Você está na página 1de 123

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Priscila Kiselar Mortelaro

Versões de aborto voluntário em projetos de lei: (im)possibilidades de superação


do statu quo

Mestrado em Psicologia Social

São Paulo

2017
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Priscila Kiselar Mortelaro

Versões de aborto voluntário em projetos de lei: (im)possibilidades de superação


do statu quo

Mestrado em Psicologia Social

Dissertação apresentada à Banca Examinadora


da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção
do título de Mestre em Psicologia Social sob
orientação da Professora Doutora Mary Jane
Paris Spink.

São Paulo

2017
Banca Examinadora

_______________________________

_______________________________

_______________________________
Ao Pedro Augusto, que me traz “vislumbres de totalidade na
finitude”, por meio da poesia cotidiana.
AGRADECIMENTO ESPECIAL

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela


bolsa concedida no período de realização desta pesquisa, por meio do processo número
130166/2016-2. Sem o apoio financeiro, este trabalho não poderia ter sido realizado.
AGRADECIMENTOS

À Mary Jane Paris Spink, orientadora e fonte de inspiração, pela direção cuidadosa e
oportuna, que permitiu os voos da imaginação nos processos de produção, criação e
aprendizagem.
À querida Jacqueline Brigagão que, não apenas acompanhou essa pesquisa desde seus
contornos iniciais, mas ajudou a construí-la por meio de suas experientes e cuidadosas
contribuições, fazendo parte da minha história de maneira especial. Obrigada pelo
exemplo de educadora e pesquisadora.
Aos professores e às professoras do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia
Social da PUC de São Paulo, em especial à professora Maria Cristina Vicentin, pelas
preciosas contribuições na banca de qualificação.
Aos professores e às professoras do curso de Obstetrícia da Universidade de São Paulo,
pela formação crítica e singular. Agradeço, de modo especial, à professora Elizabete
Franco Cruz – de quem ouvi falar de Foucault pela primeira vez – pela docência
engajada e comprometida.
Às companheiras e aos companheiros do Núcleo de Estudos sobre Práticas Discursivas
no Cotidiano, pelas trocas e aprendizados compartilhados, pelos momentos de
descontração, pelo acolhimento caloroso e sincero. As contribuições de cada um e uma
de vocês estão refletidas nesta pesquisa.
À Marlene, secretária do Programa de Psicologia Social, pelo apoio fundamental nas
questões burocráticas.
À Claudete Kiselar, pelo exemplo de maternidade singular.
À minha família: aquelas e aqueles que me precedem, cujas trajetórias são também a
minha. Agradeço pelos percursos traçados, mesmo que tortuosos.
Ao Pedro, meu companheiro, pela relação de amor, cuidado, companheirismo e
admiração que sustentou o processo dessa dissertação. “E sigamos juntos”.
Agradeço, também, à família da qual passei a fazer parte a partir daquele feliz encontro
em maio de 2012. Obrigada pelo afeto, pela acolhida gentil e pelo carinho. Trude, Silvio
e Ana Beatriz, agradeço de maneira especial pelos sonhos de um mundo melhor
compartilhados.
Àqueles e àquelas cuja amizade se mantém intensamente presente mesmo na distância
espacial e temporal. Obrigada pela elegante compreensão nos momentos em que estive
ausente.
“O sexo não é uma fatalidade; ele é uma possibilidade de
aceder a uma vida criativa”

“Somos sexo por natureza? Muito bem, sejamos sexo, mas em


sua singularidade e especificidade irredutíveis. Tiremos disto as
consequências e reinventemos nosso próprio tipo de existência”

(Michel Foucault)
MORTELARO, P. K. Versões de aborto voluntário em projetos de lei:
(im)possibilidades de superação do statu quo. Dissertação (Mestrado em Psicologia
Social). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: São Paulo, 2017.

RESUMO

Esta pesquisa tem como objetivo central identificar as versões de aborto voluntário
presentes no processo legislativo por meio da análise de dois projetos de lei específicos
que têm por foco a descriminalização ou a criminalização da prática nos casos já
previstos por lei: o PL 882/2015 e o PL 478/2007, respectivamente. Para entendermos
as condições que possibilitam a criminalização da interrupção da gestação, utilizaremos
as teorizações de Michel Foucault acerca da biopolítica e do dispositivo da sexualidade,
uma vez que nos permitem compreender a emergência do processo de politização da
maternidade a partir do imperativo da vida. Para atingir o objetivo de pesquisa,
empregamos a abordagem teórico-metodológica da psicologia discursiva desenvolvida
no Núcleo de Estudos sobre Práticas Discursivas no Cotidiano: direitos, riscos e saúde
(NUPRAD), que se inscreve no âmbito de uma postura construcionista. Em um
primeiro momento, realizamos uma sistematização dos projetos de lei concernentes ao
aborto apresentados no período de 2007 a 2017. Em seguida, foi feita uma análise da
justificativa dos dois projetos de lei selecionados, buscando as versões de aborto
voluntário neles presentes. Três versões foram identificadas: o aborto como assassinato,
o aborto como problema de saúde pública e o aborto como direito feminino que, por sua
vez, contempla o direito à autodeterminação reprodutiva e o direito à vida. Versões que
estabelecem entre si relações de oposição, mas também se associam e completam,
dependendo de seu uso.

Palavras-chave: aborto; biopolítica; criminalização; direitos; práticas discursivas


ABSTRACT

The central aim of this research is to identify the versions of voluntary abortion present
in the legislative process through the analysis of two specific bills, which propose either
decriminalization or criminalization of such procedure even in the cases already
provided by law: bills number 882/2015 and 478/2007, respectively. To understand the
conditions that enable the criminalization of the ending of pregnancy, we will make use
of Foucault’s theory concerning biopolitics and the apparatus (“dispositif”) of sexuality,
since it allows us to conceive the rise of the process which politicizes maternity from
the perspective of the life-imperative. To reach the aforementioned aim, we employ the
theoretical-methodological approach from the discursive psychology, developed by the
Centre for Studies and Research of Discursive Practices in Quotidian: rights, risks and
health” (Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Práticas Discursivas no Cotidiano:
direitos, riscos e saúde - NUPRAD), also related to a constructionist attitude. In the first
place, we carried out a systematization of legislative bills with regard to abortion
proposed between 2007 and 2017. Next, an analysis of the justification of the two
selected bills was made, searching for the voluntary abortion versions contained in
them. Three versions were then identified: abortion as murder, abortion as a public
health problem and abortion as a women’s right, which, in turn, involves the right to
reproductive self-determination and the right to life. These versions establish between
themselves oppositions, but also combine and complement each other, depending on
their use.

Keywords: abortion; biopolitics; criminalization; rights; discursive practices


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO........................................................................................................12

1 REFERENCIAIS EPISTEMOLÓGICO E TEÓRICO-METODOLÓGICO......17


1.1 A perspectiva construcionista........................................................................17
1.2 A abordagem das práticas discursivas...........................................................21
1.3 Procedimentos de pesquisa............................................................................27

2 A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO ÂMBITO DA BIOPOLÍTICA........30


2.1 A “assunção da vida pelo poder”..................................................................30
2.2 Poder sobre a vida no século XXI.................................................................35
2.3 A politização da maternidade: uma breve Genealogia da condição feminina
.............................................................................................................................38
2.4 Implicação entre normalização e as práticas jurídicas..................................44

3 O ABORTO VOLUNTÁRIO NO CENÁRIO BRASILEIRO...............................48


3.1 A legislação atual e seus efeitos....................................................................48
3.3 O debate político na sociedade......................................................................50
3.4 Legislação e Políticas de Saúde: os efeitos do debate político......................56
3.5 Criminalização e constitucionalidade: o aborto no Supremo Tribunal
Federal.................................................................................................................62

4 O ABORTO VOLUNTÁRIO NO LEGISLATIVO................................................67


4.1 Elaborando leis: o trâmite no legislativo.......................................................67
4.2 Dez anos de aborto no legislativo.................................................................69
4.3 O projeto de lei 478/2007..............................................................................74
4.3.1 Tramitação......................................................................................76
4.4 O projeto de lei 882/2015..............................................................................78
4.4.1 Tramitação......................................................................................81

5 VERSÕES DE ABORTO VOLUNTÁRIO..............................................................83


5.1 Aborto como assassinato...............................................................................83
5.2 Aborto como problema de saúde pública......................................................89
5.3 Aborto como direito feminino.......................................................................92

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................99

REFERÊNCIAS...........................................................................................................104

ANEXOS.......................................................................................................................113
12

APRESENTAÇÃO

Iniciamos essa pesquisa situando a temática da criminalização do abortamento


no seu contexto político amplo a partir das reflexões de Foucault (2005) sobre a
biopolítica, pois elas nos dão ferramentas para compreender a emergência do “homem”,
enquanto ser vivo, como objeto de tomada de poder. Tal acontecimento é central para a
contextualização do nosso problema de pesquisa, uma vez que a biopolítica lida com a
população e incide sobre os processos de natalidade, mortalidade e longevidade com
efeito regulador, visando fixar um equilíbrio. No interior desta tecnologia de poder, a
sexualidade se coloca como ponto de apoio e articulação de variadas estratégias de
poder-saber. Nesse contexto, Foucault (2015) destaca que o processo de histerização do
corpo feminino é um dos domínios estratégicos deste dispositivo. Neste processo o
corpo feminino foi integrado ao campo das práticas médicas e colocado em
comunicação orgânica com o corpo social por meio da regulação da fecundidade, bem
como com o espaço familiar e com a vida das crianças por meio de uma
responsabilização biológico-moral em torno da maternidade.

Desse modo, a criminalização do aborto só pode ser compreendida se


considerarmos a implicação do poder disciplinar no biopoder, a fim de compreendermos
o processo de normalização dos modos de ser mulher e da maternidade a partir de uma
determinada discursividade. Nesse contexto, são impostos ao corpo feminino padrões de
normalidade e regulação, possibilitando a emergência do processo de politização da
maternidade a partir do imperativo da vida. Pela capacidade de gestar e parir, o corpo
feminino foi investido da função política de produzir indivíduos bons e saudáveis. Com
o processo de emergência de uma noção específica de mulher e da normalização da sua
conduta em torno da ideia da maternidade, vemos delinearem-se as condições que
possibilitam instituir a interrupção da gestação enquanto crime. Estabelece-se uma
relação entre direito e norma nos mecanismos disciplinares e biopolíticos do poder.
Nesse sentido, segundo Fonseca (2002), os saberes e as práticas jurídicas estabelecem
uma dupla relação com mecanismos de sujeição: fazendo-os funcionar e funcionando
por meio deles.

No Brasil o abortamento é criminalizado, exceto em poucos casos previstos pela


Código Penal de 1940. Entretanto, estima-se que, no ano de 2005, 1.054.242 de abortos
foram provocados no Brasil (BRASIL, 2009). A legislação proibitiva tem efeitos diretos
na vida das mulheres brasileiras, uma vez que as mulheres continuam realizando o
13

procedimento, mas frequentemente de modo inseguro. Nesse sentido, o aborto


provocado em condições de clandestinamente é uma das principais causas de
mortalidade materna no Brasil: a prática é responsável por cerca de 12,5% dos óbitos
totais, ocupando, em geral, o terceiro lugar entre as principais causas (BRASIL, 2001).
As mortes e os efeitos negativos na saúde das mulheres estão intimamente associados à
legislação brasileira, pois a descriminalização da prática permitiria que essas mulheres
pudessem interromper suas gestações em condições seguras. Tendo em vista a
magnitude do abortamento no contexto brasileiro, podemos perceber que, se há algum
ponto de conexão dessa legislação proibitiva com a sociedade, ele se dá no âmbito do
debate político e da vinculação dos argumentos por parte de atores conservadores. A
legislação é permeada e moldurada pelo debate político, que, por sua vez, é influenciado
pelos repertórios que circulam na sociedade e são ressignificados nas relações
interpessoais. O debate político que se desenvolve em torno da descriminalização do
abortamento é controverso e atravessa o campo moral e outras esferas do saber.
Podemos destacar que ele se organiza, grosso modo, em dois polos opostos: um
conservador e um liberal, embora os posicionamentos possam movimentar-se entre os
polos. Desse modo, além do posicionamento conservador, cujo principal representante
foi, tradicionalmente, a Igreja Católica, e do posicionamento liberal, representado pelo
movimento feminista, os/as profissionais de saúde, principalmente os/as médicos
obstetras, localizam-se nas nuances do debate, ora mais próximos de um
conservadorismo, ora mais próximas de uma abordagem liberal da questão, sendo
influenciados/as por questões profissionais, diretrizes de conselhos de classe e valores
éticos e morais difundidos na sociedade (RIBEIRO, 2008). Entretanto, não podemos
esquecer que tal debate também influencia, além do processo legislativo, outras esferas
de poder e a elaboração de políticas públicas. Em um breve passeio pela Política
Nacional de Atenção à Saúde da Mulher e pela Norma Técnica de Atenção Humanizada
ao Abortamento, observamos ressonâncias do debate político, principalmente dos
argumentos ligados aos movimentos sociais e feministas. Desse modo, mesmo em um
contexto de tensões, vemos o debate sobre o aborto voluntário produzir efeitos
concretos.

Considerando os efeitos da criminalização da prática e do debate acerca da


questão no contexto brasileiro, nosso objetivo principal é identificar as versões de
aborto voluntário presentes no processo legislativo por meio da análise de dois projetos
14

de lei específicos que têm como objetivo a descriminalização ou a criminalização da


prática nos casos já previstos por lei.

A partir do objetivo geral desta pesquisa, delimitamos os seguintes objetivos


específicos:

● Sistematizar os projetos de lei pró e contra a descriminalização


apresentados durante o período de 2007 a 2017;
● Identificar os repertórios sobre aborto presentes nas justificativas de dois
projetos de lei específicos: o PL 882/2015, que propõe a descriminalização total até a
décima segunda semana de gestação, e o PL 478/2007, que propõe a criminalização no
caso de gravidez decorrente de estupro e nos casos de incompatibilidade do feto com a
vida extrauterina, ambos previstos por lei;
● A partir destes repertórios, identificar as versões de abortamento e os
sentidos de seus usos.

Buscamos, por meio dos elementos constitutivos das práticas discursivas, levar
em consideração a dinâmica da produção de sentidos, tendo em vista que os repertórios
históricos formados pelos termos que demarcam as possibilidades da construção de
sentidos em uma determinada matriz podem ser ressignificados por meio dos processos
de socialização e de interanimação dialógica (SPINK, 2010). Tal abordagem nos
permite levar em consideração a polissemia que decorre da ressignificação das
formações discursivas no contexto das experiências singulares, mesmo que estas sejam
constituídas em um solo normativo (SPINK; MENEGON, 2005). Para tanto, utilizamos
documentos de domínio público como fonte de informação, pois, conforme destaca
Spink, P. (1999), eles nos permitem acessar os sentidos em circulação, uma vez que
neles estão presentes os repertórios históricos, ressignificados no tempo vivido e no
tempo curto, onde se dá a dinâmica de produção de sentidos, de modo que condensam
posicionamentos em tempos diferentes. Os documentos analisados foram obtidos por
meio da ferramenta de busca de proposições da Câmara dos Deputados a partir do
descritor aborto. Selecionamos, para o primeiro momento da pesquisa, apenas as
proposições que visam modificar – seja aumentar ou diminuir – a penalização dos casos
de abortamento não previstos por lei, penalizar aqueles já previstos no Código Penal ou
modificar as condições para o acesso ao abortamento legal. Por fim, discutimos as
versões de aborto que os repertórios sobre aborto voluntário presentes nas justificativas
15

dos dois projetos de lei selecionados nos permitiram identificar.

No primeiro dos cinco capítulos que compõem esta dissertação, apresentamos o


referencial epistemológico e teórico-metodológico que fornece a base para nossa
análise. No segundo capítulo, situamos a criminalização do abortamento na biopolítica,
compreendendo o corpo feminino como ponto específico de ancoragem de estratégias
de poder no dispositivo da sexualidade, tendo em vista a aliança entre as práticas
jurídicas e uma discursividade normativa sobre as mulheres e a maternidade. O terceiro
capítulo discute o abortamento no contexto brasileiro e os efeitos concretos da
interdição da prática na vida das mulheres, tendo em vista a legislação e as políticas
públicas como efeitos do debate político que se dá na sociedade. Conforme um dos
objetivos específicos desta pesquisa, o quarto capítulo contém um panorama da
atividade do processo legislativo na Câmara dos Deputados, no período de 2007 a 2017,
concernente à questão do aborto. Por fim, no quinto capítulo, discutimos as versões do
aborto voluntário presentes nas duas proposições analisadas. Foram identificadas três
versões distintas: o aborto como assassinato, o aborto como problema de saúde pública
e o aborto como direito feminino.

A partir disso, esse último capítulo apresenta também as discussões que se


organizam em torno dessas três versões. Junto à versão de aborto voluntário como
assassinato, identificado no projeto de lei 478/2007, realizamos uma discussão sobre a
redefinição contínua da vida e o limiar entre o que está dentro ou fora dessa definição,
tendo em vista o racismo de Estado e as operações de poder que definem o que é vida
com base em enquadramentos específicos.

As outras duas versões de aborto voluntário foram identificadas na segunda


proposição, o PL 882/2015. Na primeira delas, o aborto se apresenta como um
problema de saúde pública construído no âmbito da produção de dados epidemiológicos
sobre a mortalidade materna e da vinculação destes dados à argumentação de atores
políticos pela descriminalização. Tal versão inscreve o aborto inseguro na linguagem
dos riscos, o que nos permite discutir certas formações discursivas, provenientes das
diversas áreas de saber, como instrumento de poder no interior de estratégias de
governamentalidade. Buscamos lembrar, entretanto, que tais formações discursivas e
seu uso pelos atores sociais no debate pode remeter a um sentido diferente no interior de
uma intencionalidade distinta. O aborto como direito feminino foi a segunda versão
identificada a partir da justificativa do PL882/2015. Esta versão nos fez deparar com a
16

inevitável tarefa de pensar a inscrição da demanda por direitos no âmbito do feminismo


enquanto movimento social, tendo em vista a implicação entre práticas jurídicas e
normalização. Desse modo, discutimos o sentido diverso que o direito ao corpo assume
nas reivindicações feministas, quando comparado ao uso que é feito deste repertório no
discurso institucional sobre os direitos. Consideramos ainda, nesta versão, que o aborto
pode se concretizar no âmbito do direito à saúde e à vida, a partir da coordenação entre
o aborto como problema de saúde pública e o aborto como direito feminino.

Por fim, nas considerações finais, buscamos estabelecer relações entre as três
versões, sejam de oposição ou de associação e dependência, tendo em vista que seus
modos de coordenação podem performar o aborto no cenário brasileiro.
17

1 REFERENCIAIS EPISTEMOLÓGICO E TEÓRICO-METODOLÓGICO

“(...) reconhecer que método não é o meio de acessar algo, mas sim de
se (re)construir no que estudamos e pesquisamos.” (SPINK et al.
2014, p. 27)

Este capítulo discute os referenciais epistemológico e teórico-metodológico que


fornecem a base para a construção deste trabalho. Para tanto, dividimos o capítulo em
três partes: na primeira, apresentamos o construcionismo, a base epistemológica que
fundamenta a pesquisa com práticas discursivas; na segunda parte, apresentamos a
abordagem das práticas discursivas para a produção de conhecimento, trazendo e
discutindo a noção de ontologias políticas; na terceira e última parte, apresentamos os
procedimentos metodológicos adotados na obtenção e análise das informações obtidas.

1.1 A perspectiva construcionista

Segundo Spink & Frezza (1999) as práticas discursivas constituem um elemento


central na vertente epistemológica chamada construcionismo social. De acordo com
Ibañez (2005), juntamente com a crítica ao representacionismo, a concepção da
linguagem como performativa, isto é, como capaz de afetar a construção da realidade, é
a base das correntes construcionistas. As correntes, no plural, pois há uma variedade de
abordagens que se orientam desde essa perspectiva. Desse modo, o que podemos
garantir é que todas essas posturas compartilham uma desconfiança sobre a natureza
pré-discursiva de qualquer objeto social. As abordagens construcionistas são, portanto,
um convite a questionar o que foi instituído (SPINK et al. 2014).

A perspectiva construcionista emerge a partir de uma virada epistemológica


denominada “giro linguístico”. De acordo com Ibañez (2005), essa expressão é utilizada
para designar certa mudança que ocorreu na filosofia e em várias ciências humanas e
sociais, e que as levou a atribuir maior atenção ao papel desempenhado pela linguagem,
tanto nos próprios projetos dessas disciplinas, quanto na formação dos fenômenos que
elas se propõem a estudar. Tal virada se dá no contexto de uma dupla ruptura no
despertar do século XX1. A primeira consiste na ruptura com a tradição filológica

1
Entretanto, ressalta Ibañez (2005), apesar de ser difícil compreender a atenção dada à linguagem sem
18

centrada na comparação das línguas e no estudo de sua evolução histórica, por meio de
Saussure e da instituição da linguística moderna, a qual viabilizou o estudo rigoroso da
língua por si mesma e em si mesma. A outra ruptura, iniciada por Gottlob Frege (1849-
1925) e por Bertrand Russell (1872-1970), fez com que o olhar da filosofia, voltado até
então para as questões metafísicas, se voltasse para o mundo das produções discursivas,
passível de ser objetivado e público.

Após o estímulo dado por esses autores, a importância da linguagem não parou
de crescer. Entretanto, a partir de algumas dificuldades técnicas e conceituais, as
premissas do empirismo lógico desmoronaram, restando apenas o estímulo dado à
ênfase na importância da linguagem. A partir de uma autocrítica, Wittgenstein abandona
a possibilidade de construir uma linguagem ideal e volta-se para a reflexão sobre a
linguagem comum, influenciando um grupo de filósofos da Universidade de Oxford,
entre os quais se destacavam Gilbert Ryle (1900-1976), John Austin (1911-960), Peter
Strawson (1919) e Paul Grice (1913-1988). Este grupo compartilhava com os logicistas
um repúdio à tradição cartesiana e o entendimento da necessidade de passar de uma
filosofia do pensamento para uma filosofia da linguagem, opunham-se, no entanto,
rigorosamente ao positivismo e ao cientificismo, bem como à pretensão de construir
uma linguagem formalmente perfeita. Estudavam a linguagem para entender seus
mecanismos e opunham-se a reduzir a linguagem a uma mera função de descrição e
representação do mundo, pelo contrário, compreendiam que a linguagem tem
propriedades performativas.

As contribuições dos filósofos de Oxford provocaram uma reviravolta no


próprio conceito de linguagem e desdobraram-se, basicamente, nas seguintes linhas de
influência: uma crítica à concepção meramente representacional da linguagem, dando
lugar a uma reconsideração da natureza do conhecimento, por meio de uma
reformulação da relação entre conhecimento e realidade a partir do questionamento de
que existiria uma fundação última sobre a qual se assentaria o conhecimento válido; a

essa transformação no século XX descrita acima, talvez seja útil recordar que já no período medieval
podemos encontrar alguns ingredientes que teriam podido propiciar um “giro linguístico” antes de seu
estado definitivo. Trata-se da famosa disputa entre os escolásticos a respeito dos “universais”. No interior
dessa disputa, os “nominalistas” sustentavam a tese da inexistência fática dos universais, argumentando
que tudo aquilo que existe o faz de uma forma particular e que de nada adianta buscar referências
existenciais por trás de categorias gerais. Um universal, nesse sentido, seria apenas uma abstração cuja
existência só se materializa por meio da linguagem e cuja realidade é resultado dos usos que fazemos
dela. A partir de considerações desse tipo, os nominalistas esboçavam uma linha de pensamento no
interior da qual a linguagem exerce um papel especial na elaboração de nossa visão do mundo.
19

compreensão da linguagem como performativa; a concepção da linguagem enquanto


ação sobre o mundo e ação sobre os demais, consideração que avivaria a sensibilidade
com relação aos efeitos sociopolíticos e psicológicos que emanam das práticas
discursivas; e, por fim, se a linguagem é constitutiva de realidades, devemos esperar que
ela incida sobre a conformação e o desenvolvimento das relações e das práticas sociais.

No entanto, o “giro linguístico” teve efeitos e implicações que vão além do


aumento da ênfase dada à linguagem. Ele contribuiu para que fossem esboçados novos
conceitos sobre a natureza do conhecimento e para que fosse realizada a crítica da
concepção de que há uma verdade única e preexistente a ser descoberta pela
investigação científica. Além disso, permitiu que surgissem novos sentidos para aquilo
que se costuma entender pelo termo “realidade” – seja social ou cultural, natural ou
física – e proporcionou outro contexto teórico para que se desenhassem novas
modalidades de investigação (IBAÑEZ, 2005).

Nesse sentido, a abordagem construcionista requer que repensemos a


experiência da interioridade que se constituiu na modernidade e a dicotomia entre
sujeito e objeto a partir dessa experiência, uma vez que a subjetividade se constituíra
como recurso para que pudéssemos estabelecer novas certezas. É importante ressaltar
que a origem da concepção de mundo e da ciência modernas se inscreve em um cenário
no qual a matemática oferece a imagem da racionalidade integral. A afirmação feita por
Galileu de que o universo estaria escrito em linguagem e caracteres matemáticos,
implica a possibilidade de conhecimento do mundo a partir da abstração. Entretanto,
segundo Châtelet (1994), a mudança que se segue apenas é tornada possível por meio da
revolução filosófica que se dá a partir de René Descartes, cujas reflexões partem da
metafísica tradicional e são harmonizadas com a nova física. No pensamento cartesiano,
mesmo que não houvesse matéria haveria um sujeito pensante, um sujeito que é
pensamento puro. Segundo Ferreira (2007), a instituição do eu pensante impõe um novo
ponto de partida ao pensamento ocidental: o Espírito e o Sujeito passam a ser sedes da
verdade através da razão.

A partir do momento em que se aceita a herança cartesiana e a dicotomia entre


res cogitans e res extensa, surge a questão de como se relacionam entre si interioridade
e exterioridade e da misteriosa relação entre nossas ideias e a realidade. Durante dois
séculos e meio as grandes divergências filosóficas se articularam ao redor dessas
questões (IBAÑEZ, 2005). Desse modo, a partir dos ideais da ciência moderna,
20

emergem outros antagonismos em torno da indagação sobre aquilo que fornece a base
que dá condição à formação das ideias. Dá-se, portanto, além da cisão entre sujeito e
objeto, a cisão entre alma e corpo: de um lado, a razão, de origem divina, coloca-se
como fonte de conhecimento e cerne de toda inteligibilidade; de outro, o corpo, fonte de
ilusões provocadas pela sensibilidade. A partir do pensamento de Kant emergirá a chave
para uma nova formulação da subjetividade, uma vez que será superada a análise do
espírito cindido entre razão e sensibilidade. Nesse sentido, o espírito passa a ser visto
como composto por um sujeito transcendental, condição a priori do conhecimento, e
um sujeito empírico. As ideias, portanto, seriam conformadas por meio da experiência
empírica, que por sua vez parte de um marco não empírico estabelecido pelas
“categorias a priori de nosso entendimento” (IBAÑEZ, 2005; FERREIRA, 2007).

Nesse contexto, a perspectiva construcionista busca eliminar a dicotomia


fundamental na produção de conhecimento – entre sujeito e objeto –, a partir da
concepção de ambos enquanto construções históricas (IBAÑEZ, 2005). Ou seja, ela
busca romper com a dualidade que se inscreve no fazer em ciência em geral e em
psicologia: a existência de uma interioridade – de um sujeito do conhecimento – que
pensa a exterioridade que se encontra em oposição a ela e que se coloca como objeto a
ser conhecido. Além disso, a postura construcionista coloca-se como uma via de
desfazer dicotomias secundárias àquela fundamental na produção de conhecimento
(SPINK et al. 2014). Uma vez que essas profundas divergências filosóficas surgem
porque existe um consenso prévio a respeito do caráter privilegiado do mundo das
ideias e porque se tenta explicar a consciência a partir da dicotomia “interior/exterior”,
ao questionarmos essas premissas, o difícil problema da relação entre ambos se dilui
(IBAÑEZ, 2005).

Desse modo, se uma perspectiva construcionista compreende sujeito e objeto


como construções sócio-históricas com as quais devemos nos desfamiliarizar, a noção
de realidade também deve ser problematizada. Não é a existência da realidade em si que
é questionada, mas sua existência independente dos modos de acessá-la. Nesse sentido,
o construcionismo entende que a própria tentativa de a conhecer a constitui. Além da
problematização da noção de realidade, essa desfamiliarização da dicotomia entre
sujeito e objeto, no âmbito das abordagens construcionistas, resulta também em uma
crítica da concepção representacionista de conhecimento. Isso supõe afirmar que o
conhecimento não representa ou traduz a realidade objetiva e assumir que as categorias
21

utilizadas para as explicar são construções sociais que também acabam por performar a
própria realidade. Devemos destacar, entretanto, que tais construções não são ficções
desenfreadas, ou seja, descontextualizadas: certas condições delimitam as possibilidades
dentro dos processos de construção da realidade. Por fim, a postura construcionista
implica desfamiliarizar-se da objetividade implícita na retórica da verdade, por meio da
crítica à verdade como conhecimento absoluto. Trata-se, portanto, de compreender a
verdade como construção social e histórica que se dá em uma matriz de condições de
possibilidade (SPINK & FREZZA, 1999).

Spink & Frezza (1999) destacam que tal postura acerca do conhecimento pode
ser alvo de contestação e críticas, principalmente em relação ao relativismo e
reducionismo linguístico que, a princípio, lhe parecem inerentes. Um posicionamento
construcionista é, em certos sentidos, relativista, pois, se a realidade é construção
histórica, ela não pode ser invariante. Entretanto, se a pesquisa desde uma perspectiva
construcionista implica na necessidade de examinar o que entendemos como fatos à luz
dos pressupostos epistemológicos que nos permitem atribuir a eles o caráter de
convenções socialmente construídas e historicamente localizadas, torna-se necessário
explicitar nossos posicionamentos políticos e éticos em relação a tais fatos, uma vez que
a pesquisa enquanto prática discursiva, produz efeitos e também constrói e transforma a
realidade. A reflexividade, portanto, coloca-se como um contraponto a um certo
relativismo. Quanto ao reducionismo linguístico, se considerarmos o aspecto
performativo da linguagem para as abordagens construcionistas, de fato, ela assume
papel importante na construção da realidade. Isso não significa, todavia, que a realidade
possa ser reduzida a um substrato linguístico (SPINK & FREZZA, 1999).

1.2 A abordagem das práticas discursivas

Apesar de ter suas origens na epistemologia construcionista, a psicologia


discursiva brasileira que se desenvolve no âmbito da proposta de uma psicologia social
crítica é um híbrido de diversas abordagens. É nesse movimento que se enquadra a
pesquisa com práticas discursivas (SPINK & SPINK, 2007). Nesta abordagem teórico-
metodológica, a produção de sentido é uma prática social, dialógica, que implica a
linguagem em uso, em movimento. Compreendemos, portanto, a produção de sentido
como um processo sociolinguístico, no interior do qual a linguagem sustenta as práticas
22

sociais geradoras de sentido: tanto as práticas discursivas que atravessam o cotidiano,


quanto os repertórios, ou seja, os conteúdos históricos mobilizados nesses processos de
produção discursiva (SPINK & MEDRADO, 1999).

Dessa maneira, a linguagem é entendida como prática social e deve ser pensada
na interface entre seus aspectos performativos e sua matriz de condições de produção,
entendida tanto no contexto social e interacional, ou seja, nos microprocessos de
produção de sentidos, quanto no contexto foucaultiano de construções históricas. Assim,
desdobram-se dois níveis de análise distintos.

O primeiro nível de análise, aquele do discurso, refere-se às regularidades e às


formações discursivas institucionalizadas. Tal institucionalização pode ocorrer tanto no
nível dos domínios de saber institucionalizados, quanto no nível restrito dos grupos
sociais. Nesse sentido, podemos afirmar que determinadas estruturas de poder podem
ter seus próprios discursos. Tal afirmação nos aproxima da noção bakhtiniana de
linguagens sociais, segundo a qual existem discursos peculiares a estratos específicos da
sociedade, num dado contexto e momento histórico. Ainda assim, mesmo que o
contexto histórico possa mudar radicalmente os discursos hegemônicos, reconhece-se
uma tendência à sua permanência no tempo (SPINK & MEDRADO, 1999).

