Nestes processos, o enunciado é a
unidade básica da comunicação. Enquanto elo na cadeia de comunicação, cada
enunciado tem suas fronteiras, é endereçado a determinado interlocutor e se insere em
gêneros de linguagem específicos. O tempo vivido, por sua vez, é o tempo de
ressignificação destes conteúdos históricos por meio das linguagens sociais aprendidas
pelos processos de socialização. O tempo curto, por fim, é o tempo da interanimação
dialógica e da dinâmica da produção de sentidos por meio dos enunciados que
presentificam a memória cultural do tempo longo e a memória pessoal do tempo vivido
(SPINK & MEDRADO, 1999; SPINK, 2010).
acerca das razões “boas” ou “más” que buscamos para decidir por cada uma delas e suas
implicações. Isto é, em última instância, os lugares da decisão são também os lugares
da performatividade. Logo, é relevante a questão de onde estão as opções para a
formação de ontologias políticas, pois, nas atuais circunstâncias, muitas condições de
possibilidade não são entendidas como resultados de “decisões”, passando a ser tidas
como fatos (MOL, 1999).
Desse modo, nesta pesquisa não buscaremos prescrever quais opções devem ser
feitas, pois há de se questionar se poderá haver opções. Segundo Mol (1999), se as
realidades performadas são múltiplas, não se trata de uma questão de pluralismo: elas
podem colidir umas com as outras ou colaborar e exercer uma relação de dependência
entre si. Para compreender como as múltiplas versões de um mesmo objeto coexistem,
recorremos aos modos de coordenação da multiplicidade tal qual descritos por Mol em
“The body multiple” (2002). Segundo a autora, se os objetos são múltiplos, a questão
crucial sobre eles é como as suas diferentes versões são coordenadas. Mol destaca que
as diferentes versões possuem identidades locais, isto é, cada uma das versões não é
universal, mas localizada, existindo a partir de uma especificação espacial. A respeito
da arteriosclerose, o objeto de estudo da autora na obra citada acima, ela destaca: “uma
sentença que diz o que a arteriosclerose é deve ser suplementada por uma outra que
revela onde este é o caso” (2002, p. 54; tradução nossa, grifos da autora). Portanto, as
versões são performadas por diferentes atores em diferentes locais, apesar desses locais
serem fechados em si mesmo e não estarem totalmente separados uns dos outros,
estabelecendo também relações entre si.
Devemos destacar, entretanto, que os objetos, apesar de serem múltiplos, não são
fragmentados, do mesmo modo que as versões não são apenas resultado da observação
do objeto desde diferentes perspectivas: determinado objeto é mais do que um e, ao
mesmo tempo, menos do que muitos, pois o objeto não é fragmentado. Mesmo que
múltiplo, o objeto ainda mantém uma unidade; as versões, ou seja, as identidades locais,
são coordenadas de modo a permitir que o objeto em questão mantenha uma única
identidade. Mol (2002) denomina adição o processo que permite que as diferentes
versões digam respeito ao mesmo objeto, isto é, que as diferentes versões mantenham
uma unidade, uma singularidade. Nesse processo, as diferentes versões de um objeto
são somadas. Versões que muitas vezes se contradizem, que podem estabelecer uma
relação de conflito entre si; como coordená-las desse modo? Mol destaca que, a fim de
26
garantir a coerência entre elas, geralmente uma hierarquia entre as versões e seus
diferentes modos de performar o objeto é estabelecida. Quando dois fatos – lembrando
que tais fatos são resultados da performatividade das versões de um objeto, sendo,
portanto, tão performados por práticas quanto performam as versões – se contradizem, a
um deles será atribuído maior peso. Ou mesmo, um deles pode ser descartado: “uma
realidade vence” (2002, p. 55; tradução nossa). Entretanto, ainda é possível que
diferentes versões do mesmo objeto possam prevalecer, mesmo que estabeleçam uma
relação de conflito entre si. Dessa forma, tal relação de conflito pode ser coordenada
pela afirmação da diferença entre tais objetos, de modo que uma relação entre as
versões desse objeto não seja uma relação linear. Nesse caso, cada uma tem o direito de
existir e tem seu papel performando práticas diferentes em relação ao mesmo objeto.
Entretanto, esse processo não depende de um objeto com uma identidade única que
precede as práticas, cujas diferentes representações dizem respeito a diferentes
perspectivas. A adição performa a singularidade do objeto, ou seja, ela é uma poderosa
forma de criar singularidade (MOL, 2002).
as distribuições. Desse modo, o processo de distribuição separa o que ainda tem unidade
e que pode se encontrar em outros momentos e lugares (MOL, 2002).
Por fim, as versões podem fazer parte umas das outras, ou seja, podem incluir
umas às outras – por meio de processos de coordenação por inclusão. Contudo, Mol
destaca: não se trata de uma questão de escala fixa, uma vez que tais inclusões podem
ser recíprocas. É possível, ainda, que versões de um objeto que, em muitos sentidos, são
incompatíveis se incluam. Diferentes versões geralmente dependem umas das outras
para serem performadas e para performar o objeto em sua singularidade, há
interferência entre elas (MOL, 2002).
aborto voluntário se deu por meio da análise de documentos de domínio público, uma
vez que tais documentos devem ser compreendidos como praticas discursivas que
sustentam estratégias de governamentalidade (SPINK; MENEGON, 2005). Segundo
Spink, P. (1999), as práticas discursivas, enquanto linguagem em ação, estão presentes
tanto em imagens e artefatos como nas palavras. Ao nos permitirem acessar sentidos em
circulação, entendemos que os documentos de domínio público também são práticas
discursivas e, enquanto tal, o são em pelo menos três aspectos: a partir da peça de
publicação; das razões de tornar público, incluindo os endereçamentos; e daquilo que
tornam público – seu conteúdo (SPINK, et al. 2014). O trabalho com documentos rejeita
uma noção simples de tempo, pois neles estão presentes conteúdos históricos, presentes
e ressignificados no tempo vivido e no tempo curto, onde se dá a dinâmica de produção
de sentidos, de modo que condensam posicionamentos em tempos diferentes. Ao
mesmo tempo, os documentos são instrumentos que produzem sentidos. Dessa maneira,
os documentos são produtos sociais tornados públicos e proporcionam novas
configurações de produção de sentido que refletem as transformações lentas em
posições e posturas institucionais assumidas pelos aparelhos simbólicos que permeiam o
dia a dia ou pelos agrupamentos e coletivos que dão forma ao informal, refletindo o ir e
vir de versões circulantes. Em suma, ao oferecerem visibilidade para a dinâmica de
produção de sentidos, ao mesmo tempo em que participam dela, são simultaneamente
traços de ação social e a própria ação social.
Essa estatística que havia funcionado até então no interior dos marcos
administrativos e, portanto, do funcionamento da soberania, essa
mesma estatística descobre e mostra pouco a pouco que a população
tem suas regularidades próprias: seu número de mortos, seu número
de doentes, suas regularidades de acidentes. A estatística mostra
igualmente que a população comporta efeitos próprios da sua
agregação e que esses fenômenos são irredutíveis aos da família
(FOUCAULT, 2008a, p. 138).
