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O Século
JÊ IDÉIAS &
\ LETRAS
D ir e t o r e s E d ito r ia is : P reparação:
Carlos da Silva Ana Lúcia de Castro Leite
Marcelo C. Araújo
R e v is ã o :
E d ito r e s : Leila Cristina Dinis Fernandes
Avelino Grassi
Roberto Giróla D ia g r a m a ç ã o :
Juliano de Sousa Cervelin
C o o r d e n a ç ã o E d it o r ia l :
Denílson Luís dos Santos Moreira C apa:
Alfredo Castillo
Tr a d u ç ã o :
Carlos Felíclo da Silveira
ISBN 2-02-057930-8
IDEIAS &
LETRAS
Editora Idéias & Letras
Rua Pe. Claro Monteiro, 342 - Centro
12570-000 Aparecida-SP
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Badiou, Alain
O século / Badiou; [tradução Carlos Felício da Silveira].
- Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2007.
07-5323 CDD-909.82
D ed ica tó ria....................................................................................5
1. Q uestões de m é to d o ........................................................ 9
2. A B esta...............................................................................25
3. O irreconciliado.............................................................. 49
6. U m se divide em d o i s ................................................... 97
8. A n á b a s e ..........................................................................129
11. V an g u a rd a s....................................................................199
B ibliografia.............................................................................. 269
21 de outubro de 1998
1. Questões de método
9
de B ossuet2 que se im põe: "Que são cem anos? Q ue são
m il anos, j á que u m único in sta n te os faz desaparecer?"
A lguém p e rg u n ta rá , en tão , q u al é o in s ta n te de exceção
que faz desaparecer o século XX? A q u ed a do m u ro de
Berlim? O seq ü en ciam en to do genom a? O lan çam en to
do euro?
M esm o su p o n d o que cheguem os a c o n s tru ir o sécu
lo, a c o n stitu í-lo com o objeto p a ra o p en sam en to , tr a -
ta r-s e -á de objeto filosófico, exposto a esse q u erer sin g u
la r que é o q u erer especulativo? O século n ã o é an tes de
tu d o u n id ad e histórica?
Deixemos que essa m estra do m om ento, a História,
nos tente. A História, que supom os ser o suporte maciço de
toda política, poderia sensatam ente dizer: o século começa
com a Prim eira G uerra M undial (1914-1918), g u erra que
inclui a Revolução de O u tu b ro de 1917, e term in a com o
desm oronam ento da U nião das Repúblicas Socialistas So
viéticas (U.R.S.S.) e o fim da G uerra Fria. É o pequeno sécu
lo (65 anos) vigorosam ente unificado. O século soviético,
em sum a. C onstruím o-lo com a ajuda de parâm etros his
tóricos e políticos com pletam ente reconhecíveis, com pleta
m ente clássicos: a g u erra e a revolução. G uerra e revolução
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estão aq u i especificadas com o "m undial". O século articu
la-se em to rn o de duas g u erras m undiais de u m lado e, de
outro, em to rn o da origem , do desdobram ento e do des
m oro n am en to do em preendim ento cham ado "com unista"
n a condição de em preendim ento global.
É verdade que o u tro s, ta m b ém obcecados pela H istó
ria o u pelo que d en o m in am "m em ória", co n tam o século
de fo rm a bem diferente. E posso segui-los sem problem a.
D esta vez, o século é o lu g a r de acontecim entos tã o ap o
calípticos, tão ap av o ran tes, que a ú n ica categoria com
que seja ap ropriad o p ro n u n c ia r su a un id ad e é a de crim e.
Crim es do com unism o stalin ista e crim es n azistas. No
coração do século, h á en tão - Crim e que dá a dim ensão
dos crim es - o exterm ínio dos ju d e u s da E uropa. O sécu
lo é século m aldito. Para pensá-lo, os p a râ m e tro s m a io
res são os cam pos de exterm ínio, as câm aras de gás, os
m assacres, a to rtu ra , o crim e o rg an izad o de Estado. O
n ú m e ro intervém com o qualificação intrínseca, p o rq u e
a categoria de crim e, desde que ligada ao Estado, desig
n a o m assacre em m assa. O balanço do século ap resen
ta de im ediato a q u estão da co n tag em dos m o rto s.3 Por
3 Que a contagem dos mortos tem valor de balanço do século é o que sus
tentam desde mais de vinte anos os “novos filósofos” que assumiram a tarefa
de assujeitar todo pensamento das políticas à mais regressiva advertência mo
ral. Deve-se considerar a aparição recente do Livro negro do comunismo como
apropriação historial completamente deslocada dessa regressão. Nada do que é
aqui abordado - com a palavra “comunismo”, em que tudo cabe - quanto a po
líticas tremendamente diferentes em suas inspirações e em suas etapas, e que se
estendem por setenta anos de história, é minimamente inteligível nesse balanço
contábil. Os imensos massacres e perdas inúteis de vidas humanas que de fato
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que essa v o n ta d e de co n tag em ? O ju lg a m e n to ético só
e n c o n tra seu real n o excesso e sm ag a d o r do crim e, n a
c o n ta de v ítim a s aos m ilhões. A c o n tag em é o p o n to em
que a d im en são in d u s tria l d a m o rte c ru z a a n ecessida
de do ju lg a m e n to . A co n ta g e m é o real que se su p õ e no
im p erativ o m o ral. A co n ju n ção desse real e do crim e
de E stado c o m p o rta u m n o m e: esse século é o século
to ta litá rio .
Reparem os que é m e n o r ain d a que o século "co m u
n ista". Com eça em 1917 com Lenin (alguns g o sta ria m
de fazê-lo com eçar em 1793 com Robespierre, m as aí
seria m u ito longo),4 atin g e seu zénite em 1937 p o r p a r
te de Stalin, em 1 942-45 p o r p a rte de Hitler, e te rm in a
fu n d a m e n ta lm e n te em 1976, com a m o rte de M ao Tse-
tu n g . D ura, p o rta n to , u n s sessen ta anos. Pelo m enos se
ig n o ra rm o s alg u n s sobreviventes exóticos, com o Fidel
C astro, o u alg u m as ressu rg ên cias diabólicas e excêntri
cas, com o o islam ism o "fanático".
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No en ta n to , co n tin u a possível, p a ra q u em p assa
friam en te p o r cim a desse p eq u en o século em seu fu ro r
m o rta l o u p a ra q u em o tra n s fo rm a em m e m ó ria o u em
com em oração co n trita, p en sar h isto ricam en te n o ssa
época com base em seu resu ltad o . Em ú ltim a análise, o
século XX seria o do triu n fo do cap italism o e do m ercado
m u n d ial. A correlação feliz do M ercado sem restrição e
da D em ocracia sem m a rg e n s te ria p o r fim , e n terran d o
as patologias do q u erer descontrolado, in s ta u ra d o o sen
tido do século com o pacificação, o u sabedoria da m ed io
cridade. O século expressaria a v itó ria da econom ia, em
todos os sentidos do term o : o C apital, com o econom ia
das paixões desvairadas do p en sam en to . É o século libe
ral. Esse século em que o p a rla m e n ta rism o e seu su ste n
tá cu lo a b rem o cam in h o real p a ra idéias m in ú sc u las é o
m ais c u rto de todos. C om eçando n a m elh o r das h ip ó te
ses depois dos anos 70 (últim os anos de exaltação rev o
lucionária), d u ra tr in ta anos. Século feliz, dizem . Restos
do século.
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p en sam en to s n ã o tran sm itid o s? Que se p en so u de a n te
rio rm e n te im pensado, até m esm o im pensável?
O m étodo será este: le v a n ta r n a p ro d u ção do século
alg u n s d o cum en to s, alg u n s traço s que in d icam com o o
século p en so u a si p ró p rio . E, m ais precisam ente, com o
o século p en so u seu p en sam en to , com o id entificou a sin
g u larid ad e p e n san te de su a relação com a historicidade
do p en sam en to .
Para esclarecer essa q u estão de m étodo, p e rm ita m -
m e fazer a p e rg u n ta hoje p ro v o can te, e m esm o p ro ib i
da, que é a seguinte: q u al era o p en sam e n to dos n azis
tas? Q ue p en sav am os n azistas? Existe u m a m a n e ira de
v o lta r sem pre p esad am en te ao que os n a z ista s fizeram
(p ro c u ra ra m e x term in a r os ju d e u s da E u ro p a n as câ
m a ra s de gás) que im pede to ta lm e n te q u a lq u e r acesso
ao que eles p en sav am o u im a g in a v a m que p e n sav am ao
fazer isso. Pois bem , n ã o p e n sa r o que p e n sav am os n a
zistas im pede ig u alm en te de p en sar o que faziam e, p o r
via de conseqüência, im p ossibilita q u alq u er política real
de b a n im e n to disso.
Q u an d o se diz, sem b em ponderar, que o que fize
ra m os n azistas (o exterm ínio) é da o rd em do im p en sá
vel, o u do in tratáv e l, esquece-se u m p o n to cap ital que é:
os n azistas p e n sa ra m e tr a ta r a m isso com o m a io r zelo,
com a m a io r determ in ação .
D izer que o n azism o n ã o é p en sam e n to ou, de m a
n eira m ais geral, que a b arb árie n ã o p en sa equivale n a
realidade a pro ced im en to caviloso de in o c en tam en to . É
u m a das fo rm a s do "p en sam en to único" a tu a l, que é
n a verdade a p ro m o ção de política única. A política é
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p en sam en to , a b arb árie n ão é p en sam en to , logo n e n h u
m a política é b á rb a ra . Esse silogism o v isa apenas a dis
sim u la r a b arb árie, e n tre ta n to evidente, do capitalism o
p a rla m e n ta ris ta que hoje nos d eterm in a. Para sair dessa
dissim ulação, é preciso afirm ar, n o e pelo te ste m u n h o do
século, que o n azism o é política, é p en sam en to .
Poderão dizer-m e: o sen h o r n ão q u er v er que acim a
de tu d o o n azism o e p rin cip alm en te o stalin ism o são fi
g u ra s do M al. Eu defendo que, ao co n trá rio , identifican-
d o -o s com o p en sam en to s o u com o políticas, so u eu que
m e d o u em ú ltim a análise os m eios p a ra ju lg á-lo s, e são
os senhores que, h ip o sta sian d o o ju lg a m e n to , acab am
p o r p ro teg e r su a repetição.
Realm ente, a equação m o ra l que identifica com o
M al o "im pensável" n a z ista (ou stalin ista) é u m a p re
cária teologia. Com efeito, h erd am o s de lo n g a h istó ria,
a da identificação teológica do M al com o n ão-ser. Se de
fato o M al existe, se h á positividade o n to ló g ica do M al, a
decorrência é que Deus é o seu criad o r e, p o rta n to , o res
ponsável. Para in o c en tar Deus, é preciso n eg ar q u alq u er
ser ao M al. Os que a firm a m que o n azism o n ã o é p en
sam en to o u que n ã o é (co n tra riam e n te à "dem ocracia"
deles) política, q u erem ap en as in o c en tar o p en sam en to ,
o u a política. Isto é, c am u flar a alian ça secreta e p ro fu n
da en tre o real político do n azism o e o que en ten d em ser
a inocência dem ocrática.
U m a das verdades do século é que as dem ocracias
aliadas n a g u e rra co n tra H itler quase n ã o se p reo cu p a
v a m com o exterm ínio. E strategicam ente, estav am em
g u e rra c o n tra o expansionism o alem ão e de fo rm a ne-
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n h u m a c o n tra o regim e n azista. Taticam ente (ritm o das
ofensivas, locais dos bom bardeios, operações de co m an
do etc.), n e n h u m a de suas decisões tin h a p o r finalidade
im pedir, o u m esm o lim itar, o exterm ínio. E isso, ap esar
de elas estarem , logo de início, perfeitam en te in fo rm a
das.5 E ig u alm en te hoje, nossas dem ocracias, p ro fu n d a
m en te h u m a n itá ria s q u an d o se tr a ta de b o m b a rd e ar a
Sérvia o u o Iraque, p raticam en te n ão se p reo cu p a m com
o exterm ínio de m ilhões de africanos p o r doença, a aids,
que se pode c o n tro lar e que se co n tro la n a E uropa o u
nos Estados U nidos, m as p o r razões de econom ia e de
propriedade, razões de direito com ercial e de prioridade
dos financiam entos, razões im periais, razões to talm en te
pensáveis e pensadas, n ão serão dados os rem édios co n tra
essa doença aos africanos m o rib u n d o s. A penas aos b ra n
cos dem ocratas. Nos dois casos, o verdadeiro pro b lem a
do século é o aco p lam en to en tre as 'dem ocracias' e o que
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m ais ta rd e elas d esignam com o seu O u tro , a b arb árie da
q u al são inocentes. E é preciso desfazer esse procedim en
to discursivo de inocen tam en to . Som ente assim , nessa
questão, podem -se c o n stru ir alg u m as verdades.
A lógica dessas verdades supõe que se determ in e seu
te m a, o u seja, a operação efetiva que está em jo g o n a
negação de ta l o u q u al fra g m e n to do real. E é o que te n
ta re m o s fazer a respeito do século.
M inha idéia é que nos aten h am o s o m ais p róxim o
possível às subjetividades do século. N ão a q u alq u er su b
jetividade, m as àquela que se refere precisam ente a esse
século. O objetivo é te n ta r ver se o sin ta g m a "século XX",
além da sim ples n u m eração em pírica, possui pertinência
p a ra o pensam ento. U tilizam os m étodo de m áx im a in
terioridade. N ão se tr a ta de ju lg a r o século com o dado
objetivo, m as de p erg u n ta r-se com o ele foi subjetividade,
de com preender o século com base em su a evocação im a
nente, ele próprio com o categoria do século. Os docum en
tos privilegiados serão, p a ra nós, os textos (ou quadros,
ou seqüências...) que invocam o sentido do século p a ra
os au to res desse m esm o século. O u que fazem da p alav ra
"século", e n q u an to esse século está em curso, até m esm o
apenas iniciado, u m a de suas palav ras m estras.
Fazendo isso, chegarem os talv ez a s u b stitu ir os j u l
g am en to s pela resolução de alg u n s p roblem as. A inflação
m o ra l co n tem p o rân ea faz com que o século seja ju lg a d o
p o r todos os lados, e condenado. N ão te n h o in ten ção de
reabilitá-lo, apen as de p ensá-lo, e, p o rta n to , de assen
ta r seu ser-pensável. O que deve d esp erta r o interesse
n ão é p rim eiram en te o "valor" do século aos olhos de
17
u m T ribunal dos direitos h u m a n o s tã o m edíocre intelec
tu a lm e n te q u a n to o T ribunal Penal In tern a cio n al (TPI)
in stitu íd o pelos am erican o s o é ju ríd ic a e politicam ente.
Tentem os an tes isolar e tr a ta r alg u n s enigm as.
Para te rm in a r esta conferência, a p o n to u m , de g ra n
de alcance.
O século XX com eça co m u m a la rg a d a excepcional.
C onsiderem os com o seu p ró lo g o as d u as g ran d es dé
cadas e n tre 1 8 9 0 e 19 1 4 . Em to d a s as o rd en s do p e n
sam en to , esses an o s re p re se n ta m p erío d o de invenção
excepcional, p erío d o de criativ id ad e p o lim o rfa co m p a
rável ap e n a s com a R enascença flo re n tin a o u co m o sé
culo de Péricles. É te m p o p ro d ig io so de su sc ita ção e de
r u p tu r a . C onsiderem ap en a s a lg u n s m arco s. Em 1898,
m o rre M allarm é, e x a ta m e n te ap ó s te r p u b licad o o que
é o m a n ife sto da escrita co n te m p o râ n e a , Um lance de
dados ja m a is ... Em 19 0 5 , E instein in v e n ta a re la tiv id a
de re s trita , se é q u e Poincaré n ã o o precedeu, e a te o ria
q u â n tic a d a luz. Em 1900, Freud p u b lica A interpretação
dos sonhos, d an d o à rev o lu ção p sican alítica s u a p rim e i
r a o b ra -p rim a sistem ática. A inda em V iena, d u ra n te
esse te m p o , em 1908, S choenberg fu n d a a possibilidade
de m ú sic a n ã o to n a l. Em 1902, Lenin crio u a p o lítica
m o d e rn a , criação re g is tra d a em Que fa zer? Ig u alm en te
desse início de século d a ta m os im en so s ro m an c es de
Jam es o u de C o n rad e escreve-se o essencial de Em bus
ca do tempo perdido de P ro u st, am ad u rece o Ulisses de
Joyce. Iniciado p o r Frege, co m Russel, H ilbert, o jo v e m
W ittg e n ste in e a lg u n s o u tro s , a lógica m a te m á tic a e
su a escolta, a filosofia lin g ü ístic a, ex p an d em -se ta n to
18
n o c o n tin e n te com o n o Reino U nido. M as eis q u e p o r
v o lta de 1912, Picasso e B raque tr a n s to r n a m a lógica
pictórica. H usserl, em su a o b stin a ção so litária, d esen
volve a descrição fen o m enológica. P aralelam en te, gê
nios p restig io so s com o Poincaré o u H ilbert re fu n d a m ,
com o herd eiro s de R iem ann, de D edekind e de C antor,
to d o o estilo das m a te m á tic a s. J u s to a n te s da P rim eira
G rande G u erra, n o p eq u en o P o rtu g al, F ern an d o Pessoa
estabelece p a ra a poesia ta re fa s h ercú leas. O p ró p rio
cin em a, recé m -in v en tad o , e n c o n tra em Méliès, G riffith,
C haplin, seus p rim eiro s gênios. N ão se ch eg a ria ao fim
da en u m e ra ç ã o dos p ro d íg io s desse breve período.
Ora, im ediatam ente após, é com o longa tragédia, cujo
colorido vai ser estabelecido pela P rim eira G uerra M u n
dial, a da utilização, sem d ram as, do m aterial h u m a n o .
Há n a verdade u m espírito dos anos 30. De fo rm a ne
n h u m a é estéril; vo ltarem o s a isso. No en tan to , é pesado
e violento ta n to q u a n to o início do século era inventivo e
perspicaz. Existe enigm a no sentido dessa sucessão.
O u p roblem a. P erg u n tem o -n o s: os terríveis an o s 30,
o u 40, e ain d a 50, com as g u e rra s m u n d iais, as g u e rra s
coloniais, as con stru çõ es políticas opacas, os m assacres
em m assa, as em p reitad as gigantescas e precárias, as v i
tó rias cujo cu sto é tã o elevado que p arecem d erro ta s,
tu d o isso está em relação, o u em n ão -relação , com a
la rg a d a a p are n tem e n te tã o lu m in o sa, tã o criad o ra, tã o
civilizada que c o n stitu em os p rim eiro s an o s do século?
E ntre as d u as frações do te m p o está a P rim eira G rande
G uerra. Q ual é, en tão , a significação dessa g u erra? Ela é
o resu ltad o , o u o sím bolo, de quê?
19
D igam os que n ão se te m n e n h u m a chance de resolver
esse p roblem a se n ão se lem b rar de que o período b en
dito é ta m b ém o do apogeu das conquistas coloniais, da
influência européia sobre a te rra inteira, o u quase. E que
assim , em o u tro lugar, longe, m as ta m b ém b em p erto das
alm as, e em cada fam ília, a servidão e o m assacre já estão
presentes. Desde an tes da P rim eira G uerra existe a África,
entregue ao que alg u m as ra ra s te stem u n h as o u artistas
dirão ser presunçosa selvageria de co n q u ista.6 Eu m esm o
olho com h o rro r o dicionário Larousse de 1932, tra n s m i
tido pelos m eus pais, em que, no registro da h ierarq u ia
das raças, tra ta d o com o evidente p a ra todos, é desenhado
o crânio do negro entre o do gorila e o do europeu.
Depois de dois o u três séculos de deportação da carne
h u m a n a p a ra a escravidão, a conquista acaba p o r fazer
da África o reverso h o rren d o do esplendor europeu, ca
p italista e dem ocrático. E isso co n tin u a hoje. H á no som
brio fu ro r dos anos 30, n a indiferença à m o rte, algo que
vem certam en te da G rande G u erra e das trincheiras, m as
que v em ta m b ém das colônias, com o re to rn o infernal, do
m odo com o aí são vistas as diferenças n a h u m an id ad e.
A dm itam os que nosso século seja aquele em que,
com o dizia M alraux, a política to rn o u -se a tragédia. O
20
que n o começo do século, n a larg ad a d o u rad a da Belle
Époque, p rep arav a essa visão das coisas? No fundo, a p a r
tir de certo m om en to , o século foi obcecado pela idéia de
m u d a r o hom em , de criar u m h o m em novo. É verdade
que essa idéia circula entre os fascism os e os co m u n is-
m os, que as estátu as são u m pouco as m esm as, a do p ro
letário ap ru m a d o n a soleira do m u n d o em ancipado, m as
ta m b ém a do arian o exemplar, do Siegfried a rra sa n d o os
dragões da decadência. Criar h o m em novo equivale sem
pre a exigir que o h o m em seja destruído. A discussão, v io
lenta, sem reconciliação, baseia-se sobre o que é o h o m em
velho. M as em todos os casos o projeto é tão radical que
n ão se leva em conta, em su a realização, a singularidade
das vidas h u m a n a s - tra ta -s e apenas de u m m aterial. U m
pouco com o, arran cad o s de su a h a rm o n ia to n a l o u fig u
rativa, os sons e as fo rm as eram , p a ra os a rtistas da arte
m oderna, m ateriais cuja destinação se deve reform ular.
O u com o os sinais form ais, destituídos de q u alq u er ideali
zação objetiva, p ro jetav am as m atem áticas p a ra u m aca
b am en to m ecanizável. O projeto do h o m em novo é nesse
sentido projeto de r u p tu r a e de fu n d ação que su sten ta,
n a ordem da h istó ria e do Estado, a m esm a tonalidade
subjetiva que as ru p tu ra s científicas, artísticas, sexuais
do início do século. É, p o rta n to , possível a firm a r que o
século foi fiel a seu prólogo. Ferozm ente fiel.
O que h á de curioso é que hoje essas categorias estão
m ortas, ninguém já se preocupa em criar politicam ente u m
hom em novo; ao contrário, de todos os lados se exige a
conservação do hom em antigo e especialmente a de todos
os anim ais em extinção, até m esm o do velho m ilho; e ju s
21
tam ente é hoje, com as m anipulações genéticas, que se está
pro n to p a ra m u d a r realm ente o hom em , p a ra m odificar a
espécie. O que faz to d a a diferença é que a genética é p ro
fundam ente apolítica. Acredito até que posso dizer que é
estúpida, o u ao m enos que n ão é pensam ento, n ão passan
do de técnica. É, pois, coerente que a condenação do projeto
político prom etéico (o ho m em novo da sociedade em anci
pada) coincida com a possibilidade técnica, e financeira em
ú ltim a análise, de m u d a r a especificidade do hom em , p o r
que essa m udan ça não corresponde a n en h u m projeto. Sa
bem os pelos jo rn ais que é possível, que poderem os ter cinco
patas ou ser im ortais. E isso acontecerá ju sta m en te porque
não é projeto. Isso acontecerá no au to m atism o das coisas.
V ivem os em su m a a revanche do que h á de m ais
cego e de m ais objetivo n a ap ro p ria ção econôm ica da
técnica, sobre o que h á de m ais subjetivo e de m ais v o
lu n tá rio n a política. E até, n u m sentido, a rev an ch e do
p ro b lem a científico sobre o p ro jeto político. C om efei
to, é assim : a ciência, e é s u a g ran d eza, te m pro b lem as,
n ã o te m projeto. "M u d ar o h o m e m n o que ele te m de
m ais p ro fu n d o " 7 foi p ro jeto rev o lucionário, sem d ú vida
22
m a u projeto, e to rn o u -s e p ro b lem a científico, o u talvez
so m en te técnico, de q u alq u er fo rm a pro b lem a que tem
soluções. Sabe-se fazê-lo, o u se saberá.
Evidentem ente se pode p erg u n ta r: que fazer do fato de
que se sabe fazer? Para responder, porém , a essa q u estão é
preciso projeto. Projeto político, grandioso, épico, violen
to. A creditem em m im , n ão são as benditas com issões de
ética que v ão responder à questão: "Que fazer deste fato:
a ciência sabe fazer u m h o m em novo?" E com o n ão existe
projeto, o u já que n ão existe projeto, a ú nica resposta é
bem conhecida. É o lucro que dirá o que fazer.
M as enfim , até o final, o século foi de fa to o século
do ad v e n to de o u tr a h u m a n id a d e , de m u d a n ç a rad ical
do que é o h o m em . E é nesse sen tid o que p e rm a n eceu
fiel às e x tra o rd in á ria s r u p tu r a s m e n ta is de seus p r i
m eiro s an o s. C om a ressalv a de q u e se p asso u , p o u co
a pouco, da o rd em do p ro jeto à o rd em dos a u to m a tis
m o s do lu cro . O p ro jeto m a to u m u ito . O a u to m a tis m o
ta m b é m , e c o n tin u a rá , m as sem que n in g u é m p o ssa
n o m e a r u m resp o n sáv el. C o n v en h am o s, p a ra d a r r a
zão disso, q ue o século foi a o casião de v a sto s crim es.
A ju n te m o s que n ã o acab o u , exceto q u e aos crim in o so s
n o m in a is sucedem crim in o so s a n ô n im o s ta n to q u a n to
o são as sociedades p o r ações.
18 de novembro de 1998
2. A Besta
25
ou ao pensam ento m u ito sutil que a cerca. Foi preso u m a
prim eira vez em 1934 após ter escrito u m poem a sobre Sta
lin,9 poem a que é m ais u m a espécie de advertência sardôni-
Não é sem interesse comparar esse poema russo dos anos 30 com um poema
francês de 1949, de autoria de Paul Eluard, e do qual apresento alguns fragmentos:
26
ca e am arga do que poem a de crítica política. M andelstam ,
hom em im prudente, hom em cuja confiança no pensam ento
é ingênua, m o stro u esse poem a a u m a dúzia de pessoas,
provavelm ente oito o u nove a m ais do que devia. Todo o
m undo o ju lg a perdido, m as foi liberado após intervenção
pessoal do Chefe. É u m desses efeitos teatrais que, quando o
alvo são os artistas, agradam aos déspotas. Stalin telefonou
a Pasternak em plena noite p ara perguntar-lhe se M andels
ta m era realm ente grande poeta da língua russa. Diante da
resposta afirm ativa de Pasternak, a m uito provável depor
tação m o rtal é com utada em residência forçada em Vorô-
niej. No entanto, é apenas questão de tem po. M andelstam
será pego nos grandes expurgos do ano de 1937 e m o rrerá
no Extremo Asiático, a cam inho dos campos.