Se o primeiro nível de análise aponta para uma estrutura de reprodução social,


ou seja, para a compreensão da linguagem a partir das regularidades, isso não implica
desconsiderar a diversidade presente no uso diário desses discursos pelas pessoas. Nesse
contexto, para designar os modos por meio dos quais as pessoas produzem sentidos e se
posicionam nas relações sociais cotidianas, ou seja, a linguagem em uso e ação,
utilizamos o termo práticas discursivas, o qual constitui o segundo nível de análise
(SPINK & MEDRADO, 1999).

A proposta teórico-metodológica das práticas discursivas, ao incorporar as


noções de Bakhtin, torna possível trabalhar com a noção de repertórios linguísticos e,
por meio destes, entender as produções linguísticas humanas em sua dinâmica. Os
repertórios (conteúdos), juntamente com a dinâmica da produção de sentidos por meio
dos enunciados e os gêneros de fala (speech genres), são os elementos constitutivos das
práticas discursivas. Os repertórios demarcam o rol de possibilidades de construções
discursivas e são formados pelos termos e conceitos que demarcam as possibilidades da
construção de sentidos em dadas condições de possibilidade. Os repertórios têm uma
23

longa história e, a partir de uma concepção temporal tríplice – que engloba o tempo
longo, o tempo vivido e o tempo curto – estão inclusos no domínio do tempo longo.
Nessa perspectiva, este último é o lugar da construção dos conteúdos culturais que
foram parte dos discursos de uma dada época, permitindo que nos familiarizemos com
os conhecimentos produzidos e reinterpretados por diferentes domínios do saber
(SPINK & MEDRADO, 1999). Segundo Spink (2010), os repertórios são colocados em
movimento nos processos de interanimação dialógica. Nestes processos, o enunciado é a
unidade básica da comunicação. Enquanto elo na cadeia de comunicação, cada
enunciado tem suas fronteiras, é endereçado a determinado interlocutor e se insere em
gêneros de linguagem específicos. O tempo vivido, por sua vez, é o tempo de
ressignificação destes conteúdos históricos por meio das linguagens sociais aprendidas
pelos processos de socialização. O tempo curto, por fim, é o tempo da interanimação
dialógica e da dinâmica da produção de sentidos por meio dos enunciados que
presentificam a memória cultural do tempo longo e a memória pessoal do tempo vivido
(SPINK & MEDRADO, 1999; SPINK, 2010).

Uma vez que os repertórios são continuamente construídos e reconstruídos, os


estudos que os abordam não consideram apenas a sua regularidade, o consenso, mas
também a variabilidade e a polissemia que caracterizam os discursos. É dessa forma que
a pesquisa com práticas discursivas nos permite perceber as regularidades discursivas
sem desconsiderar a polissemia, pois propõe a análise das práticas discursivas em
diferentes níveis: tanto no nível dos discursos institucionalizados, quanto das posições
socialmente disponíveis e das estratégias linguísticas utilizadas para os posicionamentos
no processo de interanimação. A divisão temporal tripartite permite abordar o caráter
paradoxal dos repertórios e enunciados que se inscrevem na ordem das regularidades,
mas que adquirem concomitantemente sentidos singulares por meio dos processos de
produção de sentidos. Entretanto, admitir que as práticas discursivas são polissêmicas
não implica afirmar que não há tendência à hegemonia de determinadas formações
discursivas, nem que os sentidos produzidos possuem igual poder de provocar
mudanças. Implica, sim, poder transitar por diversos contextos e vivenciar variadas
situações (SPINK & MEDRADO, 1999). A abordagem das práticas discursivas,
portanto, “torna a pesquisa com práticas discursivas mais complexas por ser ela,
concomitantemente, uma microanálise, uma pesquisa das estruturas sociais e uma
exploração da história das ideias” (SPINK, 2010, p. 26).
24

Uma vez assentados os referenciais epistemológico e teórico-metodológico nos


quais nos encontramos, abre-se um novo mundo de outros referenciais preciosos e que
contribuem para novas experiências na produção de conhecimento. Entre estes, os
aportes de autores/as vinculados/as direta ou indiretamente à teoria ator-rede (TAR)
impactaram nos modos de se fazer pesquisa com práticas discursivas (SPINK et al.
2014). A postura epistemológica que adotamos deve reconhecer que as construções
históricas sobre verdades nem sempre geram narrativas hegemônicas. Ou seja, há
muitas versões da realidade em circulação e estas versões não necessariamente
competem entre si (SPINK et al. 2014). Se assumirmos a existência de diferentes
versões e que cada uma delas tem efeitos políticos, podemos incorporar em nossas
pesquisas a noção de “ontologias políticas”. O termo é empregado por Mol (1999) na
busca de enfatizar que o “real” está implicado na política e vice-versa. Nesse sentido, as
condições de possibilidade não são dadas de partida, pois a realidade não precede as
práticas nas quais interagimos com ela, mas é modelada por essas práticas. O termo
política, portanto, permite destacar esse processo ativo de modelação. Nesse caso, o
plural é empregado, pois, se a realidade é perfomada, se é localizada histórica, cultural e
materialmente, também é múltipla.

Mol, portanto, passa a usar a noção de multiplicidade, não de pluralidade. O seu


termo de referência é diferente: performatividade. Em vez de atributos ou aspectos, são
diferentes versões do objeto, versões que diversos atores ajudam a performar (enact).
São objetos diferentes, isto é, formas múltiplas da realidade, embora relacionados entre
si. Portanto, há diferentes versões, diferentes performances, diferentes realidades que
coexistem no presente e que não são construções do passado, não são apenas
alternativas, das quais só uma sobreviveu (MOL, 1999).

Diante dessa multiplicidade ontológica, cada uma dessas realidades performadas


(enacted) tem efeitos. Cada uma das diferentes versões constitui diferentes práticas em
torno de uma situação ou objeto e a realidade não as precede, mas é por elas moldada e
remoldada. Portanto, é importante lembrar que a decisão por uma versão emerge
historicamente e é efeito de um grande número de contingências e forças, não sendo
decidida em qualquer momento ou local particular: estabelecem-se argumentos pela
opção por cada uma das versões e estes argumentos podem deslocar o “lugar” da
decisão. Como lugar, entendemos os pormenores das técnicas que constituem e
performam essas versões por meio da produção de conhecimento, dos argumentos
25

acerca das razões “boas” ou “más” que buscamos para decidir por cada uma delas e suas
implicações. Isto é, em última instância, os lugares da decisão são também os lugares
da performatividade. Logo, é relevante a questão de onde estão as opções para a
formação de ontologias políticas, pois, nas atuais circunstâncias, muitas condições de
possibilidade não são entendidas como resultados de “decisões”, passando a ser tidas
como fatos (MOL, 1999).

Desse modo, nesta pesquisa não buscaremos prescrever quais opções devem ser
feitas, pois há de se questionar se poderá haver opções. Segundo Mol (1999), se as
realidades performadas são múltiplas, não se trata de uma questão de pluralismo: elas
podem colidir umas com as outras ou colaborar e exercer uma relação de dependência
entre si. Para compreender como as múltiplas versões de um mesmo objeto coexistem,
recorremos aos modos de coordenação da multiplicidade tal qual descritos por Mol em
“The body multiple” (2002). Segundo a autora, se os objetos são múltiplos, a questão
crucial sobre eles é como as suas diferentes versões são coordenadas. Mol destaca que
as diferentes versões possuem identidades locais, isto é, cada uma das versões não é
universal, mas localizada, existindo a partir de uma especificação espacial. A respeito
da arteriosclerose, o objeto de estudo da autora na obra citada acima, ela destaca: “uma
sentença que diz o que a arteriosclerose é deve ser suplementada por uma outra que
revela onde este é o caso” (2002, p. 54; tradução nossa, grifos da autora). Portanto, as
versões são performadas por diferentes atores em diferentes locais, apesar desses locais
serem fechados em si mesmo e não estarem totalmente separados uns dos outros,
estabelecendo também relações entre si.

Devemos destacar, entretanto, que os objetos, apesar de serem múltiplos, não são
fragmentados, do mesmo modo que as versões não são apenas resultado da observação
do objeto desde diferentes perspectivas: determinado objeto é mais do que um e, ao
mesmo tempo, menos do que muitos, pois o objeto não é fragmentado. Mesmo que
múltiplo, o objeto ainda mantém uma unidade; as versões, ou seja, as identidades locais,
são coordenadas de modo a permitir que o objeto em questão mantenha uma única
identidade. Mol (2002) denomina adição o processo que permite que as diferentes
versões digam respeito ao mesmo objeto, isto é, que as diferentes versões mantenham
uma unidade, uma singularidade. Nesse processo, as diferentes versões de um objeto
são somadas. Versões que muitas vezes se contradizem, que podem estabelecer uma
relação de conflito entre si; como coordená-las desse modo? Mol destaca que, a fim de
26

garantir a coerência entre elas, geralmente uma hierarquia entre as versões e seus
diferentes modos de performar o objeto é estabelecida. Quando dois fatos – lembrando
que tais fatos são resultados da performatividade das versões de um objeto, sendo,
portanto, tão performados por práticas quanto performam as versões – se contradizem, a
um deles será atribuído maior peso. Ou mesmo, um deles pode ser descartado: “uma
realidade vence” (2002, p. 55; tradução nossa). Entretanto, ainda é possível que
diferentes versões do mesmo objeto possam prevalecer, mesmo que estabeleçam uma
relação de conflito entre si. Dessa forma, tal relação de conflito pode ser coordenada
pela afirmação da diferença entre tais objetos, de modo que uma relação entre as
versões desse objeto não seja uma relação linear. Nesse caso, cada uma tem o direito de
existir e tem seu papel performando práticas diferentes em relação ao mesmo objeto.
Entretanto, esse processo não depende de um objeto com uma identidade única que
precede as práticas, cujas diferentes representações dizem respeito a diferentes
perspectivas. A adição performa a singularidade do objeto, ou seja, ela é uma poderosa
forma de criar singularidade (MOL, 2002).

Além do processo de adição, a coordenação por tradução pode transformar


determinada versão de um objeto em outra, tornando-as comparáveis, equivalentes, ou
seja, estabelecendo padrões de correlações entre as versões, por meio de critérios que
possam possibilitar tais correlações, uma vez que as versões podem ser performadas em
locais diferentes e fundamentar-se em paradigmas diferentes (MOL, 2002).

Conforme vimos, as diferentes versões de um objeto podem ser coordenadas de


modo a formar uma unidade. Em alguns casos, no entanto, as incoerências e
incompatibilidades entre as versões não são amenizadas, tornando impossível um
processo de coordenação que leve à singularidade. Nesse caso, as versões podem
coexistir, mesmo incoerentes, por meio da distribuição em diferentes locais e
momentos. Local, aqui, serve como uma metáfora espacial, podendo compreender uma
distribuição espacial literal ou os pormenores das distintas práticas, discursivas ou não,
que performam as versões. Nesse processo, chamado distribuição, são separadas
versões diferentes que, caso não o fossem, colidiriam entre si. Desse modo, a
divergência pode não necessariamente implicar conflito ou consenso, e as tensões
podem existir pacificamente. Entretanto, Mol destaca que tal processo não consiste em
fragmentação do objeto. O nome que designa o objeto múltiplo ainda se coloca como
termo que tem efeitos de um mecanismo de coordenação operacional em conjunto com
27

as distribuições. Desse modo, o processo de distribuição separa o que ainda tem unidade
e que pode se encontrar em outros momentos e lugares (MOL, 2002).

Por fim, as versões podem fazer parte umas das outras, ou seja, podem incluir
umas às outras – por meio de processos de coordenação por inclusão. Contudo, Mol
destaca: não se trata de uma questão de escala fixa, uma vez que tais inclusões podem
ser recíprocas. É possível, ainda, que versões de um objeto que, em muitos sentidos, são
incompatíveis se incluam. Diferentes versões geralmente dependem umas das outras
para serem performadas e para performar o objeto em sua singularidade, há
interferência entre elas (MOL, 2002).

Nesse sentido, os modos de coordenação são processos complexos que


possibilitam a coexistência de versões de um mesmo objeto. A singularidade de um
objeto não é, portanto, dado de antemão, mas performada, ou seja, é o resultado dos
processos de coordenação (MOL, 2002).

Em suas teorizações a respeito da arteriosclerose, Mol (2002), pontua que não


tenta realizar um juízo de valor acerca da apropriação das diferentes versões, mas
fornecer um repertório teórico que possibilite pensar como são apropriadas e utilizadas,
produzindo efeitos. Desse modo, buscamos ponderar quais são os efeitos de cada uma
das versões acerca do aborto voluntário nos documentos a serem analisados, como os
argumentos mobilizados na justificativa para a “escolha” por cada uma dessas versões
as performam e como se associam com a rede na qual são performadas. As escolhas que
fazemos por cada uma das versões têm efeitos, mas os “fatos” que auxiliam nessa
escolha também são efeitos de práticas resultantes de uma rede heterogênea de atores e
os pormenores da produção desses fatos merecem atenção. Portanto, se há alguma
escolha possível, ela deve ser feita tendo em vista que cada vez que algo parece estar em
jogo, na verdade estão em jogo também outras questões e realidades (MOL, 1999).

1.3 Procedimentos de pesquisa

Conforme o percurso teórico-metodológico do Núcleo de Estudos sobre Práticas


Discursivas no Cotidiano: Direitos, Riscos e Saúde, adotamos uma leitura ampliada
sobre práticas discursivas, compreendidas para além das interações face a face (SPINK
et al. 2014). Desse modo, a aproximação que buscamos com os repertórios acerca do
28

aborto voluntário se deu por meio da análise de documentos de domínio público, uma
vez que tais documentos devem ser compreendidos como praticas discursivas que
sustentam estratégias de governamentalidade (SPINK; MENEGON, 2005). Segundo
Spink, P. (1999), as práticas discursivas, enquanto linguagem em ação, estão presentes
tanto em imagens e artefatos como nas palavras. Ao nos permitirem acessar sentidos em
circulação, entendemos que os documentos de domínio público também são práticas
discursivas e, enquanto tal, o são em pelo menos três aspectos: a partir da peça de
publicação; das razões de tornar público, incluindo os endereçamentos; e daquilo que
tornam público – seu conteúdo (SPINK, et al. 2014). O trabalho com documentos rejeita
uma noção simples de tempo, pois neles estão presentes conteúdos históricos, presentes
e ressignificados no tempo vivido e no tempo curto, onde se dá a dinâmica de produção
de sentidos, de modo que condensam posicionamentos em tempos diferentes. Ao
mesmo tempo, os documentos são instrumentos que produzem sentidos. Dessa maneira,
os documentos são produtos sociais tornados públicos e proporcionam novas
configurações de produção de sentido que refletem as transformações lentas em
posições e posturas institucionais assumidas pelos aparelhos simbólicos que permeiam o
dia a dia ou pelos agrupamentos e coletivos que dão forma ao informal, refletindo o ir e
vir de versões circulantes. Em suma, ao oferecerem visibilidade para a dinâmica de
produção de sentidos, ao mesmo tempo em que participam dela, são simultaneamente
traços de ação social e a própria ação social.

Os textos da lei, bem como das proposições de leis, enquanto documentos de


domínio público, consistem em recortes que pertencem a um contexto muito mais
amplo e são produto do seu tempo. Eles compõem e são compostos em nosso cotidiano
e são parte de uma determinada matriz sócio histórica (SPINK, et al. 2014). Desse
modo, tais documentos são o material de escolha para a análise realizada nesta pesquisa,
pois neles se materializam os repertórios, os argumentos e as controvérsias da produção
de sentidos no interior do debate político acerca do aborto no Brasil.

As proposições analisadas foram obtidas no portal da Câmara dos Deputados, na


página de pesquisa de proposições, a partir de busca realizada com o descritor aborto.
Limitamos a busca aos anos de 2007 a 2017. Os projetos de lei encontrados que não se
referem diretamente à questão do aborto foram eliminados após leitura inicial.
Entretanto, foram incluídas na sistematização realizada no quarto capítulo apenas as
preposições que buscavam modificar a penalização dos casos de abortamento não
29

previstos por lei, penalizar aqueles já previstos no Código Penal ou modificar as


condições para o acesso ao abortamento legal. Entre os projetos de lei encontrados,
realizamos a análise das justificativas de duas proposições em particular: escolhemos os
projetos de lei 478/2007 e 882/2015, pois ambos propõem mudanças significativas na
legislação: a criminalização do aborto em casos já previstos por lei e a
descriminalização irrestrita, respectivamente. Buscamos e selecionamos nas
justificativas os repertórios sobre aborto que guiaram a discussão que se seguiu.

Os repertórios encontrados foram agrupados em três eixos temáticos em torno de


três versões de aborto que produzem por meio de uso: o aborto como assassinato, como
problema de saúde pública e como direito feminino.
30

2 A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO ÂMBITO DA BIOPOLÍTICA

Neste capítulo visamos discutir a emergência de um processo de normalização


dos modos de ser mulher e de politização da maternidade no contexto da biopolítica.
Para tanto, iniciamos a abordagem tratando da ruptura que permite a emergência de uma
tecnologia de poder que tem como objetivo “fazer viver”. Em seguida, discutimos as
transformações na biopolítica e suas configurações no século XXI. Em um terceiro
momento, fazemos uma breve genealogia da condição feminina, discutindo a
emergência do modelo de diferença sexual e da histerização do corpo feminino
enquanto estratégia de poder no dispositivo da sexualidade. Por fim, debate-se a relação
entre norma e as práticas jurídicas.

2.1 “A assunção da vida pelo poder”

Para situar a criminalização do aborto voluntário no amplo contexto político,


partiremos do que Foucault (2005, p. 285) chamou de “assunção da vida pelo poder”.
Nesse processo, o “homem”, enquanto ser vivo, torna-se objeto de tomada de poder,
levando ao que se poderia chamar de “uma espécie de estatização do biológico” (2005,
p. 286).

A fim de facilitar a compreensão da tomada da vida enquanto objeto de poder, o


filósofo retoma a questão do direito de vida e de morte na teoria clássica da soberania,
na qual o soberano tem direito de vida e de morte ao fazer morrer ou deixar viver,
portanto, indiretamente. Pois, por um lado, a vida e a morte não seriam processos que
escapam ao poder político e só se tornariam direitos a partir do efeito da vontade
soberana. Por outro lado, o poder soberano o faz de modo indireto, pois só se exerce
sobre a vida por meio da morte: “o direito de matar é que detém efetivamente em si a
própria essência desse direito de vida e de morte: é porque o soberano pode matar que
ele exerce seu direito sobre a vida” (2005, p. 286). Entretanto, em um contexto no qual a
soberania torna-se “inoperante para reger o corpo econômico e político de uma
sociedade em via, a um só tempo, de explosão demográfica e de industrialização”
(2005, p.297), uma nova tecnologia vem a completar e modificar o poder soberano com
um novo direito: o poder de fazer viver e deixar morrer (FOUCAULT, 2005).
31

O poder sobre a vida, segundo Foucault (2015), desenvolveu-se em suas formas


principais constituindo dois polos interligados por um feixe de relações. O primeiro
deles, formado a partir do século XVII, centrou-se no corpo-máquina, buscando efeitos
de adestramento, ampliações de aptidões, utilidade e docilidade, bem como sua
integração em sistemas de controle eficazes por meio dos mecanismos de poder que
caracterizam as disciplinas. Esse polo Foucault chamou de anátomo-política do corpo
humano. Na segunda metade do século XVIII, surge uma outra tecnologia de poder, não
disciplinar, mas que não a exclui e, sim, a integra. O segundo polo, que Foucault
denominou biopolítica da população, centrou-se no corpo-espécie e toma como objeto
de intervenções e controles reguladores os processos biológicos: a proliferação do
corpo-espécie, os nascimentos, a mortalidade, o nível de saúde, a longevidade e as
condições que podem fazê-los variar. Se a técnica disciplinar tenta reger a
multiplicidade dos homens agindo sobre corpos individuais que devem ser
disciplinarizados, a biopolítica se dirige também à multiplicidade, porém na medida em
que forma uma massa que é afetada por processos que são próprios à vida e que devem
ser regulados (FOUCAULT, 2005; 2015).

As disciplinas do corpo e a regulação da população, portanto, constituem os


polos por meio dos quais se organiza um poder cuja função não é mais matar, mas
investir sobre a vida. Desse modo, o velho poder sobre a morte é recoberto pela
administração dos corpos e pela gestão da vida por meio do cálculo. Inicia-se o que
Foucault chama de era do biopoder: desenvolvem-se técnicas numerosas para sujeitar o
corpo e controlar as populações. No polo disciplinar, as instituições como o exército, a
escola, a prisão; no polo da regulação da população, a demografia, as estimativas, os
cálculos acerca da relação entre recursos e habitantes, das vidas e sua duração provável
(FOUCAULT, 2015).

No âmbito da biopolítica, os processos da vida são objeto de poder e de saber


que buscam controlá-los e modificá-los. O biológico, segundo Foucault (2015), passa
assim a coincidir com o político. Essa tecnologia de poder, portanto, lida com a
população como uma questão política, científica, biológica e de poder. Sua intervenção
busca modificar processos no nível de suas determinações gerais e no que têm de
global, a partir de seu efeito regulador, a fim de fixar um equilíbrio. Para tanto, é
necessário regular as condições de existência, a saúde individual e coletiva, multiplicar
as forças vitais e dividi-las em um espaço ótimo
32

Da ruptura com o modelo do poder soberano, descrita por Foucault, e da


emergência da população como objeto de governo, faz-se necessário desenvolver
estratégias de governo positivas, que produzam os efeitos desejados. Desse modo, na
era biopolítica emerge a arte de governar não apenas o território e seus habitantes, mas
de gerir as condições e materialidades que interferem nos próprios processos inerentes à
vida desses habitantes em dado território: “um complexo constituído pelos homens e
pelas coisas” (FOUCAULT, 2008a, p. 128). O governo, portanto, diferente do modelo
do príncipe de Maquiavel e suas representações, não se coloca em uma posição de
transcendência e exterioridade com relação ao objeto de governo. Pelo contrário: as
práticas de governo se inscrevem no interior da sociedade. Tais práticas, por sua vez,
são múltiplas, e suas estratégias passam por diversas instituições e figuras. Segundo
Foucault (2008a, p. 124) “muita gente governa: o pai de família, o superior de um
convento, o pedagogo, o professor em relação à criança ou ao discípulo: há, portanto,
muitos governos em relação aos quais o do príncipe que governa seu Estado não é mais
que uma das modalidades”. Todas essas modalidades de governo que se entrecruzam,
contudo, são perpassadas por uma forma particular de governar: a economia coloca-se
como princípio central da arte de governar. A princípio, governar um Estado resumia-se
à metáfora do governo do pai de família sobre a casa e os bens. Essa atividade consistia
na aplicação do princípio da economia familiar no nível do Estado, ou seja, no exercício
em relação aos habitantes, às riquezas e às condutas de todos e todas por meio da
vigilância e do controle tão atentos como os de um pai de família (FOUCAULT,
2008a).

Entrementes, a palavra economia começa a adquirir no interior da arte de


governar o seu sentido moderno e passa a se colocar como a própria essência do
governo. Nesse sentido, Foucault destaca:

A palavra “economia” designava uma forma de governo no século


XVI, e no século XVIII designará um nível de realidade, um campo de
intervenção para o governo, através de uma série de processos
complexos e, creio, absolutamente capitais para nossa história. Eis,
portanto, o que é governar e ser governado (2008a, p. 127).

Segundo Foucault (2008a), a reflexão sobre a arte de governar se inicia com a


literatura antimaquiavel no século XVI. Entretanto, as crises do século XVII – a Guerra
dos Trinta Anos, as grandes revoltas rurais e urbanas e as crises financeira e dos meios
33

de subsistência – colocaram-se como obstáculo para o desenvolvimento da


governamentalidade: ela só poderia se consolidar em um período de expansão, ou seja,
em um contexto de expansão demográfica e abundância monetária. Mais
especificamente, é a emergência do problema da população, que toma forma a partir do
século XVIII, que possibilita essa consolidação. Segundo o filósofo, o mercantilismo foi
o primeiro esforço dessa arte de governar. Contudo, tal esforço viu-se bloqueado, pois
ainda se fundamentava no poder soberano. Desse modo, é graças a apreensão dos
problemas específicos da população e ao isolamento desse nível de realidade que se
chama economia, que o problema do governo pôde, enfim, ser refletido e calculado fora
do marco jurídico da soberania, afastando-se do modelo familiar centrando a noção de
economia em outra instância: o cálculo (FOUCAULT, 2008a). Nesse sentido, Foucault
destaca:

Essa estatística que havia funcionado até então no interior dos marcos
administrativos e, portanto, do funcionamento da soberania, essa
mesma estatística descobre e mostra pouco a pouco que a população
tem suas regularidades próprias: seu número de mortos, seu número
de doentes, suas regularidades de acidentes. A estatística mostra
igualmente que a população comporta efeitos próprios da sua
agregação e que esses fenômenos são irredutíveis aos da família
(FOUCAULT, 2008a, p. 138).

Apesar de deixar de se caracterizar como modelo que fundamenta a arte de


governar, a família se consolida como ponto de apoio fundamental para o governo das
populações. Desse modo, a família se apresenta como instrumento privilegiado no
interior da população, sobre o qual incidem estratégias de poder que visam produzir
efeitos no comportamento sexual, nos índices demográficos e, de certo modo, no
consumo. A família também se coloca como ponto de apoio de estratégias de promoção
e proteção à saúde (FOUCAULT, 2008a).

Na era marcada pelo neoliberalismo, o governa da vida se coloca como aspecto


indispensável, apesar do discurso que se organiza em torno da noção de liberdade. Isso
porque, segundo Foucault (2008b), para se garantir que haja liberdade no campo
econômico, deve haver a garantia de uma moldura institucional que ofereça condições
de possibilidade para a arte neoliberal de governar. Tal moldura será garantida por um
controle no campo social. Distinguindo-se do modelo da soberania, as finalidades do
governo não podem ser aí alcançadas exclusivamente pela lei (FOUCAULT, 2008a). A
sociedade, portanto, passará a ser objeto da governamentalidade, a partir da aplicação da
34

análise econômica para a intervenção em diversos aspectos da dinâmica social –


casamento, educação dos filhos, controle ideal da criminalidade –, permitindo a captura
da vida nesse sistema. Ainda assim, a ordem jurídica terá participação privilegiada na
constituição e garantia dessa moldura institucional, pois a lei seria o elemento de
gerenciamento das condições sociais que garantiriam a possibilidade do capitalismo e
de sua renovação (FOUCAULT, 2008b). Uma sociedade normalizadora é, assim,
segundo Foucault (2015), o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na
vida. Na era do biopoder, a atuação da norma, de importância central, se dá por meio
das práticas jurídicas: a lei funciona cada vez mais como norma e a instituição judiciária
se integra em um conjunto de aparelhos de gestão da vida, médicos e administrativos,
com funções reguladoras (FOUCAULT, 2015).

Desse modo, a arte de governar – também chamada governamentalidade – tem


uma finalidade: ela dispõe das coisas tendo em vista o controle da população por meio
da gestão e do cálculo. Foucault destaca que essa finalidade, de certo modo global,
compõe-se igualmente de fins específicos que se tornarão objetivos do governo:
controlar as variáveis que poderiam interferir na homeostase da população
(FOUCAULT, 2008a). Uma vez que o objetivo que se delineia no interior da biopolítica
é fixar um equilíbrio no nível da população, os processos de natalidade, de mortalidade
e de longevidade constituíram os primeiros objetos de saber e alvos de controle da nova
técnica. A partir desses fenômenos introduz-se uma medicina que agora normalizará o
saber e medicalizará a população, colocando-se como um saber-poder que incide ao
mesmo tempo sobre o corpo e sobre a população, tendo, ao mesmo tempo, efeitos
disciplinares e reguladores. Nesse caso, chamamos de saber o conjunto de elementos
formados por uma prática discursiva de maneira regular, os quais são indispensáveis
para a constituição de uma ciência, mas que não se destinam necessariamente a dar-lhe
lugar (FOUCAULT, 2009).

Por fim, Foucault (2008a) destaca que não houve a simples substituição de uma
sociedade de soberania por uma sociedade de disciplina ou, posteriormente, por uma
sociedade de governo. Isso implica que nem a soberania, nem a disciplina são
eliminadas pela emergência da governamentalidade. Logo, os mecanismos de repressão
e o poder de morte ainda compõem uma tecnologia positiva de gestão da vida, tanto no
âmbito dos corpos, quanto das populações.
35

2.2 Poder sobre a vida no século XXI

O biopoder sofreu transformações ao longo do tempo. Segundo Rose (2013), no


último quarto do século XX, o agenciamento médico assumiu formas distintas da
medicina tradicionalmente clínica, cujo nascimento havia sido descrito por Foucault2,
embora tal descrição ainda constitua uma dimensão central das noções de saúde e
doença, nas quais o corpo permanece como o foco do olhar clínico. A mudança no saber
e na prática da medicina envolveu transformações cumulativas em múltiplos aspectos ao
longo de pelo menos meio século. Essas modificações organizam-se em torno de cinco
aspectos distintos: molecularização, otimização, subjetivação, expertise e bioeconomia
(ROSE, 2013).

O campo da medicina passa por um processo de reconfiguração por meio de


uma molecularização dos modos de pensamento, julgamento e intervenção biomédicos.
A visão molar do corpo, isto é, do corpo visível e tangível, é suplementada por uma
visão molecular. A molecularização tem como condição a emergência de saberes e
técnicas que permitem a compreensão da vida no nível molecular, ou seja, dos códigos
genéticos, dos processos de expressão e transcrição desses códigos, dos processos
bioquímicos que regulam a atividade vital. Nesse contexto, a compreensão molecular da
vida levará à emergência de práticas direcionadas também à vida nesse nível. Nesse
processo, as tecnologias de visualização desempenham papel crucial (ROSE, 2013).

A segunda transformação da política da vida no século XXI organiza-se em


torno do que Rose chamou de otimização. As tecnologias médicas e biotecnologias
contemporâneas direcionam-se para o controle, por meio de tecnologias de otimização,
dos processos vitais, deixando de se ocupar apenas da cura de doenças que se
manifestam. As tecnologias que visam o melhoramento, portanto, não são apenas
tecnologias de saúde, mas tecnologias de vida, dos processos da vida: elas buscam
mudar o que é ser um organismo biológico, tornando possível reconfigurar os processos
vitais de modo a maximizar seu funcionamento e melhorar seus resultados.
Anteriormente, bloquear a anormalidade ou reestabelecer a norma vital, ou seja, a
normatividade que sustenta os corpos, era tudo o que a medicina era capaz de fazer. Por
outro lado, atualmente, até as normatividades vitais deixam de ser condições
inalteráveis. Tomemos por exemplo a reprodução. Rose destaca que, uma vez que as

2
FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
36

normas para a reprodução feminina são modificadas, a natureza e os limites da


procriação e as subjetividades femininas são irrevogavelmente alterados. O próprio
espaço das esperanças e medos com relação aos limites da reprodução se altera. Desse
modo, em relação ao processo de envelhecimento, uma vez que suas normas podem ser
alteradas – para as mulheres, com as reposições hormonais; para os homens, com os
medicamentos para impotência, por exemplo –, o processo “normal” se coloca apenas
como uma possibilidade em um vasto campo de escolhas (ROSE, 2013).

O terceiro aspecto descrito por Rose contribui de maneira especial para a


compreensão do papel da medicina no processo de politização da maternidade que
circunscreve o problema dessa pesquisa. Segundo ele, desde o século XVIII a cidadania
tem sido modelada por meio de concepções de características vitais específicas,
processo que o autor denomina cidadania biológica. No século XIX, as ideias e práticas
de cidadania nas nações ocidentais envolviam modos específicos de comportamento
dos/as cidadãos/ãs em relação à sua saúde e reprodução. Para os biopolíticos do século
XX, o corpo do cidadão individual e do cidadão coletivo era um valor central e os
projetos de cidadania eram organizados em torno da noção de saúde e os cidadãos eram
educados para o cuidado com seus corpos – e as cidadãs, além do cuidado com seus
próprios corpos, eram incumbidas dos corpos de seu esposo, seus filhos e filhas. Nesse
sentido, ao longo do tempo a saúde havia se tornado um dos valores éticos nas
sociedades ocidentais, de modo que “a saúde, entendida como um imperativo para
maximizar a força e a potencialidades do corpo vivente, tornou-se um elemento decisivo
nos regimes éticos contemporâneos” (ROSE, 2013, p. 41). No século XXI, no interior
dessa biopolítica, o autogoverno do indivíduo autônomo pode estar conectado com os
imperativos de uma razão governamental dentro da qual novas formas de autoridade
surgem e passam a governar a vida a partir da etopolítica, ou seja, agindo sobre os
valores éticos e provendo auto técnicas pelas quais os seres humanos devem julgar a si
mesmos e intervir em si mesmos na busca pelo aprimoramento de si. Se as disciplinas
individualizam e normalizam, e a biopolítica coletiviza e socializa, a etopolítica
preocupa-se com as tecnologias de si por meio das quais seres humanos agem sobre si
mesmos e sobre aquelas pelos quais são responsáveis, buscando a otimização (ROSE,
2013).