Por fim, Foucault (2008a) destaca que não houve a simples substituição de uma
sociedade de soberania por uma sociedade de disciplina ou, posteriormente, por uma
sociedade de governo. Isso implica que nem a soberania, nem a disciplina são
eliminadas pela emergência da governamentalidade. Logo, os mecanismos de repressão
e o poder de morte ainda compõem uma tecnologia positiva de gestão da vida, tanto no
âmbito dos corpos, quanto das populações.
35
2
FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
36
nações e suas estratégias de regulação e, por fim, os espaços virtuais com sua
disponibilidade de informação. Os circuitos da economia vital, portanto, são
mobilizados por uma variedade de relações (ROSE, 2013).
3
No último capítulo do primeiro volume de “A história da sexualidade”, Foucault (2015) descreve que o
objetivo de sua investigação acerca do dispositivo da sexualidade é mostrar como este se articula
diretamente ao corpo. Nesse processo de investigação, entretanto, o corpo não se apaga. Foucault destaca
que não se trata de uma “história das mentalidades” que se limitaria a considerar os corpos pela maneira
como foram percebidos ou receberam sentido e valor, mas de uma “história dos corpos” e da maneira
como se colocam como objeto de tomada de poder, poder que produz efeitos e reconfigura esses corpos.
40
incomensuráveis e opostos, e que a vida política, econômica e cultural dos homens e das
mulheres, seus papéis de gênero, são de certa forma baseada nesses ‘fatos’”
(LAQUEUR, 2001, p. 18). Desse modo, os aspectos essenciais de uma diferença que se
expressa em espécie, não em grau, estão impressos no corpo, baseando-se na natureza.
Nos relatos de produção pós-iluminista, o mundo físico real coloca-se como anterior e
independente das reivindicações feitas em seu nome. Nesse contexto, o sexo ou o corpo
passou a ser compreendido como epifenômeno, enquanto o gênero, hoje considerado
uma categoria cultural, era primário, real: o sexo era uma categoria sociológica, não
ontológica. O modelo iluminista, portanto, reduz os significados a um substrato
biológico (LAQUEUR, 2001).
Para Laqueur, a mudança geral na interpretação dos corpos femininos e
masculinos deu-se a partir de uma “marcha para o progresso”. A ciência não sabia
explicar o conceito sexual, mas fornecia a base usada como teorização. Só houve,
todavia, interesse em buscar evidência dos dois sexos distintos, apesar de descobertas
científicas que datavam de antes, quando a diferença tornou-se politicamente
importante. A biologia, portanto, associada à ideia de corpos estáveis, não históricos e
sexuados, passa a ser o fundamento epistêmico das afirmações sobre a ordem social
(LAQUEUR, 2001).
Spink (2013), ao trazer a discussão feita por Badinter em Palavras de Homens
(1991), afirma que a definição das diferenças sexuais vai, aos poucos, desqualificando a
mulher para a vida pública. Mesmo no interior do discurso igualitário de pretensões
universalistas da revolução francesa havia ambiguidades e tensões entre direitos
universais e exclusão da mulher. Nesse debate, a oposição à igualdade civil da mulher
era predominante. Entretanto, aqueles que defendiam ou opunham-se à igualdade
feminina em relação ao homem universal aceitavam, da mesma maneira, a centralidade
do discurso da natureza na determinação de características que seriam intrínsecas à
mulher. A centralidade desse discurso tem implicações e efeitos na vida política das
mulheres. A partir dessas condições, o que se segue é a formulação da igualdade entre
homens e mulheres em termos de equivalência. Desse modo, as diferenças biológicas
passam a determinar funções e lugares distintos entre os sexos. Nesta partilha, às
mulheres o campo privado, aos homens o campo público (SPINK, 2013).
As diferenças fundamentais entre os corpos sexuados instituem a mulher
enquanto categoria qualitativamente diferente do homem. Desse modo, emerge a
possibilidade de, enquanto categoria distinta, a mulher tornar-se ponto específico de
41
Nesse sentido, Foucault descreve uma proliferação dos discursos sobre o sexo no
campo institucional de exercício de poder por meio de uma incitação a falar do sexo,
que tem seu fundamento na pastoral cristã e no sacramento da confissão. Constituem-se,
portanto, em torno do sexo, uma multiplicidade de discursos que se inscrevem no
interior de diferentes instituições e que passam a produzir efeitos de poder por meio do
e no próprio dispositivo da sexualidade. Desse modo, no interior desse processo,
criaram-se incitações a falar, dispositivos para ouvir e registrar, além de procedimentos
para observar, interrogar e formular. Nesse sentido, Foucault destaca:
4
Entre as estratégias de poder e as técnicas de saber, segundo Foucault (2015), não há uma relação de
exterioridade. Cada uma, no entanto, tem seu papel específico, mesmo que ambas se articulem entre si.
42
uma tecnologia global de poder5. Essa tecnologia, por sua vez, só pode proporcionar
efeitos globais ao apoiar-se em relações precisas que lhe servem como ponto de suporte.
Esses conjuntos estratégicos, também chamados domínios, são, portanto, focos locais
que fornecem sustentação às estratégias de poder no dispositivo da sexualidade. O corpo
feminino coloca-se assim como foco local de saber-poder inserido em uma tecnologia
ampla de gestão da vida, cujo objetivo é o controle de populações. A partir do
dispositivo da sexualidade, o corpo feminino foi objeto de um processo tríplice que o
analisou como um corpo saturado de sexualidade, integrou-o ao campo das práticas
médicas e, por fim, colocou-o em comunicação orgânica com o corpo social por meio
da regulação da fecundidade, com o espaço familiar e com a vida das crianças por meio
de uma responsabilização biológico-moral. O conjunto estratégico acima é descrito
como o processo de histerização do corpo da mulher6 (FOUCAULT, 2015).
5
Apesar de se situarem no interior de uma tecnologia global de poder, ao discutir os domínios
estratégicos do dispositivo da sexualidade, Foucault (2015) destaca que não existe uma estratégia única,
válida para toda a sociedade e todas as manifestações do sexo.
6
Entretanto, Foucault destaca que não se trata de procurar quem tem o poder e quem é privado dele na
ordem da sexualidade, mas “buscar o esquema das modificações que as correlações de forças implicam”,
pois “as relações de poder não são formas dadas de repartição, são ‘matrizes de transformação’” que
levam a modificações e deslocamentos contínuos (FOUCAULT, 2015, p. 108).
7
Segundo Foucault (2001), a sexualidade da criança e do adolescente é colocada como um problema no
decorrer do século XVIII. Entre o discurso cristão e a psicopatologia sexual, surge certo discurso da
masturbação, no qual a prática figura constantemente no quadro etiológico das diferentes doenças.
43
está aberto a uma intervenção higiênica no centro da qual a mulher assume um papel
historicamente importante (FOUCAULT, 2001).
Nesse contexto em que nascimento e longevidade se transformam em fenômenos
centrais para a biopolítica, a partir da ideia de uma certa natureza materna feminina e no
interior de relações desiguais de gênero pautadas nas diferenças biológicas entre
homens e mulheres, o cuidado se torna função a ser exercida por mulheres. Ou seja, pela
capacidade de gestar e parir, o corpo feminino é investido da função política de produzir
indivíduos saudáveis. Nota-se aí uma politização da maternidade que, segundo Meyer
(2005), constrói-se gradualmente no âmbito de uma discursividade produzida no interior
de quatro movimentos em diferentes âmbitos e planos da vida social que se conectam ao
longo do século XX: a ênfase na constituição de um sujeito na lógica da racionalidade
neoliberal; o aprofundamento das desigualdades, que decorre da conjunção da
racionalidade neoliberal com o processo de globalização; o desenvolvimento de
conhecimentos e tecnologias acerca do desenvolvimento dos fetos, inscrevendo fetos e
mulheres em uma linguagem do controle, da autorregulação e do risco; e, por fim, uma
conflituosa articulação de políticas de estado e das demandas dos movimentos sociais
(feminismos e direitos humanos, por exemplo) nos quais a noção de universal é
multiplicada e fraturada, incidindo sobre os modos como esses sujeitos de direito se
relacionam (MEYER, 2005).
