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Logic, Language and Knowledge.

Essays on Chateauriand’s Logical Forms


Walter A. Carnielli and Jairo J. da Silva (e

CDD: 149.7

Considerações sobre verdade e existência em Leibniz


EDGAR MARQUES
Departamento de Filosofia
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
RIO DE JANEIRO, RJ
edgarm@terra.com.br

Resumo: Apresento e critico a interpretação do pensamento de Leibniz, desenvolvida por Russell e


retomada por Curley, segundo a qual as proposições existenciais constituem uma exceção à concepção
leibniziana de que em toda proposição verdadeira o predicado está contido no sujeito.
Palavras-chave: Leibniz, Russell, Curley, verdade, existência.

Abstract: In this paper I intend to expose and criticize the interpretation of Leibniz's thought, pro-
posed by Russel and recovered by Curley, according to which existential propositions constitute an ex-
ception to leibnizian conception that in every proposition its predicate is contained in its subject.
Keywords: Leibniz, Russell, Curley, truth, existence.

Bertrand Russell, no terceiro capítulo de seu livro A Critical


Exposition of the Philosophy of Leibniz 1 , interpreta o sistema leibniziano
como estando comprometido, dentre outras, com as seguintes teses: (1)
que a existência é um predicado que, exceção feita a Deus, não pode
estar contido na noção completa dos seres aos quais ela é atribuída, isto
é, dos seres que são ditos existirem; (2) que as proposições contingentes
são proposições existenciais; (3) que a essas proposições não se aplica a
concepção leibniziana de verdade, expressa em diversos textos, segun-

1 Russell, B., A Critical Exposition of the Philosophy of Leibniz, Routledge, London


and New York, 1992.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 71-89, jan.-jun. 2011.
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do a qual em toda a proposição verdadeira o predicado está contido no


sujeito; (4) que as proposições contingentes são, empregando aqui a
conceituação kantiana, sintéticas, e não analíticas.
Uma curta passagem desse texto de Russell já é suficiente,
creio, para atestar que é efetivamente dessa maneira que ele interpreta
Leibniz. Ele escreve o seguinte: “A existência é, então, um caso especial
entre os predicados. Todos os outros predicados estão contidos na no-
ção do sujeito e podem ser afirmados dele em um juízo puramente ana-
lítico. A asserção de existência, caso único entre os predicados, é sinté-
tica e, portanto, segundo Leibniz, contingente. Assim, a existência tem
para ele uma posição tão peculiar quanto aquela que ela tem na crítica
de Kant ao argumento ontológico e tem de ser visto como uma pura
inconsequência em Leibniz o fato de ele ter deixado aplicar sua doutri-
na ao caso de Deus. Mas, em função do fato de que Leibniz definitiva-
mente afirma o contrário, ficar-se-ia tentado a declarar sua posição co-
mo sendo equivalente à negação de que a existência seja um predica-
do.” 2
Segundo Russell à época da primeira edição de seu livro sobre
Leibniz são, então, contingentes, de acordo com Leibniz, aquelas pro-
posições nas quais é feita ou a atribuição de existência a um ente ou
algum tipo de atribuição que envolva, pressuponha ou implique a exis-
tência. É o caráter singular da existência 3 , isto é, o fato de ela não ser
um predicado como os outros que faria, de acordo com Russell, que a
verdade das proposições contingentes não consista na inclusão do pre-
dicado no sujeito. Como Russell identifica a inclusão do predicado no
sujeito à analiticidade, ele caracteriza as proposições existenciais como
sintéticas. Segundo ele, diferentemente das proposições analíticas, as
proposições sintéticas, precisamente por não serem verdadeiras em
função da inclusão do predicado no sujeito, dependem de um princípio
outro que o princípio de não-contradição, dado que elas não se deixam

2 Op. cit., p. 31-32.


3 A ideia de Russell é que essa singularidade tem suas raízes na temporalidade.

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reduzir a enunciados de identidade. Optando pela solução mais óbvia e


natural no interior da filosofia de Leibniz, Russell considera que a ver-
dade das proposições contingentes está fundada no Princípio de Razão
Suficiente, sendo que no plano da ação dos sujeitos racionais esse prin-
cípio vigora sob a forma particular do Princípio do Melhor, que afirma,
no final das contas que os sujeitos criados, ao agir, sempre buscam a-
quilo que lhes parece melhor, buscando Deus aquilo que é melhor. 4
Como é de conhecimento geral, Couturat critica, em seu livro
de 1901 5 e em artigo publicado no ano seguinte 6 , a tese interpretativa
de Russell de que as proposições existenciais sejam sintéticas. Segundo
Couturat, Leibniz alicerça sua filosofia em dois princípios fundamen-
tais: o Princípio de Identidade – que ele considera, para todos os efei-
tos, idêntico ao Princípio de Contradição - e o Princípio da Razão. O
primeiro afirma, de acordo com ele, simplesmente que toda proposição
na qual o predicado está contido no sujeito é verdadeira, enquanto que
o segundo consiste em uma conversão dessa afirmação, asseverando,
assim, que em toda proposição verdadeira o predicado está contido no
sujeito. 7 Couturat adverte que Leibniz pode ser interpretado como al-