Ademais, a etopolítica e suas novas formas de autoridade contam com seus


porta-vozes. Surgem especialistas em trabalho clínico cuja expertise vai além do
37

diagnóstico e tratamento de doenças. Tais profissionais assumem importância em um


contexto etopolítico, ou seja, um contexto no qual a medicina é central para a
governamentalidade, mas coloca-se como fonte de saber para o governo de si mesmo. A
partir do momento em que saúde e doença tornam-se acessíveis a um conhecimento
positivo e os processos do corpo orgânico vivo podem ser explicados e constituídos
como objeto de intervenção, profissionais da medicina passaram a ocupar um papel de
peritos dos modos de viver. Uma vez que a busca por saúde se tornou valor central nas
democracias liberais avançadas, as pessoas vieram a experimentar a si mesmas e suas
vidas em termos fundamentalmente biomédicos e tornaram-se dependentes das
prescrições da expertise médica e paramédica que, por sua vez, se inscreve na mesma
lógica daquela. Desse modo, os peritos da vida deixam de ser apenas médicos e
médicas, e seus conselhos, prescrições e intervenções acerca da vida se expandem.
Segundo Rose, em uma era na qual os indivíduos, especialmente as mulheres devem
assumir a responsabilidade por sua própria saúde, bem como pela saúde de suas
famílias, o princípio ético é igualmente traduzido em microtecnologias para a gestão dos
modos de comunicação, produção e transmissão de informações, ou seja, de
discursividades que são normativas e direcionais, borrando as fronteiras entre coerção e
consentimento (ROSE, 2013).
O último aspecto da transformação descrita por Rose se inscreve no âmbito da
bioeconomia. Uma vez que são necessários fundos para a produção de verdades na
biomedicina e a alocação destes fundos depende de um cálculo de retorno financeiro, o
investimento comercial dá forma e direciona a delimitação do espaço que comporta
aquilo que passa a ser compreendido como um problema – bem como aquilo que pode
se colocar como solução – no campo da biomedicina e da biologia que a sustenta.
Entretanto, não se trata da geração de “falsidades” e de esforços para torná-las
verossímeis ou atraentes, mas, sim, da configuração e reconfiguração de verdades.
Nesse contexto, o remodelamento dos modos de ser humano se inscreve em uma nova
economia política da vida: conforme destaca Rose, biopolítica torna-se bioeconomia.
Resumidamente, a bioeconomia refere-se aos diversos modos pelos quais os processos
vitais tornam-se potencial fonte de valor (ROSE, 2013).
Desse modo, Rose destaca que os circuitos traçados pelas economias
contemporâneas de vitalidade são conceituais, comerciais, éticos e espaciais. Tais
espaços incluem desde o atômico, o molecular, o celular e o orgânico, até os espaços de
práticas – como laboratórios, clínicas e consultórios –, as cidades e suas economias, as
38

nações e suas estratégias de regulação e, por fim, os espaços virtuais com sua
disponibilidade de informação. Os circuitos da economia vital, portanto, são
mobilizados por uma variedade de relações (ROSE, 2013).

2.3 A politização da maternidade: uma breve genealogia da condição feminina

Para que possamos compreender da melhor maneira possível a questão da


criminalização do abortamento e suas consequências é importante ter em vista a
implicação do poder disciplinar no biopoder. A criminalização do aborto só é possível e
só pode ser compreendida se considerarmos este aspecto que permite a normalização
dos modos de ser mulher e da maternidade a partir de práticas discursivas. Para
interrogar tal discursividade normativa, partimos de uma problematização da “mulher”
enquanto categoria natural e unitária e passamos a compreendê-la como uma categoria
complexa constituída por meio de discursos científicos e outras práticas sociais
(HARAWAY, 2009). Dessa forma, não tomamos as categorias identitárias de modo
essencialista, mas questionamos crítica e genealogicamente como, sob que condições e
para que fins são construídas (BRAIDOTTI, 2004). Por conseguinte, adotamos a noção
foucaultiana de genealogia enquanto modelo histórico alternativo, a fim de buscar uma
outra maneira de se relacionar com a história das mulheres. Esse tipo de abordagem
histórica, segundo Foucault (2005), busca dessujeitar os saberes históricos, a fim de que
se tornem capazes de opor-se à coerção de um discurso teórico unitário, travando uma
luta contra a hierarquização científica do conhecimento em nome de um conhecimento
verdadeiro e seus efeitos de poder. Para tanto, são considerados tanto os conteúdos de
conhecimento histórico – conteúdos, portanto, da erudição – quanto os saberes locais e
singulares que foram desqualificados pela hierarquia dos conhecimentos e da ciência.
Trata-se, portanto, de uma “insurreição dos saberes”; de uma insurreição que se faz
mais contra os efeitos centralizadores de poder vinculados à hierarquização dos saberes
e ao funcionamento de um discurso científico organizado em nossa sociedade, do que
contra conteúdos, métodos ou conceitos (FOUCAULT, 2005).
Desse modo, iniciamos essa breve genealogia analisando como Laqueur, em sua
obra “Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud” (2001), versa sobre a
construção da diferença sexual e nos mostra, com base em evidência histórica, que
quase tudo que se queira dizer sobre sexo – de qualquer forma que o sexo seja
39

compreendido – já contém em si uma reivindicação sobre a categoria gênero, uma vez


que o sexo é explicado apenas dentro do contexto da luta sobre gênero e poder. Segundo
ele, suas próprias formulações e o conhecimento feminista em geral são insoluvelmente
presos às tensões da formulação sobre os modelos de sexo: entre a linguagem e uma
realidade extralinguística, entre o sexo biológico e os marcos de diferença social e
política. Segundo Laqueur, Foucault, a partir de uma perspectiva filosófica, tornou
ainda mais complexa a natureza da sexualidade humana com relação ao corpo, uma vez
que, em suas reflexões, a sexualidade não se coloca como uma qualidade herdada, mas
como uma forma de moldar o self na experiência da carne, constituída em torno de
determinadas maneiras de comportamento que existem a partir de sistemas de
conhecimento historicamente especificáveis. Desse modo, Laqueur acrescenta,
apropriando-se das reflexões de Jeffrey Weeks, que o fato de nos tornarmos humanos na
cultura não nos dá licença para ignorar o corpo e que o corpo aparece mesmo nas
reflexões daqueles que voltaram sua atenção para a linguagem, o poder e a cultura,
como Foucault. É nesse sentido que o enfoque de Laqueur parte da centralidade do
corpo na ordem social. Isso não significa, contudo, conforme destaca Rohden (1998),
que tenhamos de pensá-lo como algum tipo de substrato irredutível: muito pelo
contrário, é preciso levar às últimas consequências a ideia de que ele também é objeto
de construção3.
Voltando-se para a uma reinterpretação radical do corpo feminino com relação
ao corpo masculino, Laqueur desenvolve a ideia de que houve uma passagem de um
modelo de sexo único para um modelo no qual instituem-se as diferenças sexuais entre
mulheres e homens no discurso hegemônico a partir do século XVIII. O antigo modelo,
que classificava homens e mulheres conforme seu grau de perfeição ao longo de um
eixo que tinha como causa final o masculino, deu lugar a um modelo de dimorfismo
radical. Nesse contexto, a ideia do sexo único era marcada pela linguagem: os ovários
sequer tinham um nome específico. No final do século XVIII, as diferenças entre
homens e mulheres passaram a ser baseadas em distinções biológicas observáveis e
expressas em uma retórica completamente diferente. O discurso que passa a ser
dominante no século XVIII era formulado pela visão de que havia “dois sexos estáveis,

3
No último capítulo do primeiro volume de “A história da sexualidade”, Foucault (2015) descreve que o
objetivo de sua investigação acerca do dispositivo da sexualidade é mostrar como este se articula
diretamente ao corpo. Nesse processo de investigação, entretanto, o corpo não se apaga. Foucault destaca
que não se trata de uma “história das mentalidades” que se limitaria a considerar os corpos pela maneira
como foram percebidos ou receberam sentido e valor, mas de uma “história dos corpos” e da maneira
como se colocam como objeto de tomada de poder, poder que produz efeitos e reconfigura esses corpos.
40

incomensuráveis e opostos, e que a vida política, econômica e cultural dos homens e das
mulheres, seus papéis de gênero, são de certa forma baseada nesses ‘fatos’”
(LAQUEUR, 2001, p. 18). Desse modo, os aspectos essenciais de uma diferença que se
expressa em espécie, não em grau, estão impressos no corpo, baseando-se na natureza.
Nos relatos de produção pós-iluminista, o mundo físico real coloca-se como anterior e
independente das reivindicações feitas em seu nome. Nesse contexto, o sexo ou o corpo
passou a ser compreendido como epifenômeno, enquanto o gênero, hoje considerado
uma categoria cultural, era primário, real: o sexo era uma categoria sociológica, não
ontológica. O modelo iluminista, portanto, reduz os significados a um substrato
biológico (LAQUEUR, 2001).
Para Laqueur, a mudança geral na interpretação dos corpos femininos e
masculinos deu-se a partir de uma “marcha para o progresso”. A ciência não sabia
explicar o conceito sexual, mas fornecia a base usada como teorização. Só houve,
todavia, interesse em buscar evidência dos dois sexos distintos, apesar de descobertas
científicas que datavam de antes, quando a diferença tornou-se politicamente
importante. A biologia, portanto, associada à ideia de corpos estáveis, não históricos e
sexuados, passa a ser o fundamento epistêmico das afirmações sobre a ordem social
(LAQUEUR, 2001).
Spink (2013), ao trazer a discussão feita por Badinter em Palavras de Homens
(1991), afirma que a definição das diferenças sexuais vai, aos poucos, desqualificando a
mulher para a vida pública. Mesmo no interior do discurso igualitário de pretensões
universalistas da revolução francesa havia ambiguidades e tensões entre direitos
universais e exclusão da mulher. Nesse debate, a oposição à igualdade civil da mulher
era predominante. Entretanto, aqueles que defendiam ou opunham-se à igualdade
feminina em relação ao homem universal aceitavam, da mesma maneira, a centralidade
do discurso da natureza na determinação de características que seriam intrínsecas à
mulher. A centralidade desse discurso tem implicações e efeitos na vida política das
mulheres. A partir dessas condições, o que se segue é a formulação da igualdade entre
homens e mulheres em termos de equivalência. Desse modo, as diferenças biológicas
passam a determinar funções e lugares distintos entre os sexos. Nesta partilha, às
mulheres o campo privado, aos homens o campo público (SPINK, 2013).
As diferenças fundamentais entre os corpos sexuados instituem a mulher
enquanto categoria qualitativamente diferente do homem. Desse modo, emerge a
possibilidade de, enquanto categoria distinta, a mulher tornar-se ponto específico de
41

ancoragem de estratégias de poder, no que Foucault (2015) chama de dispositivo da


sexualidade.
A sexualidade, no biopoder, é “ponto de passagem particularmente denso das
relações de poder” (FOUCAULT, 2015, p. 112), sendo um dos elementos dotados da
maior instrumentalidade, pois serve de ponto de apoio e articulação das mais variadas
estratégias de poder-saber. Segundo o filósofo, a sexualidade pôde ser constituída como
domínio a se conhecer no interior de relações de poder que a tornaram objeto possível.
O poder, por sua vez, só pôde tomá-la como alvo quando se torna possível investir sobre
ela através de técnicas de saber4 e práticas discursivas. No dispositivo da sexualidade,
conforme sugere Foucault, não se estabelece uma relação de tolerância/condenação do
exercício da sexualidade, mas de gestão e administração como efeitos de poder da
produção discursiva sobre o sexo, como problema econômico e político da população
(FOUCAULT, 2015).

Nesse sentido, Foucault descreve uma proliferação dos discursos sobre o sexo no
campo institucional de exercício de poder por meio de uma incitação a falar do sexo,
que tem seu fundamento na pastoral cristã e no sacramento da confissão. Constituem-se,
portanto, em torno do sexo, uma multiplicidade de discursos que se inscrevem no
interior de diferentes instituições e que passam a produzir efeitos de poder por meio do
e no próprio dispositivo da sexualidade. Desse modo, no interior desse processo,
criaram-se incitações a falar, dispositivos para ouvir e registrar, além de procedimentos
para observar, interrogar e formular. Nesse sentido, Foucault destaca:

Do singular imperativo que impõe a cada um fazer de sua sexualidade


um discurso permanente, aos múltiplos mecanismos que, na ordem da
economia, da pedagogia, da medicina e da justiça incitam, extraem,
organizam e institucionalizam o discurso do sexo, foi imensa a
prolixidade que nossa civilização exigiu e organizou (2015, p. 37).

Na análise realizada no primeiro volume de “A História da Sexualidade” (2015),


Foucault distingue quatro conjuntos estratégicos no desenvolvimento de dispositivos
específicos de saber-poder a respeito do sexo, por meio dos quais o dispositivo da
sexualidade que serve como ponto de apoio às mais variadas estratégias no contexto de

4
Entre as estratégias de poder e as técnicas de saber, segundo Foucault (2015), não há uma relação de
exterioridade. Cada uma, no entanto, tem seu papel específico, mesmo que ambas se articulem entre si.
42

uma tecnologia global de poder5. Essa tecnologia, por sua vez, só pode proporcionar
efeitos globais ao apoiar-se em relações precisas que lhe servem como ponto de suporte.
Esses conjuntos estratégicos, também chamados domínios, são, portanto, focos locais
que fornecem sustentação às estratégias de poder no dispositivo da sexualidade. O corpo
feminino coloca-se assim como foco local de saber-poder inserido em uma tecnologia
ampla de gestão da vida, cujo objetivo é o controle de populações. A partir do
dispositivo da sexualidade, o corpo feminino foi objeto de um processo tríplice que o
analisou como um corpo saturado de sexualidade, integrou-o ao campo das práticas
médicas e, por fim, colocou-o em comunicação orgânica com o corpo social por meio
da regulação da fecundidade, com o espaço familiar e com a vida das crianças por meio
de uma responsabilização biológico-moral. O conjunto estratégico acima é descrito
como o processo de histerização do corpo da mulher6 (FOUCAULT, 2015).

Se vinculamos tais apontamentos às reflexões de Foucault na obra “Os


anormais” (2001), torna-se evidente a relação entre a emergência do modelo moderno
nuclear de família e a centralidade da sexualidade nas tecnologias de controle: tanto
individuais, quanto populacionais. Podemos acrescentar que tais fatores também levam
ao confinamento das mulheres na função de cuidadoras, uma vez que a família “celular”
se forma em torno da temática da necessidade de um cuidado minucioso – o qual
implica certo nível de vigilância – a ser dedicado à prole em função do perigo que
representava a masturbação à saúde desta7. Emerge uma família, segundo Foucault
(2015), reorganizada, com laços estreitos, no interior da qual os pais tornam-se
principais agentes em um dispositivo da sexualidade que se apoia, no exterior, na
medicina e na pedagogia. A partir deste contexto, esse novo tipo de organização
familiar, que toma forma no seio da sociedade burguesa, deve atuar como agente de
saúde submetida ao saber médico. Os pais tornam-se então encarregados diretos das
crianças com o objetivo de assegurar que as mesmas tenham um futuro, que elas
tenham, em outras palavras, a vida assegurada. Esse novo modelo familiar, portanto,

5
Apesar de se situarem no interior de uma tecnologia global de poder, ao discutir os domínios
estratégicos do dispositivo da sexualidade, Foucault (2015) destaca que não existe uma estratégia única,
válida para toda a sociedade e todas as manifestações do sexo.
6
Entretanto, Foucault destaca que não se trata de procurar quem tem o poder e quem é privado dele na
ordem da sexualidade, mas “buscar o esquema das modificações que as correlações de forças implicam”,
pois “as relações de poder não são formas dadas de repartição, são ‘matrizes de transformação’” que
levam a modificações e deslocamentos contínuos (FOUCAULT, 2015, p. 108).
7
Segundo Foucault (2001), a sexualidade da criança e do adolescente é colocada como um problema no
decorrer do século XVIII. Entre o discurso cristão e a psicopatologia sexual, surge certo discurso da
masturbação, no qual a prática figura constantemente no quadro etiológico das diferentes doenças.
43

está aberto a uma intervenção higiênica no centro da qual a mulher assume um papel
historicamente importante (FOUCAULT, 2001).
Nesse contexto em que nascimento e longevidade se transformam em fenômenos
centrais para a biopolítica, a partir da ideia de uma certa natureza materna feminina e no
interior de relações desiguais de gênero pautadas nas diferenças biológicas entre
homens e mulheres, o cuidado se torna função a ser exercida por mulheres. Ou seja, pela
capacidade de gestar e parir, o corpo feminino é investido da função política de produzir
indivíduos saudáveis. Nota-se aí uma politização da maternidade que, segundo Meyer
(2005), constrói-se gradualmente no âmbito de uma discursividade produzida no interior
de quatro movimentos em diferentes âmbitos e planos da vida social que se conectam ao
longo do século XX: a ênfase na constituição de um sujeito na lógica da racionalidade
neoliberal; o aprofundamento das desigualdades, que decorre da conjunção da
racionalidade neoliberal com o processo de globalização; o desenvolvimento de
conhecimentos e tecnologias acerca do desenvolvimento dos fetos, inscrevendo fetos e
mulheres em uma linguagem do controle, da autorregulação e do risco; e, por fim, uma
conflituosa articulação de políticas de estado e das demandas dos movimentos sociais
(feminismos e direitos humanos, por exemplo) nos quais a noção de universal é
multiplicada e fraturada, incidindo sobre os modos como esses sujeitos de direito se
relacionam (MEYER, 2005).
As redes de saber-poder atravessam e constituem determinados regimes de
verdade que conformam e sustentam políticas públicas e os modos de assistir mulheres-
mães na atualidade, contribuindo reinscrever o corpo materno em regimes de vigilância
e regulação, forjando discursos sobre a maternidade. Desse modo, a partir do discurso
científico, os/as médicos/as, juntamente com o Estado, iniciaram o processo de
politização da maternidade por meio de políticas higienistas. A maternidade passou a
ser apresentada como “destino natural da mulher”. O discurso da medicina social, além
do aperfeiçoamento do corpo feminino, antes mesmo da concepção, buscará convencer
as mulheres “acerca de sua responsabilidade social com o processo de gravidez e com a
maternagem” (SCHWENGBER & MEYER, 2011). O corpo da mulher-mãe passa a ser
central como condicionante da saúde do/a filho/a e, durante o período de gestação, do
feto, a partir do discurso técnico científico da puericultura intrauterina. Com o processo
de politização da gravidez, esta passa de um tema da esfera privada para o amplo grupo
social e, portanto, multiplicam-se os discursos sobre a gestação que reforçam a
centralidade da mulher no processo, a partir da expansão das políticas de saúde e dos
44

discursos voltados ao cuidado da saúde materno-infantil (SCHWENGBER & MEYER,


2011).

No interior desse processo de emergência de uma noção específica de mulher e


de normalização da sua conduta em torno da ideia da maternidade, a norma pode abrir
caminho para a lei e se colocar como um dispositivo de criminalização daquilo que
representa um perigo para o equilíbrio da população, inscrevendo aqueles/as que
divergem dela no interior de um complexo mecanismo de controle. As práticas
jurídicas, conforme discutiremos a seguir, estabelecerão uma relação importante com
tais mecanismos de normalização.

2.4 Implicação entre normalização e as práticas jurídicas

Para a reflexão que nos propomos a realizar neste trabalho de pesquisa, ou seja,
tendo em vista a discussão da criminalização do aborto no interior de um contexto de
normalização dos modos de ser mulher por meio das mais diversas práticas discursivas
fundamentadas em diferentes domínios de saber-poder, faz-se necessário pontuar
algumas questões sobre a relação entre direito e normalização.

Segundo Fonseca (2002), a relação entre direito e norma define-se, na obra de


Foucault, em dois planos. No primeiro, que seria o plano teórico, há, ao longo da
produção e pensamento de Foucault, inicialmente uma oposição entre normalização e
direito. Essa oposição, entretanto, não implica uma contradição, mas uma certa
incompatibilidade que ocorre no âmbito de uma concepção de direito enquanto
legalidade e que possibilita um abandono dos modelos explicativos tradicionais sobre o
poder para explicar as relações entre saber, poder e as normatividades (FONSECA,
2002).

Desse modo, no segundo plano, ou seja, no plano das práticas, segundo Fonseca
(2002), outras relações entre direito e norma podem ser identificadas no pensamento de
Foucault. O autor define práticas em termos de mecanismos e estratégias dos
dispositivos que colocam em relação os saberes, as normatividades e a produção de
certas formas de subjetividade. Neste plano, se abre a perspectiva de uma relação de
implicação entre normalização e direito, uma vez que o direito não se coloca em relação
de externalidade aos efeitos de normalização das técnicas de saber e estratégias de
45

poder, mas compõe ambos enquanto seu instrumento. Por fim, uma relação distinta
entre direito e norma toma forma na produção de Foucault por meio da possibilidade de
uma prática não-normalizada do direito. Um direito, segundo Fonseca (2002), que
aparece como uma forma de resistência aos mecanismos de normalização: um direito
novo.

Para a análise que realizaremos neste capítulo, nos interessa entender como estão
implicados lei e norma, direito e normatividade. Segundo Fonseca (2002), apesar da
necessidade conceitual de diferenciar e opor direito e norma – a fim de, na verdade,
opor modelos diferentes de poder8 –, na prática os mecanismos da normalização não se
dão sem o suporte das regras legais. Desse modo, o direito se apresenta como produtor
de práticas de normalização e, ao mesmo tempo, produzido por elas em uma relação de
implicações recíprocas e complementariedades: um direito “normalizado-normalizador”
(FONSECA, 2002, p. 153). Ou seja, normalizado porque as práticas de normalização o
investem e penetram, normalizador porque agente dessas mesmas práticas. Nesse
sentido, essa implicação entre direito e norma não está dissociada da produção da
verdade acerca dos indivíduos que se dá no interior das instituições disciplinares 9, a
qual passa a circular na sociedade, de modo que se implicam mutuamente as regras e
procedimentos gerais representados pela estrutura jurídica e as regras e procedimentos
particulares – que incidem sobre os indivíduos e os corpos – das disciplinas
(FONSECA, 2002).

Em suas reflexões acerca da implicação do direito na norma e da norma no


direito, Fonseca (2002) traça reflexões específicas acerca da relação entre direito e
norma disciplinar, ou seja, no “domínio do corpo”, e direito e normatividade no âmbito
do biopoder, ou seja, no “domínio da vida”. Neste último, os mecanismos normativos se
inserem na perspectiva geral da biopolítica, adquirindo um aspecto distinto. No governo
da vida, a normalização deixa de se configurar como disciplinarização dos corpos e
passa a ser resultado de mecanismos de regulação e segurança que incidem sobre os

8
Um, baseado em mecanismos de interdição, outro, produtor de efeitos. Este, portanto, é positivo, ainda
que a proibição seja um de seus instrumentos. Oposição que pode ser observada no dispositivo da
sexualidade. Foucault (2015), ao discutir a hipótese repressiva, pontua que a mecânica de poder que é
posta em jogo em um regime de simples interdição da sexualidade é de ordem repressiva. O dispositivo
da sexualidade, por sua vez, implica em “técnicas polimorfas” (2015, p. 17), que podem interditar e
proibir no interior de uma economia geral da discursividade sobre o sexo, mas também incitar e
intensificar de modo a se produzir efeitos disciplinares por meio de estratégias discursivas.
9
Um exemplo disse seria a produção do anormal no interior da instituição penal por meio de saberes
como o da psiquiatria, descrita por Foucault em “Os anormais” (2001).
46

processos inerentes à população. Mecanismos que devem garantir que processos


inerentes à vida – como natalidade, morbidade e mortalidade – se mantenham dentro
dos níveis de normalidade previamente fixados em função de grupos e condições no
interior da população, isto é, em um regime de constância, a partir do cálculo. Desse
modo, se apresenta uma outra dimensão do direito normalizado-normalizador no
domínio da efetivação das artes de governar, materializada nas diversas formas de
legislar no interior do campo jurídico-político que funcionam como vetor de um
mecanismo complexo de normalização (FONSECA, 2002).

No domínio da vida e no domínio do corpo são agenciadas tecnologias de poder


distintas, mas que se integram e complementam, de modo que a norma se deduza dos
mecanismos de poder disciplinares e de segurança. Fonseca (2002) destaca que o
dispositivo da sexualidade se apresenta como um domínio no qual no qual as duas
tecnologias distintas se implicam de modo concreto. Retomando Foucault, suas
considerações em “A Vontade de Saber” (2015) sobre a questão da lei podem ser
interessantes para compreendermos a relação entre direito e norma, uma vez que o
dispositivo da sexualidade se encontra inscrito, ao mesmo tempo, nos mecanismos
biopolíticos e disciplinares do poder. Suas reflexões indicam que a lei desempenha
funções nas tecnologias positivas de poder, apesar destas não poderem ser reduzidas aos
mecanismos de interdição e repressão, de modo que a multiplicidade de correlações de
forças em dada sociedade pode ser codificada, em parte, na forma da lei. Nesse sentido,
as práticas judiciárias podem funcionar como norma e exercer função reguladora
(FOUCAULT, 2015). Nesse contexto, Fonseca (2002) destaca que a imagem do direito
normalizado-normalizador se refere aos aspectos concretos da vida dos indivíduos e da
população.

Diante da discussão acima, nos parece interessante situar o problema específico


da criminalização do abortamento tornando mais difusas as fronteiras bem delimitadas
por Fonseca em sua análise, uma vez que os mecanismos de normalização da
experiência feminina se inscrevem tanto no eixo “corpo – organismo – disciplina”,
como no eixo “população – processos biológicos – mecanismos reguladores – Estado”.
Eixos que, segundo Fonseca (2002), diferenciam os dois modos distintos de
normalização nas reflexões de Foucault. A mulher como indivíduo e sua conduta são
objeto de tomada de poder, bem como a população feminina e sua fecundidade a ser
regulada.
47

Logo, apesar das especificidades traçadas por Fonseca (2002) na relação entre
norma e direito nos mecanismos disciplinares e biopolíticos de poder, o conjunto de
suas reflexões acerca do direito normalizado-normalizador deve ser considerado para
pensar a questão do abortamento, se considerarmos a localização do corpo feminino na
relação entre a disciplinarização e o governo da vida enquanto técnicas de poder.
Conforme Foucault (2015), o poder disciplinar produz efeitos muito específicos na
produção da subjetividade feminina em torno da maternidade e do cuidado no interior
da instituição familiar, normalizando a experiência feminina de modo que esta acabe se
limitando a condutas, funções, enfim, modos de existência muito específicos.
Normatividade que, por sua vez, só pode ser compreendida no interior de uma técnica
de poder geral, cujo objetivo é o governo das populações. Nesse sentido, com esse
processo de emergência de uma noção específica de mulher a partir da produção
discursiva sobre o sexo e da normalização da sua conduta em torno da ideia da
maternidade, vemos delinearem-se as condições que possibilitam a constituição da
interrupção da gestação enquanto crime no interior de um complexo mecanismo de
poder, do mesmo modo, que a lei, em certa medida, normaliza a conduta feminina10.
Nesse sentido, os saberes e as práticas jurídicas estabelecem uma dupla relação com
mecanismos de sujeição: fazendo-os funcionar e funcionando por meio deles.

10
Desse modo, a lei incide sobre as mulheres com efeitos normalizadores. A legislação proibitiva pode
interferir na questão da conduta feminina em relação à maternidade. Entretanto, não podemos afirmar
categoricamente que é determinada por ela. De acordo as pesquisas realizadas acerca do aborto já citadas,
no plano geral, as mulheres continuam a praticá-lo mesmo na clandestinidade.
48

3 O ABORTO VOLUNTÁRIO NO CONTEXTO BRASILEIRO

Neste terceiro capítulo discutimos o aborto no contexto brasileiro, buscando


articular a legislação e as políticas públicas de saúde com o debate acerca do tema na
sociedade. Em um primeiro momento, apresentamos a legislação brasileira em relação
ao aborto voluntário, discutindo seus efeitos. Em seguida, fazemos um panorama do
debate político, considerando os atores envolvidos e seus posicionamentos. Na terceira
parte, buscamos estabelecer relações entre o debate político, a atividade legislativa e as
políticas de saúde em relação ao aborto voluntário. Por fim, trazemos o debate acerca da
constitucionalidade da criminalização do aborto a partir da decisão da primeira turma do
Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Habeas Corpus 124.306.

3.1 A legislação atual e seus efeitos

As normas legais para a interrupção da gestação no Brasil foram elaboradas na


década de 1940 e são vigentes desde então, salvo discretas alterações. No Código Penal
(BRASIL, 1940) estão previstos como “crimes contra a vida” o aborto provocado pela
gestante ou com seu consentimento, no artigo 124, com pena de reclusão de um a três
anos; e o aborto provocado por terceiros sem ou com o consentimento da gestante, nos
artigos 125 e 126, com pena de reclusão de três a 10 anos e um a quatro anos,
respectivamente. Ainda, o aumento de um terço das penas está previsto no artigo 127,
nas situações em que do aborto provocado por terceiros resultar lesão corporal de
natureza grave ou morte da gestante. De acordo com o artigo 128, não é punível aborto
provocado por profissionais médicos nos casos em que a interrupção da gestação seja o
único meio de salvar a vida da mulher – “aborto necessário” – ou em casos em que a
gestação seja resultante de estupro. A interrupção de gestações de fetos incompatíveis
com a vida não está prevista no Código Penal e nesses casos, fazia-se necessário obter
liminar judicial para prosseguir com o procedimento. O Supremo Tribunal Federal
(STF) decidiu em 2012, após ação encaminhada ao STF em 2004 pela Confederação
Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) que a “antecipação terapêutica do
parto”11 poderia ser realizada legalmente, sem a necessidade de autorização judicial
(SAVARESE, 2012).

11
Nomenclatura proposta por Diniz e Ribeiro (2004) em casos de anomalia fetal.
49

Entretanto, entre a legislação proibitiva e a realidade existe um considerável


abismo. Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), pelo menos uma entre cinco
mulheres já provocaram abortamento ao longo da vida reprodutiva (DINIZ &
MEDEIROS, 2010). A publicação do Ministério da Saúde “Aborto e Saúde Pública no
Brasil: 20 anos” (2009, p.21) apresenta, apesar da dificuldade na obtenção de dados
fidedignos, uma sistematização da produção científica dos últimos 20 anos no Brasil
acerca da questão e faz a seguinte estimativa: 1.054.242 abortos foram provocados no
ano de 2005, com base nos registros do Sistema de Informações Hospitalares do
Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao
Abortamento (BRASIL, 2011), a curetagem pós-abortamento representa o terceiro
procedimento obstétrico mais realizado nas unidades de internação da rede pública. A
partir de uma revisão publicada pelo Ministério da Saúde é possível conhecer quem são
as mulheres que viveram/vivem a experiência do abortamento provocado: elas são
“predominantemente, mulheres entre 20 e 29 anos, em união estável, com até 8 anos de
estudo, trabalhadoras, católicas, com pelo menos um filho e usuárias de métodos
contraceptivos, as quais abortam com misoprostol” (2009, p. 16).

O abortamento provocado clandestinamente é uma das principais causas de


mortalidade materna no Brasil. Nesse contexto, a incidência de óbitos por complicações
decorrentes do abortamento oscila em torno de 12,5% dos óbitos totais, ocupando, em
geral, o terceiro lugar entre as principais causas, apesar das variações entre os diferentes
estados brasileiros (BRASIL, 2001). De acordo com Diniz & Medeiros, as mulheres que
procuram o hospital após a indução do processo de abortamento acabam sendo
submetidas a maus-tratos, sendo que a maioria desses casos se concentra entre as
adolescentes. Segundo a pesquisa, os maus-tratos relatados incluem “julgamento moral,
ameaças de denúncia, maneiras brutas no contato físico, internação em quartos coletivos
com mulheres com recém-nascidos ou longa espera até o atendimento” (2012, p. 1678).