27
O p o em a que e stu d am o s é b em an terio r, d a ta de
1923. Em 1923 rein a atividade in telectu al in te n s a .10 As
m u d a n ças da U.R.S.S. ain d a estão em suspenso. M an
d elstam te m a consciência poética de que algo de fu n d a
m e n ta l está em jo g o nessa evolução caótica de seu país.
Tenta esclarecer p a ra ele m esm o o en ig m a desse m o m e n
to de incerteza e de oscilação, com o q u al se in q u ieta.
Leiamos prim eiro o p o em a inteiro:
28
9. E nquanto vive a criatura
10. deve esgotar-se até o fim
11. e a vaga brinca
12. com a invisível vertebração.
13. Como a tenra cartilagem de u m a criança
14. é o século caçula da terra.
15. Em sacrifício u m a vez m ais, como o cordeiro,
16. é oferecido o sincipúcio da vida.
29
m a s que n a Rússia im pôs co rte b em m ais radical que em
o u tro s lugares, é u m a besta. E o p o em a v ai ra d io g ra fa r
a besta, p ro d u z ir a im ag em do esqueleto, d a o ssa tu ra.
No princípio, é u m a b esta viva. No té rm in o , ela o lh a
seu sulco. E ntre os dois, a q u estão decisiva é a da v erte-
bração, da solidez da esp in h a da besta. O que tu d o isso
p ropõe ao filósofo?
Esse p o em a te n ta c o n s tru ir visão o rg ân ica, e n ão
m ecânica, do século. O dever do p en sam e n to é de subje
tiv a r o século com o com posição viva. Todo o poem a, p o
rém , m o s tra que a q u estão da v id a dessa b esta é incerta.
O p o em a p e rg u n ta : em que sentido u m século pode ser
considerado vivo? Q ue é a v id a do tem po? N osso século
é o da vida o u da m orte?
N ietzsche em lín g u a alem ã, Bergson em lín g u a fra n
cesa (e portador, em relação ao louco de Turim , de nossa
m oderação nacional) são verdadeiros p ro fetas desse tipo
de questão. Exigem, com efeito, que de to d a a coisa se
form e u m a representação orgânica unificada. T rata-se de
ro m p er com os m odelos m ecânicos, o u term odinâm icos,
que o cientificism o do século XIX propõe. A q u estão o n to
lógica m aio r do século XX que se inicia é: o que é a vida?
O conhecim ento deve to rn a r-se a intuição do v alo r o rg â
nico das coisas. É p o r isso que a m etáfo ra do conhecim en
to do século pode ser a tipologia de u m a besta. Q u an to
à q uestão n o rm ativ a, ela se expressa da seguinte m an ei
ra: o que é a verdadeira vida, que é viver realm ente, de
u m a vida ad eq u ad a à intensidade orgânica do viver? Essa
q uestão atrav essa o século, relacionada com a do h o m em
novo, do q u al o su p er-h o m em de Nietzsche é antecipação.
30
O pen sam en to da vida in terro g a a força do querer-viver.
Que é viver conform e u m querer-viver? E tra ta n d o -se
do século: que é o século com o organism o, com o besta,
com o poder ossificado e vivo? N a verdade, co-pertence-
m os a esse século vital. Vivemos necessariam ente da vida
que é a sua. Com o o diz M andelstam desde a a rran ca d a
do poem a, o século com o besta é "m in h a besta".
Essa identificação v ital co m an d a o m o v im en to do poe
m a; vai se p a ssa r do o lh a r sobre a besta ao o lh a r da bes
ta. Do face a face com o século ao fato de que é o século
que olha p a ra trás. O p en sam en to poético do tem p o é, ao
ver as coisas com seus p ró p rio s olhos, vê-las, en tre tan to ,
com o olho do p ró p rio século. Tocamos aq u i o historicis
m o espantoso de to d a a m odernidade, historicism o que
se in sta la até n o v italism o do poem a. É que Vida e His
tó ria são dois nom es p a ra a m esm a coisa: o m o v im en to
que a rra n c a da m o rte, o devir d a afirm ação.
Que é, afinal, essa pro b lem ática n a rra tiv a e ontológi
ca que perp asso u o século e que é a da vida? A que isso se
opõe? À idéia de que a filosofia é sabedoria pessoal? Não!
Diz o século, ao m enos até a R estauração, que com eça
p o r v o lta de 1980. Não, n ão h á sabedoria individual. O
p en sam en to está sem pre em relação, sob os term o s em
parelhados de Vida e de H istória, a m u ito m ais do que
o indivíduo. Está em relação com bestialidade b em m ais
poderosa que a do sim ples an im al h u m a n o . E essa rela
ção com anda u m a com preensão o rgânica daquilo que é,
com preensão à q u al pode ser ju s to sacrificar o indivíduo.
O século é nesse sentido o do an im a l h u m a n o , com o
ser parcial tran scen d id o pela Vida. Q ue an im a l é o h o
31
m em ? Q ual é o devir v ital desse anim al? C om o ele pode
e n tra r em h a rm o n ia m ais p ro fu n d a com a V ida o u com
a H istória? Essas questões explicam a força, n o século,
das categorias que excedem a singularidade, a categ o ria
de classe rev o lu cio n ária, de p ro letariad o , de Partido co
m u n ista . M as ta m b é m é preciso reconhecer o in te rm in á
vel peso das questões raciais.
O p o em a n ã o cede a esse gênero de tran scendência.
M as a tre la solidam ente o século à im ag em dos recursos
vitais de u m a besta.
32
d ep o sitar confiança n a H istó ria a p o n to de ab an d o n ar-se
ao su p o sto progresso de seu m o v im en to .
Com o subjetividade, a fig u ra da relação com o te m
p o to rn o u -s e heróica, m esm o que o m a rx ism o a r r a s
te ainda, sem fazer n e n h u m a aplicação dela, a idéia de
u m sentido da H istória. E ntre o coração do século XIX
e o início do "pequeno século XX", en tre 1850 e 1920,
passa-se do p rog ressism o h istórico ao h ero ísm o p o líti
co-histórico espontâneo, da confiança à desconfiança. O
pro jeto do h o m e m n o v o im põe a idéia de que se v ai co
ag ir a H istória, que se vai fo rçá-la. O século XX é século
v o lu n ta ris ta . D igam os que é o século p arad o x a l de u m
histo ricism o v o lu n ta rista . A H istória é u m a b esta en o r
m e e poderosa, ela nos su p era, e, e n tre ta n to , é preciso
s u p o rta r seu o lh a r de ch u m b o , e fo rçá-la a nos servir.
O pro b lem a do poem a, que é ta m b é m o p ro b lem a
do século, consiste n o elo en tre o v italism o e o v o lu n
ta rism o , en tre a evidência do po d er bestial do tem p o e
a n o rm a heróica do face a face. Com o se en trelaçam no
século a q u estão da vida e a do v o lu n tarism o ? A qui ta m
bém N ietzsche é profético com su a "vontade de p o d er".
N ietzsche desvendou a dialética m a io r en tre v id a e q u e
rer. T rata-se de g ran d e ten são , cujo sím bolo está, com
relação ao que o co rreu n o século, nos ato res principais
que sem pre s u s te n ta ra m que isso co rresp o n d ia a u m a
necessidade vital, a u m a coação h istó rica e, ao m esm o
tem po, que isso n ã o po d ia ser obtido a n ão ser p o r u m a
v o n ta d e m u ito aplicada e a b s tra ta . H á u m a espécie de
incom patibilidade en tre a o n to lo g ia da vida (n a m in h a
opinião, ho m o g ên ea em relação à o n to lo g ia da H istória)
33
e a te o ria d a desco n tin u id ad e v o lu n ta rista . Essa in co m
patibilidade, porém , co n stitu i a subjetividade a tu a n te
d a besta-século. Com o se a co n tin u id ad e v ital n ão re a
lizasse seus p ró p rio s fins a n ão ser n a descontinuidade
v o lu n ta ris ta . Filosoficam ente, a q u estão é n a verdade a
da relação en tre v id a e v o n tad e, que está n o cen tro do
p en sam e n to de N ietzsche. A so b re-h u m an id ad e nietzs-
ch ian a é a afirm ação in teg ral de tu d o , o M eio-dia dioni
síaco com o p u ro d esd o b ram en to a firm ativ o da vida. E,
ao m esm o tem p o , n u m a a n g ú stia que se acelera a p a rtir
de 1 8 8 6 -1 8 8 7 , N ietzsche com preende que essa a firm a
ção to ta l é ig u alm en te r u p tu r a ab so lu ta, que é preciso,
segundo su a p ró p ria expressão, " p a rtir em d u as a h istó
ria do m u n d o " .12
O que é preciso v er é que a im posição à co n tin u id a
de v ital de u m h ero ísm o da d escontinuidade se resolve,
p oliticam ente, n a necessidade do terro r. A q u estão su b
jacen te é a relação en tre v id a e terro r. O século s u ste n to u
sem tre m e r que a vida n ã o realizav a seu d estino (e seu
desígnio) positivo a n ão ser pelo terro r. Daí u m a espécie
de reversão en tre a vida e a m o rte, com o se a m o rte fosse
apenas o m eio da vida. O p o em a de M an d elstam é p er
passado p o r essa indecidibilidade en tre a v id a e a m orte.
34
em pé? V értebra, cartilagem , sincipúcio... É a questão da
consistência do século, p o n to m u ito sensível n a m etafórica
de M andelstam e que ocupa grande espaço em o u tro m ag
nífico poem a dedicado ao tem po e ao sujeito do tem po, o
poem a intitulado Aquele que encontrou um a ferradura. Des
sa o ssa tu ra da besta, dessa consistência do tem po histórico,
M andelstam diz três coisas aparentem ente contraditórias:
35
culo". Na verdade, m ais que M andelstam , esse século es
teve obcecado pelo seu próprio horror. É u m século que se
sabe sangrento, especialm ente a p a rtir da Prim eira G ran
de G uerra que foi inim aginável trau m atism o . A Primei
ra G uerra M undial foi vivida com o algo diferente de u m a
g u erra - a expressão boucherie* surge m u ito cedo. Boucherie
quer dizer abate, consum ação p u ra e simples da vida dos
hom ens, aos milhões. M as é verdade tam b ém que o século
se pensa com o início de n o v a era, com o infância da h u m a
nidade verdadeira, com o prom essa. M esmo os exterm ina-
dores se ap resen taram sob o signo da prom essa e do início.
P rom eteram a era de ouro, a paz de m il anos.
É que a subjetividade do século o rg a n iz a de m a n eira
to ta lm e n te n o v a a relação en tre fim e com eço. O poem a
de M an d elstam ju s ta p õ e essas d u as idéias:
36
u m a penosa reparação de su a im potência. Ju stam en te por
que é vitalista, o século in terro g a su a vitalidade e, freqüen
tem ente, duvida dela. Fixa p ara si objetivos tão grandiosos
que facilm ente é persuadido de não poder atingi-los. Então
se p erg u n ta se a verdadeira grandeza não ficou p ara trás.
A nostalgia o espreita sempre, ele tem tendência de olhar
p a ra trás. Q uando o século crê que perdeu su a energia, ele
se reapresenta com o prom essa n ão cum prida.
Vitalismo (a besta poderosa), voluntarism o (m anter-se
diante dela), nostalgia (tudo já passou, falta energia): não
são contradições; é o que o poem a descreve, em 1923, com o
subjetividade do pequeno século que começa. A o ssatu ra n o
dosa, a cartilagem infantil e a vértebra rom pida designam o
século alternadam ente condenado, exaltado, lam entado.
37
- A finalidade ideal: o século XX realiza as pro m essas
do XIX. O que este pen so u , aquele o realiza. Por exem plo,
a Revolução, aq u ela com que os u to p ista s e os prim eiro s
m a rx ista s so n h a ra m . Em te rm o s lacan ian o s, isso pode
ser dito de d u as m an eiras: o século XX é o real daquilo
cujo im ag in ário foi o século XIX; ou, ele é o real daquilo
cujo sim bólico foi o XIX (aquilo com que fez d o u trin a,
aquilo q ue p en so u , o rg a n iz o u ).
- A desco n tin u id ad e n eg ativ a: o século XX ren u n cia
a tu d o o que o XIX (era de o u ro ) p ro m etia. O século XX é
pesadelo, a b arb árie de u m a civilização d esm o ro n ad a.
38
De fo rm a n en h u m a. Os delegados que se en co n tram nes
sa situação em briagam -se à noite e re to rn a m de m a n h ã a
M oscou. V ão dizer-nos que é o efeito das ilusões, das p ro
m essas e das m a n h ãs que can tam ? Não, é que p a ra eles
o real co m p o rta essa dim ensão. Que o h o rro r é sem pre
apenas u m aspecto seu, e que a m o rte faz p arte dele.
Lacan v iu m u ito bem que a experiência do real é sem
pre em p arte experiência do horro r. A verdadeira questão
n ão é de m an eira alg u m a a do im aginário, m as a de sa
ber o que, nessas experim entações radicais, fazia ofício de
real. Com certeza não, em to d o caso, a prom essa de dias
m elhores. Ademais, estou persuadido de que os im p u lso
res subjetivos da ação, da coragem , e m esm o da resig n a
ção, estão sem pre no presente. Q uem alg u m dia fez o que
q u er que seja em no m e de u m fu tu ro indeterm inado?
39
vai à frente, fig u ra ligada ao d esp erta r dos povos, ao
progresso, à libertação, ao so erg u im en to das energias.
M as já obsoleta no fim do século XIX, a im aginária do
poeta-guia está em com pleta ru ín a no século XX. Esse sé
culo, n a linhagem de M allarm é, funda o u tra figura, a do
poeta com o exceção secreta atuante, com o reserva do pen
sam ento perdido. O poeta é o protetor, n a língua, de u m a
ab ertu ra esquecida; é, com o diz Heidegger, o "guardião do
A berto".13 O poeta, ignorado, m o n ta g u ard a co n tra o extra
vio. E continuam os n a obsessão pelo real, já que o poeta ga
ran te que a língua conserva o poder de nom eá-lo. Tal é sua
"ação restrita", que continua sendo função m u ito elevada.
Em n o ssa terceira estrofe vê-se claram en te que a
arte, n o século, está en carreg ad a de u nir. N ão se tr a ta de
u n id ad e m aciça, m a s de fra te rn id ad e ín tim a , de m ã o que
se ju n t a com o u tra m ão , de jo elh o que to ca o u tro joelho.
Se conseguir isso, ele v ai p reserv ar-n o s de três d ram as.
40
- O da traição , d a ferida à espreita, do veneno. O
século é tam b ém , com a expressão da serpente (tão tr a
b a lh a d a p o r V aléry),14 a te n taçã o do pecado ab so lu to ,
consistindo em a b an d o n a r-se sem resistência ao real do
tem po. R itm o de o u ro q u er dizer: ser te n ta d o pelo p ró
p rio século, p o r su a cadência, e, p o rta n to , co n sen tir sem
m ediação com a violência, com a paix ão pelo real.
41
loca-se n a espera. Com efeito, ele n ão se dedica ao tem po,
n em é prom essa de fu tu ro , n em p u ra nostalgia. O poem a
m antém -se n a espera com o ta l e cria u m a subjetividade de
espera, de espera com o acolhim ento. Ele pode dizer que,
sim, a prim av era vai voltar, que "o renovo verde vai ir
ro m p er", m as que perm anecem os, u m século quebrado e
alquebrado, ten tan d o resistir à vaga da tristeza h u m an a.
42
os d ep u tad o s de 1937 são os que, dois an o s m ais tard e,
v o ta rã o os plenos poderes a Pétain.
Para concluir, é ta m b ém o an o de m e u n ascim ento.
Q ue nos co n ta A ndré B reton em 1937? U m a v a ria n
te fo rte da poética da espera, que é a do vigia. D am os o
início do cap ítu lo III de O am or louco:
43
municação misteriosa com os outros seres disponíveis,
como se fôssemos chamados a reunir-nos de repente.
Gostaria que m inha vida não deixasse atrás de si outro
m urm úrio a não ser o de um a canção de vigia, de um a
canção para enganar a espera. Independentemente do
que acontece, não acontece, é a espera que é magnífica.
HEIDEGGER
A presento u m excerto de "... p o eticam en te o h o m e m
habita":*
44
tom ar poeticam ente um a medida. Construir (bauen)
em sentido próprio acontece enquanto os poetas forem
aqueles que tom am a medida para o arquitetônico,
para a harm onia construtiva do habitar.
\
H á u m desprezo poético p o r tu d o o que é in stalação,
colheita, presa, que se en co n tra em to d a a poética do sé
culo. T rata-se de m a n te r a espera, a vigilância p u ra .
Rem ete-se tu d o a u m a condição prelim inar, que é
u m a to m a d a de m edida, a q u al acaba sem pre p o r se
a p re se n ta r n a fig u ra da espreita e da g u ard a. O po éti
co com o ta l é co n serv ar o u m b ral, n u m a reversibilidade
en tre a tran sp o sição e a n ão -tra n sp o siç ão . Poder o lh a r
ao m esm o tem p o p a ra trá s e p a ra frente. O século dos
p o etas é o sécu lo -u m b ral, sem n e n h u m a tran sp o sição .
Isso se encon tra n a ú ltim a estrofe de M andelstam . Há
n a verdade u m a novação, isso vai florir, renascer, m as h á
ta m b ém u m a fenda, a ped ra fendida do u m b ral, de onde
nasce o o lh a r p a ra trás, a obsessão p o r pegadas. Para fren
te, h á prom essa que n ão pode ser cu m p rid a (o que, seja
dito de passagem , é a definição da m u lh e r p a ra Claudel),15
45
p a ra trás, só existem suas p ró p rias pegadas. O século se
v iu poeticam ente ao m esm o tem p o com o im possibilidade
de transposição e com o o traçad o que o co n d u z p a ra aí,
entrem eio da pegada e da destinação.
46
A m ais de m eio século de distância, é a m esm a fig u
ra, a do p o em a colocado en tre a p eg ad a que se ap ag a e o
sen tim en to de u m m u n d o que finda. N ão se pode e n tra r
em lu g a r n en h u m . Q ue aconteceu p a ra que tivéssem os
essa exaltação do u m b ral? O p o em a é a fina lâ m in a en tre
pegada e acabam en to .
47
6 de janeiro de 1999
\
3. O ¡¡reconciliado
49
Se o n ú m ero (sondagens, contas, índices de audiencia,
orçam entos, créditos, Bolsa em alta, tiragens, salário dos
executivos, stock options etc.) é o fetiche dos tem pos atuais,
é porque onde o real vem a falh ar o n ú m ero cegó ai está
Que ele seja cegó den o ta o m a u n ú m ero , n o sentido
em que Hegel fala do m a u infinito. A distinção do n ú m e
ro com o fo rm a do ser e do n ú m e ro com o tap a-b u raco da
falência do real é tã o im p o rtan te aos m eus olhos que lhe
dediquei tod o u m liv ro .16 C o n ten tem o -n o s aq u i com u m
contra-exem plo: M allarm é é u m pen sad o r do n ú m e ro n a
fo rm a do Lance de dados. M as p a ra M allarm é, o n ú m ero
é tu d o exceto o m aterial das opiniões. É "o único n ú m e ro
que n ão pode ser o u tro ", o m o m en to em que o acaso se
estabelece, pelo interm édio do lance de dados, com o ne
cessidade. Existe articu lação indissociável en tre o acaso,
que u m lance de dados n ão abole, e a necessidade n u m é ri
ca. O n ú m e ro é a cifra do conceito. É p o r isso que, conclui
M allarm é, "todo p en sam en to em ite u m lance de d ad o s".
Hoje o n ú m e ro é o n ú m e ro do n u m eráv el indefinido.
Ao co n trário daquele de M allarm é, o n ú m e ro da Restau
ração te m com o característica poder ser, sem inconve
niente, q u alq u er o u tro n ú m e ro . A variabilidade a rb itrária
é su a essência. É o n ú m e ro flu tu an te. É que com o p añ o de
fu ndo desse n ú m e ro h á os im previstos da Bolsa.
A tra je tó ria que v ai do n ú m e ro de M allarm é ao n ú
m ero da so n d ag em é a q u e m u d a a cifra do conceito em
v ariação indiferente.
16 Esse livro, escrito há uns quinze anos, tem como título Le Nombre et les
nombres (París, Seuil, 1990).
50
Por que esse p reâm b u lo ? P ara in tro d u z ir u m p re
âm b u lo , ju s ta m e n te , que n a p rá tic a está desligado do
que v em a seguir. Eu ta m b ém , em plena R estauração,
v o u e n tra r com m eu s n ú m e ro s. Eu os retiro de alg u n s
jo rn a is sérios17 que p o r su a vez os re tira m de relató rio s
oficiais ain d a m ais sérios.
Será possível enten d ê-lo s com base em dois tem as
cuja lin h a princip al estas conferências sobre o século te
rão ao m enos m o strad o :
51
1. H á hoje q uase 5 0 0 .0 0 0 pessoas infectadas pela
aids n a E uropa. Com a trite ra p ia , a m o rtalid ad e está em
queda livre. A g ran d e m a io ria dessas 5 0 0 .0 0 0 pessoas
viverá às cu stas de tra ta m e n to pesado e crônico.
N a Á frica, h á 22 m ilhões de pessoas in fectad as pela
aids. Os m edicam entos p ra ticam en te n ã o existem . A
esm ag ad o ra m a io ria m o rre rá ; em certos países, u m a
criança em q u a tro , o u talv ez em três.
A distrib u ição dos m edicam en to s necessários, a to
dos os doentes african o s, é to ta lm e n te possível. B asta
que certos países d eten to res dos m eios in d u striais deci
d am fab ricar genéricos e en treg á-lo s às populações in te
ressadas. Esforço financeiro m ín im o , m u ito in ferio r ao
cu sto das expedições m ilitares " h u m a n itá ria s".
U m governo que n ão decide agir decide ser co-respon
sável pela m o rte de várias dezenas de m ilhões de pessoas.
52
a fa tia su p erio r tin h a receita tr in ta vezes su p erio r à da
fa tia inferior. Em 1995, essa receita é 82 vezes superior.
53
o am plo desenvolvimento de u m a psicanálise cristã, o que
indica, entretanto, que o corpo religioso tem a sensibilidade
de bronze quando se tra ta de digerir os venenos.
U m a tese essencial do cristian ism o estabelecido, do
cristian ism o to rn a d o p o d er de Estado, é q u e o m u n d o
novo nasce sob o signo do suplício e da m o rte do in o
cente. A n o v a alian ça de D eus e dos seres h u m a n o s, en
carn a d a pelo Filho, com eça pela crucifixão. C om o se re
cu p e ra r de ta l início? C om o su p e ra r a violência ab so lu ta
do com eço? Isso foi sem pre u m dos g ran d es pro b lem as
do cristian ism o oficial. M as isso foi, em su m a, u m p ro
blem a dos inícios do século XX, p o r cau sa d a Prim eira
G rande G uerra, da Revolução de 1917, e ta m b ém , n u m
p a n o de fundo, das inom ináveis p ráticas do colonialis
m o. A q u estão é saber com o se h a rm o n iz a m as atro c i
dades do com eço com a p ro m essa de h o m e m novo. Que
h o rro r p erp asso u a p ro m essa? C om o fazer a le itu ra do
sacrifício in a u g u ra l?
Sem pre h o u v e d u as orientações do p en sam e n to
dian te desse tipo de p ro b lem a.
P rim eira o rien tação . Já que com eçou assim , en tão
estam o s n o tem p o da m o rte, n o te m p o do fim . É o que
p e n s a ra m os cristão s da p rim eira h o ra: já que C risto es
ta v a m o rto , o fim do m u n d o era im inente. Logo após
a P rim eira G rande G uerra, a idéia d o m in an te, especial
m e n te n a França, era q u e sem elh an te carn ificin a só p o
dia levar ao fim das g u e rra s, à p az definitiva. Isso ficou
evidente n a p a la v ra de o rd em "a p a z a q u a lq u e r preço",
e n o po d er ex trem ad o d a co rren te p acifista. A tese é: o
que com eça n o san g u e d eclara que esse san g u e é o ú lti
54
m o. "A ú ltim a das ú ltim a s" [La der des ders], dizia-se da
P rim eira G rande G uerra.
S egunda orien tação . Já que com eçou n a violência e
n a destruição, é preciso p ô r u m fim a essa violência e a
essa d estru ição m ed ian te d estru ição superior, u m a v io
lência essencial. À m á violência deve suceder a boa, que é
legitim ada pela p rim eira. É a fu n d ação g u erreira d a paz:
será colocado fim à g u e rra m á m ed ian te a g u e rra boa.
Esses dois cam in h o s en trelaçam -se e co n fro n tam -se,
de fo rm a m u ito p a rtic u la r en tre 1918 e 1939. Q_ue dia
lética é d escortin ad a p o r u m com eço guerreiro ? É a dia
lética g u e rra /p a z o u a dialética b o a g u e r r a /m á g u e rra ,
g u e rra ju s ta /g u e r r a inju sta?
É a h istó ria do pacifism o n a França no período en-
tre g u e rra s, que era p rin cip alm en te u m a co rren te "de es
querda" e foi p arad o x alm en te, em te rm o s de opinião,
u m dos ferm en to s do petain ism o . C om efeito, o p etai-
nism o dá politicam en te fo rm a ao g o sto da cap itulação.
Tudo m enos a g u erra. É a via do "n u n ca m ais isso".
O p ro b le m a é q u e os n a z is ta s s u s te n ta v a m a o u tr a
o rie n ta ç ã o : re to m a r a m á g u e rra , q u e além do m a is
tin h a m p erd id o , m e d ia n te u m a b o a g u e r r a im p erial,
n a c io n a l e racial, g u e r r a decisiva, f u n d a d o ra de u m
Reich de m il an o s. C o n se q ü e n te m e n te , a p a z a q u a l
q u e r preço, p a r a os fran ceses, p a s s a a sig n ificar a p a z
co m a g u e rra to ta l, a p a z co m os n a z is ta s e, p o r ta n
to , a in c lu sã o p a ssiv a n u m a g u e r r a " a b so lu ta ", u m a
g u e r ra q ue reiv in d ica o d ireito ao e x te rm ín io . Essa é
a essência do p e ta in ism o : fa z e r a p a z co m a g u e r r a
e x te rm in a d o ra e lo g o ser seu ab jeto cú m p lice, ta n to
55
m a is ab je to q u a n to m a is fo r p assiv o , e p e n s a r so m e n
te em sobreviver.