As redes de saber-poder atravessam e constituem determinados regimes de
verdade que conformam e sustentam políticas públicas e os modos de assistir mulheres-
mães na atualidade, contribuindo reinscrever o corpo materno em regimes de vigilância
e regulação, forjando discursos sobre a maternidade. Desse modo, a partir do discurso
científico, os/as médicos/as, juntamente com o Estado, iniciaram o processo de
politização da maternidade por meio de políticas higienistas. A maternidade passou a
ser apresentada como “destino natural da mulher”. O discurso da medicina social, além
do aperfeiçoamento do corpo feminino, antes mesmo da concepção, buscará convencer
as mulheres “acerca de sua responsabilidade social com o processo de gravidez e com a
maternagem” (SCHWENGBER & MEYER, 2011). O corpo da mulher-mãe passa a ser
central como condicionante da saúde do/a filho/a e, durante o período de gestação, do
feto, a partir do discurso técnico científico da puericultura intrauterina. Com o processo
de politização da gravidez, esta passa de um tema da esfera privada para o amplo grupo
social e, portanto, multiplicam-se os discursos sobre a gestação que reforçam a
centralidade da mulher no processo, a partir da expansão das políticas de saúde e dos
44
Para a reflexão que nos propomos a realizar neste trabalho de pesquisa, ou seja,
tendo em vista a discussão da criminalização do aborto no interior de um contexto de
normalização dos modos de ser mulher por meio das mais diversas práticas discursivas
fundamentadas em diferentes domínios de saber-poder, faz-se necessário pontuar
algumas questões sobre a relação entre direito e normalização.
Desse modo, no segundo plano, ou seja, no plano das práticas, segundo Fonseca
(2002), outras relações entre direito e norma podem ser identificadas no pensamento de
Foucault. O autor define práticas em termos de mecanismos e estratégias dos
dispositivos que colocam em relação os saberes, as normatividades e a produção de
certas formas de subjetividade. Neste plano, se abre a perspectiva de uma relação de
implicação entre normalização e direito, uma vez que o direito não se coloca em relação
de externalidade aos efeitos de normalização das técnicas de saber e estratégias de
45
poder, mas compõe ambos enquanto seu instrumento. Por fim, uma relação distinta
entre direito e norma toma forma na produção de Foucault por meio da possibilidade de
uma prática não-normalizada do direito. Um direito, segundo Fonseca (2002), que
aparece como uma forma de resistência aos mecanismos de normalização: um direito
novo.
Para a análise que realizaremos neste capítulo, nos interessa entender como estão
implicados lei e norma, direito e normatividade. Segundo Fonseca (2002), apesar da
necessidade conceitual de diferenciar e opor direito e norma – a fim de, na verdade,
opor modelos diferentes de poder8 –, na prática os mecanismos da normalização não se
dão sem o suporte das regras legais. Desse modo, o direito se apresenta como produtor
de práticas de normalização e, ao mesmo tempo, produzido por elas em uma relação de
implicações recíprocas e complementariedades: um direito “normalizado-normalizador”
(FONSECA, 2002, p. 153). Ou seja, normalizado porque as práticas de normalização o
investem e penetram, normalizador porque agente dessas mesmas práticas. Nesse
sentido, essa implicação entre direito e norma não está dissociada da produção da
verdade acerca dos indivíduos que se dá no interior das instituições disciplinares 9, a
qual passa a circular na sociedade, de modo que se implicam mutuamente as regras e
procedimentos gerais representados pela estrutura jurídica e as regras e procedimentos
particulares – que incidem sobre os indivíduos e os corpos – das disciplinas
(FONSECA, 2002).
8
Um, baseado em mecanismos de interdição, outro, produtor de efeitos. Este, portanto, é positivo, ainda
que a proibição seja um de seus instrumentos. Oposição que pode ser observada no dispositivo da
sexualidade. Foucault (2015), ao discutir a hipótese repressiva, pontua que a mecânica de poder que é
posta em jogo em um regime de simples interdição da sexualidade é de ordem repressiva. O dispositivo
da sexualidade, por sua vez, implica em “técnicas polimorfas” (2015, p. 17), que podem interditar e
proibir no interior de uma economia geral da discursividade sobre o sexo, mas também incitar e
intensificar de modo a se produzir efeitos disciplinares por meio de estratégias discursivas.
9
Um exemplo disse seria a produção do anormal no interior da instituição penal por meio de saberes
como o da psiquiatria, descrita por Foucault em “Os anormais” (2001).
46
Logo, apesar das especificidades traçadas por Fonseca (2002) na relação entre
norma e direito nos mecanismos disciplinares e biopolíticos de poder, o conjunto de
suas reflexões acerca do direito normalizado-normalizador deve ser considerado para
pensar a questão do abortamento, se considerarmos a localização do corpo feminino na
relação entre a disciplinarização e o governo da vida enquanto técnicas de poder.
Conforme Foucault (2015), o poder disciplinar produz efeitos muito específicos na
produção da subjetividade feminina em torno da maternidade e do cuidado no interior
da instituição familiar, normalizando a experiência feminina de modo que esta acabe se
limitando a condutas, funções, enfim, modos de existência muito específicos.
Normatividade que, por sua vez, só pode ser compreendida no interior de uma técnica
de poder geral, cujo objetivo é o governo das populações. Nesse sentido, com esse
processo de emergência de uma noção específica de mulher a partir da produção
discursiva sobre o sexo e da normalização da sua conduta em torno da ideia da
maternidade, vemos delinearem-se as condições que possibilitam a constituição da
interrupção da gestação enquanto crime no interior de um complexo mecanismo de
poder, do mesmo modo, que a lei, em certa medida, normaliza a conduta feminina10.
Nesse sentido, os saberes e as práticas jurídicas estabelecem uma dupla relação com
mecanismos de sujeição: fazendo-os funcionar e funcionando por meio deles.
10
Desse modo, a lei incide sobre as mulheres com efeitos normalizadores. A legislação proibitiva pode
interferir na questão da conduta feminina em relação à maternidade. Entretanto, não podemos afirmar
categoricamente que é determinada por ela. De acordo as pesquisas realizadas acerca do aborto já citadas,
no plano geral, as mulheres continuam a praticá-lo mesmo na clandestinidade.
48
11
Nomenclatura proposta por Diniz e Ribeiro (2004) em casos de anomalia fetal.
49
seguras é maior. As mortes, bem como os efeitos nefastos à saúde das mulheres que
decidem interromper a gravidez, estão intimamente associadas à legislação brasileira
que as criminaliza.
