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P-087 - As Cavernas Do Sono - William Voltz
P-087 - As Cavernas Do Sono - William Voltz
AS CAVERNAS
DO SONO
Autor
WILLIAM VOLTZ
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Digitalização
VITÓRIO
Revisão
ARLINDO_SAN
Dois mil estranhos no Império Solar! Era
a cabeça-de-ponte da invasão galáctica...
A escada que levava ao escritório estava coberta por grossos tapetes, que abafavam
todos os ruídos. Era um dia fresco e límpido do mês de abril do ano de 2.044. Da rua
vinha o ruído abafado do tráfego.
Mrs. Jeanne Dunbee viu-se diante da placa cujo dono naquele instante corporificava
todas as suas esperanças:
RICHARD D. KENNOF
Detetive Particular
Demorou algum tempo até que Kennof conseguisse a ligação. Ao contrário de outras
pessoas, cujos telefones estavam equipados com uma tela de vídeo, o detetive particular
contentava-se com um antiquado aparelho. Não fazia muita questão de ver seus
interlocutores.
— Aqui fala o velho Dick — disse Kennof.
— Acho que ainda acabo enlouquecendo — disse a voz saída do fone. — Será que
você já se fartou de sua atividade, que o obriga a rastejar atrás de maridos infiéis? Está
arrependido e quer voltar para junto da família? O chefe ainda sonha com você e suas
façanhas. Tenho certeza de que o receberá de braços abertos.
Kennof juntou as pontas do robe. Buster parecia entediado; lambia as patas e não
deu a menor atenção ao dono.
— Nem penso em sujeitar-me novamente a qualquer tipo de disciplina, meu caro
Shane — disse Kennof. — Além disso, você logo se convencerá de que, além das
investigações familiares, ainda me preocupo com outras coisas.
Shane disse em tom gelado:
— Conte logo de que se trata.
— Pois não — confirmou Kennof. — Desta vez o alvo do meu trabalho é a
Companhia Intertemporal do Sono, também conhecida por CIS ou Companhia do Sono.
Por enquanto a operação baseia-se apenas em elementos de suspeita puramente
sentimentais. E, para reforçar esses elementos, quero fazer-lhe alguns pedidos...
— Um momento! — interrompeu o interlocutor invisível. — O velho Dick já
conhece sentimentos quando se trata de suas atividades criminalísticas?
— É por causa da vida mole de paisano — disse Kennof.
— Ainda há outro detalhe — prosseguiu Shane. — A CIS é um ferro quente no qual
você queimará os dedos. Você se lembra do Snyder, um sujeito alto e magro do
Ministério do Interior, que nos deu aquela reprimenda por causa da questão dos tóxicos?
— Acredito que sim — respondeu o detetive em tom azedo.
— Pois foi Snyder em pessoa quem realizou a última inspeção nas cavernas da CIS.
Você acredita que, se houvesse alguma falha, a mesma lhe teria escapado?
— Quem passará vergonha serei eu — ponderou Kennof. — Apenas gostaria que,
quando me apresentar para ser posto a dormir, você me arranjasse certos elementos sem
os quais não poderei fazer muita coisa.
O homem que se encontrava do outro lado da linha soltou uma exclamação de
surpresa.
— Você pretende formular uma proposta para ser posto a dormir?!
— Sem dúvida. Será a maneira mais rápida e segura de atingir meu objetivo.
O homem, que Kennof tratava como Shane, manifestou certas dúvidas.
— Você não será aceito, Dick — profetizou. — Você não tem problemas
psicológicos nem dificuldades financeiras. Você é um homem feliz e satisfeito, e além do
mais é um detetive.
Kennof enrolou o fio do telefone em torno do dedo e deixou-o cair sobre Buster.
— Você me subestima — disse. — Daqui a algumas horas, terei um encontro com
Gaston Hartz, que é o maior gênio financeiro da cidade. Pedirei a ele que prepare
imediatamente a ruína econômica do detetive particular Richard Kennof. Requererei
minha falência, os concorrentes esfregarão as mãos de contentes e Gaston brincará com
meu dinheiro. Não acha que estes problemas bastariam para que uma pessoa desejasse
dormir por alguns anos?
Buster procurou atingir o fio telefônico que balançava diante de seus olhos.
— Não acredito que seja suficiente — respondeu Shane em tom pensativo.
— Sei perfeitamente que não é suficiente — disse Kennof em tom sério. — É por
isso que preciso do endereço da Célia.
— Não! — a voz de Shane assumiu um tom duro.
— Célia, sim! — insistiu Kennof. — Preciso de seu endereço.
Quase parecia que Shane iria desligar, mas depois de uma pausa prolongada Kennof
ouviu sua voz:
— Célia saiu do negócio, e não vamos mexer com isso. Você encontrará outra
pessoa.
— Célia é a única que me serve. Está zangada comigo por causa da história do
Fainer, porque acredita que eu a tenha denunciado. Shane, não houve ninguém que
lamentasse tanto quanto eu a demissão de Célia.
— Ela nunca foi demitida — respondeu Shane em tom enfático.
— O quê?
— Foi reabilitada e saiu espontaneamente.
— E qual é seu endereço? — perguntou Kennof.
— Acho que se eu não lhe disser onde mora, você farejará sua pista. E estou
interessado em evitar que isso aconteça.
Forneceu alguns dados a Kennof.
— Obrigado — disse Kennof com um suspiro de alívio. — Prometo-lhe que a
tratarei com muito cuidado. Faça o favor de contar isso a seu chefe.
Houve uma interferência na linha, que quase fez desaparecer a voz de Shane quando
este indagou:
— Deseja mais alguma coisa?
— Acredito que conseguirei arranjar-me — disse o grande detetive em tom
modesto.
— O que me parece mais importante é o micro defletor, pois só com ele poderei
andar pelas cavernas sem ser visto. Além disso, você talvez poderia arranjar-me um
aparelho de localização. Deve ser uma versão bem discreta, talvez em forma de anel.
— Só isso? — gritou Shane em tom de espanto. — Como acha que eu deva fazer
isso?
— Talvez possa entregar tudo no meu escritório, juntamente com um pequeno
aparelho de rádio — disse Kennof sem o menor constrangimento.
— Para que o aparelho de rádio? Acha que haverá problemas?
— Acho. Pretendo mantê-lo informado sobre a situação, a fim de que eventualmente
possa convencer seu nobre chefe a intervir.
Kennof refletiu por alguns segundos.
— Naturalmente precisaremos de uma palavra-código.
— Qual será? — perguntou Shane em tom curioso.
— Whisky — disse Kennof em tom esperançoso. — Whisky puro!
***
Foi dali a quatro dias.
Os preparativos de Kennof desenvolviam-se a toda força. Depois de uma palestra
com Gaston Hartz, o gênio das finanças aceitara a incumbência de apresentar a situação
de Kennof de tal forma que pareceria que o detetive se arruinara em virtude de compras
de ações. Hartz fez questão de que os papéis realmente fossem adquiridos, a fim de que a
situação parecesse real.
Os possuidores dos títulos sem valor sentiram-se felizes por se verem livres dos
mesmos e, em troca do preço, prometeram que se esqueceriam da identidade do
comprador. Dessa forma, Kennof transformou-se em acionista de certas empresas,
embora o valor de seu investimento fosse igual a zero.
Hartz adotou inúmeras cautelas. Depois de algum tempo, até mesmo Kennof achou
perfeitamente crível que ele tivesse adquirido os papéis no curso do tempo por preços
absurdos e agora não conseguisse comprador para os mesmos. Depois de um exame
confidencial dos livros de Kennof, Hartz descobriu que o detetive costumava desperdiçar
grandes somas na compra de antiguidades. Arranjou notas de venda, documentos e
recibos. Quando leu as cifras escritas nos papéis, Kennof quase irrompeu em lágrimas.
