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A INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO

(CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO)

Precipuamente, ressalta-se a evolução histórica do processo, a partir de princípios e correntes


doutrinárias diversas, levando a suas implicações, sobretudo, sociais. Os primeiros estudos do
direito processual não demonstrava sua independência, outrora concedida, em relação ao
direito material, sendo mera extensão deste. Denomina-se esta fase de sincretismo, com sua
característica principal, sendo a confusão entre o direito material e o direito processual.
Posteriormente, chega-se à fase da autonomia processual, então, verifica-se a separação entre
a relação de direito material e a relação jurídica processual, sabendo-se que estão presentes
sujeitos, objeto e pressupostos distintos. Nesta fase os processualistas dedicam-se ao estudo e
investigação do instituto da Ação. Trata-se, agora, de um ramo jurídico autônomo e entendido
como ciência. Finalmente, surge a fase do direito processual em destaque atualmente: fase
instrumentalista. Nesta fase, desloca o centro do processo para os resultados práticos, a partir
dos princípios essenciais do direito processual, mas não com seu fim nestes.
Dinamarco ressalta que à medida que o direito processual passou a ser entendido como
ciência, “deixou-se o método preponderantemente descritivo e casuístico dos atos e forma do
processo.” Em torno de seu caráter instrumental, tema há muito abordado, têm-se os fins e
escopos que se pretendem alcançar com a prática efetiva e eficiente do processo, em busca da
paz social e manutenção da ordem. Diante das variadas funções do Estado, destaca-se a
jurisdicional, uma vez ultrapassada e proibida a autotutela dos interesses individuais é o
Estado quem exerce a atividade jurisdicional, no sentido de solucionar as pretensões resistidas
que se formam no plano social, visto que as partes não mais podem agir por si mesmas, cabe a
estas, a provocação do Estado-juiz em sua atividade jurisdicional, um poder-dever do Estado.
No tocante a um dos institutos processuais de grande relevo, isto é, a ação, é considerada
instrumento exclusivo do direito processual, meio pelo qual o indivíduo provoca o Estado-juiz
fazendo com que este exerça o seu poder jurisdicional. Contudo, não basta somente para que
se declare a lesão a direitos, é errado pensar que a ação configure o direito à tutela jurídica.
Uma vez que o Estado exerce sua função jurisdicional, não a pode fazê-la, sem a atenção
devida as garantias legais do contraditório e da ampla defesa, bem como objetivos e interesses
públicos em primeiro plano: escopos da ordem processual. Dinamarco define assim três
grupos de escopos processuais: o jurídico, o social e o político.
Para que se possa entender o processo como um instrumento ao exercício da jurisdição, esta
não pode ser tida como um fim. O Estado, através deste exercício, busca a concretização de
determinados resultados que implicam em mudanças no meio social. Assim, Dinamarco elenca
três escopos processuais: o social, o jurídico e o político.
Os escopos sociais não se resumem à pacificação social com justiça, mas contém também a
educação, de modo que o processo é meio pelo qual os indivíduos reconhecem os seus
direitos e obrigações. Em relação ao aspecto educacional, Dinamarco ressalta a descrença dos
cidadãos perante o Poder Judiciário, na busca da solução dos conflitos e no reconhecimento
dos direitos, sendo o CDC e os Juizados Especiais instrumentos utilizados para restituição da
confiança no sistema. É sabido que a vida em sociedade acaba por gerar conflitos,
insatisfações. Tais conflitos, a depender do grau de complexidade são capazes de colocar em
risco a própria existência da sociedade, a sua existência harmônica e estável.
O Estado deve atuar dirimindo os conflitos e reestabelecendo a paz social, pondo fim aos
conflitos interindividuais. O Estado é responsável ainda pela efetivação da reparação dos
danos sofridos pelos indivíduos participantes de tais conflitos. Atua, nesse plano, em conjunto
com a lei, na busca da solução justa dos conflitos. O Estado-juiz deve resolvê-los a fim de
garantir a paz social, e espera-se que isto seja feito visando à justiça e em conformidade com a
segurança jurídica. Podemos afirmar que a legislação e jurisdição destinam-se ao fim único, o
qual possui caráter social. O processo, como instrumento da própria função jurisdicional do
Estado, insere-se nesse contexto. Ainda, Dinamarco destaca a formação social perante uma
consciência dos cidadãos em relação a seus direitos e deveres, bem como da própria
sociedade.