No cerne desse debate, Ribeiro (2008) destaca três principais atores: a Igreja
Católica, o movimento feminista e os/as profissionais de saúde. O primeiro ator, com
posicionamento tradicionalmente bem definido, coloca-se contra a prática, mesmo nos
casos autorizados por lei. De acordo com Hurst (2000), durante os dois últimos séculos
a Igreja se convenceu de que todo aborto é pecado e não o autoriza em quase nenhuma
circunstância. A proibição da prática é matéria de lei eclesiástica e faz parte do conjunto
de leis morais que os/as fiéis devem seguir em seu cotidiano, ainda que não seja um
dogma da instituição. De acordo com o Código de Direito Canônico de 1917, reforçado
pelo novo Código, de 1983, da interrupção da gravidez decorria, tanto para a mulher,
quanto para quem realiza o procedimento, a máxima punição: a excomunhão
51
Faúndes & Barzelatto (2004), salvar vidas ainda é compreendido como o principal
objetivo da atuação dos/as profissionais da saúde. A escolha pela medicina é geralmente
motivada pelo desejo de “ajudar as pessoas, de curar doenças e salvar vidas” (2004, p.
115). A especialidade obstétrica, sobretudo, é associada com o milagre da vida e se
espera com a atuação profissional contribuir para o surgimento de uma nova vida.
Apesar de decorrer de uma visão puramente biomédica de saúde, esse tipo de
compreensão do que é ou deve ser a ação do/a profissional da saúde não deixa de ter
efeitos na questão da criminalização do abortamento. Além disso, no interior da prática
médica, com a evolução das tecnologias, a gravidez deixa de ser uma abstração marcada
por sintomas clínicos12: testes hormonais permitem a detecção precoce da gestação, o
surgimento do sonar permite a ausculta do coração fetal a partir das 12 semanas e a
imagem obtida a partir do ultrassom cumpre diversas funções na promoção da saúde do
feto – além de diversas outras funções não previstas. Nesse sentido, a questão da
puericultura intrauterina é introduzida e o feto passa a ser objeto de cuidado desde o
início da gestação. Por conseguinte, de abstração que se manifesta por meio de sintomas
clínicos a um processo de formação de um ser “em foco”, a gestação é performada por
meio de uma concepção específica de medicina. Esses fatores tornam especialmente
difícil a questão do abortamento para profissionais obstetras. Além disso, em países
onde o aborto não é descriminalizado, o contato desses/as profissionais com mulheres
que não desejam ser mães é menos usual, de modo que essa parcela da população
feminina e suas demandas acabam sendo invisibilizadas e o contato que se estabelece
com esse tipo de profissionais se dá em ocasiões de complicação decorrentes do
abortamento provocado clandestinamente (FAÚNDES & BARZELATTO, 2004). Por
essas e outras questões, acaba-se criando um antagonismo entre a mulher que busca
interromper uma gestação e o feto, diante do qual os/as obstetras sentem-se impelidos a
assumir um lado.
12
Essas transformações acompanham as mudanças na medicina como um todo, naquele processo que
Nikolas Rose (2013) denominou “molecularização” da medicina. Como vimos, a medicina torna-se assim
tecnomedicina e as técnicas de cuidado são exercidas em função de sofisticados equipamentos. A
biomedicina passa a visualizar a vida no nível molecular e reconfigurar os estilos de pensamento, de
avaliação e de intervenção da medicina.
54
uso dos argumentos que se localizam entre os polos opostos do debate em diferentes
contextos, a fim de que tenham efeitos determinados, construindo a realidade da questão
da interrupção da gestação no Brasil.
(2006), foram apresentados seis projetos de lei, sendo que a maior parte deles tinha o
objetivo de ampliar os permissivos legais ou mesmo descriminalizar o aborto. Nas duas
legislaturas seguintes, situadas nos anos 90, foram apresentadas mais 23 propostas e a
maioria delas era favorável à permissão da prática. Nas duas legislaturas posteriores,
iniciadas em 1999 e 2003, foram apresentadas mais 34 proposições e acentuou-se a
reação conservadora. Podemos observar que houve uma intensificação do debate sobre
o tema no Congresso Nacional, mas a autora destaca que também se intensificou a inter-
relação da discussão da Casa com as esferas do Executivo e do Judiciário, bem como
com segmentos da sociedade civil. Nesse contexto de mobilização política, houve
aumento da participação de atores políticos e sociais que militavam pela
descriminalização, atores, em grande parte, de orientação feminista, bem como daqueles
que se posicionavam de maneira contrária à descriminalização da prática.
Realizando uma breve incursão sobre a teoria geral dos direitos fundamentais, o
Ministro destaca que a história da humanidade é a história da afirmação do indivíduo
em oposição ao poder político, econômico e religioso, sendo que este último procura
conformar a moral social dominante. Os direitos fundamentais, ou seja, os direitos
humanos incorporados ao ordenamento constitucional, seriam o produto dessas diversas
fontes de poder e do embate entre elas. Traçando uma linha argumentativa que remete a
uma das proposições do imperativo categórico de Kant – a saber: toda pessoa deve ser
tratada como um fim em si mesmo –, o Ministro afirma que, após a Segunda Guerra
Mundial, os direitos fundamentais passaram a ser tratados como uma emanação da
dignidade humana, dignidade aqui compreendida como expressão do valor e da
autonomia enquanto predicados de todo indivíduo. Buscando delinear sua linha
argumentativa a fim de constituir a criminalização do abortamento como temática cuja
constitucionalidade deve ser problematizada, o Ministro Barroso ressalta que os direitos
fundamentais são oponíveis às maiorias políticas, de modo que funcionam como limite
ao legislador e até mesmo ao poder constituinte, sendo dotados de aplicabilidade direta
e imediata. Tais propriedades dos direitos fundamentais legitimam a atuação da
jurisdição constitucional a fim de garantir sua proteção, tanto em caso de ação como de
omissão legislativa.
que não há solução jurídica. Porém, declara que, exista ou não vida a ser protegida, não
cabe dúvida em relação à impossibilidade de o embrião subsistir fora do útero materno
na fase inicial de sua formação. Ou seja, há uma relação de dependência incontestável
do embrião com relação ao corpo da mulher que o gesta. Chamando atenção para a
centralidade do corpo feminino nessa questão, independente do dilema moral que a
cerca, Barroso explicita quais dimensões dos direitos fundamentais femininos a
criminalização do abortamento voluntário viola. Em primeiro lugar, com a
criminalização viola-se a autonomia da mulher, aspecto que corresponde ao núcleo
essencial da liberdade individual, a ser protegido pelo princípio da dignidade humana.
Desse modo, interfere-se no direito das mulheres de fazerem suas escolhas e de
tomarem as próprias decisões morais em relação às suas próprias vidas, de acordo com
seus próprios valores, direito no qual não compete ao Estado intervir. Em segundo
lugar, de acordo com a arguição do Ministro, a criminalização afeta a integridade física
e psíquica da mulher, que se relaciona com o direito à saúde e à segurança. A
integridade física é abalada porque é o corpo da mulher que sofrerá, compulsoriamente,
as transformações, riscos e consequências da gestação. A integridade psíquica é afetada
pois os efeitos de uma gestação levada a termo são permanentes, resultando em
comprometimento e responsabilidade com outro ser. Além dos dois aspectos tratados
anteriormente, a criminalização viola também os direitos sexuais e reprodutivos
femininos, os quais contemplam o direito de decidir sobre se e quando deseja ter filhos,
sem discriminação, coerção ou violência, com sua saúde sexual e reprodutiva garantida.