— Hartz — disse, dirigindo-se ao francês. — O senhor é um homem simpático, mas
é mais esperto que um armênio. Não gostaria de ser seu inimigo.
Hartz sorriu e “provou” a Kennof que o mesmo teria de pagar uma dívida de 26 mil
solares.
***
O sol da primavera iluminava os telhados da cidade. Kennof saiu da sombra da
grande casa e dirigiu-se para a rua. Do lado oposto ficava o Bar do Tommy, imprensado
entre grandes edifícios.
Embora fosse de manhã, o proprietário acendera a propaganda luminosa instalada
em cima da vitrine. A mesma realizava uma luta desesperada contra a luz ofuscante do
sol.
A fim de ver o carro estacionado junto ao meio-fio, Kennof virou a cabeça. Gostaria
de olhar para dentro do bar, mas as cortinas do mesmo estavam fechadas.
O detetive entrou pela porta que se fechou, automaticamente, atrás dele. Em uma
das cinco mesas havia um homem que descansava a cabeça nos braços. À sua frente
havia uma garrafa pela metade e um copo.
Atrás de um balcão, uma mulher estava fazendo sanduíches. Não percebera a
entrada de Kennof.
O detetive tomou lugar numa das grandes banquetas que havia junto ao balcão e
tirou o chapéu.
— Olá, Célia! — disse.
A mulher largou a faca e levantou a cabeça. Era jovem. Devia ter pouco mais de
vinte e cinco anos, mas em seu rosto viam-se ligeiros sinais de cansaço.
Fitou Kennof.
— O que é que você quer? — perguntou.
Em sua voz não havia raiva, mas certa indiferença. Seus cabelos compridos estavam
amarrados. Célia não era muito bonita, mas não deixava de ser atraente.
— Uma cerveja — pediu Kennof. — Não quero muito gelada.
Enquanto a mulher se abaixava para tirar a cerveja da geladeira, disse
inesperadamente:
— Shane me disse que você viria. Não quis dizer o motivo.
Kennof lançou um olhar para o homem embriagado.
— O que houve com ele?
— Está dormindo — respondeu, enchendo o copo de Kennof.
O detetive fitou-a calmamente. Depois de algum tempo, falou em tom indiferente:
— Estou procurando uma colaboradora.
Os olhos escuros de Célia pousaram nele.
— Você vê que já tenho um emprego.
— Isso não é um trabalho para você — disse Kennof em tom penetrante. — Talvez,
por algum tempo, consiga convencer a si mesma de que está gostando do serviço. Mas,
mais tarde, ele a corroerá por dentro.
Tomou um gole.
A mulher respondeu em tom sarcástico:
— Você quer proteger-me contra isso, Dick?
Kennof levantou ambas as mãos, num gesto negativo.
— Sei que você é muito orgulhosa, Célia. O que lhe ofereço não representa
nenhuma caridade. Peço seu auxílio.
Ao que parecia, Célia aguardava outras explicações, pois Kennof não obteve
resposta. Ficou bebericando sua cerveja e piscou com os olhos.
— Que sentimento lhe inspira a idéia de ser minha noiva, Célia?
— Tendências suicidas — respondeu a mulher.
Kennof deu uma risadinha.
— Isso me lisonjeia bastante — disse. — Mas você não demorará a gostar. Você não
será uma noiva muito boa. Além de ser infiel, desperdiçará meu dinheiro e arruinará meu
bom nome. Seu comportamento me fará ficar furioso. Tentarei matá-la, e só com grande
dificuldade conseguirão impedir-me de realizar meu intento.
— Para que tudo isso? — perguntou Célia, sem demonstrar maior interesse.
— Para convencer a Companhia do Sono de Wyoming de que, face ao meu estado
psíquico, não lhe restará outra alternativa senão aceitar-me como cliente para ser posto a
dormir — disse Kennof em tom seco. — Além de uma noiva que me engana tenho muitas
dívidas. Acho que isso deve bastar.
Célia parecia cada vez mais interessada.
— Se você tiver dívidas, eles o recusarão. Não tenha a menor dúvida.
— Acho que você subestima o Hartz. Depois que tiver sido posto a dormir, afirmará
que eu o incumbi de vender meus bens. Com isso, minhas dívidas estarão liquidadas e a
CIS não assumirá qualquer risco. Antes que Hartz inicie as vendas, saberei o que há atrás
dessa Companhia, e voltarei arrependido. Anularei a ordem. Hartz se fará de ofendido,
mas a CIS terá sido enganada. Nem sequer terei necessidade de pedir desculpas à
Companhia do Sono. Mas se minha suposição de que há algo de errado com essa
companhia for correta, Hartz e eu receberemos uma medalha. Hartz venderá sua medalha,
e eu...
Célia fê-lo calar com um gesto.
— Dick, existe alguma base legal para seu procedimento?
Os olhos de Kennof fitaram-na tristemente por cima do balcão.
— Você ainda não aprendeu — disse ela.
— É verdade — confessou o detetive.
— E vai tentar, mesmo que eu não ajude — conjeturou a moça. — Você enfiou isso
na sua cabeça dura.
— Perfeitamente — respondeu Kennof.
Célia apresentou uma garrafinha.
— É a melhor bebida que temos — disse com um sorriso. — Vamos brindar ao
sucesso.
Muito animado, Kennof inclinou-se por cima do balcão.
— Será como antes, quando ainda estávamos... — principiou.
— Esqueça-se disso — respondeu Célia em tom áspero.
Kennof percebeu que ela nunca se conformaria com a perda do trabalho que tanto
apreciava. Ao abrir seu escritório de detetive, ele mesmo criara certa compensação. Mas
muitas vezes sentia vontade de enfrentar uma das tarefas às quais estava acostumado.
Talvez fosse por causa do treinamento extraordinário que havia recebido. Em sua
totalidade, os conhecimentos adquiridos estavam ociosos. E para Célia, seria ainda mais
difícil conformar-se com a nova situação.
Kennof, que era um individualista empedernido, não conseguira conformar-se com a
disciplina implacável. Não pertencia à classe de homens que gostam de receber ordens.
Por causa disso tirara suas conclusões: pedira demissão e obtivera uma licença de
detetive particular.
E agora estava reunido com sua antiga colega.
Richard Kennof há anos fora agente de um destacamento especial do Serviço de
Segurança Solar!
***
Dali a vinte dias, julgou chegado o momento de entrar em contato com a CIS. Pediu
que o pusessem a dormir por 150 anos. Disse que o pedido era motivado pela ruína
financeira e pela tendência de matar a amiga infiel.
Gaston Hartz garantiu-lhe que não fora cometido nenhum erro, e que mesmo num
exame rigoroso, feito por parte dos funcionários da CIS, não surgiria qualquer falha.
Célia desempenhou seu papel com o brilhantismo que era de se esperar. E Jeanne
Dunbee, que continuava em Dubose, recebeu a notícia sobre o progresso da tarefa de
Kennof.
Depois de uma forte resistência, Célia encarregou-se de cuidar de Buster. De um dia
para outro, o detetive esperava o convite da CIS para apresentar-se em Cheyenne a fim de
submeter-se aos exames médicos de rotina.
Quando fez uma visita secreta ao Ministério do Interior, todos os homens que o
cercaram acharam-no um ser digno de pena, pois, além de inúmeros credores, possuía
uma noiva desprezível.
***
Snyder lançou um olhar de espanto para Kennof.
— O fato de o senhor ter conseguido chegar a mim já o faz merecedor de certo
respeito — disse no tom afetado que lhe era peculiar. — É verdade que guardo
recordações nada gloriosas do senhor. Mas, apesar disso, estou disposto a ouvi-lo por
alguns minutos.
Kennof preferiu não informar Snyder sobre as características reais da luta que
travara, juntamente com Shane, contra os negociantes inescrupulosos que
contrabandearam drogas do setor de Vega para a Terra.
Limitou-se a dizer:
— O senhor chefiou a equipe que pela última vez fiscalizou as cavernas da CIS.