É característico o fato de De Gaulle, em 1940, te r
precisado sim plesm ente dizer que a g u e rra co n tin u av a.
Ele e os resistentes deviam , em p o u cas p alav ras, re -a b rir
a g u e rra , re -in s ta la r a g u e rra . Eles, p o rém , tro p eçav am
p o r fim n u m parad o x o : com o o século q u e tin h a com e
çado com g u e rra a tro z p odia c o n tin u a r m ed ian te g u er
ra p io r ainda? Nesse en cadeam ento, o que se to rn a v a a
p ro m essa "crística" do h o m e m novo?
O que digo aq u i sobre a g u erra está subentendido m e
diante u m a subjetividade paradoxal, cujos m ecanism os a
propósito de M andelstam com eçam os a descrever. O sé
culo pensou-se a si próprio sim ultaneam ente com o fim,
esgotam ento, decadência, e com o começo absoluto. Parte
do problem a do século é a conjunção dessas duas convic
ções. Dizendo de o u tra m aneira: o século concebeu-se a si
próprio com o niilismo, m as igualm ente com o afirm ação
dionisíaca. C onform e o m om ento, parece que ele age sob
duas m áxim as: u m a (hoje, p o r exemplo) é de renúncia, de
resignação, de m al m enor, de m oderação, de fim da h u m a
nidade com o espiritualidade, de crítica das "grandes n ar
rativ as".19 A o u tra, que dom ina o "pequeno século", en
56
tre 1917 e os anos 80, reto m a de Nietzsche a vontade de
"p artir em duas a história do m undo", propõe-se começo
radical e a fundação de u m a h u m an id ad e reconciliada.
A relação dos dois in tu ito s n ã o é sim ples. N ão é cor
relação dialética, m as im bricação. O século foi p e rp a s
sado p o r u m a relação n ão dialética en tre necessidade
e v ontade. É evidente em N ietzsche, que nesse sentido
é p ro feta do século. Ele faz diagnóstico ex trem am en te
d etalh ad o do niilism o, delim itado à genealogia dos afe
tos negativos (culpabilidade, ressen tim en to etc.). M as
ao m esm o tem p o h á a certeza v o lu n ta ris ta do G rande
M eio-dia, que n ão m a n té m n e n h u m a relação de resu l
tado, o u de rev ezam en to dialético, com a d o m in ação do
niilism o. N ão h á te o ria da negatividade que p o ssa asse
g u ra r a passagem , e Deleuze te m to d a ra z ã o em n o m e a r
essa relação, que n ã o o é, com o "síntese d isju n tiv a".20
N a o rd em da H istória, e de su a su b m issão v o lu n ta
ris ta à política, essa disjunção a p resen ta p roblem a. É p o r
cau sa dela que o século está in teiram en te m arcad o p o r
sin g u la r violência, que n ão é ap en as violência objetiva,
m as reivindicação subjetiva, chegando p o r vezes até o
seu culto. A violência su rg e n o p o n to da disjunção. S u
pre u m a conjunção que falta, é com o ligação dialética
forçada n o p o n to da an tidialética.
57
A violência é leg itim ad a pela criação do h o m e m \
novo. Claro que esse m o tiv o só te m sentido n o h o ri
zo n te da m o rte de Deus. O h o m e m sem D eus deve ser
recriado p a ra to m a r o lu g a r do h o m e m su b m isso aos
deuses. Nesse sentido, o h o m e m novo é aquele que te m
ju n ta d o s os frag m e n to s da síntese d isju n tiv a, p o rq u e ele
é ao m esm o tem p o destino, o destino do ser h u m a n o n a
época da m o rte dos deuses, e v o n tad e, a de su p e ra r o
h o m e m velho. Se fo r v erdade que o século é tre m e n d a
m en te ideológico, é p o rq u e dá feição à síntese d isju n tiv a
que co n stitu i e o p era su as orientações de p en sam en to .
O fam oso "fim das ideologias", com que está m a rc ad a
no ssa m odéstia, n o ssa piedade h u m a n itá ria , é ap en as a
ren ú n cia a to d a novidade do h o m em . E isso, com o já
disse, q u an d o se está p ro n to p a ra m u d á -lo in teiram en te,
m ed ian te m an ip u laçõ es cegas e tráfico s financeiros.
Na verdade, n ã o é a d im en são ideológica do te m a do
h o m e m novo que está ativ a n o século XX. O q u e ap ai
x o n a os sujeitos, os m ilitan tes, é a historicidade do h o
m e m novo. C om efeito, aí se está n o m o m e n to do real
do com eço. O século XIX an u n cio u , so n h o u , p ro m eteu ,
o século XX d eclarou que ele fazia, aq u i e ag o ra.
É o que p ro p o n h o c h a m a r de paixão pelo real; esto u
p ersu ad id o de que é preciso fazer dela a chave de to d a a
com preensão do século. H á u m a convicção p atétic a de
que se está convocado ao real do começo.
O real, cada u m dos a u to re s do século sabe, é h o r r í
vel e e n tu siasm an te , m o rtífero e criador. O certo é que,
com o disse m ag n ificam en te N ietzsche, ele está "p ara
além do Bem e do M al". Toda convicção do ad v en to real
58
do h o m e m nov o in stala-se n u m a fo rte indiferença pelo
preço pago, n u m a legitim ação dos m eios m ais violentos.
Q u ando se tr a ta do h o m e m novo, o h o m e m velho pode
b em ser apenas u m m aterial.
Para o m aterialism o tem p erad o de hoje, que é ap e
n as a p ro m o ção do crim e assepsiado, com o o é da g u e rra
v irtu o sa , o u do lu cro lim po, o p eq u en o século, o das p o
líticas revolucio n árias a g ru p a d a s sob o n o m e equívoco
de "com unism os", foi b á rb a ro p o rq u e su a paixão pelo
real o situ a v a p a ra além do b em e do m al. Por exem plo,
em fran ca oposição en tre política e m o ral. M as, n o in te
rio r do século, o século foi vivido com o heróico e épico.
Q uando se lê a Ilíada, é forçoso c o n s ta ta r que se tr a
ta de sucessão in in te rru p ta de m assacres. M as n o de
sen ro lar do a s su n to com o poem a, isso se a p resen ta n ão
com o b árb aro , m as sim de m odo heróico e épico. O sé
culo foi u m a Ilíada subjetiva, m esm o que a b arb árie te
n h a sido freq ü en tem en te co n sta ta d a e d en unciada, m as
em geral n o o u tro cam po. D aí certa indiferença com os
sinais objetivos da crueldade. N essa m e sm a indiferença
nos in stalam o s ao ler a Ilíada, p o rq u e o poder da ação é
m ais intenso do que a pieguice m o ral.
Exem plos literário s fam o so s dão te s te m u n h o dessa
relação su b jetiv a e stetiza d a pelo se n tim e n to épico com
os m a is b á rb a ro s episódios do século. No que se refere à
P rim eira G u erra M u n d ial, po d e-se m e n c io n a r a m a n e ira
com o, em Os sete pilares da sabedoria (1921), L aw ren -
ce descreve cenas de h o rro r, n ã o a p e n a s n o cam p o a d
v e rsá rio (os tu rc o s m a ssa c ra n d o to d o s os cam pesinos),
m a s em seu p ró p rio cam po, q u a n d o o "sem q u a rte l"
59
b ro ta de seus lábios, e n ã o h a v e rá n e n h u m p risio n eiro , \
e se a c a b a rá com to d o s os feridos. N ada desses a to s é
ju stific a d o , m u ito pelo c o n trá rio , m a s eles se in c o rp o
ra m n a to rre n te épica d a " g u e rra árab e". N a v e rte n te
das revoluções, citam o s A esperança (1937) de M alrau x ,
especialm en te q u an d o , a resp eito da g u e rra da E spa
n h a , ele re la ta e c o m e n ta a p rá tic a da t o r t u r a e das
execuções s u m á ria s, n ã o so m en te do lado dos fra n q u is
ta s, m a s ta m b é m dos rep u b lican o s. T am bém nesse caso
a g ra n d e z a p o p u la r épica da resistên cia a r r a s ta tu d o
consigo. M a lrau x , em su a s categ o rias p ró p ria s, tr a ta
d a síntese d isju n tiv a pelo viés de su a p a rte m a is opaca,
a fig u ra d a H istó ria co m o d estino. Se as atro cid ad es
n ã o são o q u e pode d a r sen tid o "m o ral" à situ a ção , é
p o rq u e estam o s, com o n o fa tu m que N itzsche to m a em
p re sta d o dos estóicos, p a r a além de to d a co n sid eração
desse gênero. T rata-se, n a s situ açõ es in ten sas, de cada
u m p o d er e n c o n tra r seu d estin o e e n fre n tá -lo , com o
se devia e n fre n ta r a b esta-séc u lo n o p o em a de M an
d elstam . Com efeito, diz M alrau x , a E sp an h a ex an g u e
to m a consciência de si p ró p ria , de fo rm a q u e cad a a to r
do d ra m a faz p a rte , co m os o u tro s , dessa consciência.
As atro c id ad es são ap en a s p a rte dessa revelação, u m a
vez q ue o q u e revela a H istó ria com o d estin o é, q u ase
sem pre, a experiência da g u e rra .
Isso m e leva ao que sem d ú v id a é a p rin cip al caracte
rização do século, depois da paix ão pelo real: foi o século
da g u erra. Isso n ão q u er dizer ap en as que ele está reple
to, até hoje, de g u e rra s ferozes, m a s sim que te m estado
sob o paradigm a da guerra.
60
Os conceitos fu n d am e n tais com os quais o século se
p ensou, o u p en so u su a energia criadora, tê m estado s u
bordinados à sem ân tica da g u e rra . N otem os que n ão se
tr a ta da g u e rra n o sentido de Hegel, da g u e rra napoleó
nica. Para Hegel, a g u e rra é u m m o m en to co n stitu tiv o
da autoconsciência de u m povo. A g u e rra é criad o ra de
consciência, especialm ente a nacional. A g u e rra do sé
culo XX n ão é essa aí, p o rq u e a idéia da g u e rra é a da
g u e rra decisiva, da últim a guerra. Para to d o o m u n d o ,
1 9 1 4 -1 9 1 8 é a m á g u e rra , a g u e rra in fam e que n ão se
deve reproduzir, daí a expressão "a ú ltim a das ú ltim as".
Há necessidade ab so lu ta de que 1 9 1 4 -1 9 1 8 seja a ú ltim a
desse tip o de m á g u e rra . D aí p o r d ian te a q u estão é p ô r
fim ao m u n d o que en g en d ro u a g u e rra infam e. O ra, o
que vai p ô r fim à g u e rra é a g u e rra , o u tro tipo de g u er
ra. De fato, entre 1918 e 1939, a p az é a m e sm a coisa
que a g u e rra . N inguém acred ita n essa paz. É preciso o u
tr a g u e rra que será realm en te a ú ltim a .
M ao Tse-Tung é típica fig u ra dessa convicção. D u
ra n te m ais de v in te anos, de 1925 a 1949, d irigiu u m a
g u e rra . R enovou co m p letam en te o p en sam e n to das re
lações en tre g u e rra e política. Em tex to de 1936, Pro-
blèmes stratégiques de la guerre révolutionnaire en Chine,
desenvolve a idéia de que, p a ra o b ter a "paz p erp étu a",
é preciso op o r à g u e rra o rd in ária, a que co n fro n ta os
poderosos da época, u m a g u e rra nova, o rg an iz ad a pelos
p ro letário s e pelos cam pesinos, g u e rra a que ele dá ju s
ta m e n te o no m e de "g u e rra rev o lu cio n ária".
A ntes de M ao, e ta m b é m n o p e n sa m e n to de Lenin,
a g u e rra e a rev o lu ção são te rm o s c o n trá rio s q u e co m -
61
p õem situ a ç ã o dialética com plexa. C om o in cisiv am en te
m o s tra S ylvain L azaru s, é ao re d o r da q u e s tã o da g u e r
ra que Lenin sep ara a sub jetiv id ad e p o lítica da consci
ência h istó ric a , q u a n d o o b serv a, n a p rim a v e ra de 1917,
que a g u e rra é dado claro, e n q u a n to a p o lítica é dado
o bscuro. O te m a m a o ís ta d a g u e rra rev o lu c io n á ria in s
ta u r a d istin ção to ta lm e n te diversa, que opõe diferentes
tip o s de g u e rra s que, p o r s u a vez, estão o rg a n ic a m e n
te ligadas a p olíticas diferen tes. C om base n isso cabe à
g u e rra (p o liticam en te ju s ta ) p ô r fim às g u e rra s (poli
tic a m e n te in ju stas). A ssim se vê n este te x to de 1936,
tira d o de Problèmes stratégiques de la guerre révolution
naire en Chine:
62
E ainda, dois an o s m ais tard e, em Problèmes de la
guerre et de la stratégie:
64
absoluta que gera novo tipo de sujeito, gu erra que é criação
de seu com batente. Finalmente, a g u erra torna-se paradig
m a subjetivo. O século foi portad o r de concepção com bativa
da existencia, o que quer dizer que a própria totalidade, em
cada u m dos seus fragm entos reais, deve ser representada
com o conflito. Q ualquer que seja sua escala, m undial ou
privada, toda situação real é cisão, enfrentam ento, guerra.
No século XX, a lei com partilhada pelo m u n d o n ão é
nem o U m , nem o M últiplo, é o Dois. N ão é o Um, porque
não existe harm o n ia, hegem onia do simples, poder u n i
ficado de Deus. N ão é o M últiplo, p orque n ão se tra ta de
obter equilibrio das potências o u h arm o n ia das faculdades.
É o Dois, e o m u n d o representado n a m odalidade do Dois
exclui a possibilidade ta n to de subm issão u n ân im e q u an to
de equilíbrio com binatorio. É preciso to m a r posição.
A chave subjetiva do século é que to d o o m u n d o p en
sa que o século v ai decidir, to m a r posição. A capacidade
dos seres h u m a n o s de in v e n ta r Dois é, o século o m o s
tra , considerável. A g u e rra é a visibilidade reso lu tiv a do
Dois c o n tra o equilibrio com b in ato rio . É p o r essa razã o
que a g u e rra é onipresente. E n tretan to , o Dois é an tid ia -
lético. Traz consigo disjunção n ã o dialética, sem síntese.
Devem os e stu d a r com o esse p a ra d ig m a está presen te em
estética, n a relação dos sexos, n a agressividade técnica.
A "besta" desse século evocada p o r M andelstam n ão é
o u tra senão a onipresença da cisão. A paixão do século é o
real, m as o real é o an tag o n ism o . É p o r isso que a paixão
do século, quer se tra te dos im périos, q u er das revoluções,
quer das artes, q u er das ciências, q u er da vida privada,
n ão é o u tra coisa senão a g u erra. "Que é o século?", per
g u n ta o século. E ele responde: "É a lu ta final".
65
13 de janeiro de 1999
67
- é m ais p ro fu n d o que a d erro ta . B recht é u m dos a r
tista s do tra n s to rn o id en titário de seu país. Vai a ju sta r
suas co n tas com a A lem an h a que saiu da P rim eira G ran
de G u erra n u m a espécie de hipnose frenética.
De fa to , B recht faz p a rte daq u eles alem ães que
e sp e ra m d e se sp e ra d a m e n te p ro d u z ir u m p e n sa m e n to
d a A le m a n h a c o m p le ta m e n te a p a rta d o do ro m a n tis
m o, c o m p le ta m e n te s u b tra íd o da m ito lo g ia w a g n e
ria n a (que te m m en o s a v e r com o g en ial W ag n er do
q u e co m s u a a p ro p ria ç ã o pelo re s s e n tim e n to p eq u e-
n o -b u rg u ê s : o d o n o de loja, a r r u in a d o m a s s a rg e n tã o ,
a c h a n d o -se u m Siegfried co m cap acete p o n tia g u d o ). A
b rig a co m o ro m a n tis m o , lev ad a às vezes a té o zelo
neoclássico, é te m a im p o rta n te do século. Desse p o n to
de v ista , B recht v o lta -se fre q ü e n te m e n te p a r a a F ran
ça. P erso n ag em essencial do jo v e m B recht é R im baud.
E n c o n tra m o s em Baal e em La ju n g le des villes tex to s
de R im bau d in c o rp o ra d o s sem a lteraçã o . É que, p a ra
B recht, o in fo rtú n io dos alem ães é o de se d e b a te r com
a co n sistê n cia de u m a lín g u a sem p re v o lta d a p a ra os
ta m b o re s do su b lim e. Seu ideal é o fran cês do século
XVIII, u m fran cês ao m e sm o te m p o rá p id o e sen su al,
o de D idero t, p o r exem plo. Nesse p o n to , de resto , e em
m u ito s o u tro s , B recht descende m a is d ire ta m e n te de
N ietzsche do que de M arx . N ietzsche ta m b é m q u e r d o
ta r a lín g u a alem ã de leveza fran cesa, do m esm o m odo
que, m a licio sam en te, p re te n d e escolher Bizet ao invés
de W agner. Todo esse tra b a lh o cu sto so d a A lem an h a
sobre ela p ró p ria , c o n tra ela p ró p ria , é c e n tra l n o s de
sa stre s do século.
68
2. O destino de Brecht é p rin cip alm en te te a tra l. Em
to d a a s u a vida ele será escritor e p rático do te a tro . P ro
põe e ex p erim en ta refo rm a s fu n d am e n tais da d ra m a tu r
gia, seja referente ao texto, seja referen te à atu a ç ã o e à
encenação. O ra, pode-se a firm a r (e isso é p o n to sin to m al
im p o rtan te) que o século XX é o século do te a tro com o
arte. Foi ele que in v e n to u a noção de encenação. T rans
fo rm a em a rte o p en sam e n to da p ró p ria representação.
C opeau, S tanislavski, M eyerhold, Craig, A ppia, Jo u -
vet, Brecht, depois Vilar, Vitez, W ilson e m u ito s o u tro s
tra n s fo rm a ra m em a rte independente o que era apenas
a m a rcação da rep resen tação . Fizeram aparecer u m tip o
de a rtis ta que n ão revela n em a a rte do escrito r n em a
do in térp rete, m a s que cria n o p en sam en to e n o espaço
u m a m ediatização en tre as d uas. O d ireto r é u m a espécie
de p en sad o r da rep resen tação com o tal, su ste n ta m edi
tação m u ito com plexa sobre as relações en tre o texto, a
atu ação , o espaço e o público.
Por que, em nosso século, essa invenção da encena
ção de teatro? Brecht, que é u m dos grandes a rtistas do
teatro, u m dos raro s a perm anecer ao m esm o tem p o do
lado do texto e do lado da atuação, reflete ta m b ém sobre a
contem poraneidade do teatro . Ele se p erg u n ta , p o r exem
plo, qual é a teatralidade da política, q u al é, n a p rodução
da consciência política, o lu g a r da representação, da ence
nação. Q uais são as figuras m anifestas da política? O de
bate desse p o n to é m u ito vivo no en treg u erras, especial
m ente a propósito do fascism o. Conhecemos as vigorosas
expressões de W alter Benjam in: à estetização (fascista) da
política, é preciso o por a politização (revolucionária) da
69
a rte . B recht v a i m ais lo n g e à m ed id a q u e asso cia o p e n
sa m e n to teó rico a u m a e x p e rim e n taç ã o efetiva, a u m a
in v en ç ã o a rtístic a . P a rtilh a , e n tre ta n to , d a convicção de
u m elo s in g u la r e n tre te a tra lid a d e e política.
A q u e e s tá lig a d a e ssa te a tra lid a d e ? P ro v a v e lm e n te
a o n o v o p a p e l a tr ib u íd o à s m a s s a s n a a ç ã o h is tó ric a
desde a R ev o lu ção R u ssa de 1 9 1 7 . P en sem o s n a e x p re s
s ã o de T ro ts k i:31 p a r a ele, o q u e c a r a c te r iz a n o s s a é p o
ca é "a ir r u p ç ã o d a s m a s s a s n o c e n á rio d a H is tó ria " .
A im a g e m do c e n á rio é m u ito c h o c a n te . A s c a te g o ria s
de re v o lu ç ã o , de p r o le ta r ia d o , de fa sc ism o , to d a s elas
r e m e te m a f ig u r a s de i r r u p ç ã o m a c iç a , a v ig o ro s a s r e
p re s e n ta ç õ e s c o le tiv a s, a c e n as im o r ta liz a d a s : to m a d a
d o P alácio de In v e rn o o u M a rc h a s o b re R om a. U m a
q u e s tã o e s tá c o n s ta n te m e n te em efe rv e sc ê n c ia : q u a l é a
re la ç ã o e n tr e o d e s tin o in d iv id u a l e a i r r u p ç ã o h is tó ric a
d a s m a s s a s ? O q u e, p o r é m , p o d e ta m b é m s e r e x p re sso
d a s e g u in te m a n e ira : q u e m é a to r de q u e p e ç a e e m q u e
c e n á rio ?
B re c h t se p e r g u n ta c o m o r e p re s e n ta r, f ig u ra r, fa z e r
d e s e n ro la r te a tr a lm e n te a re la ç ã o e n tr e o d e s tin o p e s
so a l - a p e rs o n a g e m - e o d e s e n v o lv im e n to h is tó ric o
im p e s s o a l - a ir r u p ç ã o m a c iç a . O sé cu lo XX r e e n c o n tr a
a q u e s tã o do c o ro e do p r o ta g o n is ta , s e u te a t r o é m a is
g re g o q u e r o m â n tic o . É o q u e c o m a n d a a in v e n ç ã o e o
p ro g re s s o d a e n c e n a ç ã o . O te a tr o , n o sé cu lo XX, n ã o é
70
re p resen tação de peças. C om o u sem razã o , acre d ita-se
que o q ue está em jo g o so freu m odificação; tr a ta - s e daí
em d ia n te de elucidação h istó ric a coletiva.
Hoje, p o r fa lta de u m a convicção dessa o rd em , p o
deria ser b em possível que a encenação fosse co n d en ad a
e q ue se v o ltasse às fo rm a s a n terio res: b o m tex to , b o n s
ato re s, e b asta! Q ue n ã o nos ab o rreça m o s com a c o n s
ciência política o u com os gregos.
P ara B recht, q u a lq u e r q u e seja a peça, a n tig a o u
m o d e rn a , tra ta - s e de d irig ir-lh e a q u estão d a relação
e n tre a p e rso n ag em e o d estin o histó rico . Com o re p re
s e n ta r o devir de u m sujeito, elucidando ao m esm o te m
po o jo g o de fo rças que o co n stitu i, m a s que é ta m b é m
o espaço de s u a v o n ta d e e de su a s escolhas? B recht está
certo de que o te a tro deve m u d a r, deve ser algo d iferen
te de u m a au to cele b ra ção da b u rg u e sia ex p ectad o ra.
Hoje ta m b é m se p en sa q u e o te a tro deva m u d a r:
deve to rn a r-s e a celebração do consenso d em o crático e
m o ral, u m a espécie de coro lú g u b re basead o n a s des
g raças do m u n d o e em s u a c o n tra p a rtid a h u m a n itá ria .
N em herói, n e m co n flito típico, n em p e n sa m e n to , n a d a
que n ã o seja a em oção co rp o ra l u n ân im e.
B recht e os a rtis ta s de te a tro de su a época m e d ita m
sobre o q ue é a a tu a ç ã o , a p erso n ag em , sobre com o
a p erso n ag em , q u e n ã o preex iste às circ u n stân cias te
a tra is, é c o n s tru íd a n a a tu a ç ã o , que é acim a de tu d o
u m a a tu a ç ã o de forças. N ão estam o s n em n a p sico lo
gia, n e m n a h e rm e n ê u tic a do sentido, n em n o s jo g o s de
lin g u ag em , n em n a p a ru s ia do corpo. O te a tro é a p a r a
to p a ra c o n s tru ir verdades.
71
3. B recht ligou-se ao co m u n ism o - com o, aliás,
m u ita s pessoas de te a tro (vem -m e à cabeça a sin g u la r
filiação c o m u n ista de A n toine Vitez o u de B ern ard Sobel)
m esm o que te n h a en co n trad o m eios de to r n a r essa li
gação sem pre u m pouco enviesada o u n a diagonal. Essas
pessoas era m co m p an h eiras do P artido de m o d o m u ito
fran co e, ao m esm o tem p o , n ã o m u ito franco. O te a tro é
b o m exercício p a ra essas acrobacias. O que h á de certo e
de sincero é que Brecht tr a z a q u estão do que é a a rte n as
condições do m a rx ism o o u do co m u nism o : o que é a rte
didática, a rte a serviço da lucidez popular, a rte p ro le tá
ria etc. B recht é certam en te p erso n ag em -p iv ô dessas dis
cussões, in a s ao m esm o te m p o é trem en d o a rtis ta cujas
o bras são hoje rep resen tad as p o r to d a a p arte, m esm o
que as discussões sobre a dialética do te a tro e da política
te n h a m fenecido. B recht é sem d ú vida a lg u m a o m ais
u n iv ersal e o m ais in co n teste dos a rtis ta s que lig aram
explicitam ente su a existência e su a criação às políticas
ch am ad as co m u n istas.