4 “Thus the law of sufficient reason, as applied to actual existents, reduces


itself definitely to the assertion of final causes, in the sense that actual desires
are always directed towards what appears the best. In all actual changes, the
consequent can only be deduced from the antecedent by using the notion of
the good. Where the change depends only upon God, it really is for the best;
where it depends upon a free creature, it is such as seems best to the creature,
but is often, owing to confused perception, not really the best possible change.
Such a connection can only be regarded as contingent by admitting, as Leibniz
does, that a law may be general, i.e. may apply to every part of time, without
being necessary, i.e. without being capable of a statement in which no actual
part of time is referred to.”, Russell, B., A Critical Exposition of the Philosophy of
Leibniz, Routledge, London and New York, 1992, p. 40.
5 Couturat, L., La Logique de Leibniz, Felix Alcan, Paris, 1901
6 Couturat, L., “Sur la Métaphysique de Leibniz”, Revue de Métaphysique et de

Morale, 10, 1902, 1-25.


7 “(...) le príncipe d’identité affirme que toute proposition identique est vraie,

tandis que le principe de raison affirme, au contraire, que toute proposition

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guém que sustenta a tese de que esses princípios se aplicam a grupos


distintos de proposições, sendo, a partir dessa interpretação, o Princípio
de Identidade o fundamento da verdade das proposições necessárias,
fornecendo o Princípio da Razão a base da verdade das proposições
contingentes. Teríamos, assim, de um lado as verdades de razão, ex-
pressas por meio de proposições necessárias e analíticas, e que seriam
fundadas no Princípio de Identidade, enquanto do outro encontraría-
mos as verdades de fato, expressas por meio de proposições contingen-
tes e sintéticas, e que seriam fundadas no Princípio de Razão.
Couturat discorda frontalmente dessa linha de interpretação,
sustentando (1) que para Leibniz todas as proposições – as necessárias
e também as contingentes - são analíticas, e (2) que os dois princípios
fundamentam igualmente a verdade de todos os tipos de proposição.
Não vou me ater no presente texto nas razões fornecidas por ele em
apoio à segunda tese, contentando-me em esclarecer sua posição no
que diz respeito ao primeiro ponto.
Couturat apresenta diversas passagens de diferentes textos em
que Leibniz expressamente afirma que também nas proposições con-
tingentes o predicado está contido no sujeito. Assim, por exemplo, o
manuscrito denominado pelos editores de Verdades Necessárias e Verdades
Contingentes principia com as seguintes afirmações: “Verdadeira é a afir-
mação em cujo sujeito o predicado inere, pois em toda proposição ver-
dadeira afirmativa, necessária ou contingente, universal ou singular, a
noção do predicado está de algum modo contida na noção do sujeito.” 8
Na carta a Arnauld de 14 de julho de 1686, ele escreve de maneira i-
gualmente explícita: “sempre, em toda proposição afirmativa verdadei-

vraie est analytique, c’est-à-dire virtuellement identique.”, Couturat, L., La Lo-


gique de Leibniz, Felix Alcan, Paris, 1901, p. 215.
8 “Verum est affirmatum, cujus praedicatum inest subjecto, itaque in omni

Propositione Vera affirmativa, necessária vel contingente, universali vel singu-


lari, Notio praedicati aliquo modo continetur in notione subjecti”, in Leibniz,
G. W., Opuscules et Fragments Inédits de Leibniz, par Louis Couturat, Georg Olms,
Hildesheim, 1966, p. 16.

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ra, necessária ou contingente, universal ou singular, a noção de predica-


do está compreendida de alguma maneira na noção do sujeito, praedica-
tum inest subjecto, ou bem eu não sei o que é verdade.” 9 Couturat faz re-
ferência a várias outras passagens, mas creio que as duas acima transcri-
tas são suficientes para sustentar a tese de que Leibniz considerava que
mesmo no caso das proposições contingentes verdadeiras o predicado
se encontra contido no sujeito.
Além de apontar para a forte base textual favorável à sua inter-
pretação, Couturat também pondera que não é razoável atribuir a Leib-
niz a tese de que nas proposições contingentes o predicado não está
contido no sujeito, pois com isso o tão propalado problema da contin-
gência não possuiria mais solo para se colocar. Quer dizer, se as propo-
sições contingentes constituem uma exceção à concepção da verdade
como inclusão do predicado no sujeito, então as propriedades atribuí-
das aos sujeitos por meio de proposições desse tipo não estão, por uma
questão de princípio, contidas na noção completa desses sujeitos, tor-
nando ininteligível toda a preocupação de Leibniz acerca do fantasma
do necessitarismo que rondaria sua filosofia. Em outras palavras, não
faria sentido procurar uma via para a defesa da contingência – e com
ela da liberdade – dado que não seria articulável no interior da metafísi-
ca leibniziana nenhuma ameaça a ela. Não seria necessário, dessa ma-
neira, buscar uma saída do labirinto da liberdade, simplesmente porque
nunca teríamos nele adentrado 10 .