Permite que formule algumas perguntas a este respeito?
— Poderei dar-lhe apenas informações oficiosas — ponderou Snyder. — Não espere
dados oficiais.
Kennof preferiu não dizer que, como contribuinte, lhe cabiam certos direitos. Os
funcionários do Ministério do Interior geralmente não eram dotados de muito senso de
humor, e não havia a menor dúvida de que Snyder era o caso mais difícil.
— Naturalmente — respondeu o detetive em tom delicado. — Gostaria de saber se o
senhor chegou a ver alguma pessoa que estivesse dormindo dentro do bioplasma.
Snyder levantou as sobrancelhas até o ponto em que as mesmas formavam um
ângulo bem estudado, a partir do qual o gesto poderia ser interpretado como manifestação
de uma emoção.
— Examinamos atentamente os recipientes, Mr. Kennof — disse. — Vimos
perfeitamente as pessoas, pois as paredes externas das câmaras de dormir são
transparentes.
Pigarreou.
— Constatamos que na caverna se encontravam exatamente as pessoas cujos nomes
constam das cópias dos contratos arquivados no Ministério. A CIS é obrigada a enviar-
nos cópia de todos os contratos que celebra, a fim de que possamos verificar a qualquer
momento se certos elementos não recorrem aos seus serviços para subtrair-se à ação
punitiva do Estado.
— O senhor notou qualquer coisa que pessoalmente lhe parecesse estranho ou
incompreensível? — perguntou Kennof, prosseguindo no seu interrogatório.
— Bem, todo o projeto da CIS não é coisa corriqueira — começou Snyder em tom
comedido. — Não sou nenhum perito no setor, e por isso é apenas natural que para mim
certas coisas sejam inexplicáveis. Acontece que nossos especialistas são de opinião que
os serviços da Companhia do Sono são exemplares e que não existe motivo para qualquer
tipo de interferência. Será que o senhor dispõe de dados que contrariem esta opinião, Mr.
Kennof?
— De forma alguma — asseverou o ex-agente. — Meu interesse pela CIS é de
natureza exclusivamente particular.
— Não me venha dizer que o senhor quer adquirir um lugar para dormir.
— Será fácil descobrir, Sir — disse Kennof em tom tranqüilo. — Basta examinar as
cópias dos contratos.
Ao sair do Ministério do Interior, teve uma sensação nada agradável. Será que seu
trabalho se revelaria inútil? Ao que parecia, todos achavam que não havia nada de errado
com a CIS, inclusive Snyder. Kennof não estava interessado em desperdiçar seu tempo.
Ainda não havia recebido qualquer resposta de Cheyenne. Por enquanto o pedido ainda
poderia ser retirado.
Se Edmond Cascane, um colaborador ao qual Kennof pedira que realizasse uma
investigação minuciosa do passado da CIC, não obtivesse elementos concretos, o detetive
abandonaria seu plano.
Kennof enxotou alguns meninos que cercavam seu carro estacionado. As crianças
estavam fascinadas pela pintura futurista. Muito pensativo, deu partida no motor. Virou a
cabeça e olhou para o Ministério do Interior. Tratava-se de um edifício imponente, feito
de vidro, aço e concreto. Ao partir, nem desconfiava de que Cascane guardava uma
grande surpresa para ele.
Edmond Cascane — um homem quase completamente calvo, de olhos ágeis —
colocou um montão de papéis à frente de Kennof. Fungava e enxugou um suor
imaginário do rosto. Kennof brindou-o com um olhar de compaixão e começou a remexer
o monte de papéis.
— A maior parte disso não oferece o menor interesse — observou Cascane no tom
de quem reserva uma enorme sensação. Com um olhar atento mirou Kennof enquanto
este afastava os documentos.
— Fale logo, Ed — disse o ex-agente.
Cascane tirou uma folha solitária do bolso da jaqueta e agitou-a à frente do nariz do
chefe. Kennof, que já estava novamente envolto em seu robe amarelo, conseguiu apossar-
se do segredo de Cascane.
— Este documento apenas diz que um certo Fedor Piotrowski foi reprovado
vergonhosamente nos exames de doutor em medicina — disse Kennof em tom de
decepção, depois de ter lido o documento.
— Pois é este mesmo homem que se encontra no Parque Nacional de Yellowstone,
alguns metros abaixo da terra, e cuida dos clientes da CIS, sob o nome de doutor
Piotrowski — disse Cascane em tom enfático. — O que acha disso?
Num gesto pensativo, Kennof esfregou o queixo volumoso.
— É possível que posteriormente tenha passado no exame.
O auxiliar do detetive sacudiu a cabeça.
— Não fez nada disso, Dick. Eu vasculhei sua vida. Piotrowski deve ter conseguido
documentos falsos para arranjar a colocação na CIS.
— Ou então a CIS fabricou-os para ele — disse Kennof.
— O falso doutor vem do Canadá — prosseguiu Cascane. — Quebrou todas as
pontes atrás de si. Em sua terra ninguém sabe para onde foi.
Kennof deu uma forte pancada na mesa.
— Isso decide a questão — disse. — Vou a Wyoming.
— O resto são recortes de jornais — disse Cascane, numa tentativa débil de chamar
a atenção do chefe para a pilha de papéis. — Além disso, você encontrará relatos de
palestras travadas com pessoas que já tiveram relações com a CIS.
Mas naquele momento, Kennof já estava refletindo sobre como esconder seus
preciosos aparelhos no interior das cavernas, quando chegasse lá.
Dois dias depois, quando a CIS entrou em contato com o detetive, a fim de pedir a
este que se apresentasse em Cheyenne, o problema tornou-se agudo.
4
M'Artois estava parado junto à janela, de costas para Richard Kennof. O detetive
não se sentia muito à vontade. O psicólogo conhecia todas as artimanhas ligadas à sua
profissão. Atrás de sua benevolência escondia-se uma extraordinária compreensão, além
da excelente capacidade de combinação. Só no último instante, Kennof reconhecia as
perguntas-armadilha do colaborador da CIS. O detetive só conseguiu ludibriar o
psicólogo porque havia recebido o treinamento psicológico especial na Segurança Solar.
Kennof foi-se convencendo de que não se tratava tanto de um esforço da sociedade
para interessar as pessoas cansadas pelas belezas deste mundo, mas antes de um
verdadeiro interrogatório. M'Artois penetrava em todas as áreas da vida privada inventada
por Kennof. Nem mesmo diante das perguntas mais indiscretas, recuava. Por várias vezes
Kennof chegara a transpirar, ou então acreditara que o outro tivesse descoberto seu jogo.
Mas até então tudo dera certo.
M'Artois lançou um olhar atento para Kennof.
— O senhor me falou num tal de Mr. Hartz — disse. — Como foi que um financista
tão esperto pôde conformar-se em ver o senhor empatar seu dinheiro em ações sem valor?
— Acontece que estava saturado de ver meus atos supervisionados por Hartz —
disse Kennof. — Queria provar a esse sujeito convencido que sabia arranjar-me sem ele.
Infelizmente não deu certo.
— Esse procedimento corresponde ao seu caráter — admitiu M'Artois, e Kennof
suspirou às escondidas. — Talvez fosse conveniente recorrer a Mr. Hartz a fim de trilhar
novo caminho que o faça subir novamente na vida.
Kennof, que via suas chances se desvanecerem de novo, disse:
— Não é tanto pelo dinheiro. O senhor já está informado sobre o problema que
houve com minha noiva. Quando me lembro com que falta de escrúpulos ela me tem
enganado, não consigo controlar-me.
— Apesar de tudo o senhor ainda a ama?
Kennof acenou com a cabeça, como quem se sente muito envergonhado.
“Tornei-me um perfeito ator”, pensou.
O psicólogo pregou-lhe um longo sermão para convencê-lo de que seria preferível
manter-se fiel à vida. Kennof não teve a menor dúvida de que essas palavras só tinham
por fim despertar o espírito de contradição das pessoas que a CIS considerava
inofensivas.