72
sor p a ra p e n sa r realm en te essa singularidade. M as em
su m a B recht te n to u , com os m eios à su a disposição e a
quente, didática te a tra l decididam ente refin ad a do a d
v en to de H itler ao poder. Com o conseqüência, p asso u a
S egunda G u erra M u n d ial n a condição de exilado. É ta m
bém u m a das su as fortes ligações com o século, p a ra o
q u al é essencial a p erso n ag em do exilado, com o se vê n a
p ro d u ção rom an esca, em especial nos ro m an ces de Eri-
ch M aria R em arque.22 Existe u m a subjetividade do exílio
p ro fu n d a m e n te singular. E especificam ente do exílio nos
Estados U nidos, onde m o ra v a m n u m e ro so s intelectuais
alem ães pro scrito s pelo nazism o . Esses artista s, escrito
res, m úsicos, cientistas, c o m p u n h a m u m p equeno m u n
do ex tre m am en te ativo, dividido, incerto. É preciso dizer
que p a ra Brecht, de lo n g a d ata, a A m érica era algo e stra
n h o que o fascinava pela su a m o d ern id ad e ru id o sa, seu
p ra g m a tism o , su a vitalidade técnica. B recht é ta m b ém
b oa te ste m u n h a européia dos Estados U nidos. E, enfim ,
é u m h o m e m que ex p erim en ta n a República D em o cráti
ca A lem ã (RDA) o "socialism o real", sob su a fo rm a m ais
v o lu n ta ris ta e m ais fechada. T ornou-se aí u m a espécie
de p erso n ag em oficial, n ã o sem divisões, arrep en d im en
to s to rtu o so s, ações m ascarad as. Episódio fu n d a m e n ta l
dos ú ltim o s an o s de Brecht (que m o rre u b a s ta n te jo v em ,
em 1956) é a in su rreição o p erária de 1953, rep rim id a
73
em Berlim pelo exército soviético. B recht escreveu u m a
c a rta às au to rid ad es c o m u n istas do Estado d a q u al u m
trech o (o ún ico to rn a d o público) ap ro v a v a a repressão
e o o u tro , que p erm an eceu 'priv ad o , ex p rim ia terríveis
q u estio n am en to s sobre o su fo cam en to , pelo "Estado dos
operários e cam poneses", de u m a rev o lta o p erária. Que
Brecht pudesse ser o h o m e m dessas obliqüidades de cir
cu n stân c ia se ad v in h a p o r d etrás dos sucessivos re to
ques da que é sem d ú v id a s u a o b ra -p rim a , Vida de Gali-
leu* sendo u m dos seus te m a s a duplicidade do cientista
diante das au to rid ad es (já n o tem p o do exílio, nos an o s
cham ados de m a c a rth ism o ,23 a polícia e a ju s tiç a am e
rica n a tin h a m ouvido Brecht, suspeito de atividades co
m u n istas).
Vê-se que Brecht tem m últiplas razões p a ra ser evoca
do com o testem u n h a do século, com o docum ento legítimo
74
no m étodo im anente que proponho, aquele de u m exam e
do que o século significou p a ra as pessoas do século.
O te x to de Brecht que escolhi te m com o títu lo : "Le
p ro lé ta ria t n 'e s t p as né en gilet blanc". É tex to que se
v in cu la d iretam e n te a u m a de n o ssas hipóteses centrais:
o século que p ro c u ra pensar, sob o p a ra d ig m a da g u erra,
o n ó enigm ático da d estru ição e do com eço. É tex to de
1932 que faz p a rte dos Écrits sur la politique et la société
(1919-1950) (Paris, L'Arche, 1971). C om o se verá, o que
de im ediato está em jo g o nessa p ág in a é a c u ltu ra , as
categorias subjetivas da c u ltu ra . A co n statação é de que
a g ran d e c u ltu ra b u rg u e sa já era, m as a n o v a ain d a n ão
está presente. Brecht in d ag a-se sobre u m a q u estão típica
do século: q u an d o , enfim , vai v ir o novo? O novo j á está
em ação, pode-se discernir seu desenrolar? O u estam o s
presos à m irag em daq u ilo que é ap en as fo rm a a n tig a do
novo, u m "novo" ain d a d em asiad am en te an tig o , p o rq u e
cativo da destruição? A q u estão é pois: 'q u a n d o ? ' Salien
to n o tex to u m a espécie de la d ain h a central, p o n tu a d a
p o r esse "quando":
75
quando - as palavras e os conceitos não tendo
quase nada m ais a ver com as coisas, com os atos e
com as relações
que eles designam - se puder seja m udar estes sem
m udar aqueles, seja m u d ar as palavras deixando
coisas, atos e relações inteiram ente intocáveis;
quando for preciso, p a ra poder esperar sair com
a vida a salvo, estar p ro n to p ara m atar;
quando a atividade intelectual tiver sido restrin
gida a ponto de o próprio processo de exploração so
frer com isso;
quando já não se puder deixar às pessoas de
grande caráter o tem po que lhes é necessário p ara se
renegarem ;
quando a traição tiver cessado de ser útil, a abjeção
de ser rentável, a bobagem de ser u m a recom en
dação;
quando m esm o a insaciável sede de sangue dos
curas não for m ais suficiente
e deverem ser enxotados;
quando não houver nada m ais p ara desm ascarar,
porque a opressão avançará sem a m áscara da dem o
cracia, a g u erra sem a do pacifismo, a exploração sem
a do consentim ento voluntário dos explorados;
quando reinar a mais sangrenta censura de qualquer
pensamento, mas for supérflua porque já não haverá
pensam ento;
oh! então a cu ltu ra poderá ser assum ida pelo
proletariado na m esm a condição que a produção:
em ruínas.
76
- Tem ática essencial: o novo só pode v ir com o to m a
da da ru ín a . Só h a v e rá novidade n o elem ento de u m a
d estru ição to ta lm e n te realizada. Brecht n ão diz que a
d estru ição vai p o r si p ró p ria en g en d ra r o novo. S ua dia
lética n ão é sim plesm ente hegeliana. Ele diz que ela é o
te rre n o onde o n o v o pode co n q u ista r o m u n d o . Repare
m os que n ão estam os precisam en te n a lógica d a relação
de forças. N ão é previsível que o n o v o p o ssa vencer p o r
to rn a r-se m ais fo rte que o velho. T ratan d o -se da v elha
cu ltu ra, o que é req u erid o e perseguido, com o espaço de
novidade possível, n ã o é seu enfraq u ecim en to , m as u m a
podridão n o local, u m a decom posição n u trim e n ta l.
- O adversário, aliás, n ão é realm en te rep resen tad o
com o força. E m ais que força. É u m a espécie de abjeção
n e u tra , u m p lasm a, em hipótese a lg u m a u m p en sam e n
to. Dessa n eu tralid ad e em p u trefação , n ão poderia h av er
su b stitu ição dialética. Se o p a ra d ig m a da g u e rra é tirad o
da g u e rra definitiva o u final, é p o rq u e os p ro ta g o n is
tas dessa g u e rra n ão são com ensuráveis, n ã o p ro v êm do
m esm o tip o de força. E videntem ente se p en sa n a oposi
ção n ietzsch ian a das forças ativ as e das forças reativ as,
de D ionisio e do Crucificado. Indício su p le m e n ta r do que
eu afirm a v a h á pouco: Brecht está m u ita s vezes m ais
pró xim o de N ietzsche do que de M arx.
- Ponto m u ito im p o rta n te p a ra o a rtis ta é que u m
dos sin to m as da decom posição é a r u ín a da lín g u a. A ca
pacidade das p alav ras de n o m e a r é afetad a, a relação en
tre as p alav ras e as coisas é desfeita. Verifica-se (é g ran d e
verdade hoje) que p o n to cen tral de q u a lq u e r opressão,
no seu final, é essa ru ín a da lín g u a, o desprezo de q u al-
77
q u er n o m in ação in v en tiv a e rig o ro sa, o reino d a lín g u a
fácil e co rro m p id a, a do jo rn a lism o .
- B recht acaba de dizer, e é o sinal da violência do
século, que o fim só chega realm en te q u an d o se en fren ta
a alte rn a tiv a : m a ta r o u ser m o rto . O assassin ato é com o
que ícone central. Há m e to n ím ia da H istó ria n o assas
sinato. R eencontram os o estig m a da paix ão pelo real,
estigm a ta n to m ais terrív el q u a n to sobrevêm n o m eio de
u m a lín g u a to rn a d a in cap az de nom ear. O século com o
p en sam e n to do fim (do fim da v elh a cu ltu ra) é a m o rte
sob a fo rm a do assassin ato inom inável.
S urpreend e-m e o fato de essa categ o ria ter-se to r
nado n a verdade categ o ria fu n d a m e n ta l do espetáculo
co n tem p o rân eo . A p erso n ag em m ais rep resen tad a aca
b a sendo o serial killer. E o serial killer esp alh a u n iv er
salm ente m o rte desprovida de q u a lq u e r sim bolização e
que, nesse sentido, n ão consegue ser trágica.
Tese de gran d e força é a da con ju n ção en tre o assas
sin ato e a falência da lín g u a. É, em to d o caso, em blem a
esp etacu lar do século que te rm in a. Brecht percebeu a
concom itância da fu g a das p alav ras e de algo que to ca à
m o rte, ao corpo que, q u an d o desaparece a sim bolização,
to rn a -s e apenas resíduo.
- A q u estão da m á sca ra. O fim , diz Brecht, é q u an d o
as fig u ras d a opressão j á n ão tê m necessidade da m á sca
ra, p o rq u e a p ró p ria coisa está in stalad a. A qui é preciso
p en sar a relação en tre violência e m áscara, relação que
no século os m a rx istas, a té Louis A lthusser, d en o m in a
ra m ta m b é m com o a q u estão da ideologia. R eto rn are
m os a isso.
Q ue é "d esm ascarar" u m a opressão? Q ual é a fu n ção
exata da m áscara? B recht é p en sad o r do te a tro com o ca
pacidade de d esm ascarar o real, precisam en te p o rq u e o
te a tro é p o r excelência a a rte da m áscara, do sem blante.
A m á sca ra te a tra l sim boliza a q u estão que freq ü en te
m en te é designada, m u ito sem razã o , com o a da im p o r
tâ n cia da m e n tira n o século. Essa q u estão é m ais b em
expressa assim : que relação h á en tre a paix ão pelo real e
a necessidade do sem blante?
79
10 de fevereiro de 1999
G | m á x im a p a ra a atu a ç ã o do ato r? É u m p ô r em
evidência, n a p ró p ria atu ação , a d istân cia en tre
esta e o real. M ais p ro fu n d am e n te, p o rém , consiste em
u m a técnica de d esm o n tag em dos laços ín tim o s e neces
sários que u n e m o real ao sem blante, laços que re su l
ta m do fato de o sem b lan te ser o v erdadeiro princípio de
situ ação do real, aq u ilo que localiza e to rn a visíveis os
b ru ta is efeitos d a co n tingência do real.
lim a das g ran d ezas do século foi p ro c u ra r p e n sa r a
relação, m u ita s vezes o b scu ra n u m prim eiro m o m e n
to, en tre violência real e ap a re n te sem blante, en tre ro sto
e m áscara, en tre n u d ez e trav e stim e n to . E n co n tram o s
esse aspecto n o s m ais v ariad o s registros, indo da teo ria
política à p rá tic a artística.
81
é fig u ra discu rsiv a m ed ian te a q u al se co n cretiza a re
presen tação das relações sociais, m o n ta g e m im ag in ária
que, e n tre ta n to , re -p resen ta u m real. Há, pois, realm en
te n a ideologia algo de q u ase te a tra l. A ideologia coloca
em cena fig u ras da rep resen tação em que a violência p ri
m o rd ial das relações sociais (a exploração, a o pressão, o
cinism o desigualitário) é m ascarad a. Com o o d istan cia
m e n to b rech tian o n o te a tro , a ideologia o rg a n iz a u m a
consciência sep arad a do real que, n o e n ta n to , ela ex
prim e. P ara Brecht, o te a tro é didática dessa separação,
m o s tra com o a violência do real só é eficiente n o h ia to
en tre o efeito real e su a rep resen tação d o m in an te. O p ró
p rio conceito de ideologia cristaliza a certeza "científica"
de que as representações e os discursos devem ser lidos
com o as m á sca ras de u m real que eles d en o ta m e dissi
m u lam . Há, com o v iu A lth u sser,24 disposição sin to m al;
a rep resen tação é sin to m a (p ara ler, p a ra decifrar) de u m
real do q u al ela é a localização subjetiva com o desco
82
nhecim ento. O poder da ideologia é ap en as o do real, n a
m edida em que ela tra n s ita nesse desconhecim ento.
A p a la v ra "sin to m a" indica ev id en tem en te que h á,
nesse p o d er de d esco n h ecim en to , alg o de c o m u m en
tre o m a rx is m o do século e a p sicanálise. Lacan to r n o u
esse aspecto p a rtic u la rm e n te claro ao m o s tra r q u e o
Eu [Moi] é c o n stru ç ã o im a g in á ria . O sistem a real das
pulsões n ã o é legível nessa c o n stru ç ã o , a n ã o ser m e
d ia n te o p e rc u rso de to d a s as espécies de d escen tram en -
to s e tra n sfo rm a ç õ e s. A p a la v ra "inconsciente" designa
p recisa m en te o c o n ju n to das o perações pelas q u ais o
real de u m sujeito n ã o é co n scien tem en te acessível, a
n ã o ser n a c o n stru ç ã o ín tim a e im a g in á ria do Eu [Moi],
Nesse sentido, a psicologia da consciência é ideologia
pessoal, o que Lacan n o m e ia com o "o m ito in d iv id u al
do n e u ró tico ". Existe u m a fu n ção de d esco n h ecim en to
que faz com que o a b ru p to do real opere ap en as em
ficções, m o n ta g e n s, m á sca ras.
O século expõe o m o tiv o d a eficácia do d esco n h eci
m e n to e n q u a n to o p o sitiv ism o do século XIX a f ir m a
v a o p o d er do c o n h ec im e n to . C o n tra o o tim ism o co g
n itiv o do p o sitiv ism o , o século XX descobre e coloca
em cena o e x tra o rd in á rio p o d e r d a ig n o râ n c ia , d aq u ilo
que L acan n o m e ia co m ju s t a ra z ã o co m o "a p a ix ã o
p ela ig n o râ n c ia " .
83
ção, de te r com o real a eficácia do sem blante. É u m a
das razões pelas quais a a rte do século XX é a rte refle
xiva, a rte que q u er m o s tra r seu processo, idealizar visi
velm ente su a m aterialidade. M o stra r a d istân cia en tre o
factício e o real to rn a -se a q u estão p rin cip al da factici-
dade. Para os m a rx ista s está claro que u m a classe d o m i
n a n te te m necessidade de ideologia da d o m in ação e n ão
apenas da dom inação. Se a a rte é o en co n tro de u m real
pelos m eios exibidos do factício, en tão a a rte está p o r
to d a a p a rte j á que to d a a experiência h u m a n a é a tr a
vessada pela distância en tre a d o m in ação e a ideologia
d o m in an te, en tre o real e seu sem blante. Por to d o can to
h á exercício e experiência dessa distância. É a ra z ã o pela
q u al o século XX p ropõe gestos artístico s a n te rio rm e n te
im possíveis o u ap resen ta com o a rte o que a n te rio rm e n te
era m ero dejeto. Esses gestos, essas apresentações ates
ta m a onipresença da a rte n a m edida em que o gesto
artístico equivale a u m a efração do sem blante, d an d o a
ver em estado b ru to a d istân cia do real.
G rande in v e n to r nesse p o n to , e ta n to m ais que ele é
in teiram en te alheio ao m a rx ism o , até m esm o trib u tá rio
das piores representações b u rg u e sa s - fam ílias fechadas,
ad u ltério s e salões -, é Pirandello. S ua tese essencial é
que a reversibilidade do real e do sem blante é a ú n ic a via
de acesso artístico ao real. Ele a p resen ta o co n ju n to de
seu te a tro com títu lo p a rtic u la rm e n te sugestivo: "M ás
caras n u as". O real, o n u , é o que se dá d iretam e n te n a
m áscara, d iretam en te n o sem blante.
A força da teatralização dessa tese é que ela se faz em
contexto subjetivo de r a r a violência. Trecho m u ito carac
84
terístico é o fim de Enrico IV, n a m in h a opinião u m a das
m ais vigorosas peças de Pirandello, ju n to com Come tu
m i vuoi, Seis personagens à procura de um autor e La sig-
nora Morli, una e due. T rata-se de H enrique IV, soberano
alem ão do século XIII. O herói da peça é u m h o m em de
hoje que todo o tem p o declara ser H enrique i y o rg an iza
ao seu redor u m a corte com pessoas que aceitam , p o r v a
riadas razões, ser os cúm plices conscientes dessa fábula;
n o fim com ete u m assassinato. Pode-se com preender esse
assassinato n o registro “histórico", com base nos traços
de cará ter e nas circunstâncias existenciais que se podem
su p o r no H enrique IV "real". Pode-se ta m b ém com preen
dê-lo no registro subjetivo, com base n a vida e n as p ai
xões do herói da peça que talvez utilize a m áscara h istó
rica de H enrique IV D u ran te o essencial da ação, a tese
da reversibilidade, tra m a d a com estupendo v irtuosism o,
provém de que n ão som os capazes de decidir se o herói se
ju lg a "realm ente" H enrique IV o que significaria que ele
é louco (no sentido corrente do term o), o u se, p o r razões
com plexas que provêm do contexto de su a vida privada,
ele representa que se ju lg a H enrique IV e, p o rta n to , "faz
sem blante" (a expressão está ex trao rd in ariam en te em seu
lugar) de ser louco. A p a rtir do m o m en to em que o assas
sin ato é com etido, en tre tan to , as coisas m u d am . Daí em
diante, ficando sujeito a ser condenado p o r assassinato, o
herói é decididam ente obrigado a fazer crer que é louco,
e pelo fato de se ach ar H enrique IV é que m a to u . Além
do sem blante, surge necessidade do sem blante que talvez
te n h a sido sem pre seu real. Pirandello in tro d u z en tão n o
tável didascália que eu lhes cito: "H enrique IV que ficou
85
em cena com os olhos esbugalhados, aterro rizad o pela
força de vida de su a p ró p ria ficção, que n u m in sta n te o
a rra s to u até o crim e". Em bora ele faça m enção da força
de vida da ficção e, p o rta n to , do que faz seu poder real,
essa didascália n ão é claram en te conclusiva. Diz apenas
que u m a força n ão tra n s ita a n ão ser m ediante ficção.
Ficção, porém , é fo rm a. Pode-se dizer, pois, que to d a força
só é localizável o u efetiva p o r u m a fo rm a que, e n tre ta n
to, n ão pode decidir do sentido. Por isso é preciso a firm ar
que é exatam en te a energia do real que se ap resen ta com o
m áscara.
86
essas pessoas. Pode-se te n ta r reco n stru ir a cena política
dos grandes expurgos.25 M uito m ais difícil é estabelecer a
necessidade dos processos, e ta n to m ais que além de tu d o
num erosos dirigentes do alto escalão, p articu larm en te
m ilitares, fo ram liquidados nos sótãos dos serviços se
cretos sem a m en o r exposição pública. N a realidade esses
processos são p u ras ficções teatrais. Os próprios acusados,
preparados com cuidado, inclusive com a to rtu ra , devem
conform ar-se com u m papel, cujas falas fo ram discuti
das e com o que escritas nos bastidores policiais do regim e.
M uito in stru tiv o a esse respeito é ler o relato do processo
de B ukharin,26 no qual ocorre u m a resvalada significativa
87
que, d u ra n te u m m om ento, c o n tu rb a to d a a encenação
com o se o real do sem blante pertu rb asse su a função.
Parece, n a verdade, que a violência absoluta do real
(aqui, o Partido-Estado terrorista) esteja obrigada a tran si
ta r por u m a representação que, entretanto, é capaz de con
vencer apenas aqueles (num erosos, é verdade) que previa
m ente se decidiram convencer. M as estes, afinal das contas,
com unistas convictos, teriam de qualquer m odo validado o
exterm ínio sem rodeios dos "inimigos do povo". Quase não
tin h am necessidade de processo p ara d ar seu aval. Sua pai
xão pelo real, parece, teria dispensado a eles desse penoso
semblante, ta n to m ais que eles tin h am n a m aioria das vezes
grande dificuldade p a ra explicar aos céticos seu m ecanism o.
O enigm a perm anece e toca n u m a das grandes questões do
século: qual é a função do sem blante n a paixão pelo real,
paixão que coloca a política p a ra além do Bem e do Mal?
Creio que a q u estão é a seg u in te (q u estão que foi
percebida m u ito cedo p o r Hegel, a respeito do T error re
vo lu cio n ário ):27 o real, ta l com o concebido em su a ab so -
88
lutidade contin g en te, n u n c a é b a s ta n te real p a ra n ão se
su sp e ita r que seja sem blante. A paix ão pelo real é ta m
b ém necessariam en te a suspeita. N ada pode a te sta r que
o real é real, n a d a senão o sistem a de ficção n o q u al ele
v irá desem p en h ar o papel de real. Todas as categorias
subjetivas da política rev o lu cio n ária o u ab so lu ta com o
"convicção", "lealdade", "virtude", "posição de classe",
"obediência ao Partido", "zelo rev o lu cio n ário " etc. estão
m arcad as pela su sp eita de que a su p o sta q u estão real da
categ o ria seja n a realidade ap en as sem blante. É preciso,
pois, sem pre depurar p u b licam en te a correlação en tre
u m a categoria e seu referente, o que q u er dizer d e p u ra r
sujeitos en tre os que se v alem da categ o ria em q u estão ,
p o rta n to d e p u ra r o p ró p rio pessoal revolucionário. E
im p o rta n te é fazê-lo segundo cerim onial que d estin a a
todos o en sin am en to das incertezas do real. A dep u ração
é u m a das g ran d es p alav ras de o rd em do século. S talin
o disse com to d as as letras: "O p a rtid o só se fortalece se
depurando".
N ão qu eria que essas considerações u m ta n to d u ra s
fossem despejadas com o á g u a n o m o in h o da crítica con
tem p o rân ea, sem v ig o r e m o ralista, d a política ab so lu ta
o u do "to ta litarism o ". Faço aq u i a exegese de u m a sin
gularidade e de su a g ran d ez a p ró p ria, m esm o que essa
grandeza, presa n as redes de su a concepção do real, con
te n h a em seu reverso violências fo ra do co m u m .
Para cortar prontam ente qualquer interpretação anti
política dessas ignom ínias, quero sublinhar que a depura
ção, por exemplo, foi igualm ente palavra de ordem essencial
da atividade artística. Desejaram a arte p u ra, aquela n a qual
89
o papel do sem blante é apenas indicar a crueza do real. Qui
seram, pela axiom ática e pelo form alism o, depurar o real
m atem ático de todo im aginário, espacial ou num érico, das
intuições. E assim por diante. A idéia de que a força se adqui
re pela depuração da fo rm a não é de m aneira alg u m a apa
nágio de Stalin. Ou de Pirandello. O que h á de co m u m em
todas essas tentativas, u m a vez mais, é a paixão pelo real.
90
dizer: to d o o m u n d o é suspeito. A liberdade, p o rta n to ,
realiza-se de fo rm a to ta lm e n te lógica com o "lei dos s u s
peitos" e d ep u ração crônica.
O que nos im p o rta é isto: estam o s sob suspeição
q u an d o n ã o tem os presen te q u a lq u e r critério fo rm al
que p e rm ita d istin g u ir o real do sem blante. Na au sência
desse critério, a lógica que se im põe é que q u a n to m ais
u m a convicção subjetiva se ap re se n ta com o real, ta n to
m ais é preciso desconfiar dela. É, pois, n o to p o do Estado
revolucionário, onde sem cessar se declara o a rd o r pela
liberdade, que h á o m a io r n ú m e ro de traid o res. O tra id o r
é o dirigente e é, a rigor, a p ró p ria pessoa. Nessas con
dições q u al é a ú n ica coisa segura? É o n ad a. A penas o
n a d a n ão é suspeito já que n ão te m in tenção de n e n h u m
real. A depuração, n o ta fin alm en te Hegel, te m com o ló
gica fazer ad v ir o n ad a. A m o rte é fin alm en te o ú nico
no m e possível da liberdade p u ra , e o "bem m o rre r" , a
ú n ica coisa da q u al v erd ad eiram en te n ã o se pode suspei
tar. A m áx im a, b a s ta n te sim ples afinal, é que p ro p ria
m en te falando e a despeito do fa to de o te a tro proceder a
contrario, é im possível fazer sem b lan te de m o rrer.
Daí re su lta que n osso século, a n im ad o pela paix ão
pelo real, foi de to d as as m an eiras, e n ã o so m en te em
política, o século da destruição.
É preciso, n o en tan to , discernir d uas orientações. A
que, assu m in d o a destruição com o tal, engaja-se n o in
definido da depuração. E a que te n ta medir a inelutável
negatividade que ch am aria de "su b trativ a". É u m debate
central n o século: destruição o u su b tração . Q ual é a figu
ra ativ a da v erten te n eg ativ a da paixão pelo real? Sou tã o
91
m ais sensível ao conflito dessas d u as orientações q u an to
tenho a esse respeito u m a trajetó ria pessoal. Em Théorie
du Sujet, de 1982, u m a p arte in teira se ch am a "Falta e
destruição". Eu m e ab rig av a n a época p o r d etrás de u m
enunciado de M allarm é to talm en te profético que é: "A des
tru ição foi m in h a Beatriz". Em O ser e o evento, de 1988,
faço autocrítica explícita q u a n to a esse p o n to e m o stro
que u m pen sam en to su b trativ o da negatividade pode su
p erar o im perativo cego da destruição e da depuração.
Para p e n sa r o p a r d e s tru iç ã o /su b tra ç ã o , o p rim eiro
fio c o n d u to r é a arte. O século é vivido com o n eg ativ i
dade artística, n o sentido de que u m de seus m otivos,
antecipado n o século XIX m ed ian te m ú ltip lo s ensaios
(por exem plo, o tex to de M allarm é Crise de vers, o u m ais
a n te rio r aind a, a Estética de Hegel), é o do fim da arte,
do fim da rep resen tação , do q u a d ro e, m ais que tu d o , da
obra. Por d etrá s do te m a do fim , evidentem ente se tra ta ,
u m a vez m ais, de saber que relação a a rte m a n té m com
o real o u q u a l é o real da arte.
É nesse aspecto que eu q u eria reco rrer a M alevitch.
Ele nasceu em Kiev em 1878. Chega a Paris em 1911. Já
p ratica en tão p in tu ra g eo m etricam en te o rg an izad a. De
pois, p o r v o lta de 1 9 1 2 -1 9 1 3 , p assa p a ra o u tr a d o u tri
na, o su p rem atism o , com a colaboração de M aiakovski.