9 Leibniz, G. W., Die philosophischen Schriften, Band II, herausgegeben von C.


Gerhardt, Georg Olms, Hildesheim, 1978, p. 56.
10 “(...) cette difficulté [relativa à contingência] qui, de son propre aveu, l’a

longtemps arrèté, n’existait qu’autant que les verités contingentes sont


analytiques: il s’agissait de comprendre comment une proposition analytique
peut n’être pás nécessaire. Sitôt que l’on considere les vérités contingentes
comme synthétiques, la question disparait, et la solution n’a plus de sens.”, in
Couturat, L., “Sur la Métaphysique de Leibniz”, Revue de Métaphysique et de
Morale, 10, 1902, p. 11.

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Em complemento a essas teses interpretativas de natureza críti-


ca, Couturat apresenta sua hipótese acerca da origem da contingência
em Leibniz. Ela reside, segundo ele, no fato de que, contrariamente ao
que ocorre no caso das proposições necessárias, a demonstração das
verdades contingentes ou de fato “exigiria uma análise infinita, pois o
conceito de toda coisa concreta, de todo ser individual, envolve uma
infinidade de elementos ou de condições (de réquisits).” 11 Couturat con-
sidera, assim, que as raízes da contingência em Leibniz devem ser bus-
cadas na dependência do recurso ao infinito para a individuação dos
sujeitos singulares. Voltarei de maneira mais detida e reflexiva a essa
posição de Couturat – que considero, em linhas gerais, acertada - na
segunda seção do presente artigo.
As ponderações de Couturat convenceram Russell a abandonar
sua interpretação inicial e a aderir à tese do intérprete francês de que,
no sistema filosófico de Leibniz, em todas as proposições verdadeiras,
sem exceção, o predicado está contido, atual ou virtualmente, no sujei-
to, expressando essa afirmação o Princípio de Razão em sua mais rigo-
rosa formulação. Em uma resenha do livro de Couturat – e também do
livro de Cassirer sobre Leibniz – publicada na Mind em 1903, Russell
escreve o seguinte acerca da obra do francês: “Talvez a mais revolucio-
nária conclusão em todo o livro é que o Princípio da Razão, apesar de
todos seus adornos de teleologia e bondade divina, não significa nada
além de que, em toda proposição verdadeira o predicado está contido
no sujeito, i.e., que todas as verdades são analíticas. Em face da evidên-
cia aduzida, essa conclusão, apesar de surpreendente, parece ser absolu-
tamente irrefutável. [Nota de pé de página: Em meu livro A Critical
Exposition of the Philosophy of Leibniz, capítulo III, eu dei uma interpreta-
ção diferente, a qual a obra de Couturat convenceu-me a abando-

11 Couturat, L., La Logique de Leibniz, Felix Alcan, Paris, 1901, p . 211.

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nar.]” 12 No prefácio à segunda edição de sua obra sobre Leibniz, escri-


to em 1937, Russell reafirma seu reconhecimento do caráter equivoca-
do de sua interpretação inicial nos seguintes termos: “onde sua inter-
pretação diferia da minha, ele foi capaz de citar passagens que parecem
conclusivas. O Princípio da Razão Suficiente, ele sustenta, afirma sim-
plesmente que toda proposição verdadeira é analítica, e é a exata con-
versa da Lei de Contradição, que afirma que toda proposição analítica é
verdadeira.” 13
Entretanto, esse agitado capítulo da historiografia filosófica do
racionalismo não se encerra com a elegante rendição de Bertrand Rus-
sell. Podemos identificar, no final da década de 1960 e começo da dé-
cada de 1970, no mundo filosófico anglo-saxão, um movimento de re-
torno à posição original de Russell capitaneado por autores como Par-
kinson 14 , Rescher 15 e Curley 16 . Esses intérpretes sustentam que, para
Leibniz, as proposições existenciais acerca de indivíduos finitos não são
analíticas, não estando nelas, portanto, o predicado contido no sujei-
to 17 . Tomaremos, por uma questão de economia, a posição de Curley

12 Russell, B., “Recent Work on the Philosophy of Leibniz”, in Frankfurt, H.,


Leibniz. A Collection of Critical Essays, Anchor Books, New York, 1972, p. 366-
367
13 Russell, B., A Critical Exposition of the Philosophy of Leibniz, Routledge, London

and New York, 1992, p. xiv.