Enquanto M'Artois exaltava as belezas do mundo, criava no subconsciente de seu
interlocutor uma aversão pelo mesmo. Apesar de tudo, o procedimento de M'Artois não
infringia a lei e também não permitia a Kennof tirar qualquer conclusão sobre o trabalho
da companhia.
— Ainda está disposto a celebrar um contrato com a companhia? — perguntou
M'Artois depois de concluídas suas considerações.
— Sem dúvida — confirmou o novo candidato.
— O senhor será submetido a um exame por meio do qual verificaremos seu estado
de saúde. Quero perguntar desde logo se o senhor sofreu alguma amputação.
Kennof respondeu que não. Já estava convencido de que havia algo de errado com a
CIS. Mas, por mais que se esforçasse, não descobriu o que poderia ser.
Seriam apenas alguns membros corruptos da companhia que seguiam um plano bem
definido, ou será que Cavanaugh e os outros também participavam do mesmo? Em caso
afirmativo, qual seria a finalidade da empresa? Será que seus interesses eram puramente
comerciais?
Naquele momento, o homem, que poderia ter esclarecido até certo ponto as dúvidas
de Richard Kennof, encontrava-se submetido a um poder do qual o detetive nunca
poderia suspeitar.
Maurice Dunbee já sabia tudo, mas seu saber não lhe adiantava nada, pois não se
encontrava na Terra, nem em qualquer outro planeta desta Galáxia.
5
— Não agüento mais esta espera — disse Célia Mortimer, dirigindo-se a Shane, que
se encontrava de pé à sua frente. — Por que não chama?
Shane Hardiston era um homem alto e musculoso com olhos azuis e delicados. Um
observador superficial seria levado a acreditar que era um homem bondoso e tranqüilo.
Mas seus inimigos conheciam a selvageria que se ocultava sob toda aquela tranqüilidade.
— Talvez já esteja dormindo — disse Shane em tom indiferente.
— Devemos fazer alguma coisa — exigiu Célia.
— Isso mesmo — concordou Hardiston. — Devemos esperar.
Célia lançou-lhe um olhar furioso, mas não disse nada. Encontravam-se no gabinete
de Kennof, que se transformara numa espécie de quartel-general.
Hartz entrou e atirou um maço de papéis sobre a mesa. Havia uma expressão
matreira em seus olhos.
— Acho que já nos livramos do pessoal da CIS. Cascane informa que
desapareceram da cidade — esfregou as mãos. — Está funcionando tudo às mil
maravilhas.
Seu rosto assumiu uma expressão séria.
— Coitado do Dick. Tem uma porção de dívidas e, além de tudo, a senhora, Miss
Célia... — disse em tom queixoso.
— Pois bem — prosseguiu quando viu que ninguém ria. — O estado de ânimo
aproxima-se do zero absoluto. Que importa? Não será fácil derrotar o velho Cavanaugh.
Cascane constatou que ele, o presidente da CIS, tem uma alta soma depositada nos
bancos.
— Se o interrogarmos a respeito, saberá apresentar uma explicação convincente para
sua fortuna — disse Shane.
— Naturalmente — admitiu Hartz. — Aliás, o tal do Cascane, que agora está na
recepção, assume uma atitude cada vez mais insistente. Só a muito custo conseguimos
convencê-lo a não ir a Wyoming para ajudar Kennof.
— Pelo menos tem mais espírito de iniciativa que certos outros homens — observou
Célia em tom irônico.
— Isso é comigo — disse Shane, dirigindo-se ao financista. — Esta jovem também
é de opinião que já está na hora de intervirmos nos acontecimentos.
— Ora, Miss Célia — disse o francês em tom indignado. — Logo agora, que tudo
corre tão bem? Se Dick precisar de auxílio, ele chamará. Não tenha a menor dúvida. Não
é nenhum menino inexperiente que não saiba o que fazer.
— Eu o conheço melhor que o senhor — disse a antiga agente. — Se existe um
homem que costuma tropeçar de um perigo para outro, este homem é Dick. E geralmente
ele gosta disso.
— Ela está exagerando — disse Shane com um sorriso.
***
— De onde veio? — perguntou Kennof, em tom de surpresa.
Levantou as mãos, para dar a entender que nem pensava em esboçar qualquer
defesa.
O Dr. Le Boeuf encostou o dedo indicador da mão livre aos lábios.
— Quando o senhor apareceu, eu já estava aqui — disse em voz baixa. — Não fale
tão alto. Por aqui existem vários micro fones.
Para enorme espanto de Kennof, o médico guardou a arma. O detetive deixou cair
os braços.
— Farei o que puder para ajudar o senhor — disse Le Boeuf. — A CIS é uma
grande fraude. Já está na hora de o público tomar conhecimento disso. Infelizmente
liguei-me a Cavanaugh e seus comparsas porque precisava de dinheiro. A esta hora, já
reconheço que foi um erro gravíssimo. Quase todos os colaboradores da CIS foram
subornados com quantias elevadas. Os guardas são criminosos procurados pela polícia,
que se sentem satisfeitos por terem encontrado um esconderijo. Seus documentos são
falsos. Clinkskate é o elemento mais perigoso. Provavelmente é o indivíduo mais baixo
que já encontrei.
Kennof esforçou-se para digerir as impressões que desabavam sobre ele. Não tinha a
menor dúvida de que o médico estava sendo sincero.
— Qual é o jogo da Companhia? — perguntou Kennof.
— É a Terra — respondeu Le Boeuf laconicamente.
Kennof sentiu uma leve tontura. Será que já estava dormindo num dos recipientes?
Não! O chão duro e frio e o rosto colérico de seu interlocutor pertenciam ao mundo
real.
— Suba ao “caixão” comigo — pediu o médico. — Mostrar-lhe-ei uma coisa de que
o senhor nunca se esquecerá, mesmo que viva cem anos.
Fossem quais fossem as intenções do Dr. Le Boeuf, ele não teve oportunidade de
levá-las avante. Três homens saíram do poço e vieram correndo em sua direção. Kennof
virou-se, disposto a defender-se. Uma expressão triste surgiu no rosto do médico.
— Tome — disse, entregando a pistola a Kennof.
Este sentiu o cabo frio e liso da arma em sua mão.
— Doutor! O que está fazendo? — gritou um dos homens que se aproximavam.
Outro homem disparou um tiro da pistola de gás. Kennof procurou prender a
respiração e respondeu ao fogo.
— Afaste-se do nosso caminho, doutor — gritou um dos homens.
O Dr. Le Boeuf atirou-se à sua frente. Kennof não se atreveu a atirar, pois receava
acertar no médico. Acontece que os empregados da CIS não conheciam esse tipo de
escrúpulo.
Kennof abrigou-se atrás do recipiente de plástico.
— Está aqui — gritou uma voz. — Na grande caverna, Clinkskate; nós o
encontramos.
— Agarrem-no! — disse a voz saída dos alto-falantes.
O cheiro de gás começou a tornar-se insuportável. Os olhos de Kennof começaram a
lacrimejar. Teve um forte acesso de tosse e retirou-se apressadamente. Outros tiros foram
disparados em sua direção.
— Clinkskate! — gritou Kennof em tom de desespero. — Tenho uma arma. Retire
seus homens, senão atiro nos recipientes.
— É verdade — disse um dos atacantes. — Ele tem uma arma, Clinkskate.
Sombras escuras desfilaram diante dos olhos de Kennof. A partir do estômago, um
terrível mal-estar espalhou-se por todo o corpo. Teve de agarrar-se a um tubo para não
cair.
Dois homens acreditaram que tivesse chegado a hora de aproximar-se. O detetive
viu seus contornos confusos surgirem na neblina leitosa. Disparou. Não pôde concentrar-
se o suficiente para acertar. Mas os atacantes afastaram-se.