M alevitch assu m e a Revolução Bolchevique. R etorna
a M oscou em 1917 e é n o m ead o p ro fesso r n a U niversi
dade de M oscou em 1919. Em 1918 p in ta o fam o síssi
m o Quadrado branco em fu n d o branco, que se en co n tra
no m u se u de N ova York. Nos an o s 20, q u a n d o a s itu a
ção com eça a ficar te n sa p a ra os a rtis ta s e in telectuais, é
92
tran sferid o p a ra Leningrado, e m ais o u m enos proibido
de expor. Em 1926 publica em alem ão u m ensaio, cujo
títu lo é decisivo: Die gegenstandlosen W elt ("O m u n d o da
n ão -rep resen tação "). M o rre em 1935.
Quadrado branco em fu n d o branco é, n a categ o ria da
p in tu ra , o cú m u lo da d epuração. E lim ina-se a cor, elim i
n a-se a fo rm a, m a n té m -se so m en te alu são geom étrica
que co m p o rta diferença m ín im a, a diferença a b s tra ta do
fu n d o e da fo rm a, e p rin cip alm en te a diferença n u la do
b ran co com o bran co , a diferença do M esm o que pode
ser c h am ad a de diferença evanescente.
E ncontra-se aí a origem de u m protocolo de p en sa
m en to su b trativ o que difere do protocolo da destruição.
É preciso evitar in te rp re ta r Quadrado branco em fu n d o
branco com o sím bolo da destruição d a p in tu ra , tra ta -s e
antes de u m assu m ir su b trativ o . É gesto m u ito próxim o
daquele de M allarm é em poesia: a colocação em cena da
diferença m ínim a, m as ab so lu ta, a diferença entre o lu g a r
e o que te m lu g a r no lugar, a diferença entre lu g a r e ter
lugar. Tom ada n a b ran cu ra, essa diferença é co n stitu íd a
do ap ag am en to de todo conteúdo, de to d o soerguim ento.
Por que é algo diferente da destruição? Porque, ao invés
de tra ta r o real com o identidade, tra ta -o de im ediato com o
distância. A questão da relação real/sem b lan te vai ser re
gulada não p or depuração que isolaria o real, m as com pre
endendo que a pró p ria distância é real. O quadrado branco
é o m om ento em que se fícciona a distância m ínim a.
H á u m a paixão pelo real que é identitária: apreender
a identidade real, desm ascarar suas cópias, desacreditar os
falsos-sem blantes. É paixão pelo autêntico, e a autentici-
93
dade é n a verdade u m a categoria de Heidegger assim com o
de Sartre. Essa paixão só pode realizar-se com o destruição.
É sua força porque, afinal das contas, m u itas coisas m e
recem ser destruídas. M as é tam b ém seu limite, porque a
depuração é processo inacabável, figura do m a u infinito.
H á o u tra paix ão pelo real, p aix ão diferencial e di-
ferenciadora, que se em p en h a p a ra c o n s tru ir a diferen
ça m ín im a, p a ra a p re se n ta r su a ax io m ática. Quadrado
branco em fu n d o branco é u m a proposição em p en sam e n
to que opõe a diferença m ín im a à m á x im a d estruição.
Essa oposição n a a rte rem ete a u m a convicção q u a n
to ao com eço. A paix ão pelo real é sem pre a p aix ão pelo
novo, m a s que é o novo? E, com o p e rg u n ta v a Brecht,
q u an d o v irá, a que preço?
Para fin aliza r a respeito dessa q u estão do novo, q u e
ro citar-lhes u m po em a de M alevitch, escrito ju s ta m e n te
an tes da com posição do Quadrado branco.
95
7 de abril de 1999
6. Um se divide em dois
97
lu ta s de libertação nacional, tu d o isso vale com o p ro v a
em pírica do m o tiv o e pro v o ca o fracasso dos fracassos,
re p a ra os m assacres de ju n h o de 1948 o u da C o m u n a
de Paris.
O m eio da v itó ria é a lucidez, teórica e p rática, no
que se refere a u m e n fre n ta m e n to decisivo, u m a g u e rra
final e to tal. Q ue essa g u e rra seja to ta l faz co n clu ir que
a v itó ria é p o r fim v ito rio sa. Por essa ra z ã o o século,
com o dissem os, é o da g u e rra . Esse enunciado, p o rém ,
entrelaça v ária s idéias que g ira m em to rn o d a q u estão
do Dois, o u d a cisão an tag ô n ica . O século e n u n cio u que
su a lei era o Dois, o an tag o n ism o , e nesse sentido o fim
da G u erra Fria (im perialism o am erican o c o n tra cam po
socialista), que é a ú ltim a fig u ra to ta l do Dois, é ta m b ém
o fim do século. E n tretan to , o Dois se a p resen ta segundo
três significações.
98
tiv am en te h av ia m ais an tifascistas do que co m u n istas,
e é característico que a S egunda G u erra M u ndial te n h a
sido feita sobre essa clivagem derivada, e n ã o sobre u m a
concepção unificad a do an tag o n ism o , a q u al tro u x e ap e
n as u m a G u erra "Fria", exceto n a p eriferia (g u erras da
Coréia e do V ietnam ).
99
os que ju lg a m que a essência da dialética é a síntese dos
term o s contrad itó rio s, e que a expressão co rreta é con
seqüentem ente "dois se fu n d em em u m ". A paren te esco
lástica, verdade essencial. Com efeito, tra ta -s e da iden
tificação da subjetividade revolucionária, de seu desejo
constituinte. É o desejo da divisão, da g u erra, o u antes,
o desejo da fusão, da unidade, da paz? Em to d o caso, n a
China, nessa época são declarados "da esquerda" os que
a firm a m a m á x im a "u m se divide em dois" e "da direita"
os que precon izam "dois se fu n d em em u m ". Por quê?
Se a m áx im a da síntese (dois se fundem em um ), to
m ada com o expressão subjetiva, com o desejo do U m , é da
direita, é p orq u e aos olhos dos revolucionários chineses ela
é totalm ente p rem atu ra. O sujeito dessa m áx im a n ão a tra
vessou o Dois até o fim, não sabe ainda o que é a g u erra de
classe plenam ente vitoriosa. Segue-se que o U m , cujo dese
jo n u tre n ão é ainda n em sequer pensável, o que q u er dizer,
sob aparência de síntese, ele recorre ao ü m antigo. Essa in
terpretação dialética é restau rad o ra. Não ser conservador,
ser ativista revolucionário no presente é obrigatoriam ente
desejar a divisão. A questão da novidade é de im ediato a da
cisão criadora n a singularidade da situação.
A Revolução C ultural opõe n a China, especialm ente
d u ran te os anos de 1966 e 1967, n u m a fú ria e confusão
inim agináveis, os defensores de u m a e da o u tra versão do
esquem a dialético. Na verdade, h á os que - seguindo Mao,
n a época praticam ente m inoritário n a direção do Partido
- ju lg a m que o Estado socialista n ão deve ser o fim poli
ciado e policial da política de m assa, m as ao contrário estí
m ulo a seu desencadeam ento, sob o signo do avanço ru m o
100
ao com unism o real. E h á os que, seguindo Liu Shao-Chi e
sobretudo Deng Xiaoping, acreditam que, sendo a gestão
econôm ica o aspecto principal das coisas, as mobilizações
populares são m ais nefastas que necessárias. A ju v en tu d e
escolarizada será a p o n ta de lança da linha m aoizante. Os
quadros do Partido e grande n ú m ero dos quadros intelec
tuais se oporão m ais o u m enos abertam ente. Os cam pone
ses ficarão n a expectativa. Enfim, os operários, força deci
siva, estarão tã o cindidos em organizações rivais que será
preciso no fim, a p a rtir de 1967-68, correndo o Estado o
risco de ser arrastad o n a to rm en ta, fazer intervir o exérci
to.29 Descortina-se então longo período de confrontos b u
rocráticos extrem am ente complexos e violentos que n ão
excluem certas irrupções populares, e isso até a m o rte de
M ao (1976), á qual rapidam ente se segue u m golpe term i-
doriano, reconduzindo Deng ao poder.
Esse to rn a d o político é, q u a n to a su as im plicações,
tã o novo e ao m esm o te m p o tã o o b scu ro que ain d a n ão
se e x tra íra m n u m e ro sa s lições que, sem d ú v id a n e n h u
m a, ele co m p o rta p a ra o f u tu ro das políticas de em anci
pação, em b o ra te n h a fornecido in sp iração decisiva p a ra
o m ao ísm o francês en tre 1967 e 1975, m ao ísm o francês
que foi a ú n ica co rren te política in o v a d o ra e conseqüente
101
do após M aio 68. Em to d o caso, é certo que a Revolução
c u ltu ra l m a rc a o en ce rra m en to de to d a u m a seqüência,
aq u ela cujo "objeto" cen tral é o Partido e cujo conceito
político p rin cip al é o de p ro letariad o .
Seja dito de passagem , está n a m o d a hoje, entre os
restau rad o res do servilism o im perial e capitalista, quali
ficar esse episódio sem precedente de bestial e san g ren ta
"lu ta pelo poder": M ao, m in o ritá rio no b u re a u político,
te n tan d o p o r todos os m eios v o lta r a subir a ram p a . Pri
m eiro se pode responder que qualificar u m episódio polí
tico desse tipo de "lu ta pelo p o d er" é a rro m b a r de m odo
ridículo u m a p o rta escancaradam ente ab erta. Os m ilitan
tes da Revolução C u ltu ral n ã o deixaram de citar Lenin
declarando (talvez n ão seja o que foi feito de m elhor, m as
isso é o u tra questão) que definitivam ente "o pro b lem a é
o do poder". A posição am eaçad a de M ao era q u estão ex
plícita e tin h a sido assin alad a oficialm ente pelo pró p rio
M ao. Os "achados" de nossos intérpretes sinólogos30 são
apenas tem as im anentes e públicos da q u ase-g u erra civil
em curso n a China entre 1965 e 1976, g u e rra cuja se
102
qüência p ro p riam en te revolucionária (no sentido da exis
tência de u m pen sam en to político novo) é som ente o seg
m en to inicial (1965-68). De resto, desde quan d o nossos
filósofos políticos consideram com o h o rro r o fato de u m
dirigente am eaçado p ro c u ra r re to m a r a influência? N ão é
o que eles co m en tam ao longo do dia com o co nstituindo a
essência deleitável e dem ocrática da política p arlam en tar?
D irem os a seguir que a significação e a im po rtân cia da
lu ta pelo poder estão atrelad as a suas implicações. P rin
cipalm ente q u an d o os m eios dessa lu ta são classicam en
te revolucionários, no sentido que fazia M ao dizer que
a revolução "não é u m ja n ta r de gala": m obilização sem
precedente de m ilhões de jo v en s e operários, liberdade de
expressão e de organização p ro p riam en te incrível, m a n i
festações gigantescas, assem bléias políticas em todos os
locais de estudo o u de trab alh o , discussões esquem áticas
e b ru tais, denúncias públicas, u so recorrente e a n á rq u i
co da violência, inclusive da violência a rm a d a etc. Ora,
qu em pode hoje a firm a r que Deng Xiaoping, qualificado
pelos ativistas da Revolução C u ltu ral com o "o segundo
dos m ais altos dirigentes que, em bora do Partido, en g a-
ja ra m -se n a via capitalista", n ão estava realm ente n u m a
linha de desenvolvim ento e de co n stru ção social diam e
tralm en te o p o sta à de M ao, a q u al era coletivista e in o v a
dora? N ão vim os, q u an d o após a m o rte de M ao ele con
q u isto u o poder m ediante golpe de Estado burocrático,
que ele p u n h a em execução n a China, d u ra n te todos os
anos 80, e até su a m orte, u m a espécie de neocapitalism o
com pletam ente selvagem , to talm en te co rru p to , e ta n to
m ais ilegítim o q u a n to m a n tin h a p o r o u tro lado o despo-
103
tism o do Partido? Havia, p o rtan to , realm ente, em todas
as questões, e p articu la rm en te n as m ais im p o rtan tes de
todas (relações entre cidade e cam po, entre trab a lh o inte
lectual e m a n u al, en tre o Partido e as m assas etc.), o que
os chineses ch am av am em su a saborosa lín g u a de "lu ta
entre as duas classes, as d uas vias e as d u as linhas".
E as violências, m u ita s vezes extrem as? As centenas
de m ilh ares de m o rto s? As perseguições, em p a rtic u la r
c o n tra os intelectuais? Pode-se dizer a m esm a coisa que
foi d ita de todas as violências que m a rc a ra m n a H istó
ria, até hoje, as te n ta tiv a s m ais o u m en o s m an ifestas
de política livre, de subversão radical d a e te rn a ord em
que subm ete a sociedade à riq u eza e aos ricos, ao poder
e aos poderosos, à ciência e aos cientistas, ao cap ital e a
seus servidores, e n ão dá v alo r alg u m ao que as pesso
as pensam , v a lo r alg u m à inteligência coletiva o p erária,
v alo r alg u m , n a verdade, a q u alq u er p en sam e n to que
n ão for hom o g ên eo com a ordem n a q u al se p e rp e tu a
a ignóbil re g ra do lucro. O tem a da em ancipação to tal,
p raticad o hoje, n o e n tu siasm o do presen te ab so lu to , está
sem pre situ a d o p a ra além do Bem e do M al, p o rq u e, n as
circu n stân cias da ação, o único Bem conhecido é aq u e
le do q u al a o rd em estabelecida faz o n o m e precioso de
su a subsistência. A ex trem a violência pode en tão te r re
ciprocidade com o extrem o entusiasm o, pois que se tr a
ta , de fato, de tra n sv a lo riz a r todos os valores. A paix ão
pelo real é sem m o ral. A m oral, com o a v iu N ietzsche,
te m qu ase só o sta tu s de genealogia. É resíd u o do ve
lho m u n d o . E, p o r conseqüência, o lim iar de to lerân cia
ao que, v isto de nosso pacífico e velho hoje, é o pior, é
104
ex tre m am en te elevado, q u alq u er que seja o cam p o ao
q u al pertença. Evidentem ente é o que faz com que a l
g u n s falem hoje da "barbárie" do século. E n tretan to , é
to ta lm e n te in ju sto iso lar essa d im en são da paixão pelo
real. M esm o q u an d o se tr a ta da perseguição dos intelec
tu a is, p o r m ais d esastro so s que sejam o espetáculo e os
efeitos, é im p o rta n te le m b ra r que o que a to rn a possível
n ão são os privilégios do saber que co m an d am o acesso
político ao real. Com o já d u ra n te a Revolução France
sa dizia Fourquier-Tinville ao ju lg a r e co n d en ar à m o rte
Lavoisier, criad o r da q uím ica m o d ern a: “A República n ão
te m necessidade de cientistas". R em atada p a la v ra b á r
b ara, co m p letam en te ex tre m ista e irracio n al, m a s que é
preciso saber entender, p a ra além dela p ró p ria, sob su a
fo rm a ax io m ática abreviada: "A República n ã o precisa".
N ão é da necessidade, do interesse o u de seu co rrelato , o
saber privilegiado, que deriva a c a p tu ra política de u m
fra g m e n to de real, m as da o corrência de u m p en sam e n
to coletivizável, e dele ap en as. O que se pode ex p rim ir
assim : a política, q u an d o existe, fu n d a seu p ró p rio p rin
cípio q u a n to ao real e n ã o te m necessidade de n a d a a n ão
ser dela p ró p ria.
M as pode ser que hoje to d a te n ta tiv a de su b m eter o
p en sam e n to à p ro v a do real, político o u não , seja consi
derada b árb ara? A paix ão pelo real, m u ito esfriada, cede
(provisoriam ente?) o lu g a r p a ra a aceitação, o ra gozosa,
o ra m o rn a , da realidade.
105
sem blante e que é preciso, p o rta n to , sem pre recom eçar a
depuração, o p ô r a n u o real.
O que eu q u eria su b lin h a r hoje é que d e p u ra r o real
significa ex traí-lo da realidade que o envolve e o oculta.
D aí o gosto v iolento pela fach ad a e pela tran sp arê n cia.
O século te n ta reag ir c o n tra a pro fu n d id ad e. Ele exerce
vigorosa crítica ao fu n d a m e n to e ao além , p ro m o v e o
im ediato e a fach ad a sensível. Propõe, n as pegadas de
N ietzsche, a b a n d o n a r os "por trá s do m u n d o " e a firm a r
que o real é idêntico ao aparecer. O p en sam e n to , p re
cisam ente p o rq u e o que o a n im a n ão é o ideal m a s o
real, deve ap reen d er o ap arecer com o aparecer, o u o real
com o acontecim en to p u ro de seu aparecer. Para ch eg ar a
isso, é preciso d e stru ir to d a consistência, to d a p reten são
substancial, to d a asserção de realidade. É a realidade que
ob stacu liza o descobrim ento do real com o fach ad a p u ra .
Aí está a lu ta c o n tra o sem blante. M as com o o sem b lan -
te-de-realidad e adere ao real, a destru ição do sem b lan te
se identifica com a d estru ição p u ra e sim ples. No fim de
su a depuração , o real com o ausência to ta l de realidade
n ão é n ad a. D arem os o n o m e a essa via, to m a d a p o r
in ú m e ra s te n ta tiv a s no século - te n ta tiv a s políticas, a r
tísticas, científicas - , a via do niilism o te rro rista . Com o
su a an im ação subjetiva é a paix ão pelo real, isso n ã o é
consentimento ao n ad a, é u m a criação, e é conveniente
reconhecer nisso u m niilism o ativo.
Onde nos en co n tram o s hoje? A fig u ra do niilism o
ativo é tid a com o co m p letam en te obsoleta. Toda ativ id a
de racio n al é lim itad a, lim itativ a, d em arcad a pelo peso
da realidade. O que se pode fazer de m e lh o r é ev itar o
106
m a l e, p a ra se fazer isso, a via m ais c u rta é ev itar to d o
co n ta to com o real. E n o fim en co n tra-se o n ad a, o n a d a -
de-real, e nesse sentido estam o s sem pre no niilism o. M as
u m a vez que su p rim im o s o elem ento te rro rista - o de
sejo de d e p u ra r o real - , o niilism o está desativado. Tor
n o u -se niilism o passivo, o u reativo, isto é, h o stil a to d a
ação assim com o a to d o p en sam en to .
A o u tra via que o século esboçou, a que te n ta m a n
te r a paixão pelo real sem ceder aos en cantos p aro x ís-
ticos do terror, eu lhe dei o nom e, com o sabem , de via
su b tra tiv a : exibir com o p o n to real n ã o a d estru ição da
realidade, m as a diferença m ín im a. D ep u rar a realidade
n ão p a ra a n iq u ilá-la n a fachada, m a s su b tra in d o -a de
su a un id ad e ap a re n te p a ra d etectar a diferença m in ú s
cula, o te rm o evanescente que lhe é co n stitu tiv o . O que
te m lu g a r quase não difere do lu g a r onde isso te m lugar.
E n o "quase n ão " que está to d o o afeto, nessa exceção
im anente.
Nas d u as vias, a q u estão -ch av e é a do novo. Q_ue é o
novo? A q u estão obceca o século, p o rq u e, desde seus p ri
m órdios, ele se evocou com o fig u ra do com eço. E, acim a
de tu d o , (re)com eço do h o m em : o h o m e m novo.
Esse s in ta g m a te m dois sentidos opostos.
Para to d a u m a série de p ensadores, especialm ente
n as p arag e n s do p en sam e n to fascista, e sem excetuar
Heidegger, "o h o m e m novo" é em p a rte a restitu içã o de
u m h o m e m an tig o , obliterado, desaparecido, c o rro m p i
do. A depuração é n a realidade o processo, m ais o u m e
nos violento, de re to rn o de u m a o rig em que se dissipou.
O novo é p ro d u ção de auten ticid ad e. Por fim , a ta re fa
107
do século é a restitu ição (da origem ) pela d estru ição (do
in a u tê n tic o ).
Para o u tr a série de p ensadores, especialm ente n as
p arag e n s do co m u n ism o m a rx iz a n te , o h o m e m n o v o é
criação real, algo que n u n c a existiu, p o rq u e su rg e da
d estru ição dos a n tag o n ism o s históricos. Ele está p a ra
além das classes e do Estado.
O h o m e m novo é o ra restitu íd o , o ra p ro duzido.
No p rim eiro caso, a definição do h o m e m n o v o en-
raíza-se n a s to talid ad es m íticas com o a raça, a nação,
a te rra , o sangue, o solo. O h o m e m novo é coleção de
predicados (nórdico, aria n o , g u erreiro etc.).
No segun d o caso, o h o m e m novo se a p resen ta ao
c o n trá rio c o n tra todos os ró tu lo s e todos os predicados,
em p a rtic u la r c o n tra a fam ília, a propriedade, o Esta-
d o-nação. É o p ro g ra m a do livro de Engels A origem da
fa m ília , da propriedade privada e do Estado (São Paulo,
Escala, 2005). M arx já su b lin h a v a que a sin g u larid ad e
un iv ersal do p ro letariad o é n ão p o rta r n e n h u m p red i
cado, n a d a ter, e especialm ente n ã o ter, em sentido fo r
te, n e n h u m a "p átria". Essa concepção an tip red icativ a,
n eg ativ a e u n iv ersal do h o m e m novo a tra v e ssa o sécu
lo. A specto m u ito im p o rta n te é a hostilidade à fam ília,
com o núcleo p rim o rd ial do egoísm o, do en raizam e n to
particu lar, d a trad ição e d a origem . O clam o r de Gide:
"Famílias, eu vos odeio", p a rticip a da apologética do h o
m em novo assim concebido.
É m u ito su rp reen d en te v er que a fam ília v o lto u a
to rn a r-se , neste fim de século, v a lo r co n sen su al e p ra
ticam en te ta b u . Os jo v en s a d o ra m a fam ília, n a qual,
108
aliás, p erm an ecem com idade cada vez m aior. O p artid o
dos Verdes alem ães, su p o stam e n te c o n testatá rio (tu d o é
relativo: está n o governo...), em d eterm in ad o m o m en to
chegou a p e n sa r em d en o m in ar-se 'p a rtid o da fam ília'.
Até os hom ossex u ais, p o rtad o re s n o século, com o aca
b am o s de ver com Gide, de p a rte da contestação, recla
m a m hoje su a inserção n o q u a d ro da fam ília, n a h e ra n
ça, n a "cidadania". Isso diz onde n o s en co n tram o s. O
ho m e m novo, n o presen te real do século, consistia an tes
de tu d o , q u a n d o se era p ro g ressista, liv rar-se da fam ília,
da propriedade, do despotism o estatal. Hoje parece que a
"m odernização", com o dizem de tã o b o m g rad o nossos
m estres, consiste em ser b o m paizin h o , b o a m ãezin h a,
b o m filhinho, to rn a r-s e executivo eficiente, enriquecer
se ta n to q u a n to p u d er e m o stra r-se cidadão responsável.
A divisa a g o ra é: "D inheiro, Fam ília, Eleições".
É que o século te rm in a no te m a da novidade subje
tiv a im possível e n o do co n fo rto da repetição. Isso te m
no m e categorial: a obsessão. O século te rm in a n a obses
são de seg u ran ça, sob a m á x im a u m ta n to abjeta: já n ão
é m a l-e sta r aí onde você está, h á e h o u v e coisa p io r em
o u tra s p artes. Q u an d o o âm ag o desses cem an o s tin h a
sido colocado, a p a rtir de Freud, sob o signo da h isteria
d evastadora: que te m você a n o s m o s tra r de novo? Você
é o criador de quê?
É p o r isso que n ã o é m a u e n tra r n o século ta m b é m
pela psicanálise.
109
5 de maio de 1999
7. Crise de sexo
111
de alguns ta b u s m o rais o u religiosos? Tem a trem en d a
convicção de te r tocado n o sexo, no m esm o sentido em
que, depois de V ítor H ugo, se tocou no verso?
Para in s tru ir a q u estão , co m en tarei q u a tro textos ti
rados do Cinq psychanalyses ,* textos que aparecem en tre
1905 e 1918.
A coletânea in titu la d a Cinq psychanalyses é aos m eus
olhos u m dos livros m aio res do século. É o b ra -p rim a em
todos os aspectos: invenção, au d ácia, m a e stria literária,
inteligência desconcertante. Podem -se ler esses textos
com o produções m ag istrais do espírito h u m a n o , criações
cuja evidência é m agnífica, to ta lm e n te independente do
interesse que se p o ssa te r pelo raciocínio psicanalítico. É
de resto p a rtic u la rm e n te n o tá v el que a despeito de m i
lhares de te n ta tiv a s co nduzidas p o r pessoas de g ran d e
talen to , n e n h u m relato de caso, n e n h u m a tra n sm issã o
de processo analítico sin g u la r foi cap az de ch eg ar aos pés
dos cinco estu d o s de Freud. Temos aí, p oder-se-ia dizer,
os casos definitivos, q u er se tr a te da h iste ria co m D ora,
da obsessão com o h o m e m dos rato s, da fobia co m o pe
queno H ans, da p a ra n ó ia co m o presidente Schreber o u
das fro n te ira s da n eu ro se e d a psicose com o h o m e m dos
lobos. Esses cinco estu d o s são, erguidos em cim a de m a
terial g eralm en te desolador das form ações inconscien
tes, inexplicáveis "aquisições p a ra sem pre". Levar p a ra
a eternidade as m iseráveis in trig a s do ca rá te r h u m a n o
exigia resistência e gênio p o u co co m u n s.
*N.T.: edição francesa de cinco casos clínicos. Os trechos aqui citados foram
tirados da Edição Standard Brasileira publicada pela Imago.
112
É, p o rta n to , realm en te leg ítim o p e r g u n ta r com o
n os Cinq psychanalyses Freud a b o rd a a q u estão de su a
p ró p ria a u d ác ia n o to c a n te ao real do sexo o u à ge
n ealo g ia m e n ta l da sexualidade, o u ain d a à in s ta u r a
ção, cujo p rim eiro su jeito é ele p ró p rio , de u m face a
face e n tre o p e n sa m e n to e o sexo q u e n ã o ap en a s n ã o
to m a a fo rm a da in q u isição m o ral, m a s ain d a ex am in a
o p o d er d e te rm in a n te dos a v a ta re s reais do sexo sobre
a co n stitu iç ã o do p e n sam e n to , e n ã o ta n to a m a io r o u
m e n o r capacidade do p e n sa m e n to de c o n tro la r o im
p u lso sexual.