Nesse sentido, o tratamento penal dado ao abortamento no Brasil pelo Código Penal de
1940 afeta a autodeterminação reprodutiva da mulher, ao retirar dela a possibilidade de
decidir sobre a maternidade, sendo coagida pelo Estado a manter uma gestação
indesejada. Além dos efeitos sobre o direito à autodeterminação, a criminalização da
prática tem efeitos diretos na saúde sexual e reprodutiva da população feminina
brasileira, de modo a aumentar os índices de mortalidade materna e outras complicações
relacionadas à falta de acesso à assistência de saúde e informações adequadas. Barroso
também destaca que a norma repressiva se traduz em quebra da igualdade de gênero,
contribuindo para a perpetuação da hierarquização dos indivíduos e das desequiparações
infundadas, dificultando a neutralização das injustiças históricas, econômicas e sociais,
bem como o respeito à diferença. Tendo em vista que é a mulher quem suporta o ônus
integral da gravidez, e que o homem não engravida, o Ministro defende que somente
haverá igualdade plena se à mulher for reconhecido o direito de decidir acerca da
65
A decisão do STF abre precedentes para que outros/as juízes/as possam adotar o
mesmo entendimento do Ministro. Entretanto, a decisão não implica efeito vinculante13,
por não se tratar de julgamento em caso de proposição de ação direta de
inconstitucionalidade ou de ação declaratória de constitucionalidade14, ou seja, em caso
de contestação direta da norma legal.
13
Segundo Maués (2016), o efeito vinculante se aplica aos casos de ação direta de inconstitucionalidade e
ação declaratória de constitucionalidade, impedindo que os juízes e tribunais desconsiderem que a lei
objeto da decisão foi declarada inconstitucional pelo STF.
14
Conforme disposto na Lei 9.868 de novembro de 1999. O parágrafo único do artigo 28 desta lei
determina que as decisões nos casos de ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de
constitucionalidade têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder
Judiciário.
67
15
Conforme determina artigo 58 da Constituição Federal.
16
São, no total, vinte Comissões Permanente cujas áreas de atividades estão especificadas no artigo 32 do
regimento Interno da Câmara dos Deputados (BRASIL, 2017).
17
Conforme artigo 143, Inciso II do Regimento Interno da Câmara dos Deputados: terá precedência
proposição do Senado sobre as da Câmara e a mais antiga sobre as mais recentes.
69
Uma vez que a proposição ganhar força de lei após sua publicação, caso o
Supremo Tribunal Federal decida definitivamente sobre sua inconstitucionalidade, cabe
privativamente ao Senado, conforme artigo 52 da Constituição Federal, suspender a sua
execução, no todo ou em parte (BRASIL, 1988).
18
O mesmo artigo da constituição determina prazo de quinze dias úteis, contados da data do recebimento
para o vote e prazo de quarenta e oito horas para comunicação à Presidência do Senado Federal os
motivos do veto. Decorrido o prazo de quinze dias, o silêncio do Presidente da República importará
sanção.
19
Selecionamos na busca apenas os projetos de lei entre todos os tipos de proposições.
20
Cf. tabela em anexo.
21
Consideramos a penalização de orientações acerca da prática ou auxílio ao abortamento nesta categoria.
70
26
Coautor do PL 478/2007 e autor do PL 2690/2007.
27
De autoria do deputado Francisco Silva (PPB/RJ). A proposição inclui como crime hediondo o aborto
provocado pela gestante, ou por terceiros, com o seu consentimento. Atualmente, aguarda designação de
relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.
72
28
Também autor do PL 1545/2011.
29
Pastor Eurico (PSB/PE), Costa Ferreira (PSC/MA), Pastor Marco Feliciano (PSC/SP), João Dado
(PDT/SP), Leonardo Quintão (PMDB/MG), Dr. Grilo (PSL/MG), Zequinha Marinho (PSC/PA), Alfredo
Kaefer (PSDB/PR), Henrique Afonso (PV/AC), William Dib (PSDB/SP), Jair Bolsonaro (PP/RJ), Otoniel
Lima (PRB/SP) e Eurico Júnior (PV/RJ).
73
30
“§ 7 º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o
planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e
científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições
oficiais ou privadas” (BRASIL, 1998).
31
Givaldo Carimbão (PROS/AL); Gorete Pereira (PR/CE); Flavinho (PSB/SP); Diego Garcia (PHS/PR);
Joaquim Passarinho (PSD/PA); Carlos Gomes (PRB/RS); Valtenir Pereira (PMB/MT); Sóstenes
Cavalcante (PSD/RJ); Jefferson Campos (PSD/SP); Izalci (PSDB/DF); Roney Nemer (PMDB/DF); Eros
Biondini (PTB/MG) e Professor Victório Galli (PSC/MT).
32
Assim como o PL 6115/2013.
33
Coautor no projeto de lei 3983/2015.
74
do feto, ambos já garantidos legalmente. A proposição não trata de modo específico dos
casos em que há risco à vida da mulher gestante. Entretanto, questionamos se a questão
da prioridade da expectativa do direito à vida por parte do nascituro, pode fornecer
elementos para a criminalização do abortamento também nestes casos.
36
Por meio de mais de um mecanismo de ação, que agem em conjunto ou isoladamente, a contracepção
de emergência impede a fecundação sempre antes da implantação, ou seja, o encontro entre o óvulo e os
espermatozoides. Não há evidências científicas de que a seu uso exerça efeitos após a fecundação ou que
implique a eliminação do embrião (BRASIL, 2005).
76
4.3.1 Tramitação
37
Acerca do substitutivo, conforme artigo 57 inciso IV do Regimento Interno da Câmara dos Deputados:
“ao apreciar qualquer matéria, a Comissão poderá propor a sua adoção ou a sua rejeição total ou parcial,
sugerir o seu arquivamento, formular projeto dela decorrente, dar-lhe substitutivo e apresentar emenda ou
subemenda”. Denominando-se “substitutivo” quando a alterar, substancial ou formalmente, em seu
conjunto, conforme parágrafo 4 do artigo 118. Por fim, conforme inciso II do artigo, o substitutivo de
Comissão tem preferência sobre o projeto na votação. Entretanto, conforme inciso V do mesmo artigo,
em caso de rejeição do substitutivo, a proposição inicial será votada por último, depois das emendas
apresentadas. As emendas devem ser votadas na seguinte ordem, conforme o inciso VIII: as supressivas,
as aglutinativas, as substitutivas, as modificativas e, por fim, as aditivas.
38
Emenda de adequação: “Esta lei entra em vigor na data de sua publicação e surtirá efeitos financeiros a
partir do primeiro dia do exercício seguinte ao de sua publicação”.
78
Além disso, o projeto de lei prevê garantia, por parte do Estado, ao direito à
reprodução consciente e responsável, reconhecendo o valor social da maternidade na
garantia da vida humana. Nessa perspectiva, a proposição reconhece o exercício livre e
voluntário do direito à maternidade. Mesmo compreendendo o acesso à interrupção
segura da gestação como um direito, a proposição não parte do entendimento da prática
como instrumento de controle de natalidade. Nesse sentido, o projeto de lei prevê o
desenvolvimento de políticas sociais e de saúde que promovam educação sexual e
reprodutiva, de modo a fornecer informações sobre contracepção e sexo seguro, a fim
de prevenir a transmissão de doenças sexualmente transmissíveis e a gestação não
desejada. Além disso, prevê a garantia de acesso universal aos serviços e programas de
saúde sexual e reprodutiva, bem como a métodos seguros de contracepção de
39
O relator requereu audiência pública para discutir a proposição. O requerimento foi aprovado pela
Comissão.