A mão tateante de Kennof encontrou uma das escadas. Subiu pela mesma. Mal
conseguia respirar.
— Tomem cuidado para que não danifique as câmaras de dormir — advertiu
Clinkskate.
Os homens mantiveram-se afastados, em atitude indecisa. Kennof conseguiu puxar-
se para cima do caixão. Respirava com dificuldade e teve a impressão de que iria morrer
sufocado. Conseguiu arrastar-se para o outro lado, onde o ar ainda não estava tão
saturado de gás.
Arriscou uma olhadela para baixo. Aproximadamente uma dezena de homens estava
reunida na sala. Todos usavam máscaras contra gases.
O Dr. Le Boeuf estava deitado entre eles. O rosto de Kennof assumiu uma expressão
zangada. O aperto na garganta diminuíra. Os olhos voltaram a enxergar direito.
Kennof resolveu arriscar tudo numa única carta.
— Introduzi uma carga explosiva nesta caverna — gritou de cima do caixão. —
Olhem!
Exibiu cautelosamente o micro defletor defeituoso.
— Posso demolir toda a caverna — afirmou em tom enfático. — Sou policial.
Ofereço o perdão a qualquer pessoa que me apóie na ação.
Esperava que o aspecto estranho do defletor infundisse certa insegurança nos
homens.
— Está blefando! — gritou Clinkskate com a voz rouca. Os alto-falantes
retumbavam. — Como é que ele poderia conservar um objeto destes depois de ter sido
revistado?
— Alguns homens viram que o Dr. Le Boeuf me apoiou — lembrou Kennof. — O
doutor me ajudou a ficar com as armas.
— Não é nenhum policial — berrou Clinkskate fora de si. — Não se deixem
enganar. Prendam-no!
— Se o senhor tem tanta certeza de que ele não tem nenhuma carga explosiva, por
que não vem até aqui e nos ajuda a prendê-lo, Clinkskate? — perguntou um dos homens
em tom irônico.
Kennof ouviu Clinkskate praguejar.
— Desliguei o robô — gritou para os homens. — Como poderia ter feito isso se não
dispusesse de um treinamento de policial?
— Isso parece bem plausível — confessou o homem que assumira as funções de
porta-voz do grupo. — Prometemos que nada lhe acontecerá se o senhor se entregar.
Os alto-falantes transmitiram as pragas proferidas por Clinkskate.
Kennof soltou uma risada amarga.
— Não sou criança — disse em tom penetrante. — Sei perfeitamente que a CIS não
me soltará em hipótese alguma. Já sei demais a respeito de suas patifarias. Minha
situação é desesperadora. Não tenho nada a perder. Passarei a formular minhas condições.
— Agarrem-no logo — ordenou Clinkskate, que apareceu na porta. Seu rosto estava
transformado numa terrível careta. Em seus olhos brilhava o ódio. — Ele não pode impor
condições.
Kennof fez pontaria e atirou. O projétil penetrou no ombro de Clinkskate e atirou-o
ao chão. Não foi um impacto mortal. Kennof nem pretendia que fosse. Não queria
enfurecer ainda mais os homens. Dois deles levaram o ferido, que gemia fortemente.
— Fale logo! — gritou alguém para o detetive.
— Retire-se com seus homens por doze horas. Prometo-lhe que, depois disso, lhe
entregarei minhas armas.
Kennof subestimara o homem com quem estava falando.
— Isso não tem lógica. Daqui a doze horas, sua situação será exatamente a mesma.
O senhor não ganharia nada; apenas retardaria nossa ação.
Naturalmente Kennof não poderia dizer-lhe que, dentro desse prazo, Shane e seus
homens apareceriam por ali.
— Levem o Dr. Le Boeuf como refém — disse. — Se daqui a doze horas eu não
aparecer com minhas armas para entregar-me, utilizem-no para exercer pressão contra
mim.
O porta-voz do grupo lançou um olhar preocupado para Kennof.
— Não vai danificar os recipientes?
— Garanto-lhe que não!
O colaborador da CIS fez um gesto afirmativo.
— Vamos aceitar — disse, fazendo um sinal para os outros e abandonou a área.
***
Kennof pegou o rádio. Agora tudo dependia de que Shane estivesse prestando
atenção.
Perdera algum tempo para descobrir aquilo que o médico pretendia mostrar-lhe.
7
Clinkskate soltou uma praga e afastou Piotrowski, que estava muito pálido. A
atadura pendia frouxamente de seu corpo.
— Traga o telefone — ordenou. — Faça uma ligação com Cavanaugh. Ande
depressa!
O médico manipulou o aparelho com os dedos trêmulos.
— O senhor perdeu muito sangue — disse em tom cauteloso. — Seria preferível que
me deixasse terminar logo a atadura.
— Ande logo! — gritou Clinkskate. — Enquanto eu estiver falando no telefone,
pode aplicar o tratamento.
Deixou-se cair no sofá e colocou a mão sobre o ombro dolorido. Acompanhou os
esforços de Piotrowski com um ar impaciente.
— Sim — disse o médico. — Um momento, por favor.
Passou o fone a Clinkskate.
— É Cavanaugh — cochichou.
Clinkskate repeliu-o com um movimento do braço sadio.
— Aqui, Clinkskate — disse, falando para dentro do telefone. — O diabo está às
soltas, Mister Cavanaugh. Seria bom que o senhor viesse imediatamente.
— Não — prosseguiu depois de algum tempo. — Um homem fugiu da sala de
preparativos. Ao que parece contava com o apoio do Dr. Le Boeuf. Não; Piotrowski está a
meu lado, aplicando-me uma atadura. O fugitivo atirou contra mim. Está lá embaixo, no
pavilhão das câmaras de sono. Seu nome é Richard Kennof; era detetive particular.
Afirma estar de posse de uma carga explosiva. Disse aos homens que é policial.
Conseguiu ‘arrancar’ doze horas, durante as quais apenas pretende permanecer na
caverna. O senhor sabe perfeitamente o que significa isso. Kennof viu o transmissor...
Aguardou a resposta e disse:
— Farei o possível para convencer os homens a atacarem. Espero-o.
Desligou.
— Cavanaugh virá o mais rápido possível — disse, dirigindo-se a Piotrowski. —
Até lá devemos tentar resolver o assunto por conta própria. Tenho certeza de que o tal do
Kennof andou blefando.
— De qualquer maneira parece que tem coragem — objetou Piotrowski. — Tenho a
impressão de que ainda nos reserva uma surpresa...
— Tolice. Quanto tempo ainda vai levar para colocar essa maldita atadura?
— Já está pronta — respondeu o médico.
Clinkskate lançou-lhe um olhar pensativo.
— Tenho uma idéia, Piotrowski — disse. — Já sei como poderemos enganar esse
sujeito.
— Pode falar — disse o outro em tom de expectativa.
— O senhor irá para onde está ele — principiou Clinkskate.
Piotrowski empalideceu. Um sorriso inseguro surgiu em seu rosto. Levantou ambas
as mãos, num gesto de recusa.
— Não brinque — disse em tom medroso. — Então quer que eu enfrente Kennof
sozinho?
— Procure puxar pela cabeça, homem! O senhor aparecerá diante dele como quem
não quer nada. Conte-lhe que sentiu remorsos, que nem Le Boeuf. Dirá que resolveu
juntar-se a ele. Assim que ele deixar de desconfiar, o senhor poderá subjugá-lo.
— É realmente muito simples — disse Piotrowski em tom sarcástico. — Procure
outra pessoa para levar avante essa linda idéia.
Clinkskate gemeu enquanto se levantava num movimento apressado e caminhou em
direção a Piotrowski. Seu rosto estava rubro de raiva.
— O senhor se esquece de quem o tem ajudado, meu caro. Lembre-se do Canadá,
onde viveu um certo Fedor Piotrowski. Exijo que cumpra minha ordem.
O médico recuou. O suor começou a gotejar em sua testa. Falando com a voz rouca,
disse temeroso.