C om ecem os com u m tex to tira d o das "N otas p re
lim inares" do caso D ora, livro de 1905, assim com o a
p rim eira Revolução Russa, aq u ela que os bolcheviques
qualificarão retro sp ectiv am en te de "ensaio geral" (da
Revolução de O u tu b ro de 1917). Vejam, pois, as confis
sões e precauções defensivas de Freud:
113
rei que seria u m sinal de singular e perversa lascívia
supor que essas conversas possam ser u m bom meio
p ara excitar ou satisfazer os apetites sexuais.
114
se tr a ta de sim ples relação de saber. Com o F oucault n ão
cessou de proclam ar, a v o n ta d e de "saber o sexo" n u n c a
deixou de existir, ligada que estav a sem pre aos efeitos
do po d er de u m con tro le dos corpos, e especialm ente do
laço dos corpos. A sin g u larid ad e de Freud é que o face
a face com o sexual n ã o é da o rd em do saber, m a s da
ordem de u m a n o m in ação , de u m a in terv en ção , d aq u i
lo que ele ch am a "discussão fran ca", que p recisam ente
p ro c u ra dissociar os efeitos do sexual de to d a ap reen são
p u ra m e n te cognitiva, e p o r conseqüência de to d a su b o r
dinação ao poder da n o rm a . Desse p o n to de v ista, a ate s
tação de u m a "ontologia" do sexual (o sexual ta l q u al é,
"órgãos e funções") s u ste n ta realm en te u m a em an cip a
ção do ju lg a m e n to . Pouco a pouco, q u eira ela o u não ,
a psicanálise a c o m p a n h a rá o p erecim ento das n o rm a s
explícitas m edian te as quais se o rg an iz av a o saber da
sexualidade. É que ao p en sá-la, n u m face a face, com o
o in-sabido de to d o p en sam en to , ela d av a à sexualidade
u m e s ta tu to e, pode-se dizer, u m a n o b reza, com a q u al
n e n h u m a das n o rm a s an terio res p odia se aju star.
Nesse aspecto, Freud está consciente de su a orig i
nalidade, assu m e o face a face p en sam e n to /sex u a lid ad e
com o verd ad eira r u p tu r a .
115
que u m a m oça tin h a p a ra dizer do sexo do que "discutir"
isso com ela. Com efeito, a psicanálise nascente é an tes de
tu d o a decisão de o u v ir o dizer histérico sem de im ediato
fazer disso b ru x a ria que é do cam po da an ed o ta com o da
fogueira. E é realm ente p a ra su sten tar, até nos arcan o s de
u m sexual fundador, o lab irin to doloroso desse dizer que
Freud se aplica, criando assim região n o v a do p en sam en
to. Que n ão seja preciso, tra ta n d o -se desse pensam ento,
proteger as m ulheres, é atestado, b em ao co n trário , pelo
n ú m e ro de psicanalistas m ulheres, e isso desde a a u ro ra
da disciplina. Com isso com eça a lo n g a histó ria, n o sé
culo, de m etam o rfo se da sexualidade, provocada princi
palm ente pela inclusão explícita, no pen sam en to , de su a
dim ensão fem inina, depois, u m pouco m ais tard e, d aq u i
lo que seu com ponente hom ossexual m an ifesta de p ro
p riam en te criador. A psicanálise certam en te n ã o é a única
a te r trab a lh ad o nesse sentido. Basta, porém , ler o caso
Dora, ju sta m e n te , p a ra co n sta ta r que em 1905 Freud cer
ta m en te n ão estava a reboque.
116
dem asiadam ente custosa. V á co n su ltar seu clínico geral.
Se é subjetivo, isso n ão existe, e especificam ente isso n ão
deve c u sta r nada. Fique sem isso. O u então, é luxo. Tome
o avião p a ra co n su ltar em Los Angeles.
Tal é a lei de nosso m u n d o : o que é objetivo deve
a lin h a r seus cu sto s ao m ercado, e o que é subjetivo deve
inexistir, a n ã o ser com o lu x o inacessível.
Seja com o for, q u an d o Freud reivindica o papel de gi
necologista, ele de-subjetiva fo rtem en te o in trin cam en to
de seu pensam en to e do dizer sexualizado da jo v em h is
térica. Além disso, que pretende ele com os direitos "m ais
m odestos"? Que D ora n ão se dispa? Freud sabe p erfeita
m ente: to m a r a sexualidade pela p a rte de su a eficácia n a
constituição de u m sujeito supõe u m a n u d ez (transitória)
da qual o desvestim ento m édico n ão chega perto.
Bem se vê, n a au ro ra das transform ações, Freud hesi
ta r quanto à versão pública que vai apresentar. Trata-se de
to m a r com o modelo a objetividade médica que sem pre re
gistra ta n to o corpo com o o sexo? O u se tra ta de u m a sub-
jetivação subversiva, afetando o relato sexual e seus efeitos,
do qual nada, nem a feminilidade tal com o é aceita, nem o
inom inável gozo, e m enos ainda a elucidação do desejo de
pensar, nada poderá sair ileso? É m uito claro que em meio a
essa hesitação, o ideal da ciência e quem faz as suas vezes, o
ginecologista, servem p ara aplacar a an gústia do novo.
117
(basta ler o caso p a ra saber de fo n te segura) que ju s
ta m e n te o desejo circu lo u de m a n e ira in te n sa en tre a
jo v e m h istérica e seu an a lista a p o n to de Freud literal
m en te fu g ir; com isso o "caso D ora" ficou em g ran d e
p arte, e é u m dos seus ch arm es literário s, sem decisão.
De m a n e ira que Freud legou a seus discípulos com o a ele
p ró p rio u m p a ra d ig m a do que será ch am ad o de c o n tra -
tran sferên cia, m ed ian te a q u al u m a n alisan te sed u to r
chega a av a n ta ja r-se ao m e stre que o analisa.
Não é u m das m enores contribuições do século o ter
enfim pensado, n a esteira, é verdade, do Banquete de Pla
tão, a im ensa im portância das operações transferenciais
e contratransferenciais em tu d o o que concerne, ta n to à
transm issão dos saberes q u an to à aglutinação dos grupos
hu m an o s, em to rn o de q u alquer fetiche obscuro. Como
freqüentem ente ocorre com o M estre inicial, Freud, ao m es
m o tem po que pratica esse fu ro pensante n as regiões onde
a verdade se su sten ta com u m a b a rra posta n o sexo, recua
u m ta n to diante da nom inação explícita de su a prática. Da
m esm a fo rm a será afetado pela p erturbação desejante à
qual se expõe qualquer u m que queira elucidar a ocorrên
cia de u m a verdade sobre a singularidade de u m sujeito.
118
prim eira m ão e em todo o frescor da vida, os impulsos
e desejos sexuais que tão laboriosam ente desenterra
mos nos adultos dentre seus próprios escombros - es
pecialmente se tam bém é crença nossa que eles consti
tuem a propriedade com um de todos os hom ens, um a
parte da constituição hum ana, e apenas exagerada ou
distorcida no caso dos neuróticos.
Tendo em vista essa finalidade, venho por m ui
tos anos encorajando m eus alunos e m eus am igos a
reunir observações da vida sexual das crianças - cuja
existência, via de regra, tem sido argutam ente des
prezada ou deliberadam ente negada.
119
a criança seria apenas espécie de in term ed iário en tre o
cão e o adulto , in term ed iário que, p a ra p a ssa r à a ltu ra
dos hom ens, deveria ser do m ad o e castigado sem a m e
n o r hesitação. Estam os n a época da declaração u n iv ersal
dos direitos da criança e dos processos ab erto s - p rin ci
p alm en te n a Escandinávia, e baseados em d en ú n cia dos
vizinhos - a alg u n s pais que acred itam ain d a ser possível
b a te r em seus rebentos. Se se to m a r isoladam ente essa
m u d an ça, q u em n ão se aleg rará? D efender o an tig o colé
gio inglês e seus castigos corporais está com certeza fo ra
de época. A qu estão é sem pre saber o preço que se paga,
em m a té ria de definição do ho m em , p o r q u alq u er a la r
g am en to de seus direitos. De fato, igualdade é reversível.
Se a criança te m os direitos do h om em , isso pode signi
ficar que a criança é u m h o m em , m as isso pode ta m b ém
te r com o condição que o h o m e m aceite n ão ser m ais que
u m a criança. Se ig u alm en te os m acacos e as porcas tê m
direitos inalienáveis, isso pode ser indício de piedade re
finada. Pode significar ta m b ém que estam os obrigados a
n ão nos ju lg a r m u ito diferentes do m acaco o u do porco.
É a g ran d e im p o rtân cia d a q u estão a p resen tad a es
pecialm ente p o r Rousseau: "O que é a infância?" Freud
responde que a infân cia é a cena da co n stitu ição do s u
je ito no e pelo desejo, no e pelo exercício do p ra z e r ligado
a representações de objetos. A infân cia estabelece o con
tex to sexual d en tro do q u al to d o o nosso p en sam en to ,
daí p o r d iante, deve-se m an ter, p o r m ais sublim es que
sejam as operações.
O que a in d a em nossos dias dá a dim ensão su b v ersi
v a dessa tese n ã o é que lhe c o n tra p o n h a m , b em ao con
120
trá rio , a anim alid ad e da crian ça e a necessidade de seu
ad estra m en to . O o b stácu lo é, a contrario, a idéia de que a
criança é inocente, an jin h o , depósito de todos os nossos
devaneios corro m p id o s, o p eq u en o receptáculo de to d a
a á g u a-d e -ro sas do m u n d o . É o que se vê n o s rep eti
dos apelos à delação, à p en a de m o rte e ao lin ch am en to
im ediato, q u an d o se tr a ta de relação sexual com u m a
criança. Nesses apelos violentos, d ian te dos quais a a u
to rid ad e pública te m m u ita dificuldade em p erm an ecer
im pávida, n u n c a se tra ta , n u n c a m esm o, do que Freud
tro u x e à b aila com su a coragem h ab itu al: a infância,
bem longe de q u a lq u e r "inocência", é u m a idade de o u ro
da experim entação sexual sob to d a s as fo rm as.
Claro, a lei deve dizer q u em é e q u em n ão é criança,
em que idade se dispõe livrem ente de seu corpo e com o
se p u n e m aqueles que tra n sg rid e m esses dispositivos le
gais. Q u an to aos assassin ato s, com o sem pre, devem ser
reprim idos d a m a n e ira m ais ju s ta e m ais severa. Dito
isso, n ã o é apenas in ú til m a s p ro fu n d a m e n te reacionário
e prejudicial reco rrer p a ra isso a representações arcaicas
da infância, ao m o ralism o m e n tiro so a n te rio r a Freud, e
esquecer que poderosas pulsões, u m a curiosidade sexual
sem pre desperta, e s tr u tu ra m q u a lq u e r infância. De sor
te que fo rço sam en te é delicado m ed ir o g ra u de cu m p li
cidade de u m a crian ça com os que p ro c u ra m seduzi-la
sexualm ente, m esm o que se adote, o que é ju s to , que a
existência dessa cum plicidade n ã o dá direito à absolvição
p a ra o ad u lto que se ap ro v eita dessa situação.
A crescentem os: q u a n to aos p ro m o to re s de petições,
delações, sites n a In te rn e t e lin ch am en to s in co n tro lad o s
121
a respeito dos pedófilos, seria m e lh o r que exam in assem
a e s tru tu ra patogênica, inclusive sexualm ente, da fa m í
lia. A esm ag a d o ra m a io ria dos assassin ato s de crianças é
com etida n ão p o r estram b ó tico s pedófilos solteiros, m as
pelos pais, e especialm ente pelas m ães. E a esm ag ad o ra
m a io ria dos to q u es sexuais é in cestuosa, p o r iniciativa,
ag o ra, dos pais o u p ad rasto s. Sobre tu d o isso, p o rém ,
bico calado. M ães assassin as e pais incestuosos, in fin i
ta m e n te m ais dissem inados do que os assassinos pedófi
los, ap en as a co n tra g o sto fig u ra m no q u a d ro idílico das
fam ílias n o q u al se q u er re g is tra r a relação deliciosa dos
pais cidadãos e de seus angélicos filhinhos.
Freud n ã o aceitou n e n h u m en trave, m esm o que p u
dessem ser su as p ró p rias reticências b u rg u esas. Ele ex
plicou o p en sam e n to h u m a n o co m base n a sexualidade
in fan til e nos d eu todos os m eios p a ra com p reen d er o
que h á de factício, de n eu ró tico , de desesperador, n o u n i
verso fam iliar. A ntecipou ta m b é m o que hoje se to rn o u
claro: o recu rso criad o r co n stitu íd o pela h o m o ssex u ali
dade, la ten te o u explícita, de to d o sujeito h u m a n o . C on
siderem os, p o r exem plo, este fra g m e n to da análise do
presidente Schreber, tex to de 1911.
122
que talvez pudesse ter assumido algum a outra for
ma, tomou, por razões que nos são desconhecidas,
a forma de delírio de perseguição. A pessoa por que
agora ansiava tornou-se seu perseguidor, e a essência
da fantasia de desejo tornou-se a essência da perse
guição. Pode-se presumir que o mesmo delineamento
esquemático se tornará aplicável a outros casos de
delírios de perseguição.
123
conhecida. Em o n tra s p alav ras: o elo en tre o fa n ta sm a
h o m o ssex u al e o delírio, em b o ra ininteligível, ta m b é m é
co m p letam en te contin g en te. As forças libidinais em jo g o
te ria m podido a ju sta r-se de "o u tra fo rm a". A h o m o sse
xualidade é, p o rta n to , a ssu m id a p o r Freud com o u m a
possibilidade en tre o u tra s, u m recu rso p a ra o en cam i
n h a m e n to d a p u lsão . Sua univ ersalid ad e re su lta do fato
de que é im possível isolar fig u ras p u ra s do desejo. Toda
fixação de objeto é co n ta m in a d a pelo seu co n trá rio , todo
desejo co n tém o de estar "no lu g a r" do o u tro sexo.
H á subversão da relação en tre universalidade e possi
bilidades do desejo sexual que, n o século, vai sem dúvida
bem além daquilo que Freud concebia, m as que ele soube
an u n ciar com o vigor im placável do lógico das pulsões.
Não é, pois, de ad m irar que esse hom em inflexível q u an
to às exigências do pensam ento se tenha dado conta m u ito
rapidam ente do perigo ao qual as resistências da "norm ali
dade" expunham seu em preendim ento. É disso que dá tes
tem u n h o esta passagem do hom em dos lobos (1918):
124
guardar-se das novidades objetáveis tão eficiente
m ente como antes. O estudo das neuroses infantis ex
põe a com pleta inadequação dessas tentativas super
ficiais e arbitrárias de reinterpretação. M ostra o papel
predom inante que é desem penhado n a form ação das
neuroses por aquelas forças libidinais tão im pulsi
vam ente rejeitadas, e revela a ausência de quaisquer
aspirações no sentido de objetivos culturais rem otos,
dos quais a criança nada sabe ainda e que não podem,
portanto, ter qualquer significado p ara ela.
125
Q ue se tra ta v a ig u a lm en te do com bate c o n tra a reli
gião, da fo rm a m o d e rn a desse com bate, a fo rm a exigida
p o r nosso século, Freud, esse g ran d e espírito m a te ria
lista, ta m b é m sabia. O que a s s u sta a religião n ã o é a
im p o rtâ n c ia do sexo, m u ito pelo co n trário . Os p ad res da
Igreja tecem b a s ta n te co n hecim ento sobre o sexo, suas
perversões, seus efeitos, e são os ú ltim o s a su b estim ar
su a im p o rtân cia. N ão, o que os a ssu sta é o fa to de o
sexo poder im p o r concepção da verdade d esarticu lad a do
sentido. O terrív el é o sexo ser rebelde a q u a lq u e r o ferta
de sentido, e n q u a n to p a ra a religião é q u estão de su a
p ró p ria existência p oder e sp iritu alizar e, p o rta n to , d a r
significado à relação sexual.
Freud fez o século e n tra r - n o que se refere a sexo,
sentido e verdade - n u m a g ran d e b a ta lh a q u e Lacan
ap resen tav a com o g ran d e b a ta lh a en tre religião e psica
nálise. O que está em jo g o n o conflito é saber se o sexo
te m sentido ou, p a ra fa la r com o Lacan, se nele existe
algo razo av elm en te ligado, algo com o u m a "relação" se
xual; o u se, ao co n trá rio , o d estino subjetivo d a sex u a-
ção subm ete o sujeito a u m a v erdade in sen sata pelo fato,
com o diz ta m b é m Lacan, de n ã o h av er relação sexual.
Para dizer de fo rm a simples: a função anti-religiosa do
face a face pensam ento/sexo sob o signo da verdade é que
ele a rran ca das pretensões da m o ral o dizer sobre sexo.
Esse re ta lh a m e n to significa revolução de ta l enver
g a d u ra que se pode d u v id a r que o século a te n h a leva
do a b o m te rm o . C om certeza, ele ex tirp o u o sexo das
fig u ras m ais visíveis da m o ralidade. Será que com isso
ele a "des-m oralizou"? A m o ra l pode o cu ltar-se sob o
126
hedonism o. O im p erativ o "Goze!", hoje expresso p o r to
das as revistas p a ra adolescentes, m a n té m e a g ra v a as
e s tru tu ra s sintetizad as pelo im p erativ o "Não goze!". A
revolução freu d ia n a que aco m p a n h o u n o século a dis
p u ta ín tim a com a e s tru tu ra ç ã o religiosa do sentido está
hoje em suspenso, co n fro n ta d a que está com novos m o
dos de subjetivação sexuada, n a q u al a fo rm a a p are n te
(hétero o u hom o ssex u al, fem in in a o u m ascu lin a, ativ a
o u passiva, n eu ró tica o u depressiva e assim p o r diante)
te m m enos im p o rtâ n c ia do que a a n g ú s tia p ro v o cad a
pelo inom inável que to d o gozo encobre, especialm ente o
gozo obrigatório .
Com o se sabe - ao m enos a p a r tir do Baixo Im pé
rio R om ano q u an d o o gozo é aq u ilo que to d a v id a q u er
g a ra n tir e que o cu p a o lu g a r do im p erativ o - , o que se
acaba inevitavelm ente p o r g o zar é a atrocidade. Eis che
gado o tem p o d a obscenidade geral, dos gladiadores, dos
suplícios em te m p o real que fa rá la m e n ta r até as m a ta n
ças políticas do século m o rto .
É sem dúvida nesse aspecto que a co rag em de Freud
nos inspira, ele que soube ex em p larm en te erigir o p e n sa
m en to e chocar a lógica d ian te d aq u ilo que, s u ste n ta n
do-se apenas do inom inável, n ã o deixa de ser ingrediente
inevitável de n o ssa verdade.
O fato de te r sabido chegar ao real do sexo em vez de
ao seu sentido faz com que Freud seja u m dos g ran d es
heróis desse século, u m dos que a u to riz a m a dizer que
esses anos tã o freq ü en tem en te v o tad o s à h o rrív el e v ã
indiferença dos p a rticu la rism o s n ão fo ra m in ú teis p a ra
aqu ilo que h á de u n iv ersal n o p en sam en to .
127
10 de novembro de 1999
8. Anábase
129
coesão m ilitar. E m esm o q u a n d o Lenin q u er que reine no
p artid o p ro letário "disciplina de ferro" é q u e ele sabe que
os pro letário s, desprovidos de tu d o , n ão tê m a m e n o r
chance de tr iu n f a r se n ão se im p u se rem a si p ró p rio s,
com o conseqüência e fig u ra m a te ria l de su a consistência
política, u m a inigualável disciplina de o rg an ização .
Toda an áb a se exige assim que o p en sam e n to aceite
u m a disciplina. Sem ela, n ã o se pode "su b ir a encosta",
u m possível sentido da p a la v ra "anábase". X enofonte e
seus dez m il co m p an h eiro s v ão fazer essa experiência.
De fato, n a b a ta lh a de C u n ax a, seu em p reg ad o r p ersa
é m o rto e os m ercenários gregos se en c o n tra m sós no
coração de u m país desconhecido, sem apoio local e sem
destino preestabelecido. 'A nábase" vai d esig n ar o m o v i
m e n to ru m o "à casa deles", m o v im en to de gente e x tra
viada, fo ra de lu g a r e fo ra da lei.
D estaquem o s três p o n to s q u a n to ao que de im ediato
caracteriza o m o v im en to d en o m in ad o "anábase":
130
- É im perioso que os gregos en co n trem algo novo.
Sua m a rc h a atrav és da Pérsia, ru m o ao m ar, n ão to m a
n e n h u m cam inho prévio, n ão corresponde a n en h u m a
orientação anterior. N ão p oderá sequer ser sim ples volta,
já que ela inven ta o cam inho, sem saber se é realm ente o
da volta. A anábase é, p o rtan to , livre invenção de u m a er-
rância que posteriormente será u m a volta, u m a v o lta que,
antes da errância, n ão existia com o cam inho-de-volta.
131
do p o r S aint-Jo h n Perse. Depois, no começo dos anos 60,
Paul Ancell, o u Antschel, conhecido p o r Paul Celan. É do
contraste dessas duas anábases que vam os te n ta r extrair a
consciencia do século q u an to ao seu m ovim ento, a precária
crença que teve de ser u m a subida ru m o a u m a m o rad a
propriam ente h u m an a, a anábase de elevada significação.
Esses dois p o etas são tã o diferentes q u a n to é possível
sê-lo. P erm itam -m e p o n tu a r essa diferença, p o rq u e faz
sentido p a ra o século te r acolhido p o eticam en te sob a
m esm a 'A nábase" tipos de existência ta m b é m v io len ta
m en te c o n tra sta n te s.
132
m eu pai, em bora simples professor de m atem ática, que eu
via do alto de nosso casarão branco sob o roxo das b u g a n
vílias, voltando da caça, com cães e criados prostrados sob
o peso da caça abatida. Não m e espanto que p ara o poeta
essa infância seja infância fascinante. Ele conservará seu
registro em sua prim eira coletânea, Elogios (1907-1911),
da qual u m a das seções tem com o título "Para festejar u m a
infância". A presenta aí questão real q u an to à m em ória,
questão digna de Proust: "Que havia então, fora a infância,
que já não existe?" Sabemos o que se pode responder hoje:
o obsceno e m ais que suculento n irv an a colonial.
Alexis Leger deixa o arquipélago em 1899. Vai prestar
o concurso do M inistério de Relações Exteriores e torna-se
diplom ata. Faz a Primeira Grande G uerra nos ministérios,
parte p ara a China com o adido de em baixada, viaja p ara a
Ásia central, com o se im agina ao ler Anábase que é de 1924.
A p artir da m etade dos anos 20, é o próprio exemplo do alto
funcionário. Será (posto suprem o) secretário-geral do Q uai
D 'O rsay de 1933 a 1939. Em 1940 exila-se aos Estados Uni
dos, é destituído da nacionalidade francesa po r Pétain. Suas
am izades am ericanas perm item -lhe que se to rn e diretor da
biblioteca do Congresso. É am ericano p o r adoção, alijado
tam bém da França p o r su a franca an tip atia por de Gaulle.
Inscreve sua situação no poem a sem dúvida m ais pessoal,
Exílio; a seguir celebra a epopéia das vastas planícies do Oes
te em Ventos. Viaja, escreve de novo, dessa vez u m cântico
ao am or, Marcas m arinhas* Recebe o prêm io Nobel.
133
S a in t- J o h n Perse, n o fu n d o , o c u p a a p a r tir dos a n o s
5 0 o p o s to d e ix a d o liv re p o r V aléry, o de p o e ta oficial
d a R epública. É h o m e m p le n a m e n te sa tisfe ito , in fâ n c ia
p a ra d is ía c a , elev ad a c a rr e ir a n o E stado, n o b re exílio,
sere n o s a m o re s , im p o r ta n te s d istin çõ es. N e n h u m a das
v io lê n c ia s do século p a re c e p o d e r a tin g i-lo . N esse se n
tid o , c o n tin u a n d o e c o n so lid a n d o a f ig u r a c la u d e lia n a
do p o e ta -d ip lo m a ta , c o m u m la d o de m a n d a r im chinês
(escrevo e stro fe s so b re o exílio e a im p e rm a n ê n c ia das
q u e stõ e s h u m a n a s , m a s n ã o esco n d o q u e s o u su b sec re
tá r io do im p e ra d o r), S a in t- J o h n Perse estabelece u m a
fig u ra q u e, e m p len o século XX, p e rp e tu a os d a d o s do
século XIX. R ealm en te é h o m e m d a Terceira R epública,
h o m e m d a época do im p e ria lis m o tr a n q ü ilo e do E sta
do b o n a c h ã o , h o m e m d a sociedade de classe civ ilizad a
e re p le ta , a d o rm e c id a so b re se u poder, e c u jo g ê n e ro li
te rá rio d o m in a n te é o d isc u rs o de e n tre g a de p rê m io s.
B a sta ler o d isc u rso de S a in t- J o h n Perse, p o r o c a siã o d a
e n tre g a do p rê m io N obel, p a r a s e n tir s u a fa m ilia rid a d e
c o m esse exercício, e c o m o ele po d e riv a liz a r c o m V aléry
(reco n h ecid o m e s tre d a s c e rim ô n ia s colegiais e a c a d ê m i
cas) n o m a n e jo eleg an te, e fin a lm e n te , o q u e n ã o é fácil,
sa tis fa z e n d o os o u v id o s c o m g e n e ra lid a d e s p o m p o sa s .
U m h o m e m desse tip o , q u e p o d e re a lm e n te te r c o n
sigo do século e de s u a p a ix ã o pelo real? Por q u e re c o rre r
a ele? Bem , p o rq u e ju s ta m e n te , do f u n d o de s u a p o ltr o
n a d o u r a d a d u m a re p ú b lic a a g o n iz a n te , S a in t- J o h n Per
se p e rc e b e u p e rfe ita m e n te , c o m o o c o rre c o m u m r u m o r
lo n g ín q u o c u ja c a u s a o u se ig n o ra o u se m e n o s p re z a ,
q u e o sécu lo tin h a d im e n s ã o épica. E ta lv e z m e s m o s u a
134
d istâ n c ia a lta n e ira , se u d e s e n g a ja m e n to secreto, ta n t o
m a is ra d ic a is q u a n to o c u p a v a u m p o s to -c h a v e do E sta
do, p e rm itira m -lh e c o m p re e n d e r m e lh o r q u e os o u tro s
q u e essa ep o p éia e ra em s u a essên cia ep o p éia p o r n a d a .