Na aplicação do direito, o juiz, em sua função de intérprete e aplicador da lei, deve deter sua
atenção aos fins sociais a que ela se dirige, somando-se e às exigências do bem comum,
incumbe dar exegese construtiva e valorativa, que se afeiçoe aos seus fins teleológicos, sabido,
então, que ela deve refletir não só os valores que a inspiraram mas também as transformações
culturais e sócio-políticas da sociedade a que se destina. Destarte, os escopos políticos
referem-se ao poder do Estado, isto é, seu poder de império, na imposição de suas decisões, o
que não significa a sua relevância em detrimento da preservação da liberdade dos indivíduos,
isto é, este é o limite daquele. Ainda, acerca dos escopos políticos, também se configura a
participação dos indivíduos no destino das decisões políticas. Entende-se que os objetivos
políticos da jurisdição tendem a estabilizar a relação entre o poder estatal de influir na vida
dos indivíduos sociais e a liberdade destes, considerando todas as transformações inerentes às
sociedades.
Os escopos jurídicos do processo revelam a forma do processo e a posição que este se
encontra no sistema jurídico. De suma importância técnica, e de acordo com cada teoria
adotada, são abordadas as funções do direito processual no ordenamento jurídico. Uma vez
abordada a teoria unitária entendemos que o direito material e o processual integram,
conjuntamente, o processo criativo do direito, uma vez que o direito material não é capaz de
compor o direito ou a obrigação sozinho. Já para a teoria dualista o direito material é
autossuficiente, bastando que ocorra o fato relevante no mundo concreto para que se
verifique a existência do direito ou da obrigação, sem que haja necessidade do processo.
Ressalta-se, que a instrumentalidade do processo reúne sentidos distintos: como “conjunto de
formas ordenadas no procedimento e pautadas pela garantia do contraditório”1. Nesse
sentido, atentamos para o fato de ser o processo, em seu sentido estrito, utilizado para que se
efetive a função jurisdicional do Estado. Já em seu segundo sentido, processo como “categoria
jurídica” ou como um termo que se refere ao sistema processual, tratamos do processo por
uma visão exterior ao mesmo, uma visão do ponto de vista do sistema jurídico como um todo.
Tampouco, cuida a instrumentalidade abordada por Dinamarco do princípio da
instrumentalidade das formas. Trata-se da instrumentalidade do próprio sistema processual. O
processo, compreendido em sua fase instrumentalista, ou seja, instrumento que se dedica a
consecução de determinados fins, ganha importância e destaque à medida de sua efetividade,
isto é, o processo deve ser efetivo no sentido de cumprir todas as funções às quais se destina.
Na vigência do Estado Democrático de Direito, para que este Estado desempenhe seu papel,
deve valer-se de um sistema processual válido, eficaz, que garanta segurança e justiça aos
indivíduos.
Ademais, Dinamarco menciona que o aspecto negativo da instrumentalidade do processo,
reflete a preocupação que se tem de evitar que este confunda-se com o seu fim, tendo em
vista a exacerbada preocupação com os procedimentos, as formas e os institutos processuais,
perdendo-se o foco na situação material. Em verdade, as formas processuais não podem
sobrepor o próprio direito material, ainda que se considere que o processo faz parte da criação
do direito ou da obrigação. Pode-se dizer que essa seria uma consequência negativa da
instrumentalidade processual, característica da fase autonomista ou conceitual. Neste
momento, havia maior preocupação com o estudo do processo a partir de si mesmo. Como
ressalta Dinamarco, “não se trata de desconsideração dos importantes institutos e formas do
direito processual, mas sim da desmistificação de certas regras, princípios e do próprio
sistema”. O autor enfatiza a efetividade processual, sendo este o aspecto positivo da
instrumentalidade do processo mediante a satisfação dos fins a que se destina.
Dinamarco, ressalta que deve-se efetivar o estabelecimento de um novo método de
pensamento do processualista e do profissional de foro, ou seja, o processo deve ser capaz de
pacificar com justiça, educar os indivíduos acerca de seus direitos e obrigações, bem como
compor tais direitos e assegurar a participação dos cidadãos no destino político da sociedade
da qual fazem parte. Deve-se prestar bastante atenção ao fato de que o processo, como
instrumento, não pode isolar-se do contexto no qual está inserido. O fundamental, então, é
colocar o processo no seu devido lugar, e buscar a redução dos males, como afirma
Dinamarco, do Processualismo (aspecto negativo do processo como caráter instrumental).

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