— Não irei...
Clinkskate golpeou-o.
— O senhor irá! — gritou.
***
Acima de cada uma das câmaras havia uma tampa com uma fechadura. Esta poderia
ser aberta a tiro de pistola, mas o ruído poderia atrair os homens.
Kennof examinou as dobradiças e ficou satisfeito ao constatar que estas não seriam
capazes de resistir à sua habilidade. Utilizou algumas peças retiradas do defletor e
levantou a tampa.
Puxou-a para o lado e olhou para dentro da câmara. Viu um velho de bigode e
cabeça calva. Era a imagem da paz. Kennof não pôde imaginar o que esse velho estaria
esperando do futuro que comprara por bom dinheiro.
Quando penetrou na câmara, Kennof teve a impressão de que, de um momento para
outro, seu ocupante poderia abrir os olhos e perguntar em tom áspero o que desejava.
O plasma celular era mantido a uma temperatura agradável. Os pés de Kennof
tocaram o fundo, quando um terço do corpo ainda estava fora do líquido. Foi caminhando
para junto do homem adormecido. O corpo do velho balançava ligeiramente. Kennof, que
já passara por inúmeras situações estranhas, não se sentiu muito à vontade. Mas já que
começara com aquilo, iria até o fim.
Seus dedos tocaram cuidadosamente o peito do homem — e recuaram
abruptamente.
A pele era fria como gelo!
Kennof sentiu um misto de repugnância e medo. A fazenda molhada da calça
grudava nas pernas. Fechou os olhos por um instante, a fim de concentrar-se. Pegou a
orelha do homem adormecido e puxou-a. Foi um gesto puramente intuitivo. O órgão
auditivo era de uma estranha moleza e elasticidade.
De repente, a orelha desprendeu-se da cabeça!
Kennof soltou um grito de pavor e cambaleou para trás. O líquido borbulhante
fechou o vazio deixado por seu corpo.
Aos poucos, o cérebro, que fora paralisado pelo pavor, voltava a funcionar. Seus
dedos continuavam a segurar a orelha, que não sangrava. Da ferida aberta na cabeça do
homem também não saía sangue. Kennof fez um esforço sobre-humano para examinar o
“objeto” que segurava na mão.
A iluminação fraca não permitiu que percebesse muita coisa.
A orelha não era feita de carne humana. Ao que parecia, não era constituída sequer
de uma substância natural. Esse fato não produziu o menor alívio em Kennof.
Será que todo o corpo do homem era feito de material bioplástico? Ou será que
aquilo era apenas uma máscara destinada a ocultar alguma coisa?
Na vida de qualquer homem sempre surge um momento em que se sente dominado
pelo pânico. Neste instante, Kennof sentia-se abalado até a medula dos ossos. Sua
estabilidade psíquica, que era muito superior à média, ameaçava desmoronar.
Num gesto puramente instintivo, saiu da câmara. Por algum tempo ficou deitado
junto à entrada, totalmente imóvel. Poças foram surgindo em torno dele.
Assim que refez-se do susto, rastejou para junto da abertura e olhou para dentro da
câmara.
Antes não o tivesse feito!
O velho fazia estranhos movimentos de nadador. De certa maneira as funções dos
membros eram inumanas, tão inumanas como qualquer coisa que Kennof já tivesse visto.
Perplexo, contemplou o espetáculo fantasmagórico.
Seus olhos arregalaram-se, pois de repente a pele do rosto do homem começou a
desprender-se!
Kennof não estava em condições de continuar a olhar para verificar o que havia
embaixo da pele humana. Pegou a tampa e cobriu a abertura. Totalmente abatido, ficou
estendido. O disparo de gás deixara um gosto de podre em sua boca.
Não saberia dizer por quanto tempo permaneceu imóvel até que, de repente, alguma
coisa embaixo dele procurou levantar a tampa...
***
Aos poucos, Fedor Piotrowski foi-se familiarizando com a idéia de que deveria
matar um ser humano.
Com as próprias mãos!
Sua vida era um rastro de maldades e baixezas. Um olhar retrospectivo fez com que
o médico reconhecesse seu passado sombrio. Sabia que era mau, e acreditava que essa
qualidade representava algo do qual jamais poderia afastar-se.
Sua maldade era de tipo diferente da de Clinkskate. Enquanto os atos deste eram
marcados pelo egoísmo e pela brutalidade, Piotrowski conseguia avaliar objetivamente o
seu procedimento. Em seu cérebro as noções do bem e do mal estavam nitidamente
delimitadas. Suas concepções a este respeito correspondiam exatamente às de um homem
decente. Toda vez que Piotrowski infringia a lei, uma voz interior lhe dizia:
— Você está cometendo uma injustiça! Tratava-se de uma constatação fria, que não
envolvia nenhuma auto-recriminação ou sentimento de culpa. O médico conseguira certo
distanciamento de si mesmo, e por isso considerava-se uma terceira pessoa. Sua
objetividade quase chegava a ser uma espécie de autonomia em relação a si mesmo.
Tratava-se de uma forma estranha e inofensiva de cisão da personalidade. A autonomia
não favorecia nem o bem nem o mal, que coexistiam em seu interior. Apenas estabelecia
as distinções e fazia as constatações.
Naquele instante, a voz interior constatou com uma objetividade total:
— Fedor Piotrowski está prestes a matar um homem chamado Richard Kennof! A
pistola com que será praticado o ato está enfiada na bota direita.
Piotrowski sabia que era perfeitamente possível que quem poderia ser morto era ele,
pois aquele fugitivo parecia ser um sujeito muito astuto. Tudo dependeria de quem fosse
mais rápido e esperto.
Piotrowski chegou à caverna em que se encontravam as câmaras do sono e entrou.
Fez o barulho necessário para que Kennof não acreditasse que quisesse entrar às
escondidas.
— Fique onde está — gritou Kennof do lugar elevado em que se encontrava. — O
que deseja?
— Quero ajudá-lo — disse Piotrowski. — Sou o colega do Dr. Le Boeuf. Os outros
não sabem que estou aqui.
Kennof respondeu em tom sarcástico:
— Agora já sabem, pois o senhor berrou para dentro dos micro fones.
“Que diabo”, pensou Piotrowski. “Como pude esquecer isso?”
Kennof levantou a pistola.
— Não cairei num truque idiota como esse, doutor — disse. — Dê o fora.
Os alto-falantes transmitiram a voz de Clinkskate, desfigurada por uma raiva
impotente:
— Piotrowski, seu amador maldito!
Piotrowski percebeu que Kennof se agarrava desesperadamente ao lugar em que se
encontrava. E logo percebeu por quê. O detetive jogava todo o peso do corpo sobre uma
das tampas que fechavam as câmaras.
O médico estremeceu.
“Acordou um dos monstros!”, pensou instintivamente.
Atirou-se ao chão e, no mesmo instante, tirou a arma do cano da bota. Kennof
encontrava-se numa posição difícil. Não podia sair do lugar, pois se o fizesse teria diante
de si um atacante muito mais terrível que Piotrowski e sua pistola.
Os dois atiraram ao mesmo tempo. O eco transformou a chicotada dos tiros num
rugido que parecia sair das paredes rochosas.
Assim que o ruído cessou, a voz de Clinkskate interrompeu o silêncio:
— Acertou nele, doutor?
— Não — disse Kennof em tom enfático. — Fui eu que acertei nele.
8
A pressão exercida contra a parte interna da tampa tornou-se cada vez mais forte.
“Talvez sejam apenas minhas forças minguantes que não me permitam deter o
prisioneiro”, pensou Kennof.
Certa vez, o desconhecido conseguira levantar a tampa por alguns centímetros. Uma
mão surgira na borda do caixão. Kennof golpeou-a com a coronha da pistola. O material
bioplástico esfacelou-se. Era do mesmo tipo daquela orelha que o detetive segurara
poucas horas antes. A mão foi retirada apressadamente. Seria mesmo uma mão? Ou uma
pata? Uma garra? Um tentáculo? Uma ventosa?