79
40
O projeto de lei prevê a possibilidade da manifestação de objeção de consciência, exceto nos casos em
que houver risco de vida para a mulher gestante ou danos ou agravos à sua saúde decorrentes da omissão,
em que não houver outro/a profissional que o realize e nos casos de atendimento de complicações
decorrentes de aborto inseguro. Nesses casos, é dever ainda do/a profissional informar à mulher seus
direitos e garantir a realização do procedimento por outro/a profissional ou serviço.
80
gestante tiver idade inferior a dezesseis anos. Nesses casos, caso a adolescente expresse
o desejo de não interromper a gestação, mesmo contra a vontade de seus pais ou
representantes legais, deverá prevalecer sua vontade. Além disso, será obrigatória a
manifestação do Ministério Público. Caso a gestante ou sua família estiverem em
condições de vulnerabilidade, serão assistidos pela Defensoria Pública. Nos casos de
uma mulher declarada incapaz em juízo, requer-se consentimento de seu/sua
representante legal.
41
O deputado cita uma pesquisa realizada pela Universidade de Brasília em parceria com o Instituto Anis,
mas não especifica o documento nos quais os dados foram encontrados.
81
4.4.1 Tramitação
42
O deputado destaca que o governo brasileiro se comprometeu a revisar as medidas punitivas que
incidem sobre as mulheres que praticam o abortamento ilegal, conforme compromisso disposto no
parágrafo 106 k. da Plataforma de Ação de Beijing.
43
Foram apensadas ao PL 313/2007 as proposições de número 1308/2007; 1413/2007; 1686/2007;
2464/2007; 3050/2011; 3637/2012; 7364/2014; 4725/2012; 6930/2013; 14/2015; 4909/2016; 718/2015;
82
Nesse sentido, podemos observar o que, segundo Agamben (2007), é uma das
características mais importantes da biopolítica moderna46: a redefinição contínua da
vida e do limiar entre o que está dentro ou fora do que se entende como tal. A reflexão
do filósofo situa o problema da sacralidade da vida a partir da vida nua (bíos) na figura
do direito arcaico romano do homo sacer, “na qual a vida humana é incluída no
ordenamento unicamente sob a forma de sua exclusão (ou seja, de sua absoluta
matabilidade)” (AGAMBEN, 2007, p.16). Nesse contexto, o princípio da sacralidade da
vida, que se deseja fazer valer contra o poder soberano47 como um direito humano
fundamental, está justamente fundamentado sobre a sujeição da vida a um poder de
morte e sobre a irreparável exposição a uma relação de abandono48. Na politização da
44
Entendido no sentido Foucaultiano de objeto de tomada de poder na biopolítica.
45
Art. 4º “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar ao nascituro, com absoluta prioridade, a
expectativa do direito à vida, à saúde, à alimentação, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar, além de colocá-lo a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão”.
46
Biopolítica moderna, pois, segundo Agamben (2007), a vida sempre constituiu objeto de tomada de
poder e, ao incluir a vida biológica no centro de seus cálculos, o Estado moderno teria apenas
evidenciando o vínculo encoberto entre poder e vida.
47
Para Agamben (2007) o poder soberano está contido na forma da lei. No âmbito das análises sobre o
poder realizadas por Foucault, as práticas jurídicas não serão pensadas nos termos de uma ligação
essencial com o princípio da soberania, mas nos termos das implicações do direito com tecnologias de
sujeição polimorfas. Entretanto, segundo Fonseca (2002), para Foucault, o princípio de soberania
fundamenta a organização das teorias e práticas jurídicas no Ocidente e continua a existir na forma dessas
práticas. Desse modo, o direito ligado ao princípio de soberania e a normalização compõem os
mecanismos gerais de poder.
48
Para entendermos melhor essa inscrição da vida no direito, o filósofo situa o abandono como sua
relação originária e não a aplicação da lei. O bando e o abandono, portanto, seriam as chaves para a
análise da estrutura originária da soberania. A relação que se estabelece é a seguinte: o bando está inscrito
no poder soberano que o abandonou, e o está justamente por meio desse abandono, sendo incluído nas
85
operações de poder. Ele empurra até o limite a aporia da soberania, mas não consegue libertar-se. Tal
relação de bando deve ser reconhecida nas relações políticas. A relação de abandono é, portanto, a raiz
primeira de toda lei. Esta relação originária, entretanto, conserva-se ainda, uma vez que a humanidade
vive sob o bando de uma lei e de uma tradição que se mantém como “ponto zero” do seu conteúdo,
incluída em uma pura relação de abandono, de modo que a potência vazia da lei vigora, tornando-se
indiscernível da vida (AGAMBEN, 2007).
49
Segundo o filósofo, toda a territorialização deve ser entendida nessa matriz. O genocídio da juventude
nas regiões periféricas, por exemplo, demonstra como, nessa disposição espacial, o estado de exceção
pode ser a regra, mantendo-se, entretanto, fora do ordenamento normal.
86
Foucault (2015) destaca que não existe uma estratégia única válida para toda a
sociedade, mesmo no interior de domínios estratégicos bem delimitados e, ainda, há
uma certa correlação entre a preocupação com o corpo e o sexo com um certo racismo50.
O racismo de Estado, portanto, permite que uma tecnologia de poder que tem por
objetivo “fazer viver” possa expor à morte seus/suas próprios/as cidadãos/ãs. Racismo,
nesse sentido, é definido como o meio de introduzir no domínio da vida um corte entre
o que deve viver e o que deve morrer (FOUCAULT, 2005). Nesse sentido, Foucault
(2015) nos lembra que o poder de morte se apresenta como complemento de uma
tecnologia positiva e se apoia nas exigências de um poder que gere a vida, por meio do
seguinte princípio: “matar para poder viver”. São mortos/as, portanto, aqueles/as que
constituem uma espécie de perigo biológico para os/as outro/as (FOUCAULT, 2015, p.
148).
50
A valorização do corpo que se inscreve no interior do dispositivo da sexualidade está fundamentada,
segundo Foucault (2015), no processo de estabelecimento da hegemonia burguesa por meio da
preocupação em assumir uma cultura do próprio corpo e uma sexualidade a fim de “garantir para si a
força, a perenidade, a proliferação secular deste corpo a partir do dispositivo da sexualidade” (Ibidem, p.
137); uma cultura que se desenvolvia sobre a “higiene do corpo” e a “ arte da longevidade”.
87
51
Apesar das reflexões sobre os enquadramentos serem realizadas em função da guerra, Butler pontua
que podem ser também utilizadas no debate acerca das liberdades reprodutivas. A filósofa dá algumas
diretrizes para que tais reflexões possam ser situadas neste âmbito, que são consideradas neste capítulo.
52
A apreensão de uma vida relaciona-se com a percepção, de modo que excede formas conceituais de
reconhecimento. Ela pode, portanto, colocar-se como a base da crítica às normas de reconhecimento
vigentes. Isso não significa que aquilo que apreendemos não esteja mediado pelas normas de
reconhecimento e, além destas, por condições gerais historicamente constituídas que implicam em uma
“possibilidade de ser reconhecido”, a qual, por sua vez, é produto de uma construção normativa ao longo
do tempo. Por outro lado, não se pode concluir que a apreensão está simplesmente limitada por tais
88
normas.