Além das consequências negativas para a saúde da mulher, a legislação


proibitiva não as coíbe de realizar a prática e perpetua as desigualdades sociais
(BRASIL, 2009). Um estudo de Fusco et al. (2012), realizado na cidade de São Paulo,
nos chama atenção para a discrepância de renda encontrada entre mulheres que realizam
aborto induzido e inseguro e a renda de mulheres que realizaram o que os/as autores/as
chamaram de aborto seguro, mesmo que clandestino, ou não o realizaram. Além disso, a
proporção de mulheres negras entre aquelas que provocaram o aborto em condições não
50

seguras é maior. As mortes, bem como os efeitos nefastos à saúde das mulheres que
decidem interromper a gravidez, estão intimamente associadas à legislação brasileira
que as criminaliza.

3.2 O debate político na sociedade

A interrupção da gestação em casos não previstos por lei é crime raramente


punido, tanto para as mulheres que a realizam como para aqueles/as que executam o
procedimento. A força simbólica desta interdição não pode, no entanto, ser
desconsiderada (SACAVONE, 2008). Se a legislação proibitiva não leva em
consideração o fato de que as mulheres escolhem interromper suas gestações, mesmo
que o procedimento não seja oferecido segura e gratuitamente, isso não quer dizer que
ela não dialoga com a sociedade. A legislação é permeada e moldurada pelo debate
político, que, por sua vez, é influenciado pelos repertórios sobre a questão que circulam
na sociedade e são ressignificados constantemente nas relações interpessoais. O debate
político que se desenvolve em torno da descriminalização do abortamento é conflituoso
e controverso, uma discussão que atravessa o campo moral e outras esferas do saber.
Podemos destacar que, grosso modo, ele se organiza em dois polos que representam
posicionamentos opostos: um conservador, cujo principal representante foi,
tradicionalmente, a Igreja Católica e sua compreensão do produto da união dos gametas
– ou seja, o resultado da concepção – enquanto sujeito moral; e um liberal, que
compreende o zigoto e o embrião como um simples aglomerado de células (RIBEIRO,
2008).

No cerne desse debate, Ribeiro (2008) destaca três principais atores: a Igreja
Católica, o movimento feminista e os/as profissionais de saúde. O primeiro ator, com
posicionamento tradicionalmente bem definido, coloca-se contra a prática, mesmo nos
casos autorizados por lei. De acordo com Hurst (2000), durante os dois últimos séculos
a Igreja se convenceu de que todo aborto é pecado e não o autoriza em quase nenhuma
circunstância. A proibição da prática é matéria de lei eclesiástica e faz parte do conjunto
de leis morais que os/as fiéis devem seguir em seu cotidiano, ainda que não seja um
dogma da instituição. De acordo com o Código de Direito Canônico de 1917, reforçado
pelo novo Código, de 1983, da interrupção da gravidez decorria, tanto para a mulher,
quanto para quem realiza o procedimento, a máxima punição: a excomunhão
51

(FAÚNDES & BARZELATTO, 2004). No entanto, no mês de novembro de 2016, o


Papa Francisco autorizou a atribuição do perdão à prática por parte dos padres da Igreja.
Ou seja, a decisão determina que a mulher que interromper a gestação, bem como
aquele/a que a realizar, quando a interrupção for provocada por terceiros, não serão
mais excomungados pela Igreja (SCAMPARINI, 2016). Entre os/as fiéis, o
posicionamento não é hegemônico. A favor da descriminalização, podemos destacar a
atuação da ONG Católicas pelo Direito de Decidir (CDD), fundada no Dia Internacional
da Mulher de 1993, que busca “contribuir com a construção do discurso ético-teológico
feminista pelo direito de decidir que defenda a autonomia das mulheres, a diversidade
sexual, a justiça social e o direito a uma vida sem violência” (CDD, sem data).

Apesar de ser o principal ator na luta pela descriminalização, o movimento


feminista, em suas múltiplas versões, pode ou não partir da ideia de que o embrião não
passa de um aglomerado de células, argumento destacado por Ribeiro (2008) como
principal embasamento do posicionamento liberal. O que se observa, em geral, na
militância feminista, é um deslocamento do debate para a questão dos direitos de
decisão sobre o próprio corpo ou mesmo para a questão da desvalorização da vida das
mulheres que sofrem os efeitos da criminalização do abortamento. Segundo Scavone
(2008), em documento publicado pela Frente Feminista de mulheres de São Paulo, no
início dos anos 1980, já estavam explícitos os dois principais argumentos utilizados até
hoje na luta pela descriminalização. Um deles fundamenta-se nas ideias de autonomia e
liberdade da tradição liberal e parte do princípio democrático do direito aplicado ao
corpo, expresso na máxima feminista “nosso corpo nos pertence”. O outro principal
argumento ressalta os riscos que decorrem da criminalização da prática à saúde das
mulheres, principalmente nas camadas populares. Houve uma incorporação da noção de
direitos reprodutivos à linguagem do feminismo brasileiro a partir da sessão do Tribunal
Internacional de Saúde e Direitos Reprodutivos, no I Encontro Internacional de Saúde
da Mulher, em Amsterdã, em 1984 (SCAVONE, 2008). No interior do debate
introduzido pelo feminismo dos anos 1980, as feministas da década seguinte passaram a
considerar a alta incidência de abortamentos e sua associação com elevadas taxas de
mortalidade materna no país como um problema de saúde pública e a qualificar o aborto
clandestino como aborto inseguro. O movimento feminista tem centrado sua atuação na
busca pela execução da legislação que garante o direito ao aborto em casos previstos no
Código Penal e na busca pela garantia do acesso ao serviço. Devemos nos lembrar,
52

todavia, que existem múltiplas versões do feminismo. Como expressão dessa


multiplicidade, há divergências estratégicas na militância pela descriminalização do
aborto. Segundo Scavone (2008), no interior da produção acadêmica feminista, algumas
autoras não deixam de fazer uma crítica à frequente procura por saídas conciliatórias no
debate político sobre o tema. Desse modo, a questão que assombra a organização
política em torno da descriminalização do aborto é que lutas parciais possam
impossibilitar ou retardar uma luta mais radical que proponha frontalmente uma ampla
legalização do aborto.

Atualmente, podemos nos aproximar de algumas perspectivas e estratégias


discursivas que se inscrevem no movimento feminista nos slogans presentes nas
marchas contra o Projeto de Lei 5.069/13 de autoria de Eduardo Cunha, que
aconteceram em várias cidades do Brasil, incluindo Rio de Janeiro, São Paulo e
Brasília. Nas imagens publicadas pela Folha de São Paulo (2015) estão em destaque
“ser mãe é uma escolha”, “luto pela vida” e “aborto legal para não morrer”. A
compreensão da maternidade enquanto escolha feminina mostra que a principal
estratégia discursiva do movimento feminista é, como Scavone (2008) descreve, a
exigência de garantia dos direitos individuais e autonomia das mulheres. Entretanto, a
produção de dados/informações sobre a situação da saúde reprodutiva no Brasil e a
constituição do aborto como questão de saúde pública possibilitam a delimitação de um
outro campo de ação/estratégia discursiva na militância pela descriminalização da
prática. A medicina e a ciência, neste caso, proporcionam o “peso” necessário para um
argumento válido, que consiga dialogar com setores conservadores. Ou seja, diante da
associação entre abortamentos inseguros e mortalidade materna, emerge a exigência
pelo reconhecimento do valor das vidas das mulheres que são perdidas no contexto da
criminalização, a exigência do luto. A palavra, entretanto, guarda um duplo sentido:
“luto” enquanto verbo conjugado na primeira pessoa do presente do indicativo, sugere
que é apenas por meio da organização política que será alcançado estatuto de vidas que
têm seu valor reconhecido será alcançado.

Situados entre questões profissionais, diretrizes de conselhos de classe e valores


éticos e morais difundidos na sociedade, estão os/as profissionais de saúde, cujo
posicionamento tem o peso do saber técnico. Os/as profissionais de formação médica
desempenham papel fundamental, pois, de acordo com o Código Penal, são
responsáveis pela interrupção da gestação nos casos previstos em lei. De acordo com
53

Faúndes & Barzelatto (2004), salvar vidas ainda é compreendido como o principal
objetivo da atuação dos/as profissionais da saúde. A escolha pela medicina é geralmente
motivada pelo desejo de “ajudar as pessoas, de curar doenças e salvar vidas” (2004, p.
115). A especialidade obstétrica, sobretudo, é associada com o milagre da vida e se
espera com a atuação profissional contribuir para o surgimento de uma nova vida.
Apesar de decorrer de uma visão puramente biomédica de saúde, esse tipo de
compreensão do que é ou deve ser a ação do/a profissional da saúde não deixa de ter
efeitos na questão da criminalização do abortamento. Além disso, no interior da prática
médica, com a evolução das tecnologias, a gravidez deixa de ser uma abstração marcada
por sintomas clínicos12: testes hormonais permitem a detecção precoce da gestação, o
surgimento do sonar permite a ausculta do coração fetal a partir das 12 semanas e a
imagem obtida a partir do ultrassom cumpre diversas funções na promoção da saúde do
feto – além de diversas outras funções não previstas. Nesse sentido, a questão da
puericultura intrauterina é introduzida e o feto passa a ser objeto de cuidado desde o
início da gestação. Por conseguinte, de abstração que se manifesta por meio de sintomas
clínicos a um processo de formação de um ser “em foco”, a gestação é performada por
meio de uma concepção específica de medicina. Esses fatores tornam especialmente
difícil a questão do abortamento para profissionais obstetras. Além disso, em países
onde o aborto não é descriminalizado, o contato desses/as profissionais com mulheres
que não desejam ser mães é menos usual, de modo que essa parcela da população
feminina e suas demandas acabam sendo invisibilizadas e o contato que se estabelece
com esse tipo de profissionais se dá em ocasiões de complicação decorrentes do
abortamento provocado clandestinamente (FAÚNDES & BARZELATTO, 2004). Por
essas e outras questões, acaba-se criando um antagonismo entre a mulher que busca
interromper uma gestação e o feto, diante do qual os/as obstetras sentem-se impelidos a
assumir um lado.

De acordo com uma revisão da literatura nacional do período de 2001 a 2011


sobre opiniões, conhecimentos e atitudes de profissionais da saúde (CACIQUE, et al.
2013), as publicações sugerem que, principalmente entre médicos/as, há ampla
aprovação do abortamento nas situações contempladas pela legislação atual e grandes

12
Essas transformações acompanham as mudanças na medicina como um todo, naquele processo que
Nikolas Rose (2013) denominou “molecularização” da medicina. Como vimos, a medicina torna-se assim
tecnomedicina e as técnicas de cuidado são exercidas em função de sofisticados equipamentos. A
biomedicina passa a visualizar a vida no nível molecular e reconfigurar os estilos de pensamento, de
avaliação e de intervenção da medicina.
54

taxas de opiniões favoráveis à descriminalização em casos de malformações fetais


graves. Já os casos de riscos para a saúde física da mulher sem risco de morte
apresentaram aceitabilidade mais baixa. Nas demais circunstâncias, os índices de
aceitabilidade da interrupção da gravidez eram inferiores a 50%. A revisão também
sugere que os/as profissionais possuem conhecimentos inadequados quanto à
necessidade de se denunciar a paciente que abortou ilegalmente ou de registrar a
suspeita de aborto provocado no prontuário médico. Verificou-se também o
desconhecimento de dados epidemiológicos sobre o tema, inclusive sobre a relação do
abortamento inseguro com a mortalidade materna. Acerca das questões morais, na
maioria dos estudos aparecem posicionamentos contrários – ou seja, tanto
conservadores quanto liberais – entre os/as profissionais. Embora a maioria dos estudos
tivesse apresentado opiniões favoráveis à atual configuração legal e até mesmo à
inclusão dos casos de malformações fetais graves, o estudo da moralidade revelou, em
grande parte das pesquisas, posições radicalmente contrárias ao aborto.
Posicionamentos que, em alguns casos, resultavam numa assistência discriminatória à
mulher. Nesses casos, o aborto foi frequentemente descrito como crime e pecado.
Embasando opiniões contrárias, também apareceu o receio de que a descriminalização
levasse a uma epidemia de abortamentos e a crença de que o trabalho do/a obstetra é
salvar vidas. Nesse âmbito, a questão da vida do nascituro justificava grande parte dos
posicionamentos contrários à prática (CACIQUE et al, 2010). Devemos acrescentar,
entretanto, que é compreensível que a própria vida seja uma justificativa, já que grande
parte dos/as profissionais desconhecem os dados de mortalidade materna associados ao
aborto. Mesmo que em menor proporção, também foram identificados posicionamentos
morais favoráveis. Nesses casos, o acesso ao abortamento seguro foi defendido,
sobretudo, como um direito da mulher.

O Conselho Federal de Medicina (CFM, 2010) posiciona-se a favor da


descriminalização da interrupção da gestação até a décima segunda semana de gestação.
O órgão declara que, apesar de ser a favor da vida, tem a intenção de respeitar a
autonomia da mulher que decidir realizar o aborto durante o período em que não houve
formação do sistema nervoso central (CFM, 2013). Entretanto, apesar do abortamento
ser prática médica, os/as profissionais podem negar-se a fazê-lo por meio do recurso
legal de objeção de consciência em caso de conflito moral. De acordo com o item VII
do capítulo I do Código de Ética Médica, o/a profissional não é obrigado/a a “prestar
55

serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje,


excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou
emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente” (CFM,
2010). Nos casos de abortamento provocado que chegam ao sistema de saúde por causa
de complicações, o mesmo conselho de classe instrui os/as profissionais a agir em
concordância com o artigo 73 do Código de Ética Médica, que prevê sigilo profissional
(CFM, 2010). Entretanto, questões éticas e morais que refletem a controvérsia do debate
acerca da interrupção da gestação influenciam no tratamento da questão. De acordo com
uma notícia publicada no dia 21 de fevereiro de 2015, no jornal Folha de São Paulo, ao
procurar assistência em um hospital da Grande São Paulo, uma jovem com hemorragia
decorrente de um aborto provocado foi denunciada pelo médico que a atendeu,
profissional que, inicialmente, negou-se a prestar os cuidados necessários por causa da
perda sanguínea. O médico alegou ter sido obrigado a realizar a denúncia diante da
ilegalidade do abortamento provocado, contrariando as diretrizes éticas do conselho de
classe. O Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) não deixou de se
pronunciar sobre o caso e declarou ao jornal que o médico violara o Código de Ética
Médica ao denunciar a jovem que buscou atenção no hospital. A situação em questão
revela que, apesar do posicionamento favorável do órgão que regula o exercício da
Medicina no Brasil, os posicionamentos entre os/as profissionais são múltiplos
(OLIVEIRA, 2015).

Resumindo, os/as profissionais médicos/as são ambivalentes a respeito da


questão do abortamento pois têm de lidar com valores morais e profissionais
conflitantes. A maiorias desses/as profissionais, entretanto, aceita a justificativa da
prática em circunstâncias específicas – geralmente aquelas previstos por lei – e, ainda,
tende a ser mais compreensiva com a prática no contexto de suas vidas privadas. As
perspectivas conflitantes do debate ressoam na prática, uma vez que, independente do
posicionamento que assumam, essa categoria profissional está pouco preparada para
realizar uma interrupção de gestação (FAÚNDES & BARZELATTO, 2004).

Dessa maneira, apesar da controvérsia ser tratada em termos polarizados,


podemos perceber que existe uma diversidade de posicionamentos dos diferentes atores
sociais envolvidos no debate que podem, segundo Ribeiro (2008), ser localizados nas
nuances do debate, ora mais próximos de um conservadorismo, ora mais próximos de
uma abordagem liberal da questão. Destacamos, portanto, que os diversos atores fazem
56

uso dos argumentos que se localizam entre os polos opostos do debate em diferentes
contextos, a fim de que tenham efeitos determinados, construindo a realidade da questão
da interrupção da gestação no Brasil.

3.3 Legislação e Políticas de Saúde: os efeitos do debate político

Um dos efeitos da redemocratização no brasil foi o aumento da visibilidade do


debate acerca do abortamento e um aumento da participação da sociedade civil nos
debates e nas decisões políticas direta e indiretamente. Nesse sentido, o debate se
ampliou, permitindo a participação de movimentos sociais, criando condições para a
elaboração de políticas públicas que considerassem as demandas desses grupos,
influenciando também as decisões do judiciário. O movimento feminista teve
participação fundamental no enfrentamento à criminalização do abortamento e na
articulação de novos repertórios acerca do tema no debate público, em busca da
transformação das condições que tornam tão difícil a descriminalização no país. A
pesquisadora Maria Isabel Baltar da Rocha (2006) realizou uma análise do debate
político e da atividade no legislativo referente à questão do aborto que se deu no país no
período de 1964 a 2006. De acordo com o estudo, no período da ditadura militar até o
início da abertura democrática (1964-1979), as discussões sobre a interrupção da
gestação eram escassas. O Executivo chegou a decretar um Código Penal em 1969,
cujas alterações concernentes ao assunto eram a introdução de controles do Estado para
o aborto permitido por lei, o aumento da pena para a mulher que provocasse o auto
aborto, ou que permitisse que alguém o fizesse, e a redução da pena na situação descrita
como defesa da honra. O novo código não entrou em vigor, mas teve desdobramentos
até 1978. No âmbito legislativo, 13 projetos de lei foram apresentados. Entretanto, o
abortamento não estava no centro do debate e a maioria deles dizia respeito à liberação
da divulgação dos meios anticoncepcionais na Lei das Contravenções Penais. Grande
parte daqueles que contemplavam a temática confirmavam a vedação de anúncio
referente à prática do aborto e atualizavam a multa para quem o fizesse. Por outro lado,
mesmo na escassez de debate político que as informações acima supõem, quatro
projetos importantes foram apresentados, sendo que um deles dizia respeito à
descriminalização e os outros três à ampliação das possibilidades da prática do
abortamento. Dois destes projetos chegaram a ser discutidos e foram rejeitados nas
comissões técnicas.
57

No período de 1979 a 1985, correspondente à ampliação da abertura política,


não houve medida específica na esfera do Poder Executivo. Entretanto, algumas
referências difusas sobre o tema encontradas em documentos oficiais fornecem pistas
para a compreensão da situação do debate político. No Programa de Assistência Integral
à Saúde da Mulher (PAISM), publicado em 1983, evitar o aborto provocado por meio
da prevenção da gestação indesejada constava como um dos objetivos programáticos.
No legislativo foram apresentadas sete propostas, das quais cinco tratavam diretamente
da questão do abortamento e duas nas quais o tema aparecia vinculado a projetos de lei
sobre contracepção. Daquelas que tratavam do assunto diretamente, três eram projetos
de lei: um propondo a descriminalização e dois propondo a ampliação dos permissivos
do artigo 128 do Código Penal atual. A discussão sobre o assunto na sociedade civil
começava a se fortalecer e já era menos restrita. Nessa época, destaca-se um encontro
organizado por um conjunto de entidades e grupos feministas no Rio de Janeiro sobre
saúde, sexualidade, contracepção e aborto, a partir do qual foi criado um documento no
qual a interrupção da gestação era considerada um direito, demandando informação e
serviços públicos aptos a oferecê-lo.

No período de transição democrática, ou seja, de 1985 a 1989, iniciou-se uma


transformação nas características do Estado brasileiro e houve intensificação da atuação
da sociedade civil, o que levou a uma incorporação da questão dos direitos das mulheres
à agenda dos Três Poderes. Nesse contexto, o debate sobre aborto começou a assumir
uma nova dimensão e, inclusive, a refletir enfrentamentos mais acentuados,
principalmente entre a militância feminista e as entidades religiosas.

A partir do fim da ditadura militar, as mulheres passaram a ocupar os espaços


políticos da esfera executiva, o que culminou na criação do Conselho Nacional dos
Direitos da Mulher (CNDM). Este conselho exerceria papel fundamental na
mobilização dos movimentos de mulheres e feministas no processo constituinte. Desse
processo de mobilização resulta a Carta das Mulheres, documento contendo princípios
e reivindicações – inclusive o direito à decisão sobre o próprio corpo – que seria
dirigida aos constituintes. Na esfera legislativa, o tema entrou na Constituinte por meio
da intervenção da Igreja Católica, que buscava a proibição em todas as circunstâncias,
com o apoio de parlamentares evangélicos. Ainda, quatro projetos que anunciavam
medidas restritivas em relação ao tema foram apresentados. No âmbito da sociedade
civil, os dois principais atores do debate se preparavam para a Constituinte e atuaram
58

direta e indiretamente na sua elaboração.

A partir de 1989 inicia-se uma fase de consolidação das conquistas da


organização dos movimentos sociais e da Constituição de 1988, na qual a sociedade
civil passaria a ter significativos instrumentos de controle social. Em 1989, no Encontro
Nacional Saúde da Mulher: um direito a ser conquistado, organizado pelo Conselho
Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), há uma demanda pela descriminalização do
aborto com base no argumento mais amplo dos direitos. O documento final desse
encontro, considera o aborto como “um problema de saúde da mulher” e demanda a
revogação dos artigos do Código Penal que definem o aborto como crime, lembrando
que a saúde passou a ser considerada como um direito de todos/as e um dever do Estado
na Constituição de 1988. O teor dessa carta lembrava aos legisladores que um direito
individual não podia ser tratado como crime (SCAVONE, 2008). É importante ressaltar
que a discussão que se desenvolveu nesse período, principalmente a partir de 1993, foi
marcada pela Conferência Internacional de População e Desenvolvimento, realizada no
Cairo, em 1994, e pela Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Pequim, em
1995. Na esfera executiva, tendo em vista a reestruturação da atenção à saúde por meio
do Sistema Único de Saúde (SUS) e suas diretrizes, previstas na Constituição,
destacam-se as decisões sobre a questão do abortamento nas Conferências Nacionais de
Saúde, do Conselho Nacional de Saúde e da Área Técnica de Saúde da Mulher. Como
resultado das conferências, Rocha (2006) destaca a norma sobre prevenção e tratamento
em casos de violência sexual que aplicava o artigo 128 do Código Penal e ampliava os
serviços oferecidos por alguns governos municipais, federais e universidades.

Destaca-se também a discussão do tema na IV Conferência Nacional de Direitos


Humanos, realizada em 1999, que marcou a elaboração do plano que resultaria deste
encontro, elaborado pela secretaria da mesma área, em 2002. Neste, propunha-se
alargamento dos permissivos para a prática do aborto legal (VENTURA apud ROCHA,
2006). Além disso, o tema esteve presente na I Conferência Nacional de Políticas para
Mulheres, organizada pela Secretaria Especial de Políticas para Mulheres e pelo
CNDM, em 2004. O plano que decorreu desta conferência incluiu a pauta de revisar a
legislação concernente à interrupção voluntária da gravidez e resultou na elaboração de
um anteprojeto, que seria apresentado em 2005, sugerindo a criação de uma lei
autorizando o aborto até 12 semanas de gestação.

No âmbito legislativo, imediatamente após a Constituinte, segundo Rocha


59

(2006), foram apresentados seis projetos de lei, sendo que a maior parte deles tinha o
objetivo de ampliar os permissivos legais ou mesmo descriminalizar o aborto. Nas duas
legislaturas seguintes, situadas nos anos 90, foram apresentadas mais 23 propostas e a
maioria delas era favorável à permissão da prática. Nas duas legislaturas posteriores,
iniciadas em 1999 e 2003, foram apresentadas mais 34 proposições e acentuou-se a
reação conservadora. Podemos observar que houve uma intensificação do debate sobre
o tema no Congresso Nacional, mas a autora destaca que também se intensificou a inter-
relação da discussão da Casa com as esferas do Executivo e do Judiciário, bem como
com segmentos da sociedade civil. Nesse contexto de mobilização política, houve
aumento da participação de atores políticos e sociais que militavam pela
descriminalização, atores, em grande parte, de orientação feminista, bem como daqueles
que se posicionavam de maneira contrária à descriminalização da prática.

Para os fins desta pesquisa, destacamos alguns documentos do Poder Executivo


que podem contribuir para a compreensão do manejo da questão no âmbito da
legislação vigente. No mesmo ano da I Conferência Nacional de Políticas para
Mulheres, foi lançada a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher
(PNAISM). A elaboração do documento com os princípios e diretrizes contou com a
participação de diversos setores da sociedade, desde pesquisadores da área e
profissionais do SUS até movimentos sociais, como o movimento de mulheres e o
movimento negro. Consta na nova versão do documento, publicada em 2011, que a
política busca consolidar os avanços no campo dos direitos sexuais e reprodutivos,
levando em conta um enfoque de gênero ao considerar a relação desigual entre mulheres
e homens e os efeitos dessa relação, “com ênfase na melhoria da atenção obstétrica, no
planejamento familiar, na atenção ao abortamento inseguro e no combate à violência
doméstica e sexual” (BRASIL, 2011, p. 7). Nesse sentido, a questão do abortamento
seguro entra em pauta pois se configura como um dos caminhos para a redução da
morbimortalidade materna por causas preveníveis e evitáveis, bem como para a
consolidação da garantia de direitos humanos no país. O documento reconhece que o
abortamento inseguro é uma das principais causas de mortalidade materna e que as
mulheres sofrem discriminação e violência institucional quando procuram o serviço de
saúde por complicações associadas à prática, pois os/as profissionais não estão
capacitados para realizar o atendimento a essas mulheres. Além disso, reconhece que a
falta de preparo dos/as profissionais de saúde para lidar com a questão causa agravos às
60

complicações – já severas – do abortamento provocado clandestinamente, uma vez que


as mulheres não recebem informações sobre os sinais que devem levá-las a procurar o
serviço de saúde e, quando chegam a procurá-lo, encontram serviços não capacitados
para o atendimento. É importante ressaltar que a PNAISM considera que há
precariedade na atenção à anticoncepção no Brasil, principalmente nas parcelas mais
pobres da população e nas áreas rurais, e que tal situação contribui para a ocorrência de
abortamentos em condições inseguras e os agravos que decorrem da prática. Além
disso, a responsabilidade pela anticoncepção fica a cargo quase que exclusivamente da
mulher e, segundo o documento, há poucas medidas que promovam a participação e a
inclusão dos homens e adolescentes nas ações de planejamento familiar, sendo que tais
medidas estão geralmente limitadas a experiências isoladas de alguns serviços ou
organizações não-governamentais que trabalham com homens e adolescentes e têm
pouca chance de causar algum impacto sobre o cenário da atenção à saúde sexual e
reprodutiva no Brasil.

Em linhas gerais, os esforços da política se dão no âmbito de garantir que os/as


profissionais estejam preparados para lidar com a mulher em situação de abortamento,
tanto para promover o manejo técnico adequado, quanto para evitar discriminações e
violência nos casos que chegam aos serviços de saúde. Ainda que o documento cite
também a falta de conhecimento da população feminina dos sinais de complicações
decorrente da prática, a informação à mulher não é um dos objetivos específicos do
documento, limitando-se a ações indiretas. Além disso, conforme o documento, o
conhecimento do número de mortes de mulheres por aborto no país seria um dos
elementos necessários para a elaboração de políticas que venham a preveni-las. Por fim,
a PNAISM estabelece como estratégia que toque a questão a promoção da “atenção
obstétrica e neonatal, qualificada e humanizada, incluindo a assistência ao abortamento
em condições inseguras, para mulheres e adolescentes” (2011, p. 69). Entre os objetivos
específicos dessa estratégia constam “qualificar e humanizar a atenção à mulher em
situação de abortamento” e “melhorar a informação sobre a magnitude e tendência da
mortalidade materna” (2011, p. 70). Entretanto, apesar dos esforços para garantir
atenção humanizada a mulheres em situação de abortamento – legal ou não –, a
descriminalização do abortamento não é citada como solução aos efeitos do
abortamento inseguro à saúde das mulheres.

No âmbito de garantir a reparação de uma das principais falhas constatadas no


61

documento da PNAISM e, consequentemente, consolidar a estratégia da política no que


tange à questão do abortamento, podemos observar publicações do Ministério da Saúde
que se propõem a investir na formação e preparo dos/as profissionais e fornecer
diretrizes de ação em casos de abortamento, sejam estes em situação de legalidade ou
clandestinidade. Entre essas publicações, destacamos a Norma Técnica de Atenção
Humanizada ao Abortamento, elaborada pelo Departamento de Ações Programáticas
Estratégicas da Secretaria de Atenção à Saúde. Articulando dados sobre a incidência de
abortamentos no Brasil, o documento consolida a prática como “um grave problema de
saúde pública” (2011, p. 5). Ressalta também que o cálculo da magnitude da questão no
Brasil, tão importante para a elaboração de políticas sobre o tema e ações para
diminuição da mortalidade materna, é dificultado por aspectos culturais, religiosos,
legais e morais que inibem as mulheres a declararem seus abortamentos.

A norma técnica destaca que a atenção ao abortamento requer abordagem ética e


reflexão sobre os aspectos jurídicos, tendo como princípios norteadores a igualdade, a
liberdade e a dignidade da pessoa humana, não se admitindo qualquer discriminação ou
restrição ao acesso à assistência à saúde. Além disso, reconhece a necessidade de pensar
e repensar soluções e que, para tanto, faz-se necessário um investimento em educação e
informação, bem como o comprometimento constante do Estado, dos profissionais de
saúde e da sociedade em geral com o ordenamento jurídico nacional e os seguintes
princípios: “a democracia, a laicidade do estado, a igualdade de gênero e a dignidade da
pessoa humana” (BRASIL, 2011, p. 5).

Um dos aspectos importantes deste documento é a presença de orientações éticas


aos/às profissionais de modo a reforçar a necessidade de sigilo profissional de acordo
com o Código Penal, a Constituição Federal e o Código de Ética Médica, a fim de
desencorajar a denúncia em casos de complicações decorrentes do abortamento
clandestino por parte desses/as profissionais. Além das orientações acerca dos marcos
legais e éticos referentes ao abortamento, a norma técnica busca garantir atendimento
humanizado por meio da promoção de acolhimento, de orientação e da não moralização
da mulher em situação de abortamento provocado ou que opte pela interrupção legal da
gestação.

O documento também fornece diretrizes para a ação nos casos de abortamento,


tanto para os casos de aborto legal como para aqueles provocados ilegalmente, deixando
claro que as mulheres que provocam o aborto clandestinamente podem procurar o
62

serviço de saúde em contextos de complicação, de modo que as diretrizes de ação não


são explicitamente direcionadas apenas para um dos tipos específicos de situação. Além
disso, preconiza esforços para a prevenção da repetição do abortamento por meio da
criação de espaços para discussão da experiência individual e subjetiva do aborto
voluntário entre profissionais e mulheres, bem como para a compreensão dos
significados do abortamento no contexto de vida de cada mulher e das razões que
levaram à gravidez não planejada. Ainda, o Ministério da Saúde busca por meio da
norma técnica preparar os/as profissionais para a identificação dos sinais e sintomas que
requerem atendimento de emergência em casos de abortamento. Entretanto, não há
diretriz de orientação às mulheres acerca de como se deve agir diante de tais sinais, o
que seria interessante em casos de menção a gestação não desejada.

Em suma, o documento assume compromisso com os princípios do Estado


Democrático de Direito, a discussão internacional no plano dos Direitos Humanos e dos
direitos garantidos pela Constituição Federal, posicionando-se em consonância com as
reivindicações dos movimentos feministas e de mulheres. Podemos perceber grande
participação do movimento feminista e a incorporação de algumas de suas estratégias
discursivas nesses últimos documentos, bem como suas proposições à prática e ao
manejo das situações nas quais o abortamento é provocado legalmente, buscando
garantir atenção humanizada dos/as profissionais e serviços que ofereçam a interrupção
da gestação. Os tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é
consignatário também influenciam diretamente, bem como as pautas dos movimentos
sociais e do movimento feminista marcam presença na elaboração das políticas
nacionais e em seus desdobramentos.

3.4 Criminalização e Constitucionalidade: o aborto no Supremo Tribunal Federal

No dia 29 de novembro de 2016, a primeira turma do Supremo Tribunal Federal


(STF) firmou entendimento de que o abortamento voluntário durante o primeiro
trimestre, ou seja, até a décima segunda semana de gestação não é crime (STF, 2016).
De acordo com o voto-vista do Ministro Luís Roberto Barroso, no julgamento do
Habeas Corpus 124.306, que afastava a prisão preventiva de duas pessoas que haviam
sido presas em flagrante em uma clínica clandestina de aborto, a criminalização da
prática é incompatível com a garantia de direitos fundamentais das mulheres. Desse
63

modo, seria preciso examinar a constitucionalidade do tipo penal imputado aos


pacientes e corréus, pois a conduta ou prática a ser incriminada não deve constituir
exercício legítimo de direito fundamental, além de dever respeitar o princípio de
proporcionalidade entre a ação praticada e a ação estatal. Neste caso, revisar a
constitucionalidade do tipo penal imputado aos pacientes coincide com a revisão da
constitucionalidade da própria criminalização do abortamento.