Kennof não conseguiu distinguir. A aparição fora tão ligeira que apenas conseguiu
ver algo de fugidio.
Mas uma coisa era certa: não se tratava de uma mão humana!
De repente, a visão de Kennof parecia desanuviar-se. Compreendeu a finalidade das
providências minuciosas e daquilo que se dizia ser o preparo dos corpos dos candidatos
da CIS. Não se tratava de adaptar o corpo dos mesmos a um sono de vários anos. A
verdadeira finalidade era outra. Por meio desses preparativos, os criminosos que
integravam a Companhia tinham oportunidade de estudar tranqüilamente o rosto e a
estatura das pessoas. Dessa forma, as máscaras de bioplástico eram cuidadosamente
preparadas e colocadas nos corpos dos indivíduos que se encontravam nos recipientes.
Nenhum dos fiscais do Ministério do Interior jamais tivera a idéia de entrar nas
câmaras, a fim de realizar um exame mais minucioso. Atrás das lâminas de plástico
transparente, os seres que dormiam no líquido amarelento eram iguais às pessoas
mencionadas nas cópias de contratos, arquivadas no Ministério.
Acontece que o estranho transmissor transportava os respectivos signatários a um
lugar desconhecido.
Nas câmaras de dormir não havia um único ser humano.
Que seres seriam estes que a CIS guardava na caverna? Seriam mutantes? Ou as
vítimas de alguma experiência condenável?
Para onde eram levados os seres humanos colocados no transmissor? Qual era a
finalidade que Cavanaugh e seus comparsas pretendiam atingir por meio de sua ação
fraudulenta? O que lhes conferia coragem para cometer um crime tão grave em pleno
coração do Império Solar?
O homem solitário, que se encontrava em cima da chapa de metal, não encontrou
resposta a estas perguntas. Mas seria fácil descobrir uma coisa: quem se encontrava nas
câmaras.
Bastaria sair de cima da tampa.
Gostaria que Snyder estivesse por lá para ver o que estava acontecendo. Em algum
lugar de Wyoming, um grupo de homens estava a caminho para ajudá-lo. Um grupo de
homens e uma mulher.
Chegariam tarde!
Kennof sentiu-se fraco e cansado. A roupa estava secando no corpo. Já por duas
vezes sentira calafrios. Em compensação, sua mente trabalhava muito bem. O medo
cedera lugar a uma certa resignação.
A criatura presa embaixo da tampa lutava com uma força incrível pela liberdade.
Mais uma vez a tampa levantou-se. Kennof encostou os pés numa tubulação, a fim de
comprimi-la para baixo.
Entre o detetive e seu inimigo havia apenas uns quatro milímetros de chapa de aço.
No momento, a tampa formava um ângulo de trinta graus com a superfície do líquido.
A mão voltou a aparecer.
Kennof observou-a fascinado, sem fazer nada. A poucos centímetros de seu rosto, a
mão tateava em busca de um apoio.
Kennof viu dedos estranhos.
Eram delicados e esguios; pareciam ter sido criados por um grande artista. A pele
escura, quase negra, era atravessada por linhas e sulcos suaves.
O detetive sentiu-se atirado para o lado por uma forte pancada. Foi arrancado
subitamente de suas reflexões. Perdeu o apoio e teve de soltar a tampa. A lâmina redonda
foi empurrada para longe, desceu por cima da borda do recipiente e caiu ao chão.
Kennof retirou-se apressadamente do lugar onde estava e segurou firmemente a
pistola do Dr. Le Boeuf.
Ouviu o burburinho do líquido. O plasma celular agitou-se. Alguns esguichos
caíram aos pés de Kennof. Pareciam gotas de sangue.
De repente surgiu outra mão.
Estava molhada. Deixou sua marca junto à borda do caixão. Parecia um número
enorme de impressões digitais.
Com os olhos arregalados e a arma apontada, Kennof mantinha-se a três metros do
caixão. O estranho ser parecia hesitar um pouco. Kennof sentiu uma tendência irresistível
de fugir. Até mesmo a voz horrível de Clinkskate, caso o xingasse pelo alto-falante,
representaria um alívio para o ex-agente.
Kennof soltou um grito.
A cabeça da estranha criatura apareceu. Era formada por placas bioplásticas. Era
uma coisa tremendamente apavorante. Os remanescentes da máscara davam certo aspecto
humano àquele crânio. Parecia a caricatura de uma cabeça humana. O bigode estava
quase perfeito. Completamente molhado, parecia uma centopéia colada ao rosto da
estranha criatura.
O resto do corpo apareceu. O monstro foi saindo para a liberdade.
Num instante, Kennof compreendeu a verdade. O conhecimento que adquiriu era tão
terrível e inacreditável que ameaçava subjugá-lo. Mas recuperou a força de decisão.
Esvaziou o pente de balas e não esperou para ver o resultado. Quase chegou a cair
escada abaixo.
Clinkskate voltou a chamar. O tom de sua voz demonstrava temor.
— Contra quem foram disparados esses tiros, Kennof?
Kennof correu em direção ao poço de ventilação.
— Contra um membro jovem da raça à qual a CIS quer entregar a Humanidade —
gritou o detetive em tom indignado.
— Contra um druuf!
10
O Dr. Le Boeuf ficou atento para ouvir o que se passava na escuridão. Antes que
recuperasse a consciência, um fato decisivo acontecera.
Tateou até a porta do cubículo em que fora preso. Ao notar que não estava trancada,
ficou espantado. Saiu cautelosamente para o corredor. Também aqui a escuridão era
completa. Parou por um instante para orientar-se. Sentiu o cheiro de fumaça. À frente
dele, devia ficar o poço de ventilação da caverna do sono.
O médico prosseguiu com as mãos estendidas para a frente, a fim de facilitar sua
orientação. Pela primeira vez seu subconsciente deu um sinal de que houvera uma
modificação naqueles subterrâneos.
Le Boeuf não tinha um plano definido. Avançou aos tropeções, e seus pés
encontraram a borda da abertura capaz de dar passagem a um homem. Esteve prestes a
entrar na mesma, quando teve outra idéia. Lembrou-se do transmissor. Se conseguisse
sabotar a estação, poderia desferir um golpe duro contra a CIS e os druufs. Os traidores
teriam dificuldades quase insuperáveis para construir outro transmissor.
Acontece que pouca coisa poderia fazer com as mãos desarmadas. Mas subitamente
lembrou-se de algumas palavras de Clinkskate.
— Em hipótese alguma, o transmissor deve ser acionado se no plano dos druufs não
for enviada simultaneamente uma massa correspondente. Qualquer infração a esta regra
poderá causar uma catástrofe.
O que aconteceria se ele, Le Boeuf, acionasse o transmissor sem que os druufs
soubessem disso? Será que seu corpo se dissolveria e desapareceria para todo o sempre
em alguma dimensão sobreposta?
Mas o equilíbrio energético entre o plano dos druufs e o Universo einsteiniano, que
era mantido automaticamente, levaria a outra conclusão.
O espaço de cinco dimensões o atiraria para trás. O médico não sabia formar uma
idéia precisa do volume de energia que seria liberado com isso. Mas tinha certeza de uma
coisa: essa energia seria suficiente para destruir o transmissor.
E destruiria também outras coisas.
Durante a execução do plano o Dr. Le Boeuf encontraria a morte. Não sentiu medo
nem remorsos. Caminhava apressadamente pela escuridão. Era um homem baixo e
sardento que, nas últimas horas de vida, adquiriu a consciência de sua responsabilidade
perante a raça a que pertencia.
***
Lohnert soprou uma mecha de cabelo. Na testa de Benson, o suor porejava. Tiveram
de ligar suas lanternas, já que as luzes se apagaram de repente. Vez por outra, o rosto de
um homem surgia num feixe de luz.