14 Parkinson, G. H. R., Logic and Reality in Leibniz’s Metaphysics, Oxford Univer-

sity Press, London, 1965.


15 Rescher, N., The Philosophy of Leibniz, Prentice-Hall, Englewood Cliffs, 1967.
16 Curley, E. M., “The Root of Contingency”, in Frankfurt, H., Leibniz. A Col-

lection of Critical Essays, Anchor Books, New York, 1972, 69-97.


17 Em artigo recente, Ulysses Pinheiro aparentemente também aderiu às

“hostes russellianas”. Acerca da predicação de existência ele faz a seguinte


afirmação: “A predicação de existência exprime, assim, no caso dos entes cria-
dos, uma propriedade acidental e contingente desses objetos, precisamente
porque não faz parte de sua essência, constituindo-se assim na única exceção à
definição analítica da verdade, segundo o [sic] qual o conceito do predicado
está contido no conceito do sujeito. Essa definição seria válida para todos os
predicados que exprimem uma qualidade da essência das coisas, mas a existên-

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como representativa dessa volta a Russell malgré lui e apresentaremos no


que segue um esboço rápido de suas teses principais.
Curley julga que somente podemos assumir que também nas
proposições existenciais o predicado está contido no sujeito caso con-
sideremos que a existência não consiste em nada além de uma exigência
ou demanda da essência, vindo, de tal maneira, a existir as substâncias
cujas essências possuam mais realidade ou mais tendência a existir. 18 É
pelo fato de nem todas as substâncias possíveis serem compossíveis
que nem tudo o que é possível existe, passando à existência o conjunto
de compossíveis dotado de maior perfeição, vale dizer, de maior ten-
dência a existir.
Curley considera que essa concepção dificilmente pode ser
compatibilizada com o papel atribuído por Leibniz a Deus em sua dou-
trina da criação, pois, no final das contas, tudo parece transcorrer como
se a passagem da essência possível à existência efetiva se desse exclusi-
vamente em função do grau de perfeição da essência e das relações de
compossibilidade, sem que a vontade divina desempenhasse aí nenhum
papel. Estaríamos, assim, diante de uma concepção com um indisfarçá-
vel travo necessitarista, ainda que seu autor afirme continuadamente sua
recusa de qualquer tipo de necessitarismo. 19

cia não exprimiria uma qualidade da essência, e sim uma propriedade relacional
irredutível às essências consideradas em si mesmas.”,in: Pinheiro, U., “As De-
finições de Existência em Leibniz”, Cadernos de História e Filosofia da Ciência, vol.
18, n. 1, 2008, p. 37.
18 Em algumas passagens Leibniz parece efetivamente adotar essa concepção

de existência: “Quoniam vera propositio est quae idêntica est, vel ex identicis
potest demonstrari adhibitis definitionibus, hinc sequitur Exustentiae definiti-
onem realem in eo consistere, ut existat quod est máxime perfectum ex iis
quae alioqui existere possent, seu quod plus involvit essentiae. Adeo ut natura
sit possibilitatis sive essentiae exigere existentiam.”, in: Leibniz, G. W., Die
philosophischen Schriften, Band 7, herausgegeben von C. Gerhardt, Georg Olms,
Hildesheim, 1978, pág. 195.
19 Curley afirma o seguinte: “And so the Leibnizian system – ora t least that

system as expounded by Couturat and followed to its logical consequences –

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O severo julgamento de Russell acerca do caráter de Leibniz,


manifesto em seu livro de história da filosofia 20 , segundo o qual Leib-
niz, com medo de desagradar as famílias nobre às quais ele servia, sus-
tentava hipocritamente em privado uma filosofia distinta daquela pre-
sente em sua obra publicada, tem sua origem, segundo Curley, exata-
mente na aceitação, por parte de Russell, de uma interpretação da natu-
reza da contingência em Leibniz que conduziria, caso desenvolvida de
uma maneira consequente, a uma espécie de necessitarismo, o que seria
contraditório com a teoria da criação defendida por ele em textos como
a Teodiceia. Curiosamente, Curley rejeita a hipótese russelliana da dupli-
cidade doutrinária em Leibniz com base justamente em uma retomada
da interpretação original de Russell das proposições contingentes.
Curley propõe que consideremos as atribuições de existência
como denominações extrínsecas, mas não puramente extrínsecas, uma
vez que elas teriam parcialmente sua razão de ser em denominações
intrínsecas das substâncias às quais se atribui existência. Isso equivale a
considerar a existência não como um predicado comum, mas sim como
um predicado superveniente, isto é, como um predicado que uma coisa
possui não diretamente, mas em função da posse de outros predicados.
No caso em tela, esse conjunto de propriedades diretamente possuídas
por uma substância poderia ser resumido na “propriedade” de perten-
cer ao melhor dos mundos possíveis. Curley ressalta, entretanto, que
pertencer ao melhor dos mundos possíveis não basta para que algo e-
xista, sendo necessário ainda que Deus escolha criar o melhor dos
mundos possíveis e, ato contínuo, o crie. Com isso, apesar de defender
que a existência seja uma propriedade para Leibniz – o que é funda-