Realizando uma breve incursão sobre a teoria geral dos direitos fundamentais, o
Ministro destaca que a história da humanidade é a história da afirmação do indivíduo
em oposição ao poder político, econômico e religioso, sendo que este último procura
conformar a moral social dominante. Os direitos fundamentais, ou seja, os direitos
humanos incorporados ao ordenamento constitucional, seriam o produto dessas diversas
fontes de poder e do embate entre elas. Traçando uma linha argumentativa que remete a
uma das proposições do imperativo categórico de Kant – a saber: toda pessoa deve ser
tratada como um fim em si mesmo –, o Ministro afirma que, após a Segunda Guerra
Mundial, os direitos fundamentais passaram a ser tratados como uma emanação da
dignidade humana, dignidade aqui compreendida como expressão do valor e da
autonomia enquanto predicados de todo indivíduo. Buscando delinear sua linha
argumentativa a fim de constituir a criminalização do abortamento como temática cuja
constitucionalidade deve ser problematizada, o Ministro Barroso ressalta que os direitos
fundamentais são oponíveis às maiorias políticas, de modo que funcionam como limite
ao legislador e até mesmo ao poder constituinte, sendo dotados de aplicabilidade direta
e imediata. Tais propriedades dos direitos fundamentais legitimam a atuação da
jurisdição constitucional a fim de garantir sua proteção, tanto em caso de ação como de
omissão legislativa.

Aplicando a teoria dos direitos fundamentais ao caso específico do abortamento,


o Ministro destaca que a criminalização da prática fere diversos direitos fundamentais
das mulheres, ressoando na própria dignidade humana dessa categoria. Assumindo o
pressuposto de que o abortamento nunca é praticado pela mulher por prazer, mas por
outros fatores, Barroso entende que não é necessário que o Estado piore sua vida ao
processá-la criminalmente. Tendo em vista o pedido de Habeas Corpus, o Ministro
declara que, se a conduta da mulher é legítima, isto é, tampouco deve ser criminalizada,
não há sentido em se incriminar o profissional de saúde que a viabiliza.

Para a controvérsia moral acerca do início da vida, o texto do Ministro admite


64

que não há solução jurídica. Porém, declara que, exista ou não vida a ser protegida, não
cabe dúvida em relação à impossibilidade de o embrião subsistir fora do útero materno
na fase inicial de sua formação. Ou seja, há uma relação de dependência incontestável
do embrião com relação ao corpo da mulher que o gesta. Chamando atenção para a
centralidade do corpo feminino nessa questão, independente do dilema moral que a
cerca, Barroso explicita quais dimensões dos direitos fundamentais femininos a
criminalização do abortamento voluntário viola. Em primeiro lugar, com a
criminalização viola-se a autonomia da mulher, aspecto que corresponde ao núcleo
essencial da liberdade individual, a ser protegido pelo princípio da dignidade humana.
Desse modo, interfere-se no direito das mulheres de fazerem suas escolhas e de
tomarem as próprias decisões morais em relação às suas próprias vidas, de acordo com
seus próprios valores, direito no qual não compete ao Estado intervir. Em segundo
lugar, de acordo com a arguição do Ministro, a criminalização afeta a integridade física
e psíquica da mulher, que se relaciona com o direito à saúde e à segurança. A
integridade física é abalada porque é o corpo da mulher que sofrerá, compulsoriamente,
as transformações, riscos e consequências da gestação. A integridade psíquica é afetada
pois os efeitos de uma gestação levada a termo são permanentes, resultando em
comprometimento e responsabilidade com outro ser. Além dos dois aspectos tratados
anteriormente, a criminalização viola também os direitos sexuais e reprodutivos
femininos, os quais contemplam o direito de decidir sobre se e quando deseja ter filhos,
sem discriminação, coerção ou violência, com sua saúde sexual e reprodutiva garantida.
Nesse sentido, o tratamento penal dado ao abortamento no Brasil pelo Código Penal de
1940 afeta a autodeterminação reprodutiva da mulher, ao retirar dela a possibilidade de
decidir sobre a maternidade, sendo coagida pelo Estado a manter uma gestação
indesejada. Além dos efeitos sobre o direito à autodeterminação, a criminalização da
prática tem efeitos diretos na saúde sexual e reprodutiva da população feminina
brasileira, de modo a aumentar os índices de mortalidade materna e outras complicações
relacionadas à falta de acesso à assistência de saúde e informações adequadas. Barroso
também destaca que a norma repressiva se traduz em quebra da igualdade de gênero,
contribuindo para a perpetuação da hierarquização dos indivíduos e das desequiparações
infundadas, dificultando a neutralização das injustiças históricas, econômicas e sociais,
bem como o respeito à diferença. Tendo em vista que é a mulher quem suporta o ônus
integral da gravidez, e que o homem não engravida, o Ministro defende que somente
haverá igualdade plena se à mulher for reconhecido o direito de decidir acerca da
65

manutenção da gestação ou não. Por fim, a tipificação penal produz também


discriminação social e reproduz as desigualdades sociais do contexto brasileiro, uma vez
que seus efeitos incidem de maneira desproporcional na vida das mulheres pobres, que
não têm acesso a médicos e clínicas particulares, nem podem recorrer ao sistema
público para interromper uma gestação. Ou seja, que não têm acesso ao procedimento
seguro.

Além de violar direitos fundamentais, segundo o Ministro, a criminalização do


abortamento não contempla suficientemente o princípio da proporcionalidade.
Considerando o subprincípio da adequação, a medida constitui duvidosa adequação
para proteger o bem jurídico que pretende tutelar, a saber: a vida do nascituro, por não
produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, afetando
apenas a incidência de abortamentos feitos em condições de segurança. Quanto ao
subprincípio da necessidade, é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por
meios mais eficazes e menos lesivos aos direitos da mulher, tais como ampliação da
distribuição de métodos contraceptivos e promoção de educação sexual e em saúde.
Enfim, com relação ao subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, a medida
é desproporcional, por gerar custos sociais superiores aos seus benefícios.

Finalizando seu voto, o Ministro Luís Roberto Barroso considera a defasagem


do Código Penal, que data de 1940 – bem anterior à Constituição de 1988 – e ressalta
que a jurisprudência do STF não admite a declaração de inconstitucionalidade de lei
anterior à Constituição, sugerindo a derrogação, ou seja, a revogação parcial dos
dispositivos apontados do Código Penal no caso em questão. Desse modo, há dúvida
fundada sobre a própria existência do crime em casos da interrupção voluntária da
gestação realizada nos três primeiros meses. A Ministra Rosa Weber e o Ministro Edson
Fachin acompanharam o voto de Barroso na íntegra. Marco Aurélio e Luiz Fux não se
manifestaram sobre o tema, e votaram pela revogação das prisões preventivas do caso
em questão.

Em suma, o Ministro argumenta em favor da inconstitucionalidade da


criminalização do abortamento assumindo princípios caros ao Estado Democrático de
Direito, cuja origem está em determinada razão governamental. Tal razão baseia-se em
uma concepção específica de liberdade, que contempla a autodeterminação individual,
de modo que se busque a garantia da possibilidade de ação de acordo com princípios
morais que se deseja seguir, ou seja, a garantia de autonomia. Nessa perspectiva, de
66

acordo com o Ministro Barroso, a criminalização da interrupção da gestação até a


décima segunda semana de gestação fere o núcleo essencial de um conjunto de direitos
fundamentais da mulher, sendo, portanto, uma restrição que ultrapassa os limites
constitucionalmente aceitáveis. Entretanto, ao defender a descriminalização da prática e
sua incompatibilidade com a Constituição, o Ministro ressalta que não faz uma defesa
da disseminação da prática, mas da realização do procedimento com segurança. Além
disso, destaca que o bem jurídico que se busca proteger por meio da criminalização – a
vida potencial do feto – é evidentemente relevante, porém, a incriminação do
abortamento, além de violar direitos fundamentais, não é eficiente em cumprir a função
que se propõe, de modo que os custos sociais gerados são muito superiores aos
benefícios da criminalização. Diante disso, o voto do Ministro é uma denúncia da
defasagem da legislação em relação aos valores contemporâneos e uma sugestão para a
revisão da maneira como a prática é contemplada no Código Penal à luz dos valores
constitucionais trazidos pela Constituição de 1988 e da transformação dos costumes. Tal
abordagem, portanto, está em consonância com a base das reivindicações feministas,
tanto na questão dos direitos fundamentais, quanto na aplicação do princípio da
proporcionalidade.

A decisão do STF abre precedentes para que outros/as juízes/as possam adotar o
mesmo entendimento do Ministro. Entretanto, a decisão não implica efeito vinculante13,
por não se tratar de julgamento em caso de proposição de ação direta de
inconstitucionalidade ou de ação declaratória de constitucionalidade14, ou seja, em caso
de contestação direta da norma legal.

13
Segundo Maués (2016), o efeito vinculante se aplica aos casos de ação direta de inconstitucionalidade e
ação declaratória de constitucionalidade, impedindo que os juízes e tribunais desconsiderem que a lei
objeto da decisão foi declarada inconstitucional pelo STF.
14
Conforme disposto na Lei 9.868 de novembro de 1999. O parágrafo único do artigo 28 desta lei
determina que as decisões nos casos de ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de
constitucionalidade têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder
Judiciário.
67

4 O ABORTO VOLUNTÁRIO NO LEGISLATIVO

Iniciamos este capítulo explicitando o processo de elaboração de leis. Em


seguida, conforme os objetivos desta pesquisa, apresentamos um panorama dos projetos
de lei apresentados no período de 2007 a 2017 que propõem modificar a penalização
dos casos de abortamento não previstos por lei, penalizar aqueles já previstos no Código
Penal ou alterar as condições para o acesso ao abortamento legal. Por fim, apresentamos
os dois projetos de lei escolhidos para identificar as versões de aborto voluntário no
processo legislativo.

4.1 Elaborando leis: o trâmite no legislativo

O processo de elaboração de normas jurídicas é competência do Poder


Legislativo e se dá a partir de regras previamente fixadas. O Poder Legislativo é
exercido pelo Congresso Nacional, composto pela Câmara dos Deputados e pelo
Senado Federal. As regras gerais do processo legislativo estão especificadas no Título
IV, Capítulo I da Constituição Federal de 1988. O processo legislativo compreende a
elaboração de emendas à Constituição, leis complementares, leis ordinárias, leis
delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções. A proposição de leis
complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos
Deputados, do Senado Federal, à Presidência da República, ao Supremo Tribunal
Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos e
cidadãs (BRASIL, 1988).

Obedecidas as especificações gerais acerca do exercício do Poder legislativo na


Constituição Federal, a tramitação das proposições obedece a regras específicas em cada
umas das Casas Legislativas. Tais regras estão dispostas em seus regimentos internos.
Os projetos de lei contemplados na análise deste trabalho consistem em proposições da
Câmara dos Deputados. Nesta Casa, segundo o inciso I do artigo 132 de seu Regimento
Interno, depois de lida e apresentada perante o Plenário, a proposição será objeto de
decisão das Comissões. Às Comissões Permanentes e às demais Comissões cabe,
68

segundo incisos I e II do artigo 24 do mesmo regimento15, discutir e votar as


proposições sujeitas à deliberação do Plenário que lhes forem distribuídas, bem como
discutir e votar projetos de lei, dispensada a competência do Plenário (CÂMARA DOS
DEPUTADOS, 2017).

As Comissões da Câmara, de acordo com o artigo 24 de seu regimento, podem


votar projetos de lei conclusivamente, exceto aqueles de lei complementar; de código;
de iniciativa popular; de Comissão; relativos a matéria que não possa ser objeto de
delegação; oriundos do Senado ou por ele emendados; que tenham sido aprovados pelo
Plenário de qualquer das Casas; que tenham recebido pareceres divergentes e, por fim,
as preposições em regime de urgência. Serão votadas em Plenário proposições que não
tenham sido decididas conclusivamente por uma das comissões responsáveis por sua
apreciação ou se, mesmo aprovada, houver recurso de um décimo dos deputados da
Casa. De acordo com o artigo 53, as proposições devem ser apreciadas obrigatoriamente
pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania e pela Comissão de Finanças e
Tributação, a fim de avaliar a admissibilidade jurídica, legislativa e orçamentária. Além
destas, a proposição deverá ser apreciada pelas Comissões16 de mérito cuja matéria da
proposição requer. Antes da atribuição às comissões, conforme determina o artigo 139,
a Presidência da Casa determina a apensação da proposição caso seja constatada a
existência de preposição precedente de matéria análoga ou correlata17. Na tramitação em
conjunto, conforme determina o artigo 142, considera-se um só o parecer da Comissão
sobre todas as proposições apensadas. Além disso, conforme determina o inciso III do
artigo 143, as proposições devem ser incluídas conjuntamente na Ordem do Dia da
mesma sessão (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2017).

Segundo o artigo 65 da Constituição Federal, a proposição aprovada por uma


Casa deverá ser revista pela outra em um turno de discussão e votação e, caso a Casa
revisora o aprove, será encaminhada para sanção ou promulgação. Se for rejeitada,
deverá ser arquivada. Se a proposição for emendada, deverá voltar à Casa iniciadora. No
caso da aprovação, segundo o artigo seguinte, a Casa na qual a votação tiver sido
concluída deverá enviar à Presidência da República que, se assim convier, a sancionará.

15
Conforme determina artigo 58 da Constituição Federal.
16
São, no total, vinte Comissões Permanente cujas áreas de atividades estão especificadas no artigo 32 do
regimento Interno da Câmara dos Deputados (BRASIL, 2017).
17
Conforme artigo 143, Inciso II do Regimento Interno da Câmara dos Deputados: terá precedência
proposição do Senado sobre as da Câmara e a mais antiga sobre as mais recentes.
69

Entretanto, se a Presidência considerar o projeto, em sua totalidade ou em algum


aspecto, inconstitucional ou contrário ao interesse público, poderá vetá-lo total ou
parcialmente18. O veto deverá ser apreciado em sessão conjunta do Congresso, dentro de
trinta dias a contar de seu recebimento. Sua rejeição requer voto da maioria absoluta dos
Deputados e Senadores. Em caso de rejeição, a proposição será enviada à Presidência da
República para promulgação (BRASIL, 1988).

Uma vez que a proposição ganhar força de lei após sua publicação, caso o
Supremo Tribunal Federal decida definitivamente sobre sua inconstitucionalidade, cabe
privativamente ao Senado, conforme artigo 52 da Constituição Federal, suspender a sua
execução, no todo ou em parte (BRASIL, 1988).

4.2 Dez anos de aborto no legislativo

Conforme um dos objetivos específicos desta dissertação, realizamos uma


pesquisa com o descritor aborto no portal da Câmara dos Deputados a fim de
sistematizar o número de projetos de lei19 apresentados no período de 2007 a 2017,
considerando autoria, ementa e situação, disponíveis na ficha de tramitação, e inteiro
teor. As proposições cujo tema não se relacionava com a legislação da interrupção da
gestação foram excluídas após leitura preliminar. Foram apresentadas, no total20, 25
proposições relacionadas. Entretanto, foram incluídas neste capítulo apenas aquelas que
propõem alterar – seja aumentar ou diminuir – a penalização dos casos de abortamento
não previstos por lei21, bem como penalizar aqueles já previstos no Código Penal. Além
disso, incluímos as proposições que buscavam modificar as condições para o acesso ao
abortamento legal.

No primeiro ano compreendido pela pesquisa, foram apresentados seis projetos


que atendem aos critérios de inclusão estipulados. Destes projetos, apenas o PL
660/2007 tratava da descriminalização da prática. De autoria de Cida Diogo (PT/RJ), o

18
O mesmo artigo da constituição determina prazo de quinze dias úteis, contados da data do recebimento
para o vote e prazo de quarenta e oito horas para comunicação à Presidência do Senado Federal os
motivos do veto. Decorrido o prazo de quinze dias, o silêncio do Presidente da República importará
sanção.
19
Selecionamos na busca apenas os projetos de lei entre todos os tipos de proposições.
20
Cf. tabela em anexo.
21
Consideramos a penalização de orientações acerca da prática ou auxílio ao abortamento nesta categoria.
70

projeto de lei, apensado ao 1174/199122, propõe a isenção de pena em casos de aborto


terapêutico, ou seja, de impossibilidade de vida extrauterina23. A proposição,
inicialmente apresentada pela deputada Jandira Feghali no ano de 2004, mantém o texto
de então na ocasião de sua reapresentação. Segundo as deputadas, o projeto de lei tem
como objetivo fornecer a possibilidade de decisão por parte de cada mulher se terá ou
não as condições, sejam físicas ou psicológicas, de levar a gestação a termo nesses
casos. No mesmo ano, outros cinco projetos de lei que se relacionam à legislação da
prática foram apresentados. O PL 478/2007, de autoria de Luiz Bassuma (PT/BA) e
Miguel Martini (PHS/MG), dispõe sobre o estatuto do nascituro e prevê o aborto como
crime hediondo em qualquer circunstância, além de tipificar o anúncio de processo,
substância ou objeto destinado a provocar aborto como crime punível com detenção de
um a dois anos e multa. De acordo com os autores, o projeto de lei busca evitar “a
proliferação de abusos com seres humanos não nascidos”. Ainda em tramitação, o PL
aguarda parecer do relator na Comissão de defesa dos Diretos da Mulher24 e, de acordo
com parecer do relator na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania, deputado
Marcus Rogério (DEM/RO), está pronto para pauta na referida comissão. No mesmo
ano, o deputado Odair Cunha apresentou proposta de matéria semelhante, de número
489, que foi apensada ao PL 478. O PL 2433/2007, de autoria de Marcelo Serafim
(PSB/AM), altera os artigos 124, 125 e 126 do Código Penal, aumentando a pena de
detenção para a mulher que consentir o aborto ou para terceiros que o realizarem, além
de tipificar como crime a indução ou auxílio à mulher a abortar. A proposição justifica-
se, pois, segundo o autor, “as penas para o aborto previstas no Código Penal são
extremamente brandas”. Entretanto, o PL foi retirado pelo autor. De autoria de Dr.
Talmir (PV/SP) e já arquivado, o PL 2273/2007 propõe modificar o artigo 126 do
Código Penal, em busca de sanar a lacuna na questão do auxílio e da venda de
instrumentos e substâncias que, segundo o autor, “possam ser utilizados para o
cometimento deste crime tão repulsivo”, prevendo-os como crime. Por fim, o PL
2690/2007, de autoria de Miguel Martini25 (PHS/MG), tipifica como crime a
propaganda, o anúncio de meios abortivos e orientações acerca da prática e auxílio,
22
De autoria do deputado Eduardo Jorge (PT/SP) e da deputada Sandra Starling (PT/MG). A proposição
inclui no artigo 128 do Código Penal o abortamento em casos em que for constatada no nascituro
enfermidade grave e hereditária ou se alguma moléstia ou intoxicação ou acidente sofrido pela gestante
comprometer a saúde do nascituro. Atualmente, encontra-se arquivada.
23
A proposição foi feita anteriormente à decisão do Supremo Tribunal Federal acerca do aborto
terapêutico, em 2012.
24
Devido ao requerimento de redistribuição n. 6693/2017 feito pelo deputado Glauber Braga (PSOL/RJ).
25
Coautor do PL 478/2007.
71

buscando “garantir a máxima efetividade às normas constitucionais, que preceituam a


inviolabilidade do direito à vida”. O projeto de lei foi arquivado.

No ano de 2008, dois projetos de lei foram apresentados. O PL 3673/2008, de


autoria de Pompeo de Mattos (PDT/RS), reduz a pena de detenção para o crime de
aborto provocado pela mulher gestante ou com seu consentimento. Segundo o autor,
“minimizar as consequências para as mulheres que praticarem aborto, preservando-lhes
o máximo possível sua vida íntima”. O projeto foi apensado ao PL 2690/2007. O
deputado Miguel Martini26 (PHS/MG) apresentou o PL 3207/2008 que prevê a inclusão
do aborto voluntário, bem como a indução e o auxílio à eutanásia, nos crimes
considerados hediondos, uma vez que “tais crimes monstruosos e hediondos” atentariam
contra “a inviolabilidade do direito à vida”, buscando, com a proposição, “sancionar de
modo mais adequado os infratores e desestimular a sua prática”. O projeto encontra-se
apensado ao PL 4703/199827.

No ano de 2009 nenhum projeto de lei referente à legislação do abortamento foi


apresentado. Em 2010, apenas um projeto de lei foi apresentado que se adequava aos
critérios de inclusão neste capítulo. O PL 7254/2010, de autoria de Marcelo Serafim
(PSB/AM), aumenta as penas de reclusão para a infração dos artigos 125 e 126 do
Código Penal, uma vez que, segundo o autor, “as penas para o aborto previstas no
Código Penal são extremamente brandas”. A proposição se encontra arquivada. Em
2011, o deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ) apresentou o projeto de lei número 1545,
que tipifica como crime o abortamento provocado por médico/a nos casos cuja
legalidade não é prevista no Código Penal, especificando penalidade específica quando
o aborto por terceiros é realizado por esta categoria profissional, uma vez que, segundo
o deputado, “ao aborto praticado por médico, fora das hipóteses autorizadas pela
legislação, deve ser atribuída penalidade mais grave do que quando o crime é praticado
por terceiro, tendo em vista o compromisso profissional que tem em preservar a vida”.
A proposição do deputado aguarda parecer do relator na Comissão de Constituição e
Justiça e de Cidadania.

Nenhuma proposição foi apresentada em 2012. No ano de 2013, cinco projetos

26
Coautor do PL 478/2007 e autor do PL 2690/2007.
27
De autoria do deputado Francisco Silva (PPB/RJ). A proposição inclui como crime hediondo o aborto
provocado pela gestante, ou por terceiros, com o seu consentimento. Atualmente, aguarda designação de
relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.
72

foram apresentados o PL 5069 de autoria de Eduardo Cunha28 (PMDB/RJ), Isaias


Silvestre (PSB/MG) e João Dado (PDT/SP). A proposição, que tem como objetivo
“prevenir o recrudescimento da prática do aborto ilegal”, tipifica como crime contra a
vida o anúncio de métodos para provocar o abortamento e prevê penas específicas para
quem induz a mulher à prática. A proposição está pronta para pauta no plenário. O
projeto de número 6115/2013, apresentado pelos deputados Salvador Zimbaldi
(PDT/SP) e Alberto Filho (PMDB/MA), acrescenta exigência de realização do exame
de corpo de delito para comprovação do estupro para interrupção da gestação nestes
casos, uma vez que, segundo os deputados, garante-se “o suposto ‘direito’ de abortar
sem qualquer prova de que houve estupro”. Esta proposição foi apensada ao PL
1545/2011. Foram apresentados dois projetos de lei de matéria correlata. As
proposições 6033/2013, de autoria de Eduardo Cunha (PMDB/RJ), e 6055/2013, de
autoria conjunta de treze deputados29, revogam a Lei nº 12.845, de 1º de agosto de 2013,
que garante em casos de estupro a profilaxia da gravidez, bem como o fornecimento de
informações às mulheres sobre seus direitos legais e todos os serviços disponíveis,
inclusive sobre o aborto garantido no Código Penal. Na justificativa do PL 6033, o
deputado Eduardo Cunha afirma que a lei foi votada pela Câmara “desconhecendo o seu
conteúdo e a profundidade do seu alcance”. Os autores do PL 6055, por sua vez,
afirmam que “a Lei foi realmente promulgada tendo como principal objetivo introduzir
o aborto no Brasil”. De autoria Hugo Leal (PSC/RJ), o PL 6961/2013 suprime os incisos
IV e VII da Lei 12. 845 de 1º de agosto de 2013, que preveem a profilaxia da gravidez e
o fornecimento de informações às vítimas sobre os direitos legais e sobre todos os
serviços sanitários disponíveis, respectivamente. A supressão busca, conforme
justificativa, evitar a prescrição generalizada da contracepção de emergência,
considerada pelos autores “abortiva”. Além disso, tem como objetivo evitar a “clara
indução ao aborto” que se dá por meio do fornecimento de informações sobre direitos
garantidos às mulheres em situação de violência sexual.

Em 2014, não encontramos projetos que legislassem a prática dentro dos


critérios por nós estabelecidos. No ano de 2015, foram apresentadas duas proposições.
Uma delas, de autoria do deputado Jean Wyllys (PSOL/RJ), o PL 882 estabelece

28
Também autor do PL 1545/2011.
29
Pastor Eurico (PSB/PE), Costa Ferreira (PSC/MA), Pastor Marco Feliciano (PSC/SP), João Dado
(PDT/SP), Leonardo Quintão (PMDB/MG), Dr. Grilo (PSL/MG), Zequinha Marinho (PSC/PA), Alfredo
Kaefer (PSDB/PR), Henrique Afonso (PV/AC), William Dib (PSDB/SP), Jair Bolsonaro (PP/RJ), Otoniel
Lima (PRB/SP) e Eurico Júnior (PV/RJ).
73

políticas no âmbito da saúde sexual e reprodutiva. Com relação ao abortamento, prevê a


revogação dos artigos 124 e 126, ou seja, prevê a descriminalização do abortamento
provocado pela mulher gestante ou com seu consentimento e do abortamento provocado
por terceiros com consentimento, uma vez que, segundo o deputado, “não há
justificativa para que o aborto seguro seja ilegal”. Além disso, revoga o artigo 128 deste
mesmo Código, pois prevê a descriminalização do abortamento sem restrições. Este
projeto de lei encontra-se tramitando em conjunto, apensado ao PL 313/2007, que prevê
alteração da Lei n.º 9.263, de 12 de janeiro de 1996, que regula o § 7º do art. 226 da
Constituição Federal30.
A proposição de número 3983/2015, elaborada em conjunto por treze
deputados/as federais31, altera o artigo 128 do Código Penal, restringindo a legalidade
do abortamento apenas aos casos nos quais não há outro meio de salvar a vida da
mulher gestante, criminalizando, consequentemente, o abortamento em casos de
gestação resultante de estupro, uma vez que, segundo os autores, “o nascituro é privado
de sua vida por causa de um crime cometido pelo pai”. O projeto de lei em questão
encontra-se apensado ao 1545/201132 de autoria de Eduardo Cunha (PMDB/RJ).

Em 2016, foram apresentadas duas proposições. O deputado Flavinho33


(PSB/SP) apresentou o PL 4646, modifica o artigo 124 do Código Penal ao incluir a
penalização do auxílio, indução ou instigação à provocação do abortamento e, além
disso, prevê a inclusão do abortamento na Lei Nº 8.072, de 25 de julho de 1990,
tornando a prática crime hediondo. Segundo o autor “a vida, tal como disposto na
Constituição Federal, deve ser compreendida como vida plena, desde a sua concepção
até o seu declínio natural”, desse modo, o direito à inviolabilidade deve ser garantido
nessas condições. A proposição foi apensada ao PL 4703/1998. Além desta proposição,
o PL 4396/2016, de autoria do deputado Anderson Ferreira (PR/PE), prevê aumento da
pena em um terço até a metade nos casos de abortamento provocado em função de
microcefalia ou anomalia do feto, com o objetivo de inibir movimentos pró-aborto que

30
“§ 7 º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o
planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e
científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições
oficiais ou privadas” (BRASIL, 1998).
31
Givaldo Carimbão (PROS/AL); Gorete Pereira (PR/CE); Flavinho (PSB/SP); Diego Garcia (PHS/PR);
Joaquim Passarinho (PSD/PA); Carlos Gomes (PRB/RS); Valtenir Pereira (PMB/MT); Sóstenes
Cavalcante (PSD/RJ); Jefferson Campos (PSD/SP); Izalci (PSDB/DF); Roney Nemer (PMDB/DF); Eros
Biondini (PTB/MG) e Professor Victório Galli (PSC/MT).
32
Assim como o PL 6115/2013.
33
Coautor no projeto de lei 3983/2015.
74

se organizam em torno da questão da microcefalia. A proposição encontra-se apensada


ao PL 1459/200334. Por fim, no ano de 2017, o deputado Cabo Savino (PR/CE)
apresentou o PL 8141, que prevê aumento das penas de reclusão dos crimes contra a
vida, incluindo os artigos 124, 125 e 126, referentes à pratica do abortamento. Segundo
o deputado, as penas previstas pelo Código Penal são brandas e não são suficientes para
prevenção dos crimes. A proposição encontra-se apensada ao PL 1612/201535.

4.3 O projeto de lei 478/2007

De acordo com o texto integral apresentado pelos deputados Luiz Bassuma e


Miguel Martini, a proposição, também chamada “estatuto do nascituro”, dispõe sobre a
proteção integral ao nascituro. O nascituro, conforme concepção dos autores, é
compreendido como o “ser humano concebido, mas ainda não nascido”. Uma vez que o
critério para demarcação do início da vida humana utilizado pelos autores da preposição
é o encontro de gametas e, portanto, a fecundação, estão inclusos na categoria nascituro
os gametas fecundados in vitro.

Dentre as disposições da preposição, o nascituro adquire personalidade jurídica


ao nascer com vida, mas sua natureza humana é reconhecida desde a concepção. Nesse
sentido, o estatuto prevê como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar ao
nascituro, com absoluta prioridade, a expectativa do direito à vida. Veda-se, ao Estado e
aos particulares, discriminar o nascituro ou privá-lo da expectativa de algum direito –
inclusive do direito à vida – em razão do sexo, idade, etnia, origem, de alguma
deficiência física ou mental ou da probabilidade de sobrevida após o nascimento. Nesse
sentido, coloca-se em questão o direito ao aborto em casos de incompatibilidade do feto
com a vida extrauterina. Além disso, veda-se causar qualquer dano ao nascituro “em
razão de um ato delituoso cometido por algum de seus genitores”, de modo que, ao
nascituro concebido em ato de violência sexual, será garantido o direito à vida.

Desse modo, as disposições especificadas acima entram em conflito com os


direitos à interrupção da gestação nos casos de estupro e de inviabilidade extrauterina
34
De autoria do deputado Severino Cavalcanti (PP/PE). A proposição acrescenta um parágrafo ao art. 126
do Código Penal e aplica pena de reclusão aos casos de abortos provocados em razão de anomalia na
formação do feto ou "aborto eugênico". Atualmente, aguarda designação de relator na Comissão de
Seguridade Social e Família.
35
De autoria do deputado Júlio Delgado (PSB/MG). Por sua vez, a proposição foi apensada ao PL
3787/2008.
75

do feto, ambos já garantidos legalmente. A proposição não trata de modo específico dos
casos em que há risco à vida da mulher gestante. Entretanto, questionamos se a questão
da prioridade da expectativa do direito à vida por parte do nascituro, pode fornecer
elementos para a criminalização do abortamento também nestes casos.

Prevê-se, no estatuto, a modalidade culposa do aborto e tipifica-se como crime o


anúncio de processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto, sob pena de
detenção de um a dois anos e multa. Além disso, aumenta-se a pena em um terço se o
processo, substância ou objeto são apresentados como métodos anticoncepcionais.
Lembremos que, conforme pode ser observado no anexo I, não é incomum a alegação
de que a contracepção de emergência é abortiva36. A proposição ainda tipifica como
crime induzir mulher grávida a praticar aborto ou oferecer-lhe ocasião para que ela o
pratique, sob pena de detenção de um a dois anos e multa. Além disso, fazer
publicamente apologia do aborto ou de quem o praticou, bem como incitar
publicamente a sua prática passam a ser atos criminalizados, sob pena de detenção de
seis meses a um ano e multa. Esta última especificação, criminaliza o debate e a
militância pela descriminalização da interrupção da gestação. Por fim, a proposição
prevê a inclusão do aborto nos crimes hediondos, bem como o aumento das penas de
reclusão previstas nos artigos 124, 125 e 126 do Código Penal.