89
53
Seguindo as pistas deixadas por Galindo (2003) na discussão acerca do uso de dados científicos como
argumentos, não negaremos a validade do discurso científico na constituição de determinadas questões
como problemas de saúde pública, mas refletiremos sobre como o uso desses dados, principalmente os
dados epidemiológicos, são cruciais na delimitação de problemas, bem como no planejamento e na
validação de medidas no âmbito da saúde pública.
90
Devemos, desde já, pontuar que não temos respostas para as questões colocadas,
mas gostaríamos de fornecer alguns elementos com esta reflexão para compreendermos
a complexidade da inscrição da questão do aborto no domínio de saber-poder médico. É
possível que tal relação ambígua possa ser, em parte, compreendida à luz da não
uniformidade das estratégias do dispositivo da sexualidade, tendo em vista que políticas
de controle de natalidade e de esterilização afetaram mais diretamente as mulheres
negras55 (FERNANDES, 2016). Lembremos as denúncias de esterilização involuntária
realizadas em mulheres negras na década de 1980 com o objetivo de controlar a
natalidade desse subgrupo populacional (DAMASCO et al., 2012). Do mesmo modo,
conforme discutimos na versão anterior, a criminalização do aborto pode facilitar não
apenas o controle da natalidade entre essas mulheres, mas também permitir que essas
54
Tal concepção permite borrar fronteiras fixas entre produção e uso dos dados científicos, uma vez que
compõem um mesmo processo.
55
Conforme destaca Fernandes (2016), enquanto as militantes brancas reivindicavam a plena posse de seu
corpo e a independência em relação à gravidez e ao aborto, as negras estavam preocupadas com a
manutenção de suas famílias.
91
Por fim, consideramos que o uso dos dados epidemiológicos no debate sobre a
criminalização/descriminalização do aborto apresenta uma outra ambiguidade. Por um
lado, apresenta-se como importante via de legitimação da descriminalização da prática.
Por outro, pode servir para legitimá-la apenas porque se apresenta como um problema
que afeta o plano da população, como se, talvez, a descriminalização só fosse aceitável
uma vez que o aborto inseguro mata mulheres, desvalorizando, em certa medida, o
debate que se trava no plano de outros saberes. Logo, parece-nos que a centralidade do
uso de dados epidemiológicos prioriza no debate os argumentos providos de
cientificidade em detrimento de outras perspectivas, deslegitimando a argumentação no
campo moral (GALINDO, 2003). Nesse contexto, a ênfase nesse tipo de argumentação
pode ofuscar a argumentação pela descriminalização do aborto no eixo do direito de
decisão sobre o próprio corpo. Lembremos que, segundo Foucault (2005), faz-se
necessário interrogar sobre a ambição de poder que uma ciência traz consigo,
considerando quais outros tipos de saber que o saber que se institui como científico
deseja desqualificar, de quais outras formas circulantes e descontínuas de saber deseja
se distinguir.
92
Aqui, nos deparamos com a inevitável tarefa de pensar a questão dos direitos em
toda sua complexidade, tarefa para a qual as reflexões de Butler (2014) nos fornecem
uma singular provocação, sobretudo quando se trata de pensar criticamente a questão da
reivindicação de direitos no âmbito das práticas jurídicas. Isso porque, segundo a
filósofa, mesmo algo que é criado para nos proteger, como o aparato jurídico, pode
acabar sendo o instrumento de nossa própria opressão (BULER, 2014). Conforme
discutimos anteriormente, o próprio aparato jurídico estabelece uma relação
fundamental com esse processo de normalização. A busca pela garantia legal dos
direitos das mulheres normaliza o que é ser mulher, uma vez que é necessário instituir a
mulher enquanto categoria unitária em nome da qual se faz a reivindicação. Um apelo
acrítico a esse sistema, em nome da emancipação dessa categoria, estaria assim fadado
ao fracasso. Podemos ver com clareza nessa questão aquela imagem do direito
normalizado-normalizador descrita por Fonseca (2002).
inscreve nas várias versões do feminismo enquanto movimento social. Nesse sentido,
apesar das consonâncias que notamos por meio deste trabalho de pesquisa entre as bases
das reivindicações feministas e do posicionamento dos atores que se inserem no campo
do direito, nos parece que os sentidos do direito ao corpo e à autonomia podem ser
fontes de descontinuidade entre ambos. As reivindicações feministas parecem ir além,
transformando o direito ao corpo e à autonomia na decisão pelo abortamento e pela
maternidade em uma luta pelo direito a uma outra vida: uma vida além das
normatividades impostas pela estratégia de poder biopolítica, no interior do qual a
sexualidade é um ponto de apoio e articulação de estratégias de poder.
heterotopias feministas.
56
É bem verdade que Foucault (1994) lembra que se trata aí de uma moral de homens feita para homens e
95
seguir princípios gerais de conduta, mas que faz valer a diferença entre os critérios
morais situados em determinadas circunstâncias, de modo que o pensamento prático
deve definir o que convém fazer, sem necessidade do texto da lei, mas de um “saber-
fazer” que guie a ação de acordo com seu contexto e seus próprios fins: um saber fazer,
de certo modo, localizado. Esse modelo conduz a uma estética da existência, uma vez
que permite que o indivíduo se constitua como sujeito de uma conduta moral por meio
das práticas de si enquanto modos de produção de subjetividade não mais sujeitas aos
mecanismos de normalização (FOUCAULT, 1994). Nesse sentido, a estética da
existência pode ser entendida como um princípio que pode fundamentar práticas,
técnicas e artes que visam à constituição de subjetividades que não seriam mais
assujeitadas e assujeitadoras. Práticas de liberdade que têm a própria vida como objeto,
que remete ao trabalho que um indivíduo faz para se tornar um sujeito ético. Essa
estética fornece, portanto, uma forma e não uma regra específica (FIGUEIREDO,
2010).
Nas artes da existência, entretanto, por mais que a noção de indivíduo ainda seja
central – pois a vida como obra de arte é resultado da construção da própria existência
de acordo com certos padrões morais e estéticos determinados de maneira pessoal –, as
técnicas e práticas de si aí envolvidas não assumem, segundo Rago (2006), uma
dimensão individualista, mas se dão mediante trocas no interior de relações
interindividuais, de modo que a existência enquanto exercício criativo possui caráter
fundamentalmente coletivo. Nesse sentido, Foucault destaca:
destaca que tal ética sexual repousava, de fato, em um sistema de desigualdade, em particular em relação
às mulheres e aos escravos. Há um caráter viril do domínio sobre si, destaca Foucault, e as virtudes da
moral dos prazeres nas mulheres encontram-se sempre em referência à tal virilidade. Uma referência
institucional – pensando na posição de dependência ao homem na família e na cidade –, mas também na
relação consigo mesmo, nos termos de uma virilidade estrutural. (FOUCAULT, 1994, p. 77). Entretanto,
o que Foucault busca resgatar ao voltar-se para à antiguidade é a forma de trabalho sobre si e de domínio
sobre si no uso dos prazeres como atividade moral.