leads directly to a necessitarian doctrine to which God’s purposes have little


relevance; it leads, in short, to a form of that dread disease Spinozism, though
a form modified perhaps by the qualification that not all possible exist.”, in:
Curley, E. M., “The Root of Contingency”, in Frankfurt, H., Leibniz. A Collec-
tion of Critical Essays, Anchor Books, New York, 1972, 75-76.
20 Russell, B., A History of Western Philosophy, Simon and Schuster, New York,

1945, pág. 581.

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mental para a preservação do argumento ontológico formulado pelo


autor -, Curley rejeita a ideia de que nas proposições existenciais verda-
deiras o predicado da existência esteja contido na noção completa rela-
tiva ao sujeito, uma vez que mesmo a essência da substância finita com
a maior tendência a existir não possui poder para existir por si mesma,
dependendo do ato criador divino. Essa dependência de um ato efetivo
da vontade divina para existir faz com que a existência das substâncias
finitas não possa ser simplesmente logicamente implicada pelo conjun-
to das propriedades primárias constituintes das respectivas noções
completas dessas substâncias. Dito de outra maneira, as proposições
existenciais – exceção feita àquela relativa à existência da substância
infinita – são sintéticas, e não analíticas, constituindo-se, por tanto, em
exceção à doutrina segundo a qual nas proposições verdadeiras o termo
sujeito contém o termo predicado. 21

II

Por mais agudas que possam ser as análises empreendidas por


Curley, considero essa última hipótese interpretativa - qual seja, a de
que as proposições existenciais configuram uma exceção à regra geral
de verdade – simplesmente inaceitável, pois Leibniz reiteradas vezes
21 “True existential propositions are an exception to the general run of true
propositions, in that all but one of them are strictly synthetic. This does not,
however, mean that existence is not a predicate. It is an extrinsic denomina-
tion, but not one which is wholly extrinsic. There is always some basis in the
nature of the thing for a correct predication of existence, a basis which con-
sists of the fact that the thing enters into the best possible world. Still, exis-
tence does not follow from that fact simpliciter. It follows only given the fur-
ther fact that God chooses to create the best possible world. So in the end the
principle of sufficient reason does involve essentially the assertion of final
causes.” in Curley, E. M., “The Root of Contingency”, in Frankfurt, H., Leib-
niz. A Collection of Critical Essays, Anchor Books, New York, 1972, 90-91.

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enuncia a irrestrita abrangência dessa regra, chegando mesmo a afirmar


explicitamente que as proposições contingentes estão a ela submetidas.
Além disso, como bem o ressalta Couturat, caso Leibniz sustentasse
essa exceção, o problema da contingência simplesmente desapareceria,
tornando-se totalmente desprovidas de sentido as reiteradas e desespe-
radas tentativas de solucioná-lo que podemos testemunhar em inúme-
ros textos de Leibniz.
A recusa dessa hipótese interpretativa de Curley não pode sig-
nificar, contudo, a aceitação simples e sem nenhuma qualificação adi-
cional da tese de que a existência seja um predicado presente na noção
completa de toda a substância existente e ausente daquelas meramente
possíveis, pois disso se seguiria, por um lado, que aquilo que existe não
poderia não existir, sendo, portanto, a sua existência necessária, e não
contingente, enquanto, por outro, aquilo que não existe não poderia
existir, sendo, assim, necessária a sua não-existência. O recurso nesse
contexto, para evitar o “abismo do necessitarismo”, à ideia dos “possí-
veis que não foram, não são nem nunca serão” redundaria, dessa ma-
neira, em fracasso, pois esses possíveis não seriam, em nenhum sentido,
alternativas consistentes ao efetivamente existente, uma vez que, por
uma questão de princípio, eles simplesmente não poderiam existir. Na
verdade, consistiria em uma dificuldade teórica suplementar a caracteri-
zação desses possíveis como possíveis, dado que a ideia mesma de pos-
sibilidade implica que esse algo possível existiria, caso certas condições
fossem satisfeitas, residindo sua não-existência não em uma inconsis-
tência ou contradição interna – situação em que não se trataria de algo
possível -, mas sim em alguma razão de outra ordem (por exemplo: não
fazer parte do conjunto mais perfeito de substâncias e fenômenos e,
por essa razão, não ser escolhido por Deus para existir). A questão é,
então, a de que parece contraditório dizer, ao mesmo tempo, que uma
substância é possível e que ela não pode existir.
Diante de tanto nevoeiro teórico, o melhor a fazer é seguir o
conselho do velho marinheiro, vocalizado pelo então jovem sambista, e