A sín te se d is ju n tiv a q u e tr a z a p o e sia de S a in t- J o h n Per-
se é a d a v a c â n c ia e s p iritu a l e d a a firm a ç ã o épica. A im a
g e m do século q u e p ro m o v e , sem ja m a is f a la r disso d i
r e ta m e n te , a m o ld a -s e a u m im p e ra tiv o q u e é b e m desse
te m p o e q u e a s sim po d e ser expresso: "Q ue t u a fo rç a seja
n iilista , m a s q u e t u a f o rm a seja a epopéia". S a in t- J o h n
Perse v a i e n a lte c e r o q u e h á n a e x a ta m e d id a e m q u e
isso existe, se m t e n t a r a rtic u lá -lo c o m n e n h u m se n tid o .
S u a a n á b a s e é o p u r o m o v im e n to d a epopéia, m a s so b re
f u n d o de in d ife re n ç a. O p o e m a p e n s a o laço m u ito p r o
f u n d o q u e e x istiu , n o século, e n tre v io lê n c ia e a u sê n c ia .
Leiam os a seção VIII de A nábase,* ela ilu s tr a esse laço:
*N.T.: Traduzido por Bruno de Palma. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1979,
p. 62-64.
135
Não que a etapa fosse estéril: ao passo dos ani
mais, sem alianças (nossos cavalos puros com olhos
de primogênitos), m uita coisa empreendida sobre as
trevas do espírito - m uita coisa prazerosa sobre as
fronteiras do espírito - grandes histórias selêucidas ao
silvar das fundas e a terra entregue às explicações...
136
Com Paul Celan - Paul Ancell, 1 9 2 0 -1 9 7 0 ocorre o
inverso: o real m ais c ru do século é que irro m p e. N en h u
m a dinastia, n e n h u m a com odidade oficial v em p ro teg e r
o sujeito. N asceu em C zernow icz, Rom ênia, n a p ro v ín cia
de Bucovina. N ote-se que ele nasce p o r v o lta da épo
ca em que o d ip lo m ata S a in t-J o h n Perse, com 33 anos,
está ocupado em escrever Amábase. É de fam ília ju d ia .
S ua infância m e rg u lh a -o em m ultiplicidade de idiom as:
alem ão, iídiche, ro m en o . E studa m edicina n a França em
19 3 8 -1 9 3 9 . Em 1940, B ucovina é an ex ad a pela U.R.S.S.,
dando p ro sse g u im en to ao p acto germ an o -so v iético . Ce
la n estu d a en tão ru sso . P erm anecerá to d a a s u a vida
com o tra d u to r, e u m a de suas coletâneas é dedicada a
M andelstam . Em 1941, d ian te da ofensiva n azista, os
ru sso s recu am . H á criação de u m gu eto , d ep o rtação dos
pais. O pai m o rre u de tifo e a m ãe será executada. Ce
la n é colocado em 1942 n u m cam p o de tra b a lh o forçado
p a ra jovens. Em 1944 a região é lib ertad a pelos sovi
éticos. Celan re to m a o estu d o do inglês. E ntre 1945 e
1947, tra d u z especialm ente as novelas de Tchekhov, do
ru sso p a ra o ro m en o . Escreve seus p rim eiro s p o em as e
a d o ta o p seu d ô n im o de Celan. Em 1948 p a rte p a ra Paris,
onde fa rá o estu d o do alem ão. Vemos ir-se co n stitu in d o
s u a im ag em nôm ad e. Faz diversas le itu ras de p o em as n a
A lem anha, pelas q u ais se in teressa rá m u ito . Em 1958 é
n om eado pro fesso r convidado de alem ão n a École nór
m ale supérieure (antes da g u erra, S am uel Beckett o fo ra
p a ra o idiom a inglês). O núcleo da o b ra é co n stitu íd o dos
poem as do início dos an o s 60. É em 1967 que acontece
u m episódio fam oso, o en co n tro com H eidegger que oca
137
sionou m ú ltip la s interp retaçõ es, e ta m b é m u m poem a,
m u ito enigm ático, do p ró p rio C elan.31 Três an o s m ais
tard e, Paulo Celan se suicida. Parte n ão desprezível de
su a o b ra é co m p o sta de coletâneas p ó stu m a s.
Se tiverm os em vista o que cham ei de "pequeno sécu
lo", o que é anterio r à Restauração dos vinte últim os anos,
é legítimo considerar Celan o poeta que encerra o século.
Tudo o que vi só foi jo rn a lis m o sen sacio n alista no
tem a, cem vezes repetido, de im po tên cia radical da filo
sofia em e n fre n ta r os crim es do século. A filosofia con
d u z iu essa q u estão tã o b em o u m a l q u a n to os o u tro s
procedim entos de p en sam en to . M elhor, em to d o caso, do
que todos os que lhe fazem essa objeção. N u n ca pensei
ta m b ém que houvesse o m e n o r sentido em dizer, com o
A dorno parece fazer supor, que se to rn o u im possível,
após A uschw itz, escrever u m poem a. Para m im n ã o h á
p aradoxo a lg u m no fato de Celan, p a ra q u em A u sch w itz
é q u estão p a rtic u la rm e n te in ten sa, u m a espécie de fogo
negro, referen te u n iv ersal e ao m esm o tem p o so m b ria
m en te ín tim o , n ão te r cessado de in v e n ta r - e, su p re
m o desafio, em p en h ar nessa invenção a lín g u a alem ã,
a dos assassinos - poesia cap az precisam en te de d a r a
m edida do que aconteceu aos h o m en s nos an o s 30 e 40.
T estem u n h a-p o eta desses an o s, Celan en cerra o período,
ab erto p o r Trakl, Pessoa e M an d elstam , no q u al a poesia
138
te m com o ta re fa n o m e a r o século. Depois de Celan, h á
ain d a m u ito s p o em as,32 m a s j á n ã o h á poem as do sécu
lo. O século, pen sad o com o m ed itação sobre ele p ró p rio ,
está poeticam en te acabado.
O poem a Anábase de Ceiam faz p a rte da coletânea Die
Niemandsrose, "A ro sa de ninguém ",* publicado em 1963,
q u a re n ta anos após o poem a Le siècle de M andelstam , en
tre todos o p oeta am ad o de Celan. Q u aren ta anos ta m
bém após a Anábase de S ain t-Jo h n Perse.
Eis com o Celan exprim e su a anábase.
Lá.
Q uebra-m ar
de sílabas, cor
139
m ar, longe
no não-navegado.
Depois:
bóias,
bóias-dor alinhadas,
com,
belos com o segundos, saltitantes,
os reflexos da respiração: sons
do sino lum inoso (dum -
d u n -,u n -
unde suspirat
cor),
repetidos, redemidos,
nossos.
Do visível, do audível, a
palavra-tenda
que se liberta:
Juntos.
140
arriscado, e praticam ente n u n ca n a glória e n a p artilh a de
seu recurso. É verdade que, p ara Celan, os anos 40 com
toda a certeza n ão to rn a ra m impossível a poesia, m as sim
obscena a eloqüência. É preciso, pois, p ropor poesia sem
eloqüência, porque a verdade do século é, com o linguagem ,
im praticável, se a pretensão for dizê-la nas figuras e o rn a
m entações cujo uso é ainda am plam ente feito p o r Saint-
Jo h n Perse.
A an áb a se , diz Celan, tr a z co n sig o alg o de " im p ra -
ticáv e l-v e rd a d e ira ". Eis de n o v o fo rte sín te se d is ju n
tiv a . O p o e m a deve estab elecer o v e rd a d e iro do te m
p o n o im p ra tic á v e l d a lín g u a h e rd a d a . Isso in d ica a
q ue im p o sição se e stá a tre la d o , e n q u a n to S a in t-J o h n
Perse fu n d a seu p o e m a n u m a facilid ad e v e rd a d e ira
sim b o liza d a pelo arco rítm ic o , p ela evidência co lo
rid a das im ag en s. A m e sm a p a la v ra , "an áb ase", te m
com o ta re fa d u a s o rien taçõ es q u a se o p o sta s q u a n to
às possib ilid ad es e ao s deveres d a p o esia. A q u e s tã o
in te re s sa n te é en tã o : p o r q u e, e n tre ta n to , essa m e sm a
p a la v ra ? Q ue significa, co m o sig n o p o ético do século,
u m a an áb ase?
A d istân cia é u m p o u co aq u e la que se p a ra o sécu
lo XX n u e cru el d aq u ele que, n o século XX, c o n tin u a
o séc XIX, c o n tin u a u m so n h o im p erial cujo h o r r o r é
lo n g ín q u o e discreto, e n q u a n to s u a fo rça p a rad isíaca
e v ia g eira é o n ip resen te. Tendo p a rtid o p a r a a a n á b a
se n o sentido de S a in t-Jo h n Perse, o século d e p aro u -se
com ta l escurid ão real q u e p reciso u m u d a r a direção
do m o v im en to ao m esm o te m p o q u e a re sso n ân cia das
p a la v ra s p a ra ex p rim i-lo .
141
É, pois, realm en te n a heterogeneidade inicial en tre
o cú m u lo d a retó rica h erd eira (u m p o u co com o V ítor
H ugo) e a poesia m en o s a u to riz a d a que seja (u m p o u
co com o N erval) que é preciso c o n stru irm o s a ev en tu al
univocidade da an áb ase com o significante-chave da tr a
je tó ria do século.
Procederei p o r ap an h a d o s tem áticos. P rim eiro, no
tex to de S a in t-J o h n Perse, p ro p o n h o , em resso n ân cia
com nosso p en sam e n to do século, notações sobre o su
jeito , sobre a au sên cia e sobre a felicidade.
142
pela q u al o "eu" se faz passível de reciprocidade com o
"nós" é condição da av e n tu ra , su a su b stân cia subjetiva.
N a an áb ase de Celan, o que im p o rta fazer advir, n u m
tre m o r incerto, é a p alav ra "ju n to s", que n u n c a é condi
ção, m as sem pre difícil resu ltad o .
D en o m in arem o s, é razo áv el, "ax io m a de f r a te r n i
dade" a convicção de que to d o em p re en d im en to coletivo
su p õ e a identificação de u m "eu" com o "nós", o u ain d a
a in terio riz ação , n a ação, de u m "nós" com o su b stâ n c ia
e x a lta d o ra do "eu". N a Anábase, Perse cria u m a fra te r
nidade v iag eira, pode faze r v aler a id en tid ad e p o ética de
u m "nós ta m b é m (Cor de h o m en s)" e de u m "o re lâ m
p ag o fam élico m e assin a essas p ro v ín cias n o O este". Ele
pode c irc u lar liv rem en te en tre a exclam ação "À m ed id a
do n o sso coração foi ta n ta au sên cia c o n su m ad a " e a
in te rro g a ç ã o "Que m e deu o m u n d o q u e esse m o v im e n
to de ervas?". "F ratern id ad e" d esig n a a eq u iv alên cia no
su jeito do sin g u la r e do p lu ra l. E é certo que o século,
a n te s de n a u fr a g a r n o in d iv id u alism o co m p etitiv o , de
sejou m ais q ue tu d o a fra te rn id a d e .
O que S a in t-J o h n Perse coloca em cena n a ficção
p oética é que o ax io m a de fra te rn id a d e vale ap en as p a ra
u m a real a v e n tu ra , p a ra u m a p eripécia h istó rica que
cria seu sujeito, p recisa m en te com o su jeito fra te rn a l,
com o ad v in d o de p lu ra liz a ç ã o do "eu" e de sin g u la riz a -
ção do "nós". É p o r essa ra z ã o que A nábase c o n ta u m a
cav alg ad a c o n q u ista d o ra em alto s p la tô s de lenda.
D aí p o r d ia n te, p o rém , a fra te rn id a d e se to r n a n o
ção m ais com plexa. Q u al é o p ro to co lo de d elim itação
do "nós"? A cav a lg ad a n essa M o n g ó lia im a g in á ria deve
143
ev id en tem en te a tra v e s sa r a adversidade, in v e n ta r seu
inim igo. O "eu" só se a m p lia em "nós" n a cercan ia da
g u e rra , e é p o r isso q u e a v iag em n ã o pode b a star. O
elogio do "viajor n o v e n to a m arelo " só g a n h a sentido
n a fó rm u la q u e e n ce rra n o sso tex to : " llm g ra n d e p r in
cípio de violência n o s c o m a n d a v a os co stu m es". A v io
lência é o h o riz o n te exigido p ela errân cia. P ara q u e esta
c o m p o n h a o eq u iv alen te de "g ran d es h istó ria s selêuci-
das", é preciso ch eg ar ao "silv ar das fu n d a s". M elhor
ain d a: o p rin cíp io de co n h ecim en to e de litígio ("a te r r a
en tre g u e às explicações") só te m v a lo r a c o m p a n h a d o
do elogio d a h o stilid ad e ("os ódios p o r vezes c a n ta v a m
com o abelheiros"). A ssim com o os "cam in h o s do m u n
do" e o "país de p ra d a ria s sem m e m ó ria", indícios da
m a is to ta l liberdade, só se d ão co m u m a espécie de des
p o tism o g ran d io so ("au to rid a d e sobre to d o s os signos
d a te rra "). Q ue a p ró p ria atro c id ad e seja ap en a s u m dos
recu rso s da v iagem , u m episódio o b rig a tó rio d a a n á b a -
se, n u m e ro s a s im ag en s do p o em a, em o u tro s trech o s,
in siste m nisso; p o r exem plo: "E a ro u p a la v a d a p arte!
C om o u m p a d re estilh açad o ".
F ratern id ad e com o eq u iv alên cia do "eu" e do "nós",
violência in e re n te à viag em , e rrâ n c ia passív el de reci
procidade co m o m a n d a m e n to : ta is são os m o tiv o s do
século com que a an áb a se tra b a lh a .
144
está explicitado: "À m edida do no sso coração foi ta n ta
ausência consum ada!". O destino da an áb ase é ap en as
u m a espécie de ficção negativ a. V isa-se a u m lu g a r onde
os sinais do espaço e os do tem p o são abolidos; p o r u m
lado u m "grande país de p ra d a ria s sem m em ó ria", p o r
o u tro u m an o "sem vínculos e sem aniversários".
Esse niilism o faz com que se c o m u n iq u em a poesia
solene de Perse e a consciência que o século te m de si
m esm o com o p u ro m o v im en to violento, cujo desfecho é
incerto. O sujeito se rep resen ta com o errân cia, e rep re
se n ta essa errân cia com o valendo p o r ela p ró p ria. Q ue a
e rrân cia nôm ade, com o diz Perse, seja princípio do co ra
ção do h o m e m em su a p ró p ria au sên cia é b o a m e tá fo ra
geográfica e viag eira de época que se g loria de ser sem
segurança.
É preciso com preender p o r que, no coração do século,
a repetição das decepções n ão co rró i n a d a do poder de
d em an d a do m o v im en to . E tem os dificuldade de com pre-
endê-lo, p o rq u e hoje to d o o m u n d o c o n tra ta seguro caro
c o n tra q u alq u er decepção, m esm o a de alg u m as g o tas de
c h u v a no tem p o das férias de verão. É que os m ilitan tes
do século, sejam eles da política o u da arte, o u da ciência,
o u de q u alq u er paixão, p en sam que o h o m e m se realiza
n ã o com o plenitude, o u resu ltad o , m as com o au sência de
si m esm o, n a retirad a do que ele é, e que essa su b tração
está n o princípio de to d a a g ran d ez a av en tu reira. Se Perse
é do século, é p o rq u e ele p o etiza o laço en tre a obrigação
da g ran d ez a e a vacuidade da errância.
O século XX n ão é p ro g ra m á tic o com o o foi o século
XIX. N ão é século d a pro m essa. A qui se aceita p rev ia-
145
m en te que u m a p ro m essa n ão seja cu m p rid a, que u m
p ro g ra m a sim plesm ente n ã o seja executado, p o rq u e só
o m o v im en to é fo n te de g ran d eza. S a in t-Jo h n Perse en
c o n tra as nobres fig u ras dessa en tre g a do coração do
h o m e m ao v a lo r v ito rio so da negação do que é, in s titu i
o v alo r poético da au sên cia de si, in d ep en d en tem en te de
q u a lq u e r destino. T rata-se de co n q u ista r o d eslaçam en-
to, o fim dos laços, a au sên cia de si do desligado.
É n essa direção que o século foi m ais p ro fu n d a m e n
te m a rx is ta do que im ag in av a , de u m M a rx a p a re n ta d o
a N ietzsche, o M a rx q u e a n u n c ia n o M anifesto o fim
de to d o s os velhos co stu m es, isto é, o fim dos velhos
laços de fidelidade e de estabilidade. A tem ív el fo rça do
C apital é q ue este dissolve os c o n tra to s m a is sag rad o s,
as alian ças m ais im em o ráv eis, n a s "ág u as g elad as do
cálculo egoísta". O C apital p ro c la m a o fim de u m a ci
vilização fu n d a d a n o laço. É v erd ad e q u e o século XX
p ro c u ra , p a ra além da fo rça so m en te n eg a tiv a do C api
tal, u m a o rd em sem laço, u m p o d er coletivo desen laça
do, p a ra re s titu ir a h u m a n id a d e a seu v erd ad e iro p o d er
criador. D aí as p a la v ra s m e stra s, que são as de Perse:
violência, au sên cia, errân cia.
Com cu ltas expressões de privação, o p o eta c a p tu ra
esse v o to niilista, m as criador, de o rd em p u ra m e n te v ia-
geira, de frate rn id ad e sem destino, de m o v im en to p u ro .
A ssim os "anim ais sem alianças", o u as "prevaricações
do céu c o n tra a te rra ". Os ú n ico s co m p an h eiro s do h o
m e m da g ran d ez a são "as alta s tro m b a s em viagem ".
Todo esse desejo é recap itu lad o n o ad m iráv el o x ím o ro
das "leis erran tes".
146
3. E enfim , sin g u larm en te ob scu ra hoje, v em a asser
ção da superioridade da g ran d eza n ô m ad e sob a felicida
de, co m portando até u m a dúvida sobre o pró p rio valo r da
felicidade. A expressão "as palavras castrad as [hongres] da
felicidade" (lem brem os que hongreur é especialista n a cas
tração de cavalos) parece indicar que, p a ra o h o m em da
anábase, e até n a língua, a obsessão pela felicidade é m u
tilação. E é p o r isso, co n tra as p alav ras da felicidade, que
o poeta pede que levantem os o chicote. Para nós, hedonis
tas cansados deste fim de século do q u al to d a a g ran d eza
quer se ausentar, é u m pro p ó sito provocador.
O niilism o - ativo, violento, até m esm o te rro ris ta
- do século, o q u al se faz o u v ir até n a elevada poesia de
nosso em baixador, está m ais p ró x im o de K ant do que
a d u p la c o n tem p o rân ea da satisfação e da caridade. De
fato, ele a firm a que o desejo de felicidade é o que im
pede a grandeza. E que, em su m a, p a ra em preender a
a v e n tu ra n ô m ade tecida "de a u ro ra s e fogos", p a ra cla
re a r u m pouco "as trev as do espírito", é preciso saber
co n ten tar-se com u m "m o v im en to de ervas" e m e d itar
sobre a ausência. Talvez concordem os, à noite, em cair
n u m a em b riag u ez ilegítim a que o "g rão do cóculo in d ia
no" pro p o rcio n a.
147
em Companhia, com eça po r: "U m a voz, n o escuro". Per-
se fazia se eq uivalerem o "eu" e o "nós", m a s n o poem a
de Celan, com o n a p ro sa de Beckett, j á n ão h á n em "eu"
n em "nós". N as breves linhas, q uase silenciosas, do poe
m a, b em d ista n te do am p lo versículo de Perse, essa voz
que é o tra ç a d o de u m cam in h o v ai m u rm u ra r-n o s o
que é a anábase, a "subida e a v o lta", tra d u ç ã o in tei
ra m e n te ex ata do verbo a v a P a v s iv . Ela o faz logo no
início do p o em a m ed ian te três frágeis conexões e quase
im prováveis: "escrita estreita", "im p raticável-verdadei
ra", "no fu tu r o claro -co ração ".
O que é assim m u r m u r a d o é a possibilidade de u m
cam in h o , o cam in h o de u m a claread a sensível ("claro -
coração"). P ara S a in t-Jo h n Perse, o cam in h o é o ab e rto
do espaço e, com o o diz n o início da Anábase, "a n o s
sos cavalos en tre g u e a te r r a sem am ên d o as". N ão h á
problema do cam in h o . Ao c o n trá rio , C elan se p e rg u n
ta : h á cam in h o ? E resp o n d e que sem d ú v id a sim , h á
cam in h o , "estreito e n tre m u ro s " , m a s que, p o r m ais
v erd ad eiro qu e seja, e n a m ed id a em que é v erd ad eiro ,
é im p raticáv el.
E stam os n a o u tra v erte n te do século. O niilism o épi
co, n a su a fig u ra n azista, crio u ap en as u m ab ated o u ro .
D aí p o r d ian te é im possível e sta r naturalm ente n o ele
m e n to épico, com o se n ã o fosse n ad a. O ra, se n ã o h á in
te rp re taçã o épica im ed iata disso, que é a anábase? Com o
p ra tic a r a "subida e a volta"?
Celan, nesse aspecto, faz e n tra r em jo g o a d im en
são m a rítim a , o "O m ar! O m ar!" dos gregos. A an áb ase
com eça com apelo m a rítim o . Em certos p o rto s existem
148
balizas que em item sons q u an d o o m a r desce. O som
dessas balizas, os "sons do sino lu m in o so ", os sons tris
tes das "bóias-d o r" com põem u m m o m en to p o rtu á rio
de apelo, de sinal. É, p a ra a an áb ase, o m o m en to do p e
rigo e da beleza.
A sig n ificação dessa im a g e m é q u e a a n á b a se re
q u e r o o u tro , a v o z do o u tro . A ssu m in d o o apelo, seu
e n ig m a, C elan ro m p e co m o te m a d a e rrâ n c ia v a z ia e
a u to -s u fic ie n te . É p reciso q u e alg o seja e n c o n tra d o . As
im a g e n s m a rítim a s fu n c io n a m co m o in d icad o r d a a l-
te rid ad e. D igam o s q u e o te m a d a a lte rid a d e s u b s titu i
o d a fra te rn id a d e . A í o n d e v a lia a v io lên cia f r a te r n a ,
su rg e a diferen ça m ín im a do so p ro do o u tro , o ap elo
d a bóia, o " d u m - d u n - u n -" , q u e evoca u m m o te te de
M o z a rt ("unde su sp ira t cor") co m o p a r a p ro v a r q u e
a p o b re z a ín fim a do apelo é p o r ta d o r a da m a is a lta
significação.
Tudo é co n stru íd o p a ra chegar, nos e m ed ian te os
sons "repetidos, redim idos" de u m apelo, a esse "nossos"
que já n ão é o "nós" da epopéia. Com o fazer n o ssa a
alteridade, eis a q u estão de Celan. U m a diferença se faz
ouvir, e o p roblem a é fazê-la n o ssa. É n a m edida em que
se chega a isso que existe a an áb ase. N ão h á in terio riz a-
ção n em ap ro p riação . N ão h á su b stan cialização do "nós"
com o "eu". Há apelo p u ro , diferença ínfim a, que é preci
so fazê-la n o ssa sim plesm ente p o rq u e nos en co n tram o s
com ela.
A d ificu ld ad e - p re s e n te , n a v e rd a d e , em to d a a
a n á b a se - é q u e n a d a p re e x iste a essa te n ta tiv a , q u e
n a d a a p re p a ra . N ão e s ta m o s n e m p e rto de n ó s m e s
149
m o s n e m em c a m in h o j á e x p lo ra d o . E sta m o s - a d
m irá v e l n o m in a ç ã o d a a n á b a se , e de to d o o sécu lo
- "lo n g e n o n ã o -n a v e g a d o " . E é ju s ta m e n te aí, n o
p o n to do d esco n h ec id o e do e x tra v ia d o , q u e é p reciso
e m p re e n d e r a " su b id a e a v o lta " , a í q u e e n tr a em jo g o
o f a to de p o d e rm o s , u m d ia, v o lta r - n o s p a r a "o f u t u
ro c la ro -c o ra ç ã o " . É a í q u e a a n á b a s e se in v e n ta .
O q u e é e n tã o c ria d o p elo seu m o v im e n to n ã o é
u m n ó s -s u je ito , é a " p a la v r a - te n d a / q u e se lib era:
/ J u n to s " . P a la v ra -te n d a é p a la v r a q u e d á ab rig o .
Pode-se fic a r n o a b rig o de e s ta r ju n to s , m a s n ã o h á
fu s ã o f r a te r n a l: o "nós" de C elan n ã o é u m "eu".
A a n á b a se é o f u tu r o ju n to s , m e d ia n te o to r n a r - s e
n o sso u m apelo ín fim o , u m "nós" q u e n ã o é u m "eu".
O sécu lo é a s s im a te s te m u n h a de p r o f u n d a m u
ta ç ã o d a q u e s tã o do "n ó s". H av ia o "nós" d a f r a te r
n id a d e, q u e S a rtre , em C rítica da ra zã o d ia lética (n o
te m q u e foi p u b lic a d a n o s a n o s em q u e C elan escre
ve A nábase), q u a lific a de f r a te r n id a d e - te r r o r . É u m
"nós" q u e te m o 'e u ' p o r id eal, e n ã o h á o u tr a a lte -
rid a d e q u e a do a d v e rs á rio . O m u n d o e s tá e n tre g u e
a esse "nós" e r r a n te e v ito rio s o . Essa f ig u r a é a t u
a n te , re to ric a m e n te s u n tu o s a , n o a v e n tu r e ir o n ô m a
de de S a in t- J o h n Perse. Esse " n ó s-e u " v a le p o r si só,
n ã o te m n ecessid ad e de ser d e s tin a d o . Em C elan, o
'n ó s ' n ã o e s tá sob o id eal do "eu ", p o rq u e a d ifere n ça,
co m o ap elo ín fim o , e s tá in c lu íd a aí. O "nós" e s tá a le
a to ria m e n te su sp e n so n u m a a n á b a se q u e re m o n ta ,
sem q u a lq u e r v ia p re e x iste n te , a esse " ju n to s " q u e
c o m p o rta ta m b é m a a lte rid a d e .