96
57
Fonseca (2002) chama essa postura nos trabalhos de Foucault de “negativa”. Entretanto, não
utilizaremos essa caracterização, uma vez que compreendemos que mesmo as práticas de recusa e
desfamiliarização produzem efeitos, sendo, inclusive, a postura “positiva” de proposição de um novo
direito um deles.
97
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio da análise dos repertórios sobre aborto voluntário nos dois projetos de
lei escolhidos, identificamos três versões deste mesmo objeto: o aborto como
assassinato, o aborto como problema de saúde pública e o aborto como direito feminino.
Devemos ressaltar que as três versões identificadas refletem o debate na sociedade
acerca da legislação da prática, conforme discutimos ao longo desta pesquisa.
Nesse contexto, é por meio da noção de vida como recurso discursivo que o
corte entre quem deve viver e quem deve morrer é constantemente redefinido, noção
esta que assume sentidos diferentes dependendo da estratégia de poder na qual se
inscreve. Se o aborto é compreendido como assassinato, a argumentação a favor da
criminalização da prática organiza-se em torno do princípio da sacralidade da vida; vida
que se inicia com o encontro dos gametas. Entretanto, se considerarmos que o aborto
ilegal – portanto, inseguro – se coloca como uma das principais causas de mortalidade
materna, o “direito à vida” pode se colocar também como um argumento pela
descriminalização da mesma prática.
Além da polissemia das noções de vida e direito entre as versões, tais noções
também assumem sentidos distintos quando mobilizadas como argumento pelos
diferentes atores que se inscrevem no debate. Desse modo, levamos em consideração
que mesmo as versões que encontram seu ponto de apoio em certas instituições de
disciplina e controle podem, por sua vez, ser utilizadas como forma de resistência.
Tendo em vista a função dos saberes biomédicos no biopoder, destacamos que, mesmo
que haja nesse contexto a intenção de disciplinar indivíduos e regular a população na
construção do aborto como problema de saúde pública, a argumentação pela
descriminalização da prática tecida em torno desta versão por outros atores presentes no
debate pode extrapolar a intencionalidade inicial. Algo semelhante pode ser observado
no uso de princípios que possibilitam a constante captura da vida da esfera jurídico-
política como estruturadores do principal eixo de argumentação acerca da
descriminalização do aborto pelo movimento feminista. Nesse sentido, as posturas
feministas transformam as reivindicações do direito ao próprio corpo e à autonomia em
uma reivindicação ao direito de existir de forma singular e poética.
101
Além disso, as versões podem depender umas das outras para serem
performadas. Na justificativa do projeto de lei 882/2015, o aborto como direito
feminino, mais especificamente no âmbito do direito à saúde e à vida, exerce uma
relação de dependência com a versão do aborto como problema de saúde pública. A
correlação entre a produção de dados epidemiológicos acerca da mortalidade materna e
o aborto inseguro performa a prática como um problema de saúde pública, que, por sua
vez, inscreve em si a versão do aborto como garantia do direito à saúde.
REFERÊNCIAS
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urna. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, jun. 2010.
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Católica. São Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir, 2000.
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Janeiro: Relume-Dumara, 2001.
MARTINS, C. J. A vida dos corpos e das populações como objeto de uma biopolítica
na obra de Michel Foucault. In: O legado de Foucault. 1 ed. São Paulo: UNESP, 2006.
109
MOL, A. M. Ontological politics: a word and some questions. In: LAW, J; HASSARD,
J. (eds.). Actor network theory and after. Oxford: Blackwell, 1999.
OLIVEIRA, M. Médico chama polícia após atender jovem que fez aborto na Grande
SP. Folha de São Paulo, São Paulo, 21 fev. 2015. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/02/1592839-medico-chama-policia-apos-
atender-jovem-que-fez-aborto-na-grande-sp.shtml>. Acesso em: 15 ago. 2015.
ROCHA In: Sexo & vida: panorama da saúde reprodutiva no Brasil. BERQUÓ, E.
S. (org.). Campinas: Unicamp, 2003.
ROSE, N. 2013. A biopolítica no século XXI. In: A política da própria vida. São
Paulo: Paulus, 2013
SCAMPARINI, I. Papa Francisco autoriza que padres possam perdoar o aborto, G1,
Vaticano, 21 nov. 2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-
hoje/noticia/2016/11/papa-francisco-autoriza-que-padres-possam-perdoar-o-
aborto.html>. Acesso em: 14 mai. 2015.
SPINK, M. J. et al. Vinte e cinco anos nos rastros, trilhas e riscos de produções
acadêmicas situadas. In: A produção de informação na pesquisa social:
compartilhando ferramentas. SPINK, M. J.; BRIGAGÃO, J.; NASCIMENTO, V.;
CORDEIRO, M. (orgs.). 1 ed. Rio de Janeiro: Centro Eldenstein de Pesquisas Sociais,
2014.
ANEXO I
Proposições apresentadas na Câmara dos Deputados no período de 2007 a
2017 que se referem à questão do abortamento
denúncia de clandestinos ou
abortos venda de substâncias
clandestinos que provoquem
aborto, a fim de,
segundo a
justificativa da
proposição, facilitar
“o trabalho dos
agentes policiais em
punir as inúmeras
clínicas clandestinas
especializadas em
matar as crianças,
assim como vários
estabelecimentos que
vendem ilegalmente
substâncias
abortivas”
PL Marcelo Altera os Aumenta a pena de Retirado pelo
2433/200 Serafim artigos 124, detenção para a autor
7 (PSB/AM) 125 e 126 do mulher gestante que
Código Penal realizar ou consentir
(Decreto-Lei o aborto, para o
nº 2.848, de aborto realizado por
7 de terceiros e tipifica o
dezembro de crime de induzir,
1940) instigar ou auxiliar
mulher grávida a
abortar, uma vez que,
segundo o autor, “as
penas para o aborto
previstas no Código
Penal são
extremamente
brandas”
PL Dr. Talmir Altera o Tipifica como crime Arquivado
2273/200 (PV/SP) artigo 126 do a conduta de auxiliar
7 Código Penal ou fornecer
instrumentos ou
fármacos para a
prática do aborto,
uma vez que, além de
criminalizar a
conduta provocar o
aborto com ou sem o
consentimento da
gestante, “lei nada
116
seu conteúdo e a
profundidade do seu
alcance”
PL Pastor Eurico Revoga a Lei Revoga lei que Apensado ao
6055/201 (PSB/PE), nº 12.845, de garante a profilaxia PL 6033/2013
3 Costa Ferreira 1º de agosto da gravidez e o
(PSC/MA) de 2013 fornecimento de
Pastor Marco informações às
Feliciano mulheres que
(PSC/SP), sofreram estupro
João Dado sobre os direitos
(PDT/SP), legais e sobre todos
Leonardo os serviços
Quintão disponíveis,
(PMDB/MG), incluindo
Dr. Grilo informações sobre o
(PSL/MG), aborto garantido no
Zequinha Código Penal. O
Marinho projeto de lei foi
(PSC/PA), apresentado sob a
Alfredo Kaefer justificativa de que
(PSDB/PR), “a Lei foi realmente
Henrique promulgada tendo
Afonso como principal
(PV/AC), objetivo introduzir o
William Dib aborto no Brasil”
(PSDB/SP),
Jair Bolsonaro
(PP/RJ),
Otoniel Lima
(PRB/SP) e
Eurico Júnior
(PV/RJ)