Os deputados Luiz Bassuma e Miguel Martini apresentam uma breve


justificativa ao fim da proposição apresentada. Segundo os deputados, houve uma
proliferação de abusos com “seres humanos não nascidos”, dentre os quais figuram,
entre outros, “a condenação de bebês à morte por causa de deficiências físicas ou por
causa de crime cometido por seus pais”. Nesse sentido, faz-se necessário, segundo os
autores do estatuto em questão, um dispositivo legal que tenha como objetivo evitar tais
“atrocidades”. Portanto, para os autores, uma vez promulgada, a lei teria o efeito de
coibir tais práticas. Para dar legitimidade à argumentação, os autores não deixam de
citar autoridades do campo jurídico que compartilham do posicionamento que sustenta a
proposição. Nesse sentido, compõe a justificativa o trecho de um artigo de autoria da
promotora de justiça do Tribunal do Júri do Distrito Federal, Dra. Maria José Miranda
Pereira, publicado na revista jurídica Consulex:

36
Por meio de mais de um mecanismo de ação, que agem em conjunto ou isoladamente, a contracepção
de emergência impede a fecundação sempre antes da implantação, ou seja, o encontro entre o óvulo e os
espermatozoides. Não há evidências científicas de que a seu uso exerça efeitos após a fecundação ou que
implique a eliminação do embrião (BRASIL, 2005).
76

“Como Promotora de Justiça do Tribunal do Júri, na missão


constitucional de defesa da vida humana, e também na qualidade de
mulher e mãe, repudio o aborto como um crime nefando. Por
incoerência de nosso ordenamento jurídico, o aborto não está incluído
entre os crimes hediondos (Lei nº 8.072/90), quando deveria ser o
primeiro deles. Embora o aborto seja o mais covarde de todos os
assassinatos, é apenado tão brandamente que acaba enquadrando-se
entre os crimes de menor potencial ofensivo (Lei dos Juizados
Especiais 9.099/95). Noto, com tristeza, o desvalor pela vida da
criança por nascer”.

A citação escolhida indica que os autores, assim como a promotora,


compreendem o aborto como assassinato de uma vida que se iniciou a partir da
concepção. Por fim, de acordo com o texto justificativo apresentado pelos autores, “o
melhor de tudo” é que, uma vez que o abortamento provocado passe a figurar como
crime hediondo, não será mais possível suspender o processo penal e submeter os/as
infratores/as a restrições simbólicas, como, de acordo com os deputados, habitualmente
se faz.

Nesse sentido, diante das justificativas apresentadas, parece-nos que as medidas


propostas pelos deputados no projeto de lei em questão têm como objetivo certa
efetividade na coibição de práticas condenadas moralmente, se partirmos do princípio
de que o debate acerca do início da vida deve determinar os rumos do próprio debate
acerca da criminalização/descriminalização do abortamento.

4.3.1 Tramitação

Conforme ficha de tramitação disponível no portal da Câmara, a proposição foi


apresentada ao plenário pelo deputado Luiz Bassuma (PT/BA) no dia 19 de março de
2007. No dia 28 do mesmo mês, a proposição foi distribuída pela Mesa Diretora da
Câmara à Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) e à Comissão de
Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). No ano seguinte, a Mesa atribuiu a
proposição à Constituição de Finanças e Tributação (CFT), conforme determina o
Regimento Interno da Câmara. Na CSSF foi aprovado o parecer da Relatora designada,
Solange Almeida (PMDB/RJ). Em março de 2010, foi apresentado o parecer final pela
77

aprovação da proposição com substitutivo37. Entre algumas pequenas alterações feitas


no projeto de lei inicial, o voto da relatora sugere a supressão dos artigos 22 a 31, por
tratarem, segundo a deputada, de matéria cujo debate deve ocorrer no âmbito de leis
penais. Desse modo, se aprovado o substitutivo em detrimento da proposição inicial, o
aborto deixa de ser tipificado como crime hediondo. Além disso não será prevista como
crime a modalidade culposa do aborto, bem como o anúncio de processo, substância ou
objeto destinado a provocar aborto e a indução à prática do aborto. Fazer publicamente
apologia do aborto ou de quem o praticou, bem como incitar publicamente a sua prática
também deixam de ser atos criminalizados. Suprime-se, ainda, o aumento das penas de
reclusão previstas nos artigos 124, 125 e 126 do Código Penal. Por fim, a partir da
redução de dispositivos proposta pela relatora, retira-se a denominação de Estatuto.

O parecer aprovado pela CSSF ainda contava com complementação do voto da


relatora. A complementação modifica o artigo 13 da proposição, que dispõe sobre os
direitos assegurados ao nascituro concebido em ato de estupro, acrescentando a seguinte
expressão: “Ressalvados o disposto no Art. 128 do Código Penal Brasileiro”. Desse
modo, a relatora busca garantir o direito de decisão pela interrupção da gestação nessas
condições. O parecer da relatora foi aprovado pela CSSF contra os votos dos/as
Deputados/as Dr. Rosinha, Henrique Fontana, Darcísio Perondi, Arlindo Chinaglia, Rita
Camata, Jô Moraes e Pepe Vargas.

Em maio de 2010, a proposição e o substitutivo da CSSF foram recebidos pela


CFT. No mesmo mês, o deputado Eduardo Cunha, relator designado, apresentou parecer
com emenda de adequação financeira e orçamentária38 sobre o projeto de lei e do
substitutivo da CSSF. Em 6 de junho de 2013, foi aprovado o parecer do deputado
Eduardo Cunha, contra os votos dos deputados Devanir Ribeiro, Pedro Eugênio, Afonso
Florence, Erika Kokay, Cláudio Puty e Assis Carvalho. O Deputado Afonso Florence
apresentou voto em separado.

37
Acerca do substitutivo, conforme artigo 57 inciso IV do Regimento Interno da Câmara dos Deputados:
“ao apreciar qualquer matéria, a Comissão poderá propor a sua adoção ou a sua rejeição total ou parcial,
sugerir o seu arquivamento, formular projeto dela decorrente, dar-lhe substitutivo e apresentar emenda ou
subemenda”. Denominando-se “substitutivo” quando a alterar, substancial ou formalmente, em seu
conjunto, conforme parágrafo 4 do artigo 118. Por fim, conforme inciso II do artigo, o substitutivo de
Comissão tem preferência sobre o projeto na votação. Entretanto, conforme inciso V do mesmo artigo,
em caso de rejeição do substitutivo, a proposição inicial será votada por último, depois das emendas
apresentadas. As emendas devem ser votadas na seguinte ordem, conforme o inciso VIII: as supressivas,
as aglutinativas, as substitutivas, as modificativas e, por fim, as aditivas.
38
Emenda de adequação: “Esta lei entra em vigor na data de sua publicação e surtirá efeitos financeiros a
partir do primeiro dia do exercício seguinte ao de sua publicação”.
78

Ainda no mesmo mês, a proposição foi encaminhada à CCJC. O parecer do


relator designado, deputado Marcos Rogério (DEM/RO), aguarda votação da Comissão.
O texto do relator aprova o projeto de lei e do substitutivo nos quesitos
constitucionalidade e juridicidade, com ressalva ao artigo 28, que prevê como crime
“fazer publicamente apologia do aborto ou de quem o praticou, ou incitar publicamente
a sua prática”, uma vez que, segundo o relator, ninguém pode ser criminalizado/a por
defender a mudança de uma lei em vigor, o que fere o direito à liberdade de expressão.

Em função de requerimento apresentado ao plenário pelo deputado Glauber


Braga (PSOL/RJ), em junho de 2017 a proposição foi enviada à Comissão de Defesa
dos Direitos da Mulher (CMULHER) para exame. No momento, aguarda parecer do
relator designado, Diego Garcia39 (PHS/PR).

4.4 O projeto de lei 882/2015

De acordo com o artigo 1, a proposição do deputado Jean Wyllys tem como


objetivo garantir os “direitos fundamentais no âmbito da saúde sexual e dos direitos
reprodutivos, regular as condições da interrupção voluntária da gravidez e estabelecer as
correspondentes obrigações dos poderes públicos”. Nesse sentido, a proposição prevê o
direito de decidir livremente sobre a própria vida sexual e reprodutiva, conforme os
direitos e deveres estabelecidos na Constituição Federal.

Além disso, o projeto de lei prevê garantia, por parte do Estado, ao direito à
reprodução consciente e responsável, reconhecendo o valor social da maternidade na
garantia da vida humana. Nessa perspectiva, a proposição reconhece o exercício livre e
voluntário do direito à maternidade. Mesmo compreendendo o acesso à interrupção
segura da gestação como um direito, a proposição não parte do entendimento da prática
como instrumento de controle de natalidade. Nesse sentido, o projeto de lei prevê o
desenvolvimento de políticas sociais e de saúde que promovam educação sexual e
reprodutiva, de modo a fornecer informações sobre contracepção e sexo seguro, a fim
de prevenir a transmissão de doenças sexualmente transmissíveis e a gestação não
desejada. Além disso, prevê a garantia de acesso universal aos serviços e programas de
saúde sexual e reprodutiva, bem como a métodos seguros de contracepção de

39
O relator requereu audiência pública para discutir a proposição. O requerimento foi aprovado pela
Comissão.
79

emergência e às informações corretas quanto à sua utilização.

No que se refere à questão do abortamento, a proposição prevê o


fortalecimento da área técnica de Saúde da Mulher do Ministério da Saúde, a fim de
garantir a efetividade dos serviços de interrupção voluntária da gravidez e assegurar a
qualificação dos profissionais de saúde para a realização do procedimento 40. Ainda, são
estabelecidas certas condições para a interrupção da gestação. Em primeiro lugar, todas
as mulheres têm o direito de realizá-la, se assim decidirem, até a décima segunda
semana de gestação. Entretanto, o abortamento poderia ser realizado até a vigésima
segunda semana, desde que o feto pese menos de quinhentos gramas, em casos de
estupro, violência sexual ou ato atentatório à liberdade sexual. Nesses casos, não
haveria necessidade de apresentação de boletim de ocorrência ou laudo médico-legal.
Por fim, poderia ser realizado a qualquer momento nos casos em que a gestação
apresente risco à vida ou à saúde mulher ou inviabilidade de vida extrauterina do feto.

Em caso de manifestação do desejo de interromper a gestação, a lei determina


que as mulheres que o façam recebam informações sobre saúde e direitos sexuais e
reprodutivos, sobre os métodos de interrupção, sobre as condições previstas por lei,
sobre os equipamentos de saúde aos quais deve se dirigir e, por fim, sobre os trâmites
para realizar o abortamento. Para as mulheres que optem pela interrupção, determina-se
que seja distribuído material contendo informações sobre as políticas públicas
disponíveis para mulheres gestantes e sobre os equipamentos que fornecem atenção à
saúde durante a gestação e o parto, sobre os direitos trabalhistas em relação à gestação e
à maternidade, sobre políticas públicas para o cuidado e atenção dos filhos e filhas,
sobre os equipamentos que disponibilizam informações adequadas sobre contracepção e
sexo seguro e, finalmente, sobre os locais nos quais se possa receber acompanhamento
antes e depois da interrupção da gravidez.

Para a realização do procedimento, o projeto de lei determina a obtenção do


consentimento expresso e por escrito da mulher gestante maior de dezoito anos, do/a
representante legal juntamente com a mulher gestante maior de dezesseis e menor de
dezoito anos e dos pais, representantes ou responsáveis legais nos casos em que a

40
O projeto de lei prevê a possibilidade da manifestação de objeção de consciência, exceto nos casos em
que houver risco de vida para a mulher gestante ou danos ou agravos à sua saúde decorrentes da omissão,
em que não houver outro/a profissional que o realize e nos casos de atendimento de complicações
decorrentes de aborto inseguro. Nesses casos, é dever ainda do/a profissional informar à mulher seus
direitos e garantir a realização do procedimento por outro/a profissional ou serviço.
80

gestante tiver idade inferior a dezesseis anos. Nesses casos, caso a adolescente expresse
o desejo de não interromper a gestação, mesmo contra a vontade de seus pais ou
representantes legais, deverá prevalecer sua vontade. Além disso, será obrigatória a
manifestação do Ministério Público. Caso a gestante ou sua família estiverem em
condições de vulnerabilidade, serão assistidos pela Defensoria Pública. Nos casos de
uma mulher declarada incapaz em juízo, requer-se consentimento de seu/sua
representante legal.

A partir destas disposições, a proposição revoga os artigos 124, 126 e 128 do


Código Penal. Mantém-se a penalização do abortamento provocado sem o
consentimento da mulher gestante. O aumento da pena de detenção previsto no artigo
127, passa a referir-se à especificação do artigo 125.

O deputado Jean Wyllys inicia a justificativa de sua proposição trazendo a


invalidade dos argumentos apresentados para criminalizar o abortamento e as mulheres
que o praticam. Nesse sentido, a legislação atual seria sustentada por um “conjunto mal
articulado de mentiras, omissões e hipocrisias”, que encontram seu ponto de ancoragem
em uma parcela do sistema político e das instituições religiosas e na imposição de suas
crenças e preceitos morais, ferindo a laicidade do Estado. Entretanto, apesar da
invalidade, uma vez que que tais argumentos garantem a manutenção da criminalização
da prática, eles têm efeitos muito concretos nas taxas de morbimortalidade da população
feminina. Efeitos em vidas humanas cujo estatuto, segundo o deputado, é inquestionável
em qualquer esfera de saber: vidas de mulheres já nascidas.

O deputado pontua que, no interior desse conjunto de falácias, encontra-se


aquela segundo a qual a criminalização ou a descriminalização teria impacto real na
prevalência da prática entre a população feminina brasileira, uma vez que, conforme a
estimativa da produção acadêmica41 sobre o tema, ocorrem entre 729 mil a 1 milhão de
abortamento inseguros no Brasil, apesar da ilegalidade da prática. Apesar de sua
“inutilidade prática”, conforme argumenta o autor, a legislação proibitiva produz danos
sociais importantes, o que transforma o abortamento em uma questão de saúde pública e
não de direito penal. Desse modo, segundo o deputado, a segunda falácia consiste na
utilização da defesa da vida como como argumento para a manutenção da legislação,
pois os impactos das leis proibitivas podem ser medidos em termos de mortalidade

41
O deputado cita uma pesquisa realizada pela Universidade de Brasília em parceria com o Instituto Anis,
mas não especifica o documento nos quais os dados foram encontrados.
81

feminina. O deputado destaca que a terceira falácia consiste no caráter universal da


criminalização do abortamento, uma vez que, na prática, as mulheres que possuem
condições financeiras têm acesso ao aborto seguro, enquanto as mulheres pobres
vivenciam os efeitos da criminalização.

Em relação aos argumentos que culpabilizam as mulheres pela gestação


indesejada, o deputado pontua que, porque o abortamento é um processo difícil para as
mulheres que escolhem fazê-lo, não há a possibilidade de que a prática seja usada como
método contraceptivo. Além disso, argumenta que seu projeto de lei não garante apenas
o direito à interrupção da gravidez indesejada como também os materiais e métodos
necessários para sua prevenção: “educação sexual para decidir, contraceptivos para não
abortar e aborto legal para não morrer”.

Conforme a argumentação do autor da preposição, podemos destacar que as


condições para a dificuldade da descriminalização da prática têm suas raízes na
desinformação generalizada da população, que, por sua vez, relaciona-se de modo
especial a argumentos falaciosos, falsas informações e mentiras “difundidas pelas forças
patriarcais reacionárias e seus aliados”. Nesse sentido, o deputado destaca que a
autodeterminação reprodutiva das mulheres só pode ser possível por meio da
“implantação de um conjunto de medidas e políticas que promovam direitos, enfrentem
a cultura política patriarcal, o racismo e a desigualdade social”. Por fim, o deputado
argumenta que o direito ao abortamento legal e seguro fundamenta-se no âmbito do
debate internacional dos Direitos Humanos, de cujos pactos e protocolos o Brasil é
signatário42.

4.4.1 Tramitação

De acordo com a ficha de tramitação disponibilizada pela Câmara, a


proposição foi apresentada ao Plenário em março de 2015 pelo deputado Jean Wyllys
(PSOL/RJ). Ainda no mesmo mês, a Mesa Diretora da Câmara determinou a apensação
ao PL 891/2015, que, por sua vez, tramitava em conjunto com o PL 313/200743. O autor

42
O deputado destaca que o governo brasileiro se comprometeu a revisar as medidas punitivas que
incidem sobre as mulheres que praticam o abortamento ilegal, conforme compromisso disposto no
parágrafo 106 k. da Plataforma de Ação de Beijing.
43
Foram apensadas ao PL 313/2007 as proposições de número 1308/2007; 1413/2007; 1686/2007;
2464/2007; 3050/2011; 3637/2012; 7364/2014; 4725/2012; 6930/2013; 14/2015; 4909/2016; 718/2015;
82

apresentou requerimento para a desapensação do projeto de lei ao Plenário e à CSSF, na


qual esta última e os demais apensados que tramitam em conjunto aguardam, sob a
justificativa de que o PL 882/2015 trata temas díspares e mais amplos do que o
planejamento familiar, entre eles “o direito a uma vida sexual segura e à interrupção
voluntária da gravidez”. Entretanto, o requerimento foi retirado pelo próprio autor, e a
proposição segue tramitando em conjunto. O projeto de lei ao qual encontra-se
apensado, foi rejeitado pelo parecer da Comissão de Educação e de Cultura (CEC) e da
CSSF. Na primeira, o parecer foi aprovado por unanimidade e na CSSF a aprovação
está pendente.

882/2015; 891/2015’917/2015 e 3233/2015.


83

5 VERSÕES DE ABORTO VOLUNTÁRIO

A seguir, discutiremos as versões de aborto provocado que identificamos ao


longo da leitura das proposições e suas justificativas. Em um primeiro momento,
discutiremos a versão do aborto como assassinato, situando a ambiguidade da
valorização da vida enquanto argumento para a manutenção da legislação proibitiva. Em
seguida, discutiremos a versão do aborto como problema de saúde pública, levando em
consideração as alianças entre as versões, estabelecendo relações entre os atores do
debate acerca da descriminalização e a produção de dados no campo científico. Por fim,
discutiremos a versão do aborto como direito sexual e reprodutivo das mulheres.

5.1 Aborto como assassinato

Por meio da análise dos repertórios identificados na justificativa do projeto de


lei 478/2007, encontramos a primeira versão discutida neste trabalho: o aborto como
assassinato. Tal versão tem certas implicações concretas, como podemos notar no
posicionamento dos autores da proposição. Para os deputados, mesmo nos casos já
permitidos por lei, o aborto é impensável, uma vez que implica o assassinato de um ser
humano não nascido. Desse modo, conforme destacam os autores, o aborto em casos de
estupro ou o aborto terapêutico consiste em “(...) condenação de bebês à morte por
causa de deficiências físicas ou por causa de crime cometido por seus pais”. Nessa
perspectiva, o problema que se coloca com a interrupção da gestação não é a
impossibilidade de desenvolvimento de uma vida em potencial, mas o assassinato de
uma vida que já é. Essa versão implica um eixo de argumentação a favor da
criminalização da prática no âmbito do discurso da defesa da vida.

Entretanto, se a questão central é a vida, a noção de vida que guia a discussão


assume formas muito específicas. Na proposição, as mulheres não aparecem como
sujeitos de direito, sendo apenas citadas em função dos direitos do nascituro. Muito
menos são considerados os efeitos do aborto inseguro na população feminina. Desse
modo, projeto de lei parece produzir uma narrativa universalizante e dessituada sobre o
aborto, sem considerar a experiência feminina com a questão.

De acordo com os dados do Ministério da Saúde e de outras fontes de pesquisa


84

já citadas neste trabalho de pesquisa, a criminalização do aborto tem efeitos muito


diretos sobre as mulheres, não apenas enquanto indivíduos, mas também enquanto
subgrupo da população44. A falta de acesso ao procedimento realizado de modo seguro,
que decorre diretamente da incriminação da prática, leva a complicações graves de
saúde e ao aumento das taxas de mortalidade materna, sobretudo no caso das mulheres
que não têm acesso a médicos/as e suas clínicas clandestinas. O artigo 4 do projeto de
lei 478 determina que o nascituro tem direito à vida com absoluta prioridade 45. Desse
modo, consideramos que, caso os direitos do nascituro – inclusive o direito à vida –
entrem em conflito com os direitos fundamentais de outras categorias, são os direitos
daquele que devem ser assegurados. Parece-nos que há uma oposição, entre os direitos
das mulheres e o do nascituro, de modo que o próprio direito à vida das mulheres é
colocado em questão.

Nesse sentido, podemos observar o que, segundo Agamben (2007), é uma das
características mais importantes da biopolítica moderna46: a redefinição contínua da
vida e do limiar entre o que está dentro ou fora do que se entende como tal. A reflexão
do filósofo situa o problema da sacralidade da vida a partir da vida nua (bíos) na figura
do direito arcaico romano do homo sacer, “na qual a vida humana é incluída no
ordenamento unicamente sob a forma de sua exclusão (ou seja, de sua absoluta
matabilidade)” (AGAMBEN, 2007, p.16). Nesse contexto, o princípio da sacralidade da
vida, que se deseja fazer valer contra o poder soberano47 como um direito humano
fundamental, está justamente fundamentado sobre a sujeição da vida a um poder de
morte e sobre a irreparável exposição a uma relação de abandono48. Na politização da

44
Entendido no sentido Foucaultiano de objeto de tomada de poder na biopolítica.
45
Art. 4º “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar ao nascituro, com absoluta prioridade, a
expectativa do direito à vida, à saúde, à alimentação, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar, além de colocá-lo a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão”.
46
Biopolítica moderna, pois, segundo Agamben (2007), a vida sempre constituiu objeto de tomada de
poder e, ao incluir a vida biológica no centro de seus cálculos, o Estado moderno teria apenas
evidenciando o vínculo encoberto entre poder e vida.
47
Para Agamben (2007) o poder soberano está contido na forma da lei. No âmbito das análises sobre o
poder realizadas por Foucault, as práticas jurídicas não serão pensadas nos termos de uma ligação
essencial com o princípio da soberania, mas nos termos das implicações do direito com tecnologias de
sujeição polimorfas. Entretanto, segundo Fonseca (2002), para Foucault, o princípio de soberania
fundamenta a organização das teorias e práticas jurídicas no Ocidente e continua a existir na forma dessas
práticas. Desse modo, o direito ligado ao princípio de soberania e a normalização compõem os
mecanismos gerais de poder.
48
Para entendermos melhor essa inscrição da vida no direito, o filósofo situa o abandono como sua
relação originária e não a aplicação da lei. O bando e o abandono, portanto, seriam as chaves para a
análise da estrutura originária da soberania. A relação que se estabelece é a seguinte: o bando está inscrito
no poder soberano que o abandonou, e o está justamente por meio desse abandono, sendo incluído nas
85

vida nua pelas declarações de direitos humanos, redefinem-se as articulações e os


limiares que permitem isolar a vida matável. Durante o nazismo e a emergência do
conceito de “vida que não merece ser vivida” na cena jurídica europeia, podemos
observar o que o filósofo define como a estrutura biopolítica fundamental da
modernidade, a saber: “a decisão sobre o valor (ou sobre o desvalor) da vida como tal”
(2007, p. 144). Nesse contexto, toda valorização e politização da vida implicam
paradoxalmente, uma nova decisão sobre o limiar que determina quando a vida deixa de
ser politicamente relevante e pode ser impunemente eliminada, ou seja, implicam a
decisão sobre quem são os “homens sacros”. Esse limite, que depende da politização da
vida e da sua inclusão na ordem jurídica, alarga-se na história do Ocidente e se
manifesta no interior de toda vida humana, passando a habitar o corpo de cada ser
vivente. Desse modo, o campo de concentração passa a ser a matriz e o nómos do
espaço político, uma vez que o estado de exceção passa a ser a regra e “adquire uma
disposição espacial49 permanente que, como tal, permanece, porém, estavelmente fora
do ordenamento normal” (AGAMBEN, 2007, p. 176). Essa relação de externalidade
com o ordenamento jurídico normal, entretanto, não significa que o estado de exceção
não esteja inscrito nele. Pelo contrário, ele é justamente capturado fora e incluído por
meio dessa exclusão. Ou seja, o próprio estado de exceção está implicado na ordem
jurídica normal a partir desse mecanismo. Desse modo, segundo o filósofo, a
democracia moderna não faz abolir a vida sacra, mas a dissemina em cada corpo
individual e faz dela a aposta em jogo do conflito político, delineando-se na era
biopolítica um apagamento da fronteira entre os imperativos “fazer viver” e “deixar
morrer”. Um dos aspectos que podemos observar na biopolítica moderna é que há um
certo apagamento das fronteiras entre biologia e política, segundo o filósofo, podemos
observá-lo em uma “série de vidas”, mas há alguns exemplos em que ele se manifesta
com sutileza. Matabilidade em perfeita coexistência – senão em aliança – com o Estado
Democrático de Direito (AGAMBEN, 2007).

Ao discutir os efeitos de poder no interior do dispositivo da sexualidade,

operações de poder. Ele empurra até o limite a aporia da soberania, mas não consegue libertar-se. Tal
relação de bando deve ser reconhecida nas relações políticas. A relação de abandono é, portanto, a raiz
primeira de toda lei. Esta relação originária, entretanto, conserva-se ainda, uma vez que a humanidade
vive sob o bando de uma lei e de uma tradição que se mantém como “ponto zero” do seu conteúdo,
incluída em uma pura relação de abandono, de modo que a potência vazia da lei vigora, tornando-se
indiscernível da vida (AGAMBEN, 2007).
49
Segundo o filósofo, toda a territorialização deve ser entendida nessa matriz. O genocídio da juventude
nas regiões periféricas, por exemplo, demonstra como, nessa disposição espacial, o estado de exceção
pode ser a regra, mantendo-se, entretanto, fora do ordenamento normal.
86

Foucault (2015) destaca que não existe uma estratégia única válida para toda a
sociedade, mesmo no interior de domínios estratégicos bem delimitados e, ainda, há
uma certa correlação entre a preocupação com o corpo e o sexo com um certo racismo50.
O racismo de Estado, portanto, permite que uma tecnologia de poder que tem por
objetivo “fazer viver” possa expor à morte seus/suas próprios/as cidadãos/ãs. Racismo,
nesse sentido, é definido como o meio de introduzir no domínio da vida um corte entre
o que deve viver e o que deve morrer (FOUCAULT, 2005). Nesse sentido, Foucault
(2015) nos lembra que o poder de morte se apresenta como complemento de uma
tecnologia positiva e se apoia nas exigências de um poder que gere a vida, por meio do
seguinte princípio: “matar para poder viver”. São mortos/as, portanto, aqueles/as que
constituem uma espécie de perigo biológico para os/as outro/as (FOUCAULT, 2015, p.
148).

Podemos traçar um paralelo com a questão da criminalização do abortamento, se


percebermos que, por meio da politização da vida intrauterina, se atribui a qualidade de
matável à vida dessas mulheres, ou seja, um corte entre quem deve viver e quem deve
morrer é inserido a partir do próprio princípio de sacralidade da vida. Entretanto, no
interior desta discussão, desdobra-se ainda um aspecto específico a ser tratado. Uma vez
que a criminalização do aborto mata especialmente as mulheres que não têm condições
para ter acesso ao abortamento seguro, ainda que ilegal, a incriminação da prática é um
modo de realizar um corte a partir do qual os efeitos são distintos para os diferentes
grupos da população feminina. Nesse sentido, a criminalização incide sobre a população
de mulheres pobres e negras que realizam o aborto em situação de insegurança com
efeitos que permitem modos de controle específico dessa população, dada essa
associação entre o aborto inseguro e a mortalidade feminina. Desse modo, há um corte
de classe e, portanto, de raça, que nos faz perceber com mais clareza a seletividade dos
efeitos da legislação proibitiva, ainda que a criminalização afete todas as mulheres em
alguma medida. Diante dos efeitos da criminalização discutidos acima, talvez o aparente
silêncio acerca dos efeitos da criminalização sobre a população feminina não decorra do
fato de que tais efeitos passem despercebidos às operações de poder, mas, sim, do fato
de que não deixam de se inscrever no interior dos cálculos no controle da população.

50
A valorização do corpo que se inscreve no interior do dispositivo da sexualidade está fundamentada,
segundo Foucault (2015), no processo de estabelecimento da hegemonia burguesa por meio da
preocupação em assumir uma cultura do próprio corpo e uma sexualidade a fim de “garantir para si a
força, a perenidade, a proliferação secular deste corpo a partir do dispositivo da sexualidade” (Ibidem, p.
137); uma cultura que se desenvolvia sobre a “higiene do corpo” e a “ arte da longevidade”.
87

Tais efeitos, desse modo, podem exercer uma função desejada.

Sem desconsiderar o contexto da biopolítica, Butler51 (2015) afirma que o


problema que se coloca é que certas vidas não são concebidas enquanto tal de acordo
com certos enquadramentos epistemológicos. Tais enquadramentos determinam a
capacidade de apreender uma vida e, por sua vez, relacionam-se com certas normas que
determinam aquilo que deve caracterizá-la. Desse modo, a capacidade epistemológica
de apreender uma vida implica a própria produção dessa vida de acordo com as normas
acerca do que pode ser caracterizado como vida. Segundo Butler, tais enquadramentos
são politicamente saturados: são, em si mesmos, operações de poder. Nesse contexto, a
questão dos enquadramentos cria um problema ontológico, uma vez que o “ser” da vida
é constituído por meio dessas operações de poder, de modo que não é possível fazer
referência a esse “ser” fora delas. O problema epistemológico de apreender uma vida é,
portanto, criado por meio dessa produção normativa da ontologia. A tentativa de
determinar a produção dessa “especificidade ontológica” deve remeter, segundo Butler,
a uma discussão biopolítica à qual se relacionam os modos de “apreender, controlar e
administrar a vida” por meio de diferentes modalidades de poder (BUTLER, 2015, p.
34).

Segundo a filósofa, se queremos ampliar as reivindicações sociais e políticas


sobre os direitos à proteção e o exercício do direito à vida, à sobrevivência e à
prosperidade, é necessário que nos apoiemos em uma nova ontologia corporal que
implique repensar a precariedade e a vulnerabilidade, uma vez que a condição precária
comum a todo ser humano nos impõe a obrigação de questionar as condições a partir
das quais torna-se possível (ou impossível) que uma vida seja apreendida enquanto tal.
Os enquadramentos não apenas determinam modos de reconhecimento e apreensão de
uma vida, mas também constituem as suas condições de suporte. Desse modo, as
normas de reconhecimento devem basear-se na apreensão da precariedade comum a
toda vida52. Uma vez que a precariedade é uma condição geral da vida – coincidente

51
Apesar das reflexões sobre os enquadramentos serem realizadas em função da guerra, Butler pontua
que podem ser também utilizadas no debate acerca das liberdades reprodutivas. A filósofa dá algumas
diretrizes para que tais reflexões possam ser situadas neste âmbito, que são consideradas neste capítulo.
52
A apreensão de uma vida relaciona-se com a percepção, de modo que excede formas conceituais de
reconhecimento. Ela pode, portanto, colocar-se como a base da crítica às normas de reconhecimento
vigentes. Isso não significa que aquilo que apreendemos não esteja mediado pelas normas de
reconhecimento e, além destas, por condições gerais historicamente constituídas que implicam em uma
“possibilidade de ser reconhecido”, a qual, por sua vez, é produto de uma construção normativa ao longo
do tempo. Por outro lado, não se pode concluir que a apreensão está simplesmente limitada por tais
88

com o próprio nascimento –, a sobrevivência só pode acontecer em uma relação com a


alteridade, pois é nessa relação que a vida encontra seu suporte: “a vida de alguém está
sempre, de alguma forma, nas mãos do outro” (BUTLER, 2015, p. 31). Entretanto,
Butler ressalta que, nesse caso, referir-se à ontologia não significa reivindicar uma
descrição de estruturas fundamentais do ser desvinculadas de toda organização social e
política, uma vez que o “ser” ao qual essa ontologia se refere relaciona-se com as
normas e organizações que se desenvolveram historicamente, a fim de maximizar a
precariedade para uns e minimizar para outros.

Nesse contexto, a questão da passividade de luto da vida é central para


compreendermos a diferença na atribuição da possibilidade de reconhecimento, pois seu
valor aparece apenas quando sua perda tem importância. A população é dividida entre
pessoas cuja perda lamentamos e pessoas cuja perda não é lamentada. Estas últimas não
podem ser passíveis de luto, pois suas vidas nunca foram apreendidas como vida de
acordo com certos enquadramentos. Podemos notar tal divisão quando vemos que a
defesa de algumas vidas implica necessariamente a perda de outras. A distribuição
desigual do luto é uma questão de imensa relevância política, uma vez que o luto
público está estreitamente relacionado à indignação que a perda irreparável causa
(BUTLER, 2015). Desse modo, o luto pelas vidas perdidas por causa da criminalização
do abortamento poderia desestabilizar o ordenamento da autoridade política.