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levar o barco devagar. Em primeiro lugar, devemos nos perguntar o


que são, para Leibniz, proposições existenciais e proposições contin-
gentes, pois não há, a meu ver, clareza nem acerca de suas estruturas
respectivas nem acerca de se estamos diante ou não de conjuntos –
contingente ou necessariamente - co-extensionais.
Creio que a maior dificuldade reside no fato da existência não
poder ser tomada em Leibniz nem como um quantificador nem como
uma propriedade usual. Isso porque ela nem determina uma estrutura
proposicional específica, que seria simbolizada pela presença do quanti-
ficador existencial, nem consiste em uma propriedade ou modificação
de uma substância cuja atribuição a essa substância implicasse seu per-
tencimento a um conjunto formado pelos demais entes possuidores
dessa mesma propriedade, em contraposição ao conjunto formado por
todos aqueles que não a possuem, dado que, segundo o próprio Leibniz
no parágrafo 198 de suas Investigações Gerais acerca da Análise de Conceitos e
de Verdades, “a adição de “verdadeiro” ou “existente” deixa as coisas
como elas são.” 22
Encontramos, em Leibniz, uma complexa rede nocional que
entrelaça os conceitos de existência, essência, contingência e possibili-
dade. Restringir-me-ei, no presente artigo, a tentar rastrear algumas des-
sas conexões tais como elas se apresentam nas Investigações Gerais, texto
onde questões relativas à estrutura e natureza dos diversos tipos de
proposição são tratadas por si mesmas, e não em função de suas reper-
cussões éticas ou teológicas.
O primeiro ponto que devemos observar é que proposições e-
xistenciais são contrapostas, em Leibniz, a proposições essenciais. A
questão é que as proposições não se dividem em essenciais e existenci-
ais no sentido em que podemos dividir, por exemplo, os objetos ma-
croscópicos em coloridos e desprovidos de cor. Todo objeto macros-

22 Leibniz, G. W., Leibniz: Logical Papers, edited and translated by G. H. R.

Parkinson, Clarendon Press, Oxford, 1966, pág. 86.

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cópico é ou colorido ou desprovido de cor, pertencendo, assim, a um


ou outro grupo, e não aos dois ao mesmo tempo. No caso das proposi-
ções, não podemos lançar mão dos predicados “essencial” e “existenci-
al” para separá-las em dois grupos, de tal maneira que o pertencimento
a um deles implicasse o não-pertencimento ao outro. Isso ocorre em
função dessa contraposição não corresponder a uma distinção entre
dois tipos de estruturas proposicionais. Leibniz sustenta, ao contrário,
que determinadas proposições podem ser tomadas quer como existen-
ciais quer como essenciais sem que isso implique nenhuma alteração na
sua estrutura.
Uma proposição é essencial quando o que ela afirma é tomado
como concebível, isto é, quando o conteúdo que ela apresenta, em fun-
ção de ser internamente coerente e consistente, constitui algo possível,
ou, nas palavras de Leibniz, é uma entidade. Tomamos uma proposição
por existencial quando consideramos que o que ela afirma não é mera-
mente um possível, mas sim existe efetivamente. Essa contraposição
entre entidade e existente fica ainda mais clara se levarmos em conta
que, para Leibniz, as proposições tertii adjecti (como, por exemplo, “al-
gum A é B”) podem ser convertidas sem nenhuma dificuldade em pro-
posições secundi adjecti (como “AB é”), de tal maneira que aquilo que nas
proposições predicativas é descrito como uma situação complexa na
qual um predicado inere a um sujeito pode também ser caracterizado
como um ente referido por um termo complexo, do qual se pode afir-
mar sua possibilidade ou sua existência. Assim, a proposição afirmativa
“algum A é B” se deixa transcrever como “AB é”, significando, no caso
de uma interpretação essencialista, que AB é uma entidade, isto é, que
AB não encerra nenhuma contradição interna, sendo, portanto, um
possível na “região das ideias” 23 , significando, contudo, no caso de uma

23 A expressão é de Leibniz. Ver Leibniz, G. W., Leibniz: Logical Papers, edited

and translated by G. H. R. Parkinson, Clarendon Press, Oxford, 1966, pág.