— O tempo passou — disse Shane Hardiston.
Seu corpo projetava uma sombra gigantesca contra a parede.
Adams e Fecher dirigiram as luzes de sua lanterna para o detonador eletrônico de
Lohnert. O agente mexia nos fios.
— Atenção! — gritou Benson de repente.
A luz de suas lanternas iluminava a barreira metálica, que ia subindo lentamente. Os
membros do destacamento especial do Serviço de Segurança Solar pegaram as armas.
Uma nuvem de fumaça passou por baixo da parede divisória. Espalhou-se rapidamente.
— Gás! — gritou Fecher e pegou a máscara.
Hardiston não se abalou. Farejou o ar. Depois de algum tempo, sacudiu a cabeça.
— Lá dentro há um incêndio — disse.
A barreira parou a cerca de cinqüenta centímetros de altura, rangendo fortemente. A
fumaça amarela continuava passando pela abertura.
— Deve estar empenada — disse Thatcher. — O caminho está livre.
Quando o primeiro colaborador da CIS passou pela abertura, avistou um vulto.
Hardiston baixou o cano do paralisador. Esse homem já não seria capaz de pensar,
embora segurasse uma faca. Em alguns lugares, as vestes totalmente queimadas
deixavam entrever pedaços de pele chamuscada.
— Ajudem-no — ordenou Hardiston. Agindo com a maior cautela, Adams e Lohnert
puxaram o ferido para fora da abertura. O homem gemia de dor.
— Ali vem mais gente — disse o grandalhão. — Receiam que atirem contra eles.
Hardiston colocou a máscara e inclinou-se para falar através da abertura.
— Saiam e entreguem-se — gritou para dentro das nuvens de fumaça. — Não
atiraremos.
Dali a pouco, suas mãos agarraram alguma coisa e outro corpo foi arrastado para o
lado de cá da parede metálica. Alguns minutos depois, quarenta homens, que
apresentavam queimaduras leves e graves, encontravam-se em poder dos agentes do
SDS.
Um desses homens era Clinkskate...
— O que é feito dos homens adormecidos? — disse Hardiston, superando o gemido
dos prisioneiros. — Serão queimados!
Clinkskate abriu as pálpebras vermelhas. Seus cílios estavam chamuscados.
— Não se preocupe — disse com a voz rouca. — Não há mais ninguém lá dentro.
A atadura de Clinkskate estava transformada numa crosta gosmenta feita de fuligem,
sangue e sujeira. O corpo atingira o estágio de esgotamento em que o homem se torna
incapaz de sentir dor.
— O que quer dizer com isso? — perguntou Hardiston em tom insistente. — Onde
estão as pessoas adormecidas?
— As pessoas adormecidas estão ali mesmo — disse Clinkskate em tom apático. —
Acontece que não se trata de gente. São druufs. As pessoas, que o senhor procura,
encontram-se num planeta situado no plano dos druufs.
— Está fantasiando — ironizou Fecher.
— Não, é verdade — opôs-se um dos colaboradores da CIS que se encontrava
agachado ao lado de Clinkskate. — Quando o fogo cessar, o senhor mesmo poderá ver. É
bem verdade que, quando isso acontecer, os monstros já estarão mortos. O fogo destruiu
os dutos que levam aos recipientes.
— O que houve com Richard Kennof? — perguntou Hardiston em tom apressado.
— Ele fugiu — respondeu alguém. — A esta hora deve estar morto.
Hardiston levantou-se.
— Preciso de dois voluntários para procurar o velho Dick — disse em tom
tranqüilo. — Os outros ficarão aqui para cuidar destes homens.
Todos se ofereceram.
— Thatcher e Lohnert — decidiu Hardiston.
Colocaram as máscaras.
— Ninguém deverá seguir-nos — disse Shane. — Nem agora nem depois.
***
O Dr. Le Boeuf segurou a barra de metal e passou por ela. A estação do transmissor
era totalmente independente das outras cavernas. Se houvesse cabos que saíssem da
unidade energética e levassem para ela, isso poderia provocar suspeitas. Nesse caso, um
belo dia, algum funcionário mais curioso teria a idéia de seguir esses cabos e acabaria
fatalmente na caverna secreta.
O Dr. Le Boeuf não sabia quanto tempo se passaria antes que o transmissor entrasse
em funcionamento. E isso pouco lhe importava. Sentado no chão frio, mantinha-se à
espera. Mais de dois mil homens estiveram no mesmo lugar antes dele... e contra sua
vontade.
E ele ajudara a cometer esse crime.
Um sorriso amargo surgiu em seu rosto. O ato, que estava prestes a cometer, lhe
restituiria o auto-respeito. Era só o que importava. Será que sentiria dores?
Foi atingido por uma sensação que não passou de um ligeiro sopro, mas que o
desvencilhou de todos os problemas. A metamorfose provocada pelo transmissor teve
início. A estrutura atômica do médico foi convertida num impulso hiperenergético e
atirada para uma dimensão inconcebível.
Normalmente ali teria penetrado na área de influência do transmissor dos druufs.
Acontece que estes ignoravam o Dr. Le Boeuf e seus planos temerários. Dessa forma
permaneceu por um tempo que, para as concepções humanas, não tem correspondente
numérico.
Depois disso, foi atirado de volta.
Mas o que surgiu no transmissor não foi o Dr. Le Boeuf.
E sim um volume de energia indômita!
***
Célia Mortimer não tirava os olhos da entrada aberta a dinamite. Zekizawa, que
percebia a direção de seu olhar, não disse nada. Ficou de olho em St. Cloud e Tober,
empenhados numa discussão acalorada. Pounds levara Maliverney ao campo de pouso, a
fim de colocar o homem ferido numa cama de dobrar.
O sol já desaparecera atrás do bosque. Um vento fresco soprava por cima das copas
das árvores. Bem no alto, uma águia descrevia círculos.
“Para esta criatura, não tenho a menor importância”, pensou Célia. “Seu olhar
atinge o infinito e sua vida é feita da luta e da caça.”
Subitamente o chão começou a tremer.
Dois punhos gigantescos pareciam sacudir a montanha, a fim de rasgá-la em duas.
Um rugido surdo saiu das cavernas. Uma fina nuvem de pó surgiu acima da rocha.
Grandes pedaços de rocha pareciam levitar no ar.
Célia viu Zekizawa abrir a boca para dizer alguma coisa, mas o barulho foi tamanho
que abafou as palavras. As entradas das cavernas, que ainda estavam fechadas, fenderam-
se. A montanha parecia rachar.
Zekizawa atirou-se ao chão e arrastou Célia consigo.
O fenômeno terminou tão de repente como havia começado. Uma poeira cinzenta
saiu das cavernas. Célia choramingava baixinho.
Zekizawa ouviu Tober dizer a St. Cloud:
— Só pode ter sido o transmissor.
“Deve ter enlouquecido de medo”, pensou o agente.
Subitamente, alguns vultos escuros e irreconhecíveis saíram das cavernas.
— Estão vivos — gritou Zekizawa e correu ao encontro dos homens.
Célia reconheceu Fecher, Hardiston e Benson.
Alguma coisa comprimiu sua garganta. Onde estava o velho Dick?
Lohnert arrastava Thatcher, que parecia ferido. Os homens da CIS seguiram-nos.
Era um grupo de pessoas cambaleantes, exaustas, semimortas.
— Célia — gritou uma voz rouca.
Uma das figuras cobertas de pó e fuligem levantou o braço.
— Ali está ele — disse Zekizawa no tom indiferente que lhe era peculiar. — O
velho Dick.
Estas palavras representaram um alívio para Célia.
Kennof aproximou-se cambaleando. Em seus olhos cansados surgiu um ligeiro
brilho, que mal e mal foi percebido por Célia.
— Como vai Buster? — perguntou com a voz rouca.
Tombou para a frente e teria caído ao chão, se Zekizawa não o tivesse segurado.
***
**
*