Como vemos, em especial a partir da justificativo do projeto de lei analisado, a


discussão acerca da descriminalização do abortamento frequentemente se dá no âmbito
das questões éticas e morais envolvendo o conceito de vida e, consequentemente, seu
suposto início. Tal aspecto é trazido principalmente pelos atores conservadores, mas,
uma vez colocado em pauta, passa a ser uma dimensão importante do debate. A partir,
no entanto, dessas reflexões trazidas por Butler (2015), é possível ressaltar que a
discussão sobre a vida que se inscreve no debate das liberdades sexuais e reprodutivas
não deve ser um debate ético ou moral acerca do início da vida, mas deve ser deslocada,
de modo que a reflexão moral se ocupe das operações de poder que determinam o que é
vida e com base em quais padrões.

normas.
89

5.2 Aborto como problema de saúde pública

Na justificativa do PL 882, vemos o autor da proposição articular dados acerca


da magnitude do aborto no Brasil e da mortalidade de mulheres em decorrência da
realização do aborto em condições inseguras para argumentar contra a legislação
proibitiva. Diante desses dados, Jean Wyllys afirma: “Não se trata de uma questão de
direito penal, mas de saúde pública”. Tais argumentos inscrevem o aborto inseguro nos
riscos à saúde da população feminina.

Nessa perspectiva, na medida em que o aborto inseguro associa-se às taxas de


mortalidade feminina, a mulher que se submete ao procedimento também se submete,
do mesmo modo, ao risco de morte. Nesse sentido, o aborto passa a ser uma questão de
saúde pública. No interior dessa versão, duas questões principais merecem reflexão: a
argumentação validada e sustentada por dados científicos e a medicina, mais
especificamente a saúde pública, como saber-poder que incide sobre a população com
efeitos disciplinares e reguladores. Entretanto, devemos enfatizar que tais questões se
relacionam de modo intrínseco no âmbito das formações discursivas nas diversas áreas
de saber como instrumento de poder e dos diferentes gêneros de linguagem que se
inserem no interior de estratégias de governamentalidade, como ressaltam Spink &
Menegon (2005).

Uma vez que afetam a população, os riscos tornam-se obrigatoriamente objetos


de gestão pública no governo da vida e das populações (SPINK; MENEGON, 2005).
Logo, o risco de mortalidade da população feminina precisa ser calculado – tornando
necessária a produção de informações sobre o problema – e gerenciado por meio de
certas estratégias, como a mudança – ou manutenção – da legislação acerca do aborto.
Tais estratégias de governamentalidade para gestão dos riscos são sustentadas por
práticas discursivas (SPINK; MENEGON, 2005). Nesse sentido, a construção do aborto
inseguro como problema de saúde pública se dá no âmbito da produção de dados no
campo científico53 e seu uso como argumento válido para a delimitação de problemas
que concernem à saúde pública, bem como de estratégias de gestão e controle.

Nesse sentido, o saber médico utiliza os dados produzidos acerca de mortalidade

53
Seguindo as pistas deixadas por Galindo (2003) na discussão acerca do uso de dados científicos como
argumentos, não negaremos a validade do discurso científico na constituição de determinadas questões
como problemas de saúde pública, mas refletiremos sobre como o uso desses dados, principalmente os
dados epidemiológicos, são cruciais na delimitação de problemas, bem como no planejamento e na
validação de medidas no âmbito da saúde pública.
90

feminina no campo científico como argumentos válidos para constituir o aborto


inseguro como um problema de saúde no âmbito da população e, consequentemente,
para a descriminalização da prática enquanto medida necessária frente ao problema.
Desse modo, certa “cientificidade” sustenta e legitima a constituição do próprio
problema, bem como as estratégias que permitem administrá-lo. A produção e o uso dos
dados como argumento, ambos compreendidos no âmbito da ciência como prática
social54, estão inseridos em determinadas redes heterogêneas, de modo que nenhum dos
dois são investidos de neutralidade (LATOUR, 2000; SPINK; MENEGON, 1999)

Tendo em vista a medicina enquanto saber-poder que disciplina e regula,


questionamos se essa produção de dados ainda não se inscreve no interior das operações
de poder no âmbito do controle da natalidade que Foucault (2015) descreve como um
dos domínios do dispositivo da sexualidade e da biopolítica. Nesse sentido, tendo em
vista a função de prescrição de instrumentos e técnicas para o bom governo e controle
da população dos saberes biomédicos e das instituições de saúde pública (MARTINS,
2006), questionamos se mesmo uma medicina que se diz comprometida com o bem da
população não fornece, do mesmo modo, os elementos para as práticas de controle, de
modo que mesmo as demandas por liberação acabem incorporadas nos mecanismos do
poder.

Devemos, desde já, pontuar que não temos respostas para as questões colocadas,
mas gostaríamos de fornecer alguns elementos com esta reflexão para compreendermos
a complexidade da inscrição da questão do aborto no domínio de saber-poder médico. É
possível que tal relação ambígua possa ser, em parte, compreendida à luz da não
uniformidade das estratégias do dispositivo da sexualidade, tendo em vista que políticas
de controle de natalidade e de esterilização afetaram mais diretamente as mulheres
negras55 (FERNANDES, 2016). Lembremos as denúncias de esterilização involuntária
realizadas em mulheres negras na década de 1980 com o objetivo de controlar a
natalidade desse subgrupo populacional (DAMASCO et al., 2012). Do mesmo modo,
conforme discutimos na versão anterior, a criminalização do aborto pode facilitar não
apenas o controle da natalidade entre essas mulheres, mas também permitir que essas

54
Tal concepção permite borrar fronteiras fixas entre produção e uso dos dados científicos, uma vez que
compõem um mesmo processo.
55
Conforme destaca Fernandes (2016), enquanto as militantes brancas reivindicavam a plena posse de seu
corpo e a independência em relação à gravidez e ao aborto, as negras estavam preocupadas com a
manutenção de suas famílias.
91

mulheres morram, evidenciando o caráter racista de um dispositivo da sexualidade que


se insere no âmbito da gestão da vida, conforme destaca Foucault (2015). A medicina é
uma estratégia biopolítica, lembra Foucault (1993), uma prática social de caráter sempre
social, que se apresenta na forma de um comprometimento ambíguo com a população:
“assistência-proteção, assistência-controle” (1993, p. 95). Entretanto, gostaríamos de
ressaltar que, por mais que haja uma certa intencionalidade na produção desses dados,
seu uso na defesa da descriminalização do aborto pode se dar a partir dos mais diversos
usos, nos quais podem assumir um sentido diverso e cumprir uma função não prevista,
mesmo que a produção de tais dados se insira no âmbito de uma moralização da
população. Desse modo, parece-nos que uma outra versão do aborto se aloca no interior
do debate suscitado pela versão do aborto como problema de saúde pública: o aborto
enquanto problema de saúde pública é uma questão de classe. Conforme destaca Jean
Wyllys: “a criminalização do aborto é uma questão de classe, já que só vale, na prática,
para as mulheres pobres”.

Por fim, consideramos que o uso dos dados epidemiológicos no debate sobre a
criminalização/descriminalização do aborto apresenta uma outra ambiguidade. Por um
lado, apresenta-se como importante via de legitimação da descriminalização da prática.
Por outro, pode servir para legitimá-la apenas porque se apresenta como um problema
que afeta o plano da população, como se, talvez, a descriminalização só fosse aceitável
uma vez que o aborto inseguro mata mulheres, desvalorizando, em certa medida, o
debate que se trava no plano de outros saberes. Logo, parece-nos que a centralidade do
uso de dados epidemiológicos prioriza no debate os argumentos providos de
cientificidade em detrimento de outras perspectivas, deslegitimando a argumentação no
campo moral (GALINDO, 2003). Nesse contexto, a ênfase nesse tipo de argumentação
pode ofuscar a argumentação pela descriminalização do aborto no eixo do direito de
decisão sobre o próprio corpo. Lembremos que, segundo Foucault (2005), faz-se
necessário interrogar sobre a ambição de poder que uma ciência traz consigo,
considerando quais outros tipos de saber que o saber que se institui como científico
deseja desqualificar, de quais outras formas circulantes e descontínuas de saber deseja
se distinguir.
92

5.3 Aborto como direito feminino

Na argumentação desenvolvida na justificativa do projeto de lei 882/2015, o


deputado Jean Wyllys também pauta a discussão atual acerca da descriminalização do
aborto no campo dos Direitos Humanos. O autor da proposição afirma: “O direito das
mulheres à interrupção voluntária da gravidez, em ambiente legal e seguro, está fundado
no Direito Internacional dos Direitos Humanos. ” (sic.).

Observamos, portanto, constituir-se no interior desse debate político ainda uma


outra versão do aborto: a prática enquanto um direito feminino. Nesta versão, o direito
ao aborto se inscreve no âmbito dos direitos sexuais e reprodutivos. É nessa direção que
o deputado aponta, quando menciona em sua justificativa um longo processo no qual

organizações da sociedade civil que trabalham para a igualdade


de direitos entre homens e mulheres e para a efetiva
implementação dos direitos das mulheres vêm travando batalhas
no campo democrático no sentido de garantir que o Estado
dispense a atenção devida aos temas que afetam direta e
especificamente a saúde das mulheres, e os direitos sexuais e
reprodutivos no Brasil.

Aqui, nos deparamos com a inevitável tarefa de pensar a questão dos direitos em
toda sua complexidade, tarefa para a qual as reflexões de Butler (2014) nos fornecem
uma singular provocação, sobretudo quando se trata de pensar criticamente a questão da
reivindicação de direitos no âmbito das práticas jurídicas. Isso porque, segundo a
filósofa, mesmo algo que é criado para nos proteger, como o aparato jurídico, pode
acabar sendo o instrumento de nossa própria opressão (BULER, 2014). Conforme
discutimos anteriormente, o próprio aparato jurídico estabelece uma relação
fundamental com esse processo de normalização. A busca pela garantia legal dos
direitos das mulheres normaliza o que é ser mulher, uma vez que é necessário instituir a
mulher enquanto categoria unitária em nome da qual se faz a reivindicação. Um apelo
acrítico a esse sistema, em nome da emancipação dessa categoria, estaria assim fadado
ao fracasso. Podemos ver com clareza nessa questão aquela imagem do direito
normalizado-normalizador descrita por Fonseca (2002).

Apesar das ambiguidades do discurso dos direitos fundamentais individuais no


âmbito jurídico-político, devemos ressaltar que a argumentação em torno dessa versão
adquire sentido singular no âmbito da luta pela descriminalização do aborto que se
93

inscreve nas várias versões do feminismo enquanto movimento social. Nesse sentido,
apesar das consonâncias que notamos por meio deste trabalho de pesquisa entre as bases
das reivindicações feministas e do posicionamento dos atores que se inserem no campo
do direito, nos parece que os sentidos do direito ao corpo e à autonomia podem ser
fontes de descontinuidade entre ambos. As reivindicações feministas parecem ir além,
transformando o direito ao corpo e à autonomia na decisão pelo abortamento e pela
maternidade em uma luta pelo direito a uma outra vida: uma vida além das
normatividades impostas pela estratégia de poder biopolítica, no interior do qual a
sexualidade é um ponto de apoio e articulação de estratégias de poder.

Nesse sentido, ao questionar a normalização dos modos de ser mulher a partir da


resistência ao imperativo da maternidade, para além de qualquer conteúdo identitário e
de demandas específicas, a mais rica contribuição dos feminismos é a luta por outras
formas de existência, além daquelas às quais fomos confinadas na história. Apesar de
passar pela questão do direito ao próprio corpo como direito feminino, a luta feminista
pela descriminalização do aborto não se restringe, portanto, à noção de autonomia como
direito fundamental do indivíduo neoliberal, mas assume o corpo e vida femininos como
ponto de articulação das estratégias de poder no dispositivo da sexualidade, organizando
em torno destes seus modos de resistência à normatividade. O corpo e o sexo, portanto,
colocam-se como ponto de ancoragem não apenas das tecnologias de poder que
normalizam e controlam, mas das estratégias de resistência a qualquer forma de
imperativo, abrindo a possibilidade para a criação e construção de novos modos de ser
mulher, de outras subjetividades. Nesse sentido, Haraway destaca:

Precisamos do poder das teorias críticas modernas sobre como


significados e corpos são construídos, não para negar significados e
corpos, mas para viver em significados e corpos que tenham a
possibilidade de um futuro. Saberes localizados requerem que o objeto
do conhecimento seja visto como um ator e agente (1995, p. 16).

Desse modo, distanciando-se dos sentidos que os direitos fundamentais


assumem no âmbito do discurso de um direito normalizado-normalizador, tais
repertórios se associam à busca pela fuga da fixidez dos lugares que nos são imperativos
no interior da luta feminista pela descriminalização do aborto, abrindo um campo de
possibilidades de tantos outros lugares que podemos ocupar, se assim desejarmos.
Trata-se do que Rago (2006), ao se apropriar da noção Foucaultiana, chama de
94

heterotopias feministas.

Se retomarmos uma das reflexões de Foucault, em “A vontade de saber” (2015),


podemos afirmar que os discursos podem ser usados por estratégias de poder distintas e
com um novo sentido. Desse modo, podemos escapar das tentativas de controle da
polissemia das formações discursivas descrita por Foucault em “A ordem do discurso”
(2002), e que têm por objetivo dominar seu caráter contingente e seus diversos usos,
fazendo com que seus efeitos de poder sejam homogeneizados.

Assim, se a experiência feminina é resultado de efeitos de saber-poder inscritos


no dispositivo da sexualidade, os feminismos nos fornecem, de forma singular, a partir
da relação com o próprio corpo e da trajetória histórica de nosso sexo, os meios de lutar.
Talvez a sensibilidade – não enquanto qualidade natural e intrinsicamente feminina, mas
como qualidade ligada à experiência histórica de ser mulher – seja a maior estratégia
para fugir de tais normatividades, se seguirmos a pista de Foucault e compreendermos a
existência como atividade poética, estabelecendo relações com nós mesmas de
“diferenciação, criação e inovação”, como propõe o filósofo, nos afirmando, para além
de qualquer identidade fixa, como força criativa (FOUCAULT, 2004).

A noção de uma existência criativa na obra de Foucault, conforme destaca


Figueiredo (2010), surge da urgência de ser sujeito da própria existência, da necessidade
de constituir a si mesmo como sujeito para além das normatividades e dos códigos que
regulam os pormenores da vida. Nesse contexto, uma estética da existência toma forma
nas reflexões de Foucault (1994) a partir da forma geral de interrogação moral que foi
colocada pelos gregos a propósito dos aphrodisia ou do uso dos prazeres. O uso dos
prazeres constitui-se como um domínio da experiência moral, não como algo a ser
controlado por meio da tentativa de definições de regras válidas ou interdições. Nesse
regime antigo, descrito por Foucault, o uso dos prazeres é problematizado, tornando-se
objeto de cuidado, elemento para reflexão, matéria de estilização. Uma forma de
exercício moral contingente que se dá levando em consideração o contexto e a
circunstância, forma por meio da qual os gregos não apenas determinavam regras de
conduta, mas também buscavam transformar-se e modificar-se em seu ser singular,
fazendo da própria vida uma obra de acordo com certos valores estéticos e critérios de
estilo56. Desta forma de exercício moral decorre uma moralidade que não consiste em

56
É bem verdade que Foucault (1994) lembra que se trata aí de uma moral de homens feita para homens e
95

seguir princípios gerais de conduta, mas que faz valer a diferença entre os critérios
morais situados em determinadas circunstâncias, de modo que o pensamento prático
deve definir o que convém fazer, sem necessidade do texto da lei, mas de um “saber-
fazer” que guie a ação de acordo com seu contexto e seus próprios fins: um saber fazer,
de certo modo, localizado. Esse modelo conduz a uma estética da existência, uma vez
que permite que o indivíduo se constitua como sujeito de uma conduta moral por meio
das práticas de si enquanto modos de produção de subjetividade não mais sujeitas aos
mecanismos de normalização (FOUCAULT, 1994). Nesse sentido, a estética da
existência pode ser entendida como um princípio que pode fundamentar práticas,
técnicas e artes que visam à constituição de subjetividades que não seriam mais
assujeitadas e assujeitadoras. Práticas de liberdade que têm a própria vida como objeto,
que remete ao trabalho que um indivíduo faz para se tornar um sujeito ético. Essa
estética fornece, portanto, uma forma e não uma regra específica (FIGUEIREDO,
2010).

Nas artes da existência, entretanto, por mais que a noção de indivíduo ainda seja
central – pois a vida como obra de arte é resultado da construção da própria existência
de acordo com certos padrões morais e estéticos determinados de maneira pessoal –, as
técnicas e práticas de si aí envolvidas não assumem, segundo Rago (2006), uma
dimensão individualista, mas se dão mediante trocas no interior de relações
interindividuais, de modo que a existência enquanto exercício criativo possui caráter
fundamentalmente coletivo. Nesse sentido, Foucault destaca:

É necessário distinguir. Em primeiro lugar eu penso efetivamente que


não há um sujeito soberano, fundador, uma forma universal de sujeito
que poderia ser encontrada por toda parte. Eu sou muito cético e hostil
em relação a esta concepção de sujeito. Eu penso, pelo contrário, que
o sujeito se constitui através de práticas de assujeitamento ou, de uma
maneira mais autônoma, através de práticas de liberação, de liberdade,
como na Antiguidade, a partir [...] de um certo número de regras,
estilos, convenções que se encontram no meio cultural (1984, p. XI;
tradução nossa)

destaca que tal ética sexual repousava, de fato, em um sistema de desigualdade, em particular em relação
às mulheres e aos escravos. Há um caráter viril do domínio sobre si, destaca Foucault, e as virtudes da
moral dos prazeres nas mulheres encontram-se sempre em referência à tal virilidade. Uma referência
institucional – pensando na posição de dependência ao homem na família e na cidade –, mas também na
relação consigo mesmo, nos termos de uma virilidade estrutural. (FOUCAULT, 1994, p. 77). Entretanto,
o que Foucault busca resgatar ao voltar-se para à antiguidade é a forma de trabalho sobre si e de domínio
sobre si no uso dos prazeres como atividade moral.
96

Nesse sentido, para além de quaisquer conteúdos que possam fornecer, as


epistemologias feministas nos presenteiam com novos modos de pensar o mundo e agir
sobre ele e sobre si, novos modos, portanto, de constituir-se como sujeito. Desse modo,
os feminismos nos parecem uma bela expressão da vida como exercício criativo em um
mundo no qual a sensibilidade foi cindida da razão, desvalorizada em relação a esta e
associada ao feminino; um mundo que valoriza saberes abstratos e universalizantes em
detrimento dos saberes da experiência localizada, conforme destaca Haraway (1995).
Desse modo, a experiência feminina – livre de qualquer essencialismo – é potente
ferramenta para empreendermos a existência enquanto exercício estético. Talvez por
isso a categoria mulher tem um papel estratégico nas resistências “possíveis e
necessárias” no campo das relações de poder, mesmo que apontemos para um horizonte
no qual nem mesmo a noção de categoria unitária seria fonte de opressões. Lembremos
que, segundo Foucault (2015), é mais comum que se apresentem pontos de resistência
móveis, transitórios, que introduzem na sociedade clivagens, rompem unidades e
suscitam reagrupamentos, percorrendo os indivíduos e transformando-os. Desse modo,
mesmo sem pretensões de efeitos transformadores globais, as resistências causam
deslocamentos e transformações localizadas.

Diante dessas considerações, emerge a necessidade de um direito que se alinhe


com a possibilidade dessas existências não assujeitadas para efetivação das demandas
femininas. Segundo Fonseca (2002), Foucault destaca que os saberes e as práticas
jurídicas tradicionais fundamentam-se no princípio da soberania, uma vez que se
inscrevem no problema da centralização do poder e da obrigação legal da obediência.
Entretanto, poderíamos encontrar em Foucault posturas de desfamiliarização e recusa
em relação a tais saberes e práticas57 (FONSECA, 2002). Desse modo, por mais que
uma atitude crítica se apresente por meio de um novo conteúdo – como o discurso dos
Direitos Humanos e a demanda por proteção das minorias no âmbito das práticas
jurídicas, por exemplo – será necessário, ainda, pensar em novas formas de garantir sua
efetivação.

Essa postura crítica, presente nas reflexões de Foucault, leva à formulação de um


novo direito que se apresente como forma de resistência à normalização, libertando-se

57
Fonseca (2002) chama essa postura nos trabalhos de Foucault de “negativa”. Entretanto, não
utilizaremos essa caracterização, uma vez que compreendemos que mesmo as práticas de recusa e
desfamiliarização produzem efeitos, sendo, inclusive, a postura “positiva” de proposição de um novo
direito um deles.
97

do princípio da soberania, sobre o qual se fundamentam as práticas jurídicas. Esse novo


direito se inscreveria no âmbito da oposição do governo de si mesmo às estratégias de
governamentalidade que se dão por meio da sujeição e da produção de subjetividades
normalizadas nos domínios de saber-poder. Segundo Fonseca (2002), alguns
apontamentos são apresentados sobre um campo de referência que poderia colocar-se
como base para pensar novas práticas e saberes ligados ao campo do direito. Apesar da
dificuldade apontada por Foucault em se estabelecer definitivamente essa nova forma
do direito segundo critérios absolutos, a noção de arbitragem aparece em suas reflexões,
colocada em referência à necessidade de reexame permanente da racionalidade que
fundamenta as decisões em relação a determinada matéria no campo dos direitos, por
meio de inquietação, reflexões, experiências e transformações constantes. Arbitragem
por meio de decisões que não se restringem aos domínios de saber institucionalizados e
seus especialistas, mas envolvem os indivíduos e movimentos coletivos quando se
referem aos domínios que lhes são pertinentes. Desse modo, a arbitragem proposta por
Foucault deve se ordenar em torno de um eixo normativo representativo que implica
consentimento e consenso ético entre estes atores em face das questões concretas. Um
consenso que deve fundamentar-se na inquietação e é formado por meio da reflexão
constante. Tal eixo normativo, portanto, deveria funcionar estabelecendo uma relação
contingente com as reivindicações e as matrizes nas quais se inserem, evitando que a
norma funcionasse como um mecanismo de disciplinarização, garantindo a
multiplicidade e a pluralidade em detrimento da uniformização. Esse novo direito para o
qual apontaria Foucault estaria inserido no campo de uma reflexão de caráter ético,
entendido como o campo das relações consigo e com a alteridade no exercício da
liberdade. Nesse sentido, o direito integraria o jogo móvel e contingente da arbitragem
social, deixando de consistir em uma instância universal baseada em valores absolutos,
passando a ser construído por meio da prática individual e coletiva (FONSECA, 2002).

Além de dialogar com as reivindicações pelo direito ao corpo e à autonomia,


conforme discutimos, o aborto como direito feminino também remete ao direito das
mulheres à saúde e à vida. Segundo Jean Wyllys:

Os direitos sexuais e os direitos reprodutivos fazem parte dos


direitos humanos e têm como marco a Constituição Federal de
1988, que incorpora o direito a saúde no rol dos direitos sociais,
no seu artigo 6º, e estabelece que “a saúde é direito de todos e
dever do estado, garantido mediante políticas sociais e
econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros
98

agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços


para sua promoção, proteção e recuperação”, no artigo 196.

Desse modo, vemos na argumentação pela descriminalização a associação entre


as duas versões que identificamos por meio da análise dos repertórios: o aborto como
direito e o aborto como problema de saúde pública. Podemos pontuar ainda que, se o
aborto pode se inscrever no âmbito do direito à saúde e à vida, é justamente como efeito
concreto dos usos da versão de aborto como problema de saúde pública. É, portanto, o
uso da produção dos dados epidemiológicos acerca da relação entre mortalidade
feminina e o aborto inseguro que permite que o aborto possa ser reivindicado como um
direito, tanto no âmbito institucional das práticas jurídicas, quanto nas estratégias de
resistência aos efeitos de poder disciplinares e reguladores.
99

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para os fins da discussão realizada nesta pesquisa, assumimos que o corpo


feminino se coloca como um ponto de passagem importante nas estratégias de poder
disciplinares e reguladoras no âmbito da biopolítica. A partir do dispositivo da
sexualidade, esse corpo foi objeto de um processo de histerização, que o analisou como
um corpo saturado de sexualidade, integrou-o ao campo das práticas médicas e o
colocou em comunicação orgânica com o corpo social por meio da regulação da
fecundidade, com o espaço familiar e com a vida das crianças por meio de uma
responsabilização biológico-moral (FOUCAULT, 2015). Nesse contexto, os saberes e
as práticas jurídicas estabelecem uma relação com os mecanismos de sujeição: eles os
fazem funcionar e funcionam por meio deles (FONSECA, 2002).

Conforme um dos objetivos específicos, fizemos um panorama da atividade


legislativa sobre o aborto voluntário na Câmara dos Deputados. No período de 2007 a
2017, foram apresentados 20 projetos de lei que previam mudanças na penalização dos
casos de abortamento, seja sua diminuição ou aumento, a penalização do aborto nos
casos já previstos no Código Penal ou a modificação das condições para o acesso ao
abortamento legal. Nesse período apenas duas proposições tratavam da
descriminalização da prática em alguma medida. O que notamos, portanto, foi uma
intensa atividade no processo legislativo a fim de restringir as condições de acesso ao
aborto legal – e, portanto, seguro – em geral.

Por meio da análise dos repertórios sobre aborto voluntário nos dois projetos de
lei escolhidos, identificamos três versões deste mesmo objeto: o aborto como
assassinato, o aborto como problema de saúde pública e o aborto como direito feminino.
Devemos ressaltar que as três versões identificadas refletem o debate na sociedade
acerca da legislação da prática, conforme discutimos ao longo desta pesquisa.

Pudemos observar dois elementos transversais às três versões identificadas em


torno dos quais a argumentação é construída e através dos quais, portanto, as versões
são performadas, a saber: a vida e o direito. Todavia, mesmo tais elementos se
apresentam como múltiplos. A vida da qual se fala em uma versão, pode ser distinta
daquela que se inscreve na outra. O direito que se apresenta como argumento para
performar esta ou aquela versão possui sentido singular em cada uma delas. As noções
de vida e de direito, portanto, assumem sentidos distintos em função do posicionamento
100

dos atores e dos efeitos de poder desejados.

Nesse contexto, é por meio da noção de vida como recurso discursivo que o
corte entre quem deve viver e quem deve morrer é constantemente redefinido, noção
esta que assume sentidos diferentes dependendo da estratégia de poder na qual se
inscreve. Se o aborto é compreendido como assassinato, a argumentação a favor da
criminalização da prática organiza-se em torno do princípio da sacralidade da vida; vida
que se inicia com o encontro dos gametas. Entretanto, se considerarmos que o aborto
ilegal – portanto, inseguro – se coloca como uma das principais causas de mortalidade
materna, o “direito à vida” pode se colocar também como um argumento pela
descriminalização da mesma prática.

Do mesmo modo, tanto nas estratégias de argumentação a favor como naquelas


contra a criminalização do aborto, a noção de direito se coloca como um dos elementos
centrais. Todavia, não devemos concluir que esse eixo argumentativo estabelece uma
relação de mera independência frente às estratégias que se ordenam em torno da defesa
da vida, seja da vida intrauterina ou da vida das mulheres. Isso porque a vida é
compreendida por todas as estratégias argumentativas inscritas nas versões – e
concomitantemente performadas por elas – como um direito fundamental.

Além da polissemia das noções de vida e direito entre as versões, tais noções
também assumem sentidos distintos quando mobilizadas como argumento pelos
diferentes atores que se inscrevem no debate. Desse modo, levamos em consideração
que mesmo as versões que encontram seu ponto de apoio em certas instituições de
disciplina e controle podem, por sua vez, ser utilizadas como forma de resistência.
Tendo em vista a função dos saberes biomédicos no biopoder, destacamos que, mesmo
que haja nesse contexto a intenção de disciplinar indivíduos e regular a população na
construção do aborto como problema de saúde pública, a argumentação pela
descriminalização da prática tecida em torno desta versão por outros atores presentes no
debate pode extrapolar a intencionalidade inicial. Algo semelhante pode ser observado
no uso de princípios que possibilitam a constante captura da vida da esfera jurídico-
política como estruturadores do principal eixo de argumentação acerca da
descriminalização do aborto pelo movimento feminista. Nesse sentido, as posturas
feministas transformam as reivindicações do direito ao próprio corpo e à autonomia em
uma reivindicação ao direito de existir de forma singular e poética.
101

Considerando-se as diferentes versões de aborto identificadas por meio da


análise dos repertórios, podemos observar que o aborto é múltiplo. Entretanto, as
versões não são totalmente independentes e se coordenam por meio de determinadas
operações. Conforme vimos, Mol (2002) destaca que as versões estabelecem relações
entre si de modo que a própria singularidade de um objeto seja performada, mesmo que
estabeleçam uma relação de conflito e incompatibilidade entre si. No caso do objeto
desta pesquisa – o aborto –, mesmo as versões incoerentes entre si performam o objeto
em sua singularidade como um objeto controverso. As três versões identificadas se
ordenam por meio da adição, de modo que o resultado desse processo seja um objeto
único. E isso não apenas quanto às versões em relação de coexistência pacífica e/ou
dependência, mas também quanto àquelas conflitantes entre si, como as versões de
aborto como assassinato e como direito feminino. Desse modo, o debate acerca da
legislação da prática se torna especialmente controverso. Entre a versão do aborto como
assassinato, de um lado, e as versões do aborto como problema de saúde pública e
direito feminino, de outro, podemos observar uma relação mais clara de oposição e
confronto. Tais versões se inscrevem em contextos distintos e são performadas por
práticas e atores distintos. Elas se encontram, no entanto, no debate sobre a legislação e
esse embate dificulta qualquer mudança da situação atual.

Além disso, as versões podem depender umas das outras para serem
performadas. Na justificativa do projeto de lei 882/2015, o aborto como direito
feminino, mais especificamente no âmbito do direito à saúde e à vida, exerce uma
relação de dependência com a versão do aborto como problema de saúde pública. A
correlação entre a produção de dados epidemiológicos acerca da mortalidade materna e
o aborto inseguro performa a prática como um problema de saúde pública, que, por sua
vez, inscreve em si a versão do aborto como garantia do direito à saúde.

Retomemos o objeto dessa pesquisa em sua singularidade. Com relação à adição,


Mol (2002) pontua que a fim de alcançar coerência entre as versões, faz-se necessário
estabelecer uma hierarquia entre elas de modo que, se entram em conflito, uma delas
possa prevalecer. Desse modo, concordamos com o questionamento da necessidade de
um conceito normalizador, feito por Martins et al. (2016), e indagamos se, em relação à
questão do aborto, talvez a afirmação da multiplicidade não possa ser uma via possível
de superação dos problemas concretos que se colocam com a sua criminalização.
Assumindo que, “mais do que diferenças linguísticas, versões são modos de performar
102

práticas” (MARTINS et al., 2016), consideramos que a afirmação da multiplicidade do


aborto voluntário pode levar à multiplicidade na performatividade de práticas em
relação a ele.

Mol (2002) afirma que as controvérsias sobre um objeto são resultado da


afirmação de que a realidade é singular e não múltipla. Sugerimos, portanto, a recusa
das pretensões de universalidade a fim de que possamos produzir, conforme sugere
Haraway (1995), saberes corporificados, locais, capazes de produzir sentidos a partir
das mulheres como sujeitos de conhecimento/agência, com efeitos de poder não mais
assujeitadores, mas que, antes, se colocam como estratégias de poder capazes de
desassujeitar. As autoras feministas que, vez ou outra, aparecem neste trabalho – mas
cujo pensamento ressoa na totalidade desta pesquisa – nos apresentam um modelo que
se coloca como alternativa não apenas para a produção de conhecimento que se opõe ao
modelo masculinista universal, mas que apresenta novas possibilidades de pensar o
mundo, agir sobre ele e se constituir enquanto sujeito.

A partir dessas condições, a questão que se coloca é a seguinte: como se dará o


modo de coordenação neste caso, não mais das versões, mas das práticas com relação ao
aborto que as diferentes versões podem performar, tendo em vista essa multiplicidade
que deve ser afirmada? Sugerimos, na esteira do novo direito identificado por Fonseca
(2002) nas reflexões de Foucault, que qualquer consenso ético que fundamente a
legislação das práticas relativas ao aborto seja construído coletivamente, tendo como
elemento fundamental a afirmação das mulheres como sujeitos de direito. A afirmação
da multiplicidade deve trazer consigo a possibilidade de que cada um/a possa ser sujeito
moral de sua própria conduta. Essa seria a chave que se coloca como alternativa à
situação em que nos encontramos: a afirmação da multiplicidade que permite o governo
de si, a autodeterminação. Entretanto, destacamos que é fundamental que, como
condição de tais práticas, as mulheres sejam consideradas sujeitos morais constituídos
por modos de produção de subjetividade não mais sujeitos aos mecanismos de
normalização e regulação.