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interpretação existencial, que AB é um existente, e não um meramente


possível 24 .
Comportam apenas a interpretação essencial – e não a existen-
cial - as proposições que se referem a objetos matemáticos ou a concei-
tos, uma vez que eles consistem em entidades para as quais não faz sen-
tido a diferença entre ser possível e existir efetivamente. Provar, lan-
çando mão aqui de um exemplo de Leibniz, que é possível uma figura
plana que possui uma relação constante com algum ponto determinado
é a mesma coisa que provar que essa figura existe. No caso da matemá-
tica, ser possível – isto é, ser concebível, ser desprovido de qualquer
contradição interna – e existir são um e o mesmo. De igual modo, será
verdadeira a afirmação de que a piedade é uma virtude se for concebível
que se possa dizer de algo, sem contradição, que ele é virtuoso por ser
piedoso. 25 Não há nenhum sentido outro que possa ser associado a essa
afirmação que não o de que a classificação de um ente como piedoso é
condição suficiente para que se o classifique também como virtuoso,
não envolvendo essa afirmação nenhum compromisso com a existência
efetiva no mundo quer de entes piedosos quer de entes virtuosos.
Já as proposições que dizem respeito a indivíduos permitem
tanto uma interpretação existencial quanto uma essencial 26 . Assim, por
exemplo, a proposição “Pedro não negou a Cristo” pode ser compre-
endida tanto como afirmando que é concebível, isto é, que é possível

24 Leibniz escreve, no parágrafo 146 das Investigações Gerais: “A proposição a-


firmativa particular “algum A é B”, transformada em uma proposição secundi
adjecti, será “AB existe, isto é, AB é uma coisa” – ou possível ou afetiva, de-
pendendo de se a proposição é essencial ou existencial.”, Leibniz, G. W., Leib-
niz: Logical Papers, edited and translated by G. H. R. Parkinson, Clarendon
Press, Oxford, 1966, pág. 81.
25 Não basta aqui se possa dizer que esse algo é piedoso e virtuoso, pois ele

poderia ser virtuoso em função da posse de uma característica outra que a pie-
dade, o que não nos asseguraria ser a piedade uma virtude.
26 Esse fato torna ainda mais implausível a hipótese interpretativa de Curley,

pois todas as proposições predicativas acerca de indivíduos constituiriam uma


exceção à regra geral da verdade.

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Considerações sobre verdade e existência em Leibniz 85

que Pedro não nega a Cristo – o que é imprescindível para que a nega-
ção de Cristo por Pedro seja contingente, e não necessária – quanto que
existe efetivamente o Pedro que não nega a Cristo. Se transformamos
essa proposição na proposição secundi adjecti “Pedro não negador de
Cristo é” podemos transcrever sua interpretação essencial por meio da
proposição “Pedro que não nega a Cristo é um possível” e sua interpre-
tação existencial por “Pedro que não nega a Cristo é um existente”. Em
proposições desse tipo ser possível e existir são, assim, duas coisas dis-
tintas uma da outra, o que permite que haja duas maneiras diversas – a
essencial e a existencial - de se compreender essas proposições.
Quando afirmamos, por exemplo, que Pedro negou a Cristo e
compreendemos essa afirmação existencialmente, estabelecemos, se-
gundo Leibniz, um vínculo entre Pedro, a negação e a existência, ca-
bendo, então, perguntar como exatamente as noções e de existência e
de negação se conectam à noção de Pedro. No parágrafo 71 das Investi-
gações Gerais, Leibniz aborda essa questão crucial. Ele escreve o seguinte:
“se eu digo “A é B” de uma coisa existente é o mesmo que se eu disses-
se “AB é um existente”, por exemplo, “Pedro é um negador”, isto é,
“Pedro negador é um existente”. A questão aqui é como se deve proce-
der nessa análise, isto é, se o termo “Pedro negador” envolve existência
ou se “Pedro existente” envolve negação – ou se Pedro envolve tanto
existência quanto negação como se você dissesse “Pedro é um negador
efetivo”, isto é, um negador existente, o que é certamente verdadeiro.
Indubitavelmente que se deve falar desse modo.” 27
O primeiro ponto que eu gostaria de sublinhar, a partir dessa
citação, é o fato de Leibniz, contrariamente à interpretação defendida
por Curley, explicitamente afirmar que nesse exemplo a existência, e
não apenas a negação, se encontra envolvida na noção de Pedro. A
principal dificuldade reside em como compatibilizar a afirmação desse
envolvimento da existência na noção do existente com a afirmação –

27G. W., Leibniz: Logical Papers, edited and translated by G. H. R. Parkinson,


Clarendon Press, Oxford, 1966, pág. 65.