Encerramos este trabalho de pesquisa afirmando que não pretendemos esgotar as


versões de aborto que se inscrevem no debate sobre a legislação, muito menos as
relações que estabelecem entre si. Buscamos evidenciar algumas delas, de modo que
possamos compreender que seus usos e suas formas de coordenação têm implicações
políticas. Concluímos, por fim, que os apontamentos que fazemos podem, de fato, trazer
103

consigo algumas impossibilidades práticas em relação à implantação de políticas que


não conseguiremos – nem pretendemos – esgotar nessa dissertação. O que almejamos,
de forma mais modesta, é que essas considerações possam impulsionar o debate, tendo
em vista a multiplicidade de posicionamentos e de práticas que deve ser afirmada tendo,
contudo, como condição respeitar o direito feminino à autonomia.
104

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte:


Editora UFMG, 2007.

ARAGAKI, S. S.; PIANI, P. P.; SPINK, M. J. O uso de repertórios linguísticos em


pesquisas. In: A produção de informação na pesquisa social: compartilhando
ferramentas. SPINK, M. J.; BRIGAGÃO, J.; NASCIMENTO, V.; CORDEIRO, M.
(orgs.). 1 ed. Rio de Janeiro: Centro Eldenstein de Pesquisas Sociais, 2014.

BASSIMA, L.; MARTINI, M. Projeto de lei 478/2007. Dispõe sobre o Estatuto do


Nascituro e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=345103>
. Acesso em 9 out. 2017.

BRAIDOTTI, R. Las figuraciones del nomadismo. In: Feminismo, diferencia sexual y


subjetividade nómade. Barcelona: Gedisa, 2004

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 24
abr. 2017.

BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível


em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso
em 24 abr. 2017.

BRASIL. Lei número 9.868, de 10 de novembro de 1999. Dispõe sobre o processo e


julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de
constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9868.htm>. Acesso em 20 out. 2017.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações


Programáticas Estratégicas. Atenção humanizada ao abortamento: norma técnica. 3
ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2011.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações


Programáticas Estratégicas. Manual dos comitês de mortalidade materna Ministério
da Saúde. 3 ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2007.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos


105

Estratégicos. Departamento de Ciência e Tecnologia. Aborto e saúde pública no


Brasil: 20 anos. Brasília: Ministério da Saúde, 2009.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações


Programáticas Estratégicas. Anticoncepção de emergência: perguntas e respostas
para profissionais de saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde Departamento de Ações


Programáticas Estratégicas. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da
Mulher: princípios e diretrizes. Brasília: Ministério da Saúde, 2011.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações


Programáticas Estratégicas. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da
violência sexual contra mulheres e adolescentes: norma técnica. 3 ed. Brasília:
Ministério da Saúde, 2012.

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 7 ed. Rio


de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

BUTLER, J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?. 1 ed. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

CACIQUE, D. B; PASSINI JUNIOR, R.; OSIS, M. J. M. D. Opiniões, conhecimento e


atitude de profissionais da saúde sobre o aborto induzido: uma revisão das pesquisas
brasileiras publicadas entre 2001 e 2011. Revista Saúde & Sociedade, São Paulo, v.
22, n. 3, 2013.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de lei 478/2007. Dispõe sobre o Estatuto do


Nascituro e dá outras providências. Disponível em
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=345103>.
Acesso em 10 out. 2017.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de lei 882/2015. Estabelece as políticas


públicas no âmbito da saúde sexual e dos direitos reprodutivos e dá outras providências.
Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=770928&fil
ename=Tramitacao-PL+478/2007>. Acesso em 10 out. 2017.

CDD. CATÓLICAS PELO DIREITO DE DECIDIR. Nosso trabalho, sem data.


106

Disponível em: <http://catolicas.org.br/institucional-2/nosso-trabalho/>. Acesso em: 16


mai. 2017.

CHÂTELET, F. A ciência da natureza. In: Uma história da razão: entrevistas com


Émile Noël. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1994.
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. CFM esclarece posição a favor da
autonomia da mulher no caso de interrupção da gestação. 22 jul. 2010. Disponível em:
<http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=23663:cfm-
esclarece-posicao-a-favor-da-autonomia-da-mulher-no-caso-de-interrupcao-da-
gestacao&catid=3>. Acesso em: 15 ago. 2015.
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Código de Ética Médica. Brasília, 2010.
CORDEIRO, M. P. Psicologia social no Brasil: multiplicidade, performatividade e
controvérsias. Tese (Doutorado em Psicologia Social). Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo: São Paulo, 2012.

CORDEIRO, M. P. et al. Pesquisando redes heterogêneas: contribuições da teoria ator-


rede. In: A produção de informação na pesquisa social: compartilhando
ferramentas. SPINK, M. J.; BRIGAGÃO, J.; NASCIMENTO, V.; CORDEIRO, M.
(orgs.). 1 ed. Rio de Janeiro: Centro Eldenstein de Pesquisas Sociais, 2014.

DAMASCO, S. M; MAIO, M. C; MONTEIRO, S. Feminismo negro: raça, identidade e


saúde reprodutiva no Brasil (1975-1993). Revista de Estudos Feministas,
Florianópolis, v. 20, n. 1, jan./abr. 2012.

DINIZ, D.; CASTRO, R. O comércio de medicamentos de gênero na mídia impressa


brasileira: misoprostol e mulheres. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 27, n.
1, jun. 2011.

DINIZ, D.; MEDEIROS, M. Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de
urna. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, jun. 2010.

DINIZ, D.; MEDEIROS, M. Itinerários e métodos do aborto ilegal em cinco capitais


brasileiras. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, jun. 2012.

DINIZ, D. Antecipação terapêutica de parto: uma releitura bioética do aborto por


anomalia fetal. In: Aborto por anomalia fetal. DINIZ, D. RIBEIRO, D, C. (Eds.),
Brasília: Letras Livres, 2004.

FERNANDES, D. A. O gênero negro: apontamentos sobre gênero, feminismo e


107

negritude. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v. 24, n. 3, set./dez. 2016.

FIGUEIREDO, F. P. Arte de viver, modos de vida e estética da existência em Michel


Foucault. Revista Ítaca, Rio de Janeiro, n. 15, 2010.

FOLHA DE SÃO PAULO. Foto cotidiano, 15 nov. 2015. Disponível em:


http://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/39986-protestos-contra-cunha-e-pl-do-
aborto#foto-566077. Acesso em: 17 mai. 2017.

FONSECA, M. A. Michel Foucault e do Direito. 1 ed. São Paulo: Max Limonad,


2002.

FOUCAULT. M. A ordem do discurso. 8 ed. São Paulo: Loyola, 2002.

FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. 7 ed. Rio de janeiro: Forense Universitária,


2009.

FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976).1


ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

FOUCAULT, M. História da sexualidade. v. 1: a vontade de saber. 1 ed. Rio de


Janeiro/São Paulo: Paz & Terra, 2015.

FOUCAULT, M. História da sexualidade. v. II: o uso dos prazeres. 7 ed. Rio de


Janeiro: Graal, 1994.

FOUCAULT, M. Os Anormais. Curso no Collège de France (1974-1975). 1 ed. São


Paulo: Martins Fontes, 2001.

FOUCAULT, M. Segurança, território, população. Curso no Collège de France


(1977-1978). 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008a.

FOUCAULT, M. O nascimento da biopolítica. Curso no Collège de France (1975-


1976). 1 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008b.

FOUCAULT, M. O nascimento da medicina social. In.: Microfísica do poder. 11 ed.


Rio de Janeiro: Graal, 1993.

FOUCAULT, M. O poder psiquiátrico. Curso no Collège de France (1973-1974). 1


ed. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2006.

FOUCAULT, M. Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). 1 ed. Rio de


108

janeiro: Zahar, 1997.

FOUCAULT, M. Segurança, território, população. Curso no Collège de France


(1977-1978). 1 ed. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2008.

FOUCAULT, M. Sexo, poder e a política da identidade. Verve, v. 5, São Paulo, 2004.

FOUCAULT, M. Une esthétique de l’existence (entretien avec A. Fontana), Le monde,


15-16 juillet, p. XI, 1984.

FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 36 ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

FUSCO, C. L. B.; SOUZA e SILVA, R.; ANDREONI, S. Aborto inseguro:


determinantes sociais e iniquidades em saúde em uma população vulnerável, São Paulo,
Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 28, n. 4, abr. 2012.

GALINDO, D. Dados científicos como argumento. Athenea Digital, Barcelona, n. 4,


2003.

HARAWAY, D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o


privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, n. 5, 1995.

HARAWAY, D. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final


do século XX. In: TADEU, T. (Org.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-
humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

HUSRT, J. Uma história não contada: a história das ideias sobre aborto na Igreja
Católica. São Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir, 2000.

IBAÑEZ, T. G. O “giro linguístico”. In: Manual de análise do discurso em Ciências


Sociais. IÑIGUEZ, L. (org.). 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2005.

LAQUEUR, T. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. 1 ed. Rio de
Janeiro: Relume-Dumara, 2001.

LATOUR, B. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora.


São Paulo: Editora Unesp, 2000.
LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e poder. In: Gênero, sexualidade e educação:
uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 2008.

MARTINS, C. J. A vida dos corpos e das populações como objeto de uma biopolítica
na obra de Michel Foucault. In: O legado de Foucault. 1 ed. São Paulo: UNESP, 2006.
109

MARTINS, M. H. M.; TAVANTI, R. M.; SPINK, M. J. P. Versões de vulnerabilidade


em artigos científicos brasileiros sobre desastres ambientais. Athenea Digital, v. 16, n.
3, nov. 2016.

MAUÉS, A. M. O efeito vinculante na jurisprudência no Supremo Tribunal Federal:


análise das reclamações constitucionais n. 11.000 a 13.000. Revista Direito GV, v. 12,
n. 2, mai/ago. 2016.

MEYER, D. E. A politização contemporânea da maternidade: construindo um


argumento. Gênero, Niterói, v. 6, n. 1, 2 sem. 2005.

MOL, A. M. Ontological politics: a word and some questions. In: LAW, J; HASSARD,
J. (eds.). Actor network theory and after. Oxford: Blackwell, 1999.

MOL, A. M. The body multiple: ontology in medical practice. London: Durkan


University Press, 2002.

NASCIMENTO, V. L. V; TAVANTI, R. M.; PEREIRA, C. C. Q. O uso de mapas


dialógicos como recurso analítico em pesquisas científicas. In: A produção de
informação na pesquisa social: compartilhando ferramentas. SPINK, M. J.;
BRIGAGÃO, J.; NASCIMENTO, V.; CORDEIRO, M. (orgs.). 1 ed. Rio de Janeiro:
Centro Eldenstein de Pesquisas Sociais, 2014.

OLIVEIRA, M. Médico chama polícia após atender jovem que fez aborto na Grande
SP. Folha de São Paulo, São Paulo, 21 fev. 2015. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/02/1592839-medico-chama-policia-apos-
atender-jovem-que-fez-aborto-na-grande-sp.shtml>. Acesso em: 15 ago. 2015.

OMS. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Abortamento seguro: orientação


técnica e de políticas para sistemas de saúde. Uruguai: Organização Mundial de Saúde,
2013.

RAGO, M. Foucault, a subjetividade e as heterotopias feministas. In: O legado de


Foucault. 1 ed. São Paulo: UNESP, 2006.

RECONDO, F; GALLUCCI, M. Em decisão histórica, STF decide que aborto de feto


anencéfalo não é crime. O Estado de São Paulo, São Paulo, 13 abr. 2012. Disponível
em: <http://www.estadao.com.br/noticias/geral,em-decisao-historica-stf-decide-que-
aborto-de-feto-anencefalo-nao-e-crime-imp-,860498>. Acesso em 15 ago. 2015.
110

RIBEIRO, F. R. G. Sentidos da vida na controvérsia moral sobre o abortamento


induzido: o caso da anencefalia. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social).
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: São Paulo, 2008.

ROCHA, M. I. B. A discussão política sobre aborto no Brasil: uma síntese. Revista


Brasileira de Estudos de População, São Paulo, v. 23, n. 2, jul./dez. 2006.

ROCHA In: Sexo & vida: panorama da saúde reprodutiva no Brasil. BERQUÓ, E.
S. (org.). Campinas: Unicamp, 2003.

ROHDEN, F. O corpo fazendo a diferença. Mana, v. 4, n. 2, Rio de Janeiro, out. 1998.

ROSE, N. 2013. A biopolítica no século XXI. In: A política da própria vida. São
Paulo: Paulus, 2013

SCAMPARINI, I. Papa Francisco autoriza que padres possam perdoar o aborto, G1,
Vaticano, 21 nov. 2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-
hoje/noticia/2016/11/papa-francisco-autoriza-que-padres-possam-perdoar-o-
aborto.html>. Acesso em: 14 mai. 2015.

SAVARESE, M. Supremo aprova antecipação de parto de feto anencéfalo, UOL, 12


abr. 2016. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ciencia/ultimas-
noticias/redacao/2012/04/12/supremo-aprova-antecipacao-de-parto-de-feto-
anencefalo.htm> Acesso em: 20 nov. 2016.

SCAVONE, L. Políticas feministas do aborto. Estudos Feministas, v. 16, n. 2,


Florianópolis, mai/ago. 2008.

SPINK, M. J. P. Linguagem e produção de sentidos no cotidiano. Rio de Janeiro:


Centro Eldenstein, 2010. Disponível em:
<http://static.scielo.org/scielobooks/w9q43/pdf/spink-9788579820465.pdf>. Acesso em:
22 nov. 2016.

SPINK, M. J. P. (org.). Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano:


aproximações teóricas e metodológicas. 1 ed. São Paulo: Cortez, 1999.

SPINK, M. J. P.; FREZZA, R. M. Práticas discursivas e produção de sentidos: a


perspectiva da Psicologia Social. In: Práticas discursivas e produção de sentidos no
cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. SPINK, M. J. P. (org.). 1 ed. São
Paulo: Cortez, 1999.
111

SPINK, M. J. P.; LIMA, H. Rigor e visibilidade: a explicitação dos passos de


interpretação. In: Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano:
aproximações teóricas e metodológicas. SPINK, M. J. P. (org.). 1 ed. São Paulo: Cortez,
1999.

SPINK, M. J. P.; MEDRADO, B. Produção de sentido no cotidiano. In: Práticas


discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e
metodológicas. SPINK, M. J. P. (org.). 1 ed. São Paulo: Cortez, 1999.

SPINK, M. J. P.; MENEGON, V. S. M. A pesquisa como prática discursiva: superando


os horrores metodológicos. In: Práticas discursivas e produção de sentidos no
cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. SPINK, M. J. P. (org.). 1 ed. São
Paulo: Cortez, 1999.

SPINK, M. J. P.; MENEGON, V. S. M. Práticas discursivas como estratégia de


governamentalidade: a linguagem dos riscos em documentos de domínio público. In:
Manual de análise do discurso em ciências sociais. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2005.

SPINK, P. Análise de documentos de domínio público. In: Práticas discursivas e


produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. SPINK,
M. J. P. (org.). 1 ed. São Paulo: Cortez, 1999.

SPINK, M. J. et al. Vinte e cinco anos nos rastros, trilhas e riscos de produções
acadêmicas situadas. In: A produção de informação na pesquisa social:
compartilhando ferramentas. SPINK, M. J.; BRIGAGÃO, J.; NASCIMENTO, V.;
CORDEIRO, M. (orgs.). 1 ed. Rio de Janeiro: Centro Eldenstein de Pesquisas Sociais,
2014.

SPINK, P. et al. Documentos de domínio público e a produção de informação. In: A


produção de informação na pesquisa social: compartilhando ferramentas. SPINK,
M. J.; BRIGAGÃO, J.; NASCIMENTO, V.; CORDEIRO, M. (orgs.). 1 ed. Rio de
Janeiro: Centro Eldenstein de Pesquisas Sociais, 2014.

SPINK, M. J. P & SPINK, P. A Psicologia Social na atualidade. In: História da


Psicologia: rumos e percursos. JACÓ-VILELA, A. M., FERREIRA, A. A. L. &
PORTUGAL, F. T. (orgs). 2 ed. Rio de Janeiro: Nau. 2007.

SCHWENGBER, M. S. V.; MEYER, D. E. Discursos que (con)formam corpos: da


medicina à educação física. Cadernos Pagu, Campinas, n. 36, jan./jul. 2011.
112

STF. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 1ª Turma afasta prisão preventiva de


acusados da prática de aborto, 19 nov. 2016. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=330769>. Acesso
em: 16 mai. 2017.

VILLELA, W. V.; ARILHA, M. Sexualidade, gênero e direitos sexuais e reprodutivos.


In: Sexo & vida: panorama da saúde reprodutiva no Brasil. BERQUÓ, E. S. (org.).
Campinas: Unicamp, 2003.

WYLLYS, J. Projeto de lei 882/2015. Estabelece as políticas públicas no âmbito da


saúde sexual e dos direitos reprodutivos e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1313158&fi
lename=PL+882/2015>. Acesso em 10 out. 2017.
113

ANEXO I
Proposições apresentadas na Câmara dos Deputados no período de 2007 a
2017 que se referem à questão do abortamento

Número Autoria Ementa Teor Situação


PL Cida Diogo Acrescenta Isenta de pena a Apensado ao
660/2007 (PT/RJ) inciso ao prática de "aborto PL 1174/1991
artigo 128 do terapêutico" em caso de autoria de
Decreto-Lei de grave e incurável Eduardo Jorge
nº 2848, de anomalia do feto, (PT/SP), que
07 de incluindo o fora
dezembro de anencéfalo, que arquivado.
1940 - implique na
Código impossibilidade de
Penal. vida extrauterina, a
fim de, segundo a
deputada “dar a
opção para que cada
mulher possa decidir
se terá ou não
condições físicas e
psicológicas para
levar a termo a
gravidez”
PL Luiz Bassuma Dispõe sobre Prevê o abortamento Pronta para
478/2007 (PT/BA) e o Estatuto do em todas as ocasiões Pauta na
Miguel Nascituro e como crime Comissão de
Martini dá outras hediondo. Tipifica Constituição e
(PHS/MG) providências como crime o Justiça e de
anúncio de processo, Cidadania
substância ou objeto (CCJC);
destinado a provocar Aguardando
aborto; fazer Parecer do
publicamente Relator na
apologia do aborto Comissão de
ou de quem o Defesa dos
praticou, ou incitar Direitos da
publicamente a sua Mulher
prática. A proposição (CMULHER)
tem como objetivo
evitar “a proliferação
de abusos com seres
humanos não
nascidos”
PL Odair Cunha Dispõe sobre Prevê o abortamento Apensado ao
114

489/2007 (PT/MG) o Estatuto do em todas as ocasiões PL 478/2007


Nascituro e como crime
dá outras hediondo. Tipifica
providências como crime o
anúncio de processo,
substância ou objeto
destinado a provocar
aborto; fazer
publicamente
apologia do aborto
ou de quem o
praticou, ou incitar
publicamente a sua
prática. Assim como
o PL 478/2007, a
proposição tem como
objetivo evitar “a
proliferação de
abusos com seres
humanos não
nascidos”
PL Odair Cunha Dispõe sobre Prevê programa de Arquivado
831/2007 (PT/MG) a exigência orientação à mulher
para que gestante e/ou seus
hospitais representantes legais
municipais, em casos de
estaduais e abortamento legal.
federais, Orientação
implantem entendida, no caso,
um programa como aplicação de
de orientação sistema áudio visual
à gestante que demonstre as
sobre os formas utilizadas
efeitos e para a extração do
métodos feto humano e sua
utilizados no formação física, mês
aborto, a mês
quando este
for
autorizado
legalmente
PL Dr. Talmir Dispõe sobre Reserva número Arquivado
2154/200 (PV/SP) a criação de telefônico de três
7 código algarismos, de
de acesso abrangência nacional,
telefônico para recebimento de
para denúncias de abortos
115

denúncia de clandestinos ou
abortos venda de substâncias
clandestinos que provoquem
aborto, a fim de,
segundo a
justificativa da
proposição, facilitar
“o trabalho dos
agentes policiais em
punir as inúmeras
clínicas clandestinas
especializadas em
matar as crianças,
assim como vários
estabelecimentos que
vendem ilegalmente
substâncias
abortivas”
PL Marcelo Altera os Aumenta a pena de Retirado pelo
2433/200 Serafim artigos 124, detenção para a autor
7 (PSB/AM) 125 e 126 do mulher gestante que
Código Penal realizar ou consentir
(Decreto-Lei o aborto, para o
nº 2.848, de aborto realizado por
7 de terceiros e tipifica o
dezembro de crime de induzir,
1940) instigar ou auxiliar
mulher grávida a
abortar, uma vez que,
segundo o autor, “as
penas para o aborto
previstas no Código
Penal são
extremamente
brandas”
PL Dr. Talmir Altera o Tipifica como crime Arquivado
2273/200 (PV/SP) artigo 126 do a conduta de auxiliar
7 Código Penal ou fornecer
instrumentos ou
fármacos para a
prática do aborto,
uma vez que, além de
criminalizar a
conduta provocar o
aborto com ou sem o
consentimento da
gestante, “lei nada
116

diz sobre a venda de


substâncias ou
instrumentos que
possam ser utilizados
para o cometimento
deste crime tão
repulsivo”, segundo
o autor
PL Miguel Acrescenta o Tipifica como crime Arquivado
2690/200 Martini artigo 127-A “anunciar processo,
7 (PHS/MG) ao Decreto- substância ou objeto
Lei nº 2.848, destinado a provocar
de 7 de aborto, induzir ou
dezembro de instigar gestante a
1940 - usar substância ou
Código Penal objeto abortivo,
instruir ou orientar
gestante sobre como
praticar aborto”. A
proposição é
justificada pelo
preenchimento das
“lacunas do sistema
jurídico”, a fim de
“prevenir o
recrudescimento da
prática do aborto
ilegal”
PL Walter Brito Dispõe sobre Segundo o autor, “o Arquivado
2504/200 Neto a projeto visa, também,
7 (PRB/PB) obrigatorieda facilitar a produção
de do de provas nos casos
cadastrament de aborto ilegal, pois
o de o registro de gravidez
gestante, no tornará possível o
momento da colhimento de dados
constatação probatórios, com
da gravidez objetivo de
identificar o agente
ativo do aborto”
PL Rodovalho Inclui Segundo o autor, “o Arquivado
1820/200 (PP/DF) dispositivo registro público da
7 na Lei nº gravidez tornaria
10.406, de mais difícil a prática
10 de Janeiro do delito acima
de 2002 - desatacado, uma vez
Código que as autoridades
117

Civil, teriam maior controle


dispondo sobre a existência de
sobre o fetos”
registro
público da
gravidez
PL Pompeo de Altera o Reduz a pena de Apensado ao
3673/200 Mattos artigo 124 do detenção para um a PL 2690/2007
8 (PDT/RS) Decreto-Lei dois anos no caso de
nº 2.848, de crime de aborto
7 de provocado pela
dezembro de mulher gestante
1940 minimizar, com o
(Código objetivo de, segundo
Penal) o autor, “minimizar
as consequências
para as mulheres que
praticarem aborto,
preservando-lhes o
máximo possível sua
vida íntima”
PL Miguel Acresce os Inclui o induzimento, Apensado ao
3207/200 Martini incisos VIII, instigação ou auxílio PL 4703/1998
8 (PHS/MG) IX e X ao ao suicídio e o aborto
artigo 1º da provocado nos
Lei nº 8.072, crimes considerados
de 25 de hediondos, por,
julho de segundo o autor
1990 “atentarem
gravemente contra a
inviolabilidade do
direito à vida, tais
crimes monstruosos e
hediondos estão, por
sua vez, a merecer
um tratamento penal
mais severo a fim de
se sancionar de modo
mais adequado os
infratores e
desestimular a sua
prática”
PL Rodovalho Inclui Segundo o autor, “o Apensado ao
7022/201 (PP/DF) dispositivo registro público da PL 6932/2006
0 na Lei nº gravidez tornaria
10.406, de mais difícil a prática
10 de Janeiro do delito acima
118

de 2002 - desatacado, uma vez


Código que as autoridades
Civil, teriam maior controle
dispondo sobre a existência de
sobre o fetos”
registro
público da
gravidez
PL Marcelo Altera os Aumenta a pena de Arquivado
7254/201 Serafim artigos 125 e reclusão nos casos de
0 (PSB/AM) 126 do aborto provocado por
Código Penal terceiro, com ou sem
(Decreto-lei consentimento da
nº 2.848, de mulher gestante.
7 de Segundo o autor,
dezembro de uma vez que “as
1940) penas para o aborto
previstas no Código
Penal são
extremamente
brandas”, a
proposição busca
corrigir tais
“distorções”
PL Eduardo Inclui o Tipifica o crime de Aguardando
1545/201 Cunha artigo 128-A aborto praticado por parecer do
1 (PMDB/R) no Decreto- profissional da relator na
Lei nº 2.848, medicina quando não Comissão de
de 07 de for nos casos Constituição e
dezembro de admitidos no Código Justiça e de
1940 Penal, uma vez que, Cidadania
segundo o autor, “Ao
aborto praticado por
médico, fora das
hipóteses autorizadas
pela legislação, deve
ser atribuída
penalidade mais
grave do que quando
o crime é praticado
por terceiro, tendo
em vista o
compromisso
profissional que tem
em preservar a vida”
PL Eduardo Acrescenta o Tipifica como crime Pronto para
5069/201 Cunha artigo 127-A contra a vida pauta no
119

3 (PMDB/R), ao Decreto- “anunciar processo, plenário


Isaias Silvestre Lei nº 2.848, substância ou objeto
(PSB/MG) e de 7 de destinado a provocar
João Dado dezembro de aborto, induzir ou
(PDT/SP) 1940 - instigar gestante a
Código Penal usar substância ou
objeto abortivo,
instruir ou orientar
gestante sobre como
praticar aborto, ou
prestar-lhe qualquer
auxílio para que o
pratique, ainda que
sob o pretexto de
redução de danos”. A
proposição é
justificada pelo
preenchimento das
“lacunas do sistema
jurídico”, a fim de
“prevenir o
recrudescimento da
prática do aborto
ilegal”
PL Eduardo Revoga a Lei Revoga lei que Apensado ao
6033/201 Cunha nº 12.845, de garante a profilaxia PL 6022/2013
3 (PMDB/RJ) 1º de agosto da gravidez e o
de 2013 fornecimento de
informações às
mulheres que
sofreram estupro
sobre os direitos
legais e sobre todos
os serviços
disponíveis,
incluindo
informações sobre o
aborto garantido no
Código Penal.
Segundo o autor, a
lei “provocou uma
polêmica na
sociedade acerca de
estímulo a prática de
aborto” e foi votada
pela Câmara
“desconhecendo o
120

seu conteúdo e a
profundidade do seu
alcance”
PL Pastor Eurico Revoga a Lei Revoga lei que Apensado ao
6055/201 (PSB/PE), nº 12.845, de garante a profilaxia PL 6033/2013
3 Costa Ferreira 1º de agosto da gravidez e o
(PSC/MA) de 2013 fornecimento de
Pastor Marco informações às
Feliciano mulheres que
(PSC/SP), sofreram estupro
João Dado sobre os direitos
(PDT/SP), legais e sobre todos
Leonardo os serviços
Quintão disponíveis,
(PMDB/MG), incluindo
Dr. Grilo informações sobre o
(PSL/MG), aborto garantido no
Zequinha Código Penal. O
Marinho projeto de lei foi
(PSC/PA), apresentado sob a
Alfredo Kaefer justificativa de que
(PSDB/PR), “a Lei foi realmente
Henrique promulgada tendo
Afonso como principal
(PV/AC), objetivo introduzir o
William Dib aborto no Brasil”
(PSDB/SP),
Jair Bolsonaro
(PP/RJ),
Otoniel Lima
(PRB/SP) e
Eurico Júnior
(PV/RJ)

PL Hugo Leal Altera a Lei Apensado ao


6061/201 (PSC/RJ) nº 12.845, de Suprime os incisos PL
3 1º de agosto IV (profilaxia da 6022/2013*
de 2013, que gravidez) e VII *Pronto para
"Dispõe (fornecimento de Pauta na
sobre o informações às Comissão de
atendimento vítimas sobre os Seguridade
obrigatório e direitos legais e sobre Social e
integral de todos os serviços Família)
pessoas em sanitários
situação de disponíveis) da lei
violência número 12. 855 de 1º
sexual" e dá de agosto de 2013. A
121

outras proposição busca,


providências segundo os autores,
evitar a prescrição
generalizada da
contracepção de
emergência antes
mesmo da vítima ter
tempo de decidir se
quer ou não levar
adiante a possível
gestação, além de
combater a “clara
indução ao aborto”
através das
informações de
direitos legais
garantidos às
mulheres em situação
de violência sexual

PL Salvador Acrescenta- Apensado ao


6115/201 Zimbaldi se o Exige o exame de PL 1545/2011
3 (PDT/SP) e parágrafo corpo de delito
Alberto Filho único ao comprovando estupro
(PMDB/AM) artigo 128, para que o médico
do Decreto- possa realizar aborto,
Lei nº 2.848, uma vez que,
de 7 de segundo o autor,
dezembro de garante-se “o suposto
1940 “direito” de abortar
(Código sem qualquer prova
Penal) de que houve
estupro”

PL Jean Wyllys Estabelece as Revoga os artigos Apensado ao


882/2015 (PSOL/RJ) políticas 124, 126 e 128 do PL 313/2007
públicas no Código Penal. Uma
âmbito da vez que, segundo o
saúde sexual autor “não há
e dos direitos justificativa para que
reprodutivos o aborto seguro
e dá outras [grifo do autor] seja
providências ilegal e as mulheres
que o praticam”
PL Givaldo Altera o Suprime do artigo Apensado ao
122

3983/201 Carimbão artigo 128 do 128 do Código Penal PL 1545/2011


5 (PROS/AL); Decreto Lei o aborto em casos de
Gorete Pereira 2.848 de 7 de gestação decorrente
(PR/CE); dezembro de de estupro, uma vez
Flavinho 1940 que, segundo os
(PSB/SP); (Código autores, “o nascituro
Diego Garcia Penal) é privado de sua vida
(PHS/PR); por causa de um
Joaquim crime cometido pelo
Passarinho pai”
(PSD/PA);
Carlos Gomes
(PRB/RS);
Valtenir
Pereira
(PMB/MT);
Sóstenes
Cavalcante
(PSD/RJ);
Jefferson
Campos
(PSD/SP);
Izalci
(PSDB/DF);
Roney Nemer
(PMDB/DF);
Eros Biondini
(PTB/MG) e
Professor
Victório Galli
(PSC/MT)
PL Flavinho Altera o Aumenta em um ano Apensado ao
(PSB/SP) Decreto-Lei a pena máxima para a PL 4703/1998
4646/20
Nº 2.848, de infração do artigo
16 7 de 124 e 126 do Código
dezembro de Penal, além de
1940 e a Lei tipificar como crime
Nº 8.072, de “auxiliar, induzir ou
25 de julho instigar a provocação
de 1990 de aborto”. Segundo
o autor “a vida, tal
como disposto na
Constituição Federal,
deve ser
compreendida como
vida plena, desde a
sua concepção até o
seu declínio natural”,
123

desse modo, o direito


à inviolabilidade
deve ser garantido
nessas condições
PL Anderson Altera Torna aborto Apensado ao
4396/201 Ferreira dispositivo provocado em casos PL 1459/2003
6 (PR/PE) do Código de microcefalia ou
Penal anomalia feto em
(Decreto-Lei forma qualificada de
nº 2.848, de crime, aumentando a
7 de pena em um terço até
dezembro de a metade, a fim de
1940) para inibir movimentos
prever pró-aborto
aumento de
pena no caso
de aborto
cometido em
razão da
microcefalia
ou anomalia
do feto
PL Cabo Savino Altera o Aumenta as penas Apensado ao
8141/201 (PR/CE) Decreto-Lei dos crimes contra a PL 1612/2015
7 n. 2.848, de vida, aumentando,
7 de consequentemente, as
dezembro de penas para infração
1940, dos artigos 124, 125
Código Penal e 126 do Código
e altera a Lei Penal, uma vez que
nº 7.210, de “as penas atualmente
11 de julho previstas na
de 1984 legislação brasileira,
sobretudo levando-se
em conta os
brandíssimos prazos
exigidos para a
progressão de
regime, não são
suficientes à
prevenção dessas
condutas e tampouco
proporcionais à lesão
causada pelos
transgressores da
norma”

Você também pode gostar