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ver nota 23 – de que a adição de “existente” deixa as coisas como elas


são.
Nas Investigações Gerais, algumas linhas abaixo da citação acima,
Leibniz interroga a si mesmo acerca da natureza da existência, ponde-
rando que ela tem de acrescentar algo à possibilidade ou essência, dado
que ser meramente possível e existir efetivamente são duas coisas dife-
rentes, devendo consistir a existência em algum grau de entidade. A
questão é como dizermos isso sem que seja implicada uma espécie de –
a expressão é minha, e não de Leibniz – essencialização da existência,
isto é, sem que a existência, sendo um grau de entidade, não seja toma-
da como um elemento da essência, vale dizer, como um mero possível,
o que seria absurdo 28 . O complexo problema com o qual Leibniz se
defronta aqui diz respeito a como considerar que a noção do existente
envolve a existência sem que a existência seja tomada como uma das
propriedades ou características pertencentes à noção do existente, pois
nesse caso não teríamos como compreender em que consistiria efeti-
vamente o existir, uma vez que, tal como qualquer uma das outras pro-
priedades, a existência presente na noção seria atualizada quando do
existir do existente. Até pode fazer algum sentido, no caso das proprie-
dades predicativas, dizer que a passagem da possibilidade para a efetivi-
dade ou atualidade se dá pelo acréscimo da existência, mas não faz sen-
tido algum dizer que passamos da existência possível – aquela presente
na essência como um de seus elementos – para a existência efetiva atra-
vés do acréscimo da existência.

28 “Levando tudo em conta, eu não vejo o que é concebido em “existente”

além de algum grau de entidade, uma vez que ele pode ser aplicado a várias
entidades. Contudo, eu não gostaria de dizer que “que algo existe” é um possí-
vel, isto é, existência possível, pois isso é simplesmente a própria essência.
Nós, por outro lado, compreendemos a existência efetiva, isto é, algo acrescen-
tado à possibilidade ou essência, de tal maneira que nesse sentido a existência
possível seria o mesmo que a atualidade desprovida de atualidade, o que é ab-
surdo.”, G. W., Leibniz: Logical Papers, edited and translated by G. H. R. Parkin-
son, Clarendon Press, Oxford, 1966, pág. 65.

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Considerações sobre verdade e existência em Leibniz 87

A solução de Leibniz para esse problema consiste, em última


instância, retomando aqui apenas parcialmente a interpretação de Cur-
ley, em ressaltar a natureza superveniente da existência. Existe aquilo
que é compatível com a maior quantidade de possíveis e que, em fun-
ção disso, agrada à mente sumamente poderosa, isto é, a Deus. É por
pertencer ao melhor dos mundos possíveis que algo existe, derivando-
se a sua existência desse pertencimento. Que o mundo possível ao qual
uma substância pertence é o melhor dos mundos não se constitui, con-
tudo, em uma propriedade dessa substância que possa ser encontrada
ao fazermos um recenseamento de suas propriedades monádicas, pois
essa determinação da natureza optimal de um determinado mundo pos-
sível remete necessariamente ao todo do mundo possível do qual a
substância faz parte e à comparação com todos os demais mundos pos-
síveis. Ainda que consideremos que, para Leibniz, todos os predicados
relacionais, expressos por denominações extrínsecas, estão fundados
em predicados monádicos, expressos por denominações intrínsecas,
temos de levar em conta que, por abranger inelutavelmente o recurso a
considerações de ordem infinita, a afirmação da existência de uma subs-
tância não se deixa extrair por análise da noção completa dessa subs-
tância, apesar de ser implicada por ela ao infinito. Isso significa que a
existência está efetivamente envolvida nessa noção, sendo, portanto, ao
contrário da interpretação sustentada por Curley, a verdade da proposi-
ção existencial na qual se afirma a existência do sujeito correspondente
a essa noção fundada na inclusão do predicado no sujeito, embora não
seja possível - por uma questão de princípio, e não de fato – partirmos
dessa noção e, por um processo dedutivo qualquer, chegarmos a esse
predicado.
Pela mesma razão são também contingentes proposições acer-
ca de indivíduos nas quais são atribuídas a estes propriedades cuja atri-
buição envolva a referência a fatores de ordem temporal. Com isso,
Leibniz alcança garantir a contingência de determinadas conexões entre
as substâncias e suas propriedades mesmo quando tomadas como me-

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88 Edgar Marques

ramente possíveis. Mas não me é possível abordar este tópico no pre-


sente trabalho 29 .

Referências Bibliográficas

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introduction et notes par Jean-Baptiste Rauzi, PUF, Paris, 1998.

29 No artigo Observações preliminares acerca da raiz da contingência em Leibniz – ver

bibliografia - eu avanço algumas hipóteses interpretativas que visam garantir


tanto a contingência intra-mundana quanto a possibilidade de formulação de
proposições necessárias acerca de indivíduos.

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Considerações sobre verdade e existência em Leibniz 89

MARQUES, E., “Observações preliminares acerca da raiz da contin-


gência em Leibniz”, in Levy, L., Pereira, L. C., Zingano, M.
(Org.). Metafísica, lógica e outras coisas mais. 1 ed. Rio de Janeiro:
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