150
O q ue o século n o s lega a p a r tir do fim dos an o s 70
é a q u estão : q u e é u m "nós" que n ã o está sob o ideal
de u m "eu", u m "nós" que n ã o p rete n d e ser sujeito? O
p ro b lem a é n ã o co n clu ir com o fim de to d o o coletivo
vivo, com o d esap arec im e n to p u ro e sim ples do "nós".
R ecusam os dizer, co m os a to re s da R estauração: só h á
ind iv íd u o s co m p etin d o pela felicidade, e to d a a fra te r
nidade a tiv a é su sp eita.
Celan, p o r s u a vez, m a n té m a noção de ju n to s .
"Ju n to s", n o tem o s, era a p rin cip al e e s tra n h a p a la v ra
de o rd em das m anifestações de dezem bro de 1995. N em
h av ia o u tra , ao m enos que fosse invenção, que tivesse
poder de n o m e a r a an áb ase dos m a n ifestan tes. E n ã o era
p a la v ra vã, q u an d o se v iu em p eq u en as cidades tr a n
qüilas, com o Roanne, p o r exem plo, m ais da m etad e da
po p u lação to ta l sair em m anifestação , v ária s vezes, p a ra
sim plesm ente dizer: "Todos ju n to s , to d o s ju n to s , sim ". É
que tu d o o que hoje ain d a n ã o está co rro m p id o se p er
g u n ta donde pode su rg ir u m "nós" que n ã o estaria sob
o ideal do "eu" fu sio n ai e q uase m ilita r que d o m in o u
a a v e n tu ra do século, u m "nós" que veicula liv rem en
te su a p ró p ria disparidade im an en te sem , e n tre ta n to , se
dissolver. Q ue q u er dizer "nós" em tem p o de p az e n ão
em tem p o de g u erra? Com o p a ssa r do "nós" fra te rn a l
da epopéia ao 'n ó s' d isp aratad o do "ju n to s", sem n u n c a
ceder q u a n to à exigência de que h a ja u m "nós"? Eu m e
encontro, eu tam b ém , nessa q u estão .
151
12 de janeiro de 2000
9. Sete variações
153
q u e e fe tiv a m e n te id en tifica a é p o ca q u e te r m in a , e p o u c o
im p o r ta n d o s u a s v a ria n te s , m u ita s vezes v io le n ta m e n te
a d v e rsa s, s u s te n to u q u e to d a su b je tiv a ç ã o a u tê n tic a é
coletiva, q u e to d a in te le c tu a lid a d e v iv a é c o n s tr u ç ã o de
u m "nós". É q u e, p a r a essa c o rre n te , u m su je ito é n eces
s a ria m e n te s u je ito m e n s u rá v e l p o r u m a h isto ric id a d e ,
o u q u e fa z ecoar, em s u a c o m p o siç ão , o p o d e r de u m
a c o n te c im e n to . É u m a d as f o rm a s d a q u ilo q u e c h a m e i a
p a ix ã o p elo real: a c e rte z a de q u e, p ro v in d o de u m a c o n
te c im e n to , a v o n ta d e s u b je tiv a p o d e re a liz a r n o m u n d o
p o ssib ilid ad es in a u d ita s ; q u e m u ito lo n g e de se r ficção
im p o te n te , o q u e re r to c a in tim a m e n te n o real.
Q u e re m , a o c o n trá rio , im p o r-n o s ho je a con v icção
de q u e o q u erer, d o m in a d o p o r u m p rin c íp io de re a lid a
de a c a c h a p a n te , c u ja q u in ta -e s s ê n c ia é a e c o n o m ia, deve
m o s tr a r - s e e x tr a o rd in a ria m e n te c irc u n sp e c to , m e s m o
c o rre n d o o risc o de e x p o r o m u n d o a g ra v e s d e sa stre s.
Existe u m a " n a tu r e z a d a s coisas" q u e n ã o se deve v io
le n ta r. N o fu n d o , a filo so fia e s p o n tâ n e a d a p r o p a g a n
d a " m o d e rn iz a d o ra " é a ris to té lic a : q u e a n a tu r e z a das
coisas m a n ife s te seu s p ró p rio s fin s. N ão h á o q u e fazer,
m a s sim d e ix a r fazer. Pode-se im a g in a r a d ife re n ç a q u e
h á d a c o n sciê n cia de to d o s a q u e le s q u e c a n ta v a m , sob as
b a n d e ira s v e rm e lh a s , "o m u n d o v a i m u d a r de base".
Se se p e n s a q u e o m u n d o p o d e e deve m u d a r c o m p le
ta m e n te , q u e n ã o h á n a tu r e z a d a s coisas p a r a re s p e ita r
n e m su je ito s p ré -fo rm a d o s p a r a su ste r, e stá -se a d m itin
do q u e o in d iv íd u o p o s s a ser sacrificável. O q u e significa:
ele n ã o é d o ta d o p o r si m e s m o de n e n h u m a n a tu r e z a
q u e m e re ç a q u e se tra b a lh e p a r a s u a p e rm a n ê n c ia .
154
É p a rtin d o desse m o tiv o d a n ã o - n a tu r a lid a d e do
s u je ito h u m a n o e, em re s u m o , d a in e x istê n c ia do " h o
m e m " , p o r ta n to d a v a c u id a d e dos "d ireito s h u m a n o s " ,
q u e eu g o s ta r ia h o je de p r o p o r a lg u m a s v a ria çõ e s.
155
com relação à su a pró p ria determ inação.34 O p o n to de des-
centram ento, Lacan o nom eia o O utro, de m odo que todo
sujeito é com o a A lteração de si. Ou, com o o havia anteci
pado Rim baud, "Eu é u m o u tro ". Aí tam b ém é impossível
pensar o indivíduo com o n a tu re z a objetiva.
À m edida que o século in o v a em m a té ria de teo ria
do sujeito, ele p en sa este ú ltim o com o d istân cia de si
m esm o, com o tran scen d ên cia interior. Em m in h a p ró
p ria d o u trin a , o sujeito está n a dependência de u m aco n
tecim ento e só se co n stitu i com o capacidade de verdade,
de m odo que sendo su a "m atéria" pro ced im en to de v er
dade, o u proced im en to genérico, o sujeito n ão é de m a
neira a lg u m a n atu ra liz áv el. No léxico de S artre, pode-se
dizer que ele n ã o te m essência (é o sentido da fam o sa
expressão "A existência precede a essência"). No léxico de
Lacan, pode-se dizer que u m sujeito só se identifica com
o p o n to de falta, com o vazio, o u falta-a-ser.
Se o sujeito se constitui com o falta-a-ser, a questão de
seu real perm anece aberta, já que esse real n ão é nem es
sência nem n atu reza. É então possível su sten tar que u m
sujeito n ão é, m as sim advém , sob certas condições, aí,
diria Lacan, onde "isso falta". O im perativo de Nietzsche
"Torna-te quem tu és" encontra aq u i eco à su a medida. Se é
preciso to rn ar-se sujeito é p orque n ão se é. O "quem tu és",
com o sujeito, n ão é nad a senão a decisão de vir a sê-lo.
156
Com o se vê, delineia-se en tão o laço en tre a tese de
que u m sujeito é da ord em n ã o do que é, m as do que
acontece, da o rd em do acontecim ento, e a idéia de que
se pode sacrificar o individuo a u rn a cau sa h istó rica
que o su p lan ta. Esse laço consiste em que de q u alq u er
m a n e ira - u m a vez que o ser do sujeito é a fa lta -a -se r
- é som ente ao dissipar-se n u m p ro jeto que o su p la n ta
que u m individuo pode esp erar a trib u ir a si alg u m real
subjetivo. C onseqüentem ente o "nós", co n stru íd o nesse
projeto, é o único v erd ad eiram en te real, su b jetiv am en te
real p a ra o individuo que o su stém . O individuo, a b em
dizer, n ão é n ad a. O que é sujeito é o h o m e m novo, que
vem ao p o n to da falta-a-si. O in divíduo é, p o rta n to , em
su a p ró p ria essência, o n a d a que deve ser dissipado n u m
nós-sujeito.
O reverso a firm ativ o dessa evidência sacrificial do
individuo é que o "nós" - que u m a v erdade constrói, e
cujo su p o rte, assim com o o que está em jo g o , é o h o
m em novo - é, p o r su a vez, im o rtal. Ele é im o rta l pelo
fato de existir n ão segundo n a tu re z a perecível, m a s se
g u n d o ocorrência etern a, etern a com o o lance de dados
de M allarm é.
157
q u e p e rm a n e c e m os dois o u tr o s v o c á b u lo s (a ig u a ld a d e é
u tó p ic a e a n tin a tu r a l, a fra te rn id a d e lev a a o d e sp o tism o
do "nós") q u e se t o r n a p u r a m e n te ju ríd ic a , o u re g u la
d o ra : "lib erd ad e" de to d o s fa z e re m as m e s m a s coisas,
d eb aix o d a s m e s m a s re g ra s .
A lib e rd ad e a s sim c o n ceb id a foi c o n s ta n te m e n te v i
lip e n d ia d a d u r a n te o p e q u e n o (no se n tid o de breve) sé
cu lo XX, o q u e v a i de 1 9 1 7 a 1 9 8 0 . C h a m a v a m -n a de
"lib erd ad e fo rm a l" , e o p u n h a m a ela a "lib e rd a d e real"
(n o te m a p e rtin ê n c ia do ad jetiv o ). "L iberdade fo rm a l"
q u e r dizer: lib e rd ad e q u e n ã o e s tá a rtic u la d a c o m p r o
je to g lo b al ig u a litá rio n e m é p r a tic a d a s u b je tiv a m e n te
c o m o fra te rn id a d e .
D u r a n te o século, a ig u a ld a d e é o o b jetiv o e s tra té g i
co. P o litic a m en te c o m o n o m e de c o m u n is m o , c ien tifi
c a m e n te c o m o n o m e de a x io m á tic a , a rtis tic a m e n te sob
o im p e ra tiv o d a fu s ã o d a a r te e d a v id a, s e x u a lm e n te
c o m o " a m o r lo u co ". A lib e rd ad e , c o m o p o d e r ilim ita d o
do n e g a tiv o , é p re s s u p o s ta , m a s n ã o te m a tiz a d a . Q u a n
to à fra te rn id a d e , ela é s im p le s m e n te o p ró p rio re a l, a
ú n ic a a te s ta ç ã o su b je tiv a d a n o v id a d e d a s ex p eriên cias,
j á q u e a ig u a ld a d e p e rm a n e c e p r a g m á tic a , e a lib e rd ad e
in s tr u m e n ta l.
In sisto n isso : a f ra te r n id a d e é a m a n ife s ta ç ã o re a l
do n o v o m u n d o e c o n s e q ü e n te m e n te do h o m e m n o v o .
O q u e se e x p e rim e n ta n o P a rtid o , n a ação , 110 g r u p o a r
tístic o su b v e rsiv o , n o c a sa l ig u a litá rio , é a v io lê n c ia rea l
d a fra te rn id a d e . E q u a l é se u c o n te ú d o s e n ã o a a c eita ç ã o
d a p re v a lê n c ia do "nós" in fin ito so b re a fin itu d e do in d i
v íd u o ? É o q u e d e n o m in a a p a la v r a " c a m a ra d a " , q u a se
158
caída em desuso. É m e u c a m arad a aquele que, com o eu,
é sujeito ap en as p o r p erten cer a u m processo de verdade
que o a u to riz a a dizer "nós".
É p o r isso que m a n te n h o que de fo rm a n e n h u m a ,
em tu d o isso, tra ta -s e de u to p ia o u ilusão. O dispositivo
de em ergência do sujeito está sim plesm ente com pleto.
Nos te rm o s de Lacan, a igualdade é o im ag in ário (já que
n ã o poderia adv ir com o fig u ra objetiva, em b o ra seja a
ra z ã o ú ltim a de tu d o ), a liberdade é o sim bólico (já que
é o in s tru m e n to p ressu p o sto , o n eg ativ o fecundo), e a
frate rn id ad e é o real (ou seja, aq u ilo que às vezes é en
co n trad o , aq u i e agora).
159
N o te m o s de p a s sa g e m - p a r a n ã o c o n se n tir co m a
g ro sse ira identificação, sob o n o m e do " to ta lita ris m o " , do
n a z is m o e do p re te n so c o m u n is m o (de fa to , do E stado
sta lin ista ) - q u e essas d u a s disposições p o líticas p e rm a n e
cem in te ira m e n te o p o sta s, a té n a gênese das e n tid ad es re
ferenciais. C om efeito, é p re c isa m e n te contra os processos
políticos de e m a n c ip a ç ã o ligados à p a la v ra "p ro le tá rio ",
processos q u e lhes a p a re c e m c o m j u s t a r a z ã o co m o desli
gados, in assin aláv eis, c o sm o p o lita s, a n ti-e s ta ta is , q u e os
fascism o s p re c o n iz a m , de m o d o to ta lm e n te explícito, a
s u b m issã o a to ta lid a d e s referenciais n a c io n a is e /o u r a
ciais, e a seu s su p o sto s re p re s e n ta n te s . A s s u b sta n c ia li-
zações do E stado sta lin ista , p o r s u a vez, são reificações
de processos políticos reais, reificações cu ja p ro v en iê n cia
é a im p o ssib ilid ad e n a q u a l o le n in ism o se e n c o n tro u em
in te g ra r a se u d ispositivo m e n ta l o d o m ín io so b re o E sta
do. A o p a sso q u e o E stado foi se m p re o a lfa e o ô m e g a da
v isão fa sc ista d a p o lítica (E stado escorado n a su p o siç ã o de
existência de g ra n d e s coletivos fechados), n a h is tó ria do
len in ism o e, p o s te rio rm e n te , n a do m a o ísm o , foi a p e n a s o
o b stá c u lo q u e se opõe, p e la b r u ta l fin itu d e d as operações
de poder, à m o b ilidade in fin ita d a política.
Pode-se e x p rim ir m ais filo so ficam en te a ssim a o p o
sição a b s o lu ta dessas po líticas n o século. Os fascism os
te n ta m o p o r ao in fin ito d a e m a n c ip a ç ã o a s a n g u in o le n ta
p ila s tra de u m a fin itu d e predicável, as p ro p rie d ad e s e n u
m eráv eis de u m a s u p o s ta s u b s tâ n c ia (o a ria n o , o ju d e u , o
a le m ão ...). Os "co m u n ism o s" e x p e rim e n ta m a a n tin o m ia
(a p o n ta d a p o r M a rx co m se u c o stu m e iro gênio) e n tre a
fin itu d e do E stado e o in fin ito im a n e n te a to d a verd ad e,
160
in clusive e so b re tu d o à v e rd a d e política. As en tid ad es re
ferenciais m ític a s a c o m p a n h a m a v itó ria dos fascism o s e
a s sin a la m fa ta lm e n te a d e rro ta dos "co m u n ism o s".
N o e n ta n to , é v e rd a d e q ue, q u e r se ja m elas id e a liz a
d a s e delas se fa ç a desde o início o s u p o rte su b je tiv o de
u m a p o lític a de c o n q u is ta , q u e r se ja m elas a p e n a s os n o
m es p o m p o so s de u m a e s ta g n a ç ã o p o lític a , h á re a lm e n
te p ro d u ç ã o de e n tid a d e s m a c ro sc ó p ic a s im a g in á ria s , de
n o m e s h ip erb ó lic o s. Essas g ra n d e s e n tid a d e s n ã o sã o o
"n ó s-su je ito " do q u a l fa lá v a m o s h á p o u c o . N ão se o ri
g in a m de o c o rrê n c ia o u de a c o n te c im e n to , sã o coletivos
in e rte s. São c o n sid e ra d a s p elo s q u e se e n tre g a m a isso
c o m o n e c essá ria s p a r a q u a lq u e r su b je tiv a ç ã o , c o m o m a
té r ia o b jetiv a c u ja reflexão, o u cu jo d e s d o b ra r p rá tic o , é
o n ó s -s u je ito . De b o m g ra d o e u p ro p o ria d e n o m in á -la s
co m o o corpo passivo d a su b je tiv a ç ã o .
Por que, m e sm o n a p ro v a do c o n tro le do E stado, n ã o
se c o n te n ta r c o m o "nós" real, c o m o "nós" q u e e n v o lv a
o "eu" n o devir efetivo de u m a in v en ç ã o de p e n sa m e n to ?
Por q u e a d e te rm in a ç ã o d a sin g u la rid a d e a tu a n te p reci
s o u tã o fre q ü e n te m e n te ser re p re s e n ta d a co m o consciên
cia o u experiência de e n tid ad es objetivas, de h ip ó sta ses
m íticas? Por q u e d o ta r a a ç ão de c o rp o passivo? Em to d o
caso, te re m o s a ocasião de v e r q u e essa tem ív el o b jetiv a-
ção in te rv é m n o p ro b le m a d a nom inação dos processos,
n a te o ria dos n o m e s .35 Pode-se p e r g u n ta r se as g ra n d e s
161
totalidades m acroscópicas n ão são o evocadas, no caso de
su a pertença "com unista", com o nom es (política p ro letá
ria, arte bu rg u esa, cam po socialista, cam po im perialista,
Estado dos operários e dos cam poneses...) cujo v alo r resi
de to talm en te em u n iv ersalizar sem m aio r dificuldade u m
processo no m o m en to exato de su a esterilidade o u de su a
fixação estatal. O no m e é o que faz valer a singularidade
p a ra além dela pró p ria. O m anejo dos nom es pelo século
está ta m b ém preso ao Dois, à su a síntese n ão dialética.
De u m lado, é im p o rtan te a m a r apenas singularidades
a tu a n te s (é a fraternidade); de o u tro lado, é preciso his-
to riz a r essas singularidades, m esm o nos m o m en to s em
que a invenção n ão ocorra, nos m o m ento s em que, com o
dizia S ain t-Ju st, "a revolução está congelada"; é preciso
to rn a r evidente su a universalidade, m ediante nom es que
co m p o rtem objetividades identificáveis.
O problem a é finalm ente o seguinte: p o r que se tem ,
no século, necessidade de grandes coletivos (objetivos)
p a ra d ar nom es? Por que os processos políticos de em an
cipação to m a m sem pre o n o m e de supostas entidades so
ciais objetivas, com o o proletariado, o povo o u a nação?
Penso que se pode d em o n strar que se tr a ta do trib u to
pago à ciência, e p o r conseqüência daquilo que subsiste - em
pleno século XX v o lu n tarista - do cientificismo do século
XIX. A objetividade é, com efeito, n o rm a científica crucial.
A legitimidade dos nom es adequados ao nós-sujeito se p ro
cu ro u entre ciências m ais o u m enos seguras, com o o "m a
terialism o histórico". M esm o o nazism o é m itologia racial
que se apresenta com o científica. Pensou poder apoiar-se,
em suas aspirações de subjugação e de exterm ínio, no ja r
162
gão antropológico racialista que v em ju n to , desde o século
XVIII, com a expansão im perial da Europa. É bem evidente
que se tra ta de operosas e crim inosas ficções. A "ciência"
das raças é p u ram en te im aginária. Pode-se reconhecer que
existiu tam b ém ciência m arx ista im aginária, m esm o que
n ão fosse ela quem determ inava as subjetividades revolu
cionárias do século. Esse m arxism o sem correlato real p re
tendia ser sim plesm ente - e é o que fazia su a força - u m a
fraternidade cientificam ente legítim a.
V ariação IV tem p o ra l
36 A escola dos Annales, cujo espírito inicial vem de Marc Bloch, promoveu
uma teoria do “tempo longo”, cujo manifesto é o grande livro de Femand Braudel
La Méditerranée et le monde méditerranéen à l ’époque de Philippe II (Paris, Ar
mand Colin, 1949). O fato de o empreendimento de Furet poder ter sido conside
rado a continuação dessa escola é no mínimo tão surpreendente quanto considerar
a obra de Habermas, toda inteira sob o signo do juridismo, como a continuidade
da escola de Frankfurt e, portanto, da dialética negativa de Adorno.
163
sível. E ntram os em período atem p o ral, in stan tân eo , o que
m o stra a que p o nto, em vez de ser experiência individu
al p artilh ad a, o tem p o é construção, pode-se até m esm o
afirm ar, constru ção política. P rocurem os p o r u m in stan te
repensar, p o r exemplo, os "planos qüinqüenais" que es
tru tu ra v a m o desenvolvim ento in d u strial da U.R.S.S. sta-
linista. Se o plano pode ser exaltado até n as obras de arte,
com o o film e A linha geral de Eisenstein, é porque, p a ra
além de su a significação econôm ica (de resto duvidosa,
com o se sabe), a planificação indica a v o n tad e de subm e
ter o devir à vontade política dos hom ens. Os cinco anos
do plano q ü in q ü en al são algo bem diferente de u m n ú
m ero, é m a téria tem p o ral onde se inscreve, dia após dia,
o querer objetivo. É n a verdade u m a alegoria, n o e pelo
tem po, do poderio do "nós". O século todo, de diversas
m aneiras, quis ser século co n stru tiv ista, o que im plica em
p ô r em p rática u m a co n stru ção v o lu n tá ria do tem po.
H ouve o tem p o im em o rial do cam p esin ato , que era
tem p o im óvel o u cíclico, tem p o do lab o r e do sacrifício,
com pensado ap en as pelo ritm o das festas. Hoje estam o s
subm etidos ao p a r do frenesi e do rep o u so to ta l. De u m
lado, a p ro p a g a n d a diz que tu d o m u d a a cada m in u to ,
que n ão tem o s tem p o , q u e é preciso m o d e rn iz a r a to d o
vapor, que se vai perd er o tre m (o tre m da in te rn e t e da
n o v a econom ia, o tre m do celu lar-p ara-to d o s, o tre m
dos acionistas in u m eráv eis, o tre m das stock-options, o
tre m dos fu n d o s de ap o sen tad o ria, sem fala r de o u tro s).
Por o u tro lado, essa b alb ú rd ia m a l d issim u la certa im o
bilidade passiva, indiferença, p erp etu ação do que existe.
O tem p o é en tão u m tem p o sobre o q u al a v o n tad e, in
dividual o u coletiva, n ão te m n e n h u m a influência. É u m
164
m isto inacessível de agitação e esterilidade, é o p arad o x o
de u m a febrilidade estag n an te.
A idéia fo rte do século - m esm o que te n h a sido m a
nejada de fo rm a pesad a e dogm ática, com o freq ü en te
m en te no m o m en to de u m a invenção - deve c o n tin u a r a
in sp ira r-n o s, ao m enos c o n tra a tem p o ralid ad e "m oder
n izan te" que a n u la q u a lq u e r subjetivação. A idéia é: se
se q u er chegar ao real do tem po, é preciso co n stru í-lo ,
e essa c o n stru çã o só depende em definitivo do cuidado
que se te m de to rn a r-s e o ag en te dos p rocedim entos de
verdade. L ouvarem os o século p o r te r traz id o em si a
proposição épica de c o n stru çã o in teg ral do tem po.
V ariação V, fo rm a l
165
O século foi o das m anifestações, e essas m an ifesta
ções fo ram perpassadas de m a n eira d u ra d o u ra pela figu
ra insurrecional da política. A insurreição é a festa ú lti
m a do corpo de que se d o to u o "nós", a ação ú ltim a da
fraternidade. Sim, a concepção que o século fo rm o u da
festa, atrelada que estava ao p arad ig m a da m anifestação
e da insurreição, entendia que a festa devia de q u alq u er
m an eira in terro m p er b ru ta lm e n te o regim e ord in ário das
coisas. Hoje a festa é exem plarm ente o que, de consen
so e sem perigo p a ra nin g u ém , afasta-n o s de to d a p re
ocupação política. Vemos especialistas g o vernam entais,
sem blante preocupado, rep etir que o povo pede "sinais
festivos fortes". Vemos jo rn a is sérios co m p arar as festas
da v itó ria da França n a Copa do M undo de futebol às m a
nifestações da libertação de Paris em 1945. Por que n ão
à Tom ada da B astilha o u à Longa M archa? D igam os que
hoje a festa designa u m a espécie de contram anifestação.
O filósofo deve aq u i lem b rar que "m anifestação" é
palav ra hegeliana, p alav ra da dialética, que designa a "sa
ída de si" de u m a realidade qualquer. Tese fu n d am e n tal de
Hegel é que é da essência do ser m an ifestar-se.37 A essên
cia da essência é aparecer. Nesse p o nto, o século, q u a n to
ao m ais pro fu n d am en te antidialético, foi dialético. Para
fraternidade, q u alq u er que seja, p o rta n to p a ra u m nós-
sujeito em via de constituição m an ifestar é m an ifestar-
se. O ser do "nós" se m o stra, m as ta m b ém se esgota, n a
m anifestação. H á g rande confiança dialética nesse m o s
trar-se. É que o "nós", no final das contas, n a d a é senão o
166
conjunto de suas m anifestações. Nesse sentido, o real do
"nós", que é sim plesm ente o real, é acessível a cada u m n a
e pela m anifestação. À questão: que h á de real?, o século
responde: m anifestar. O que n ão m an ifesta n ão é.
V a r ia ç ã o V I, c r ític a , m a is u m a v e z
167
sugeri, a evocação indevida de grandes conjuntos m acroscó
picos inertes (classe-em-si, raça, nação...), e po r isso m esm o
pretensam ente "objetivos", imiscui-se n a subjetivação do
viés da legitimidade representativa. Com efeito, só a inércia
é representável. Passa-se, então, do modelo real do aconteci
m ento e da m anifestação ao m odelo ideal da ciência.
A representação e a legitim ação factícia com base nas
totalidades inertes vêm ta p a r os buracos do que se apresen
ta realm ente, e que é sem pre descontínuo. Filosoficamen
te, o fundo do problem a é que o real é descontínuo. Como
o diz Lacan de m an eira figurada, o que h á são "grãos do
real". No m eu léxico: só h á m últiplos procedim entos de
verdade, m últiplas seqüências criativas, e n ad a que as dis
p o n h a n u m a continuidade. A p ró p ria fraternidade é pai
xão descontínua. Na realidade, existem apenas "m om en
tos" de fraternidade. Os protocolos de legitim ação repre
sentativa te n ta m to rn a r con tín u o que n ão o é, d ar a se
qüências disparatadas u m no m e único, tirad o n a verdade
de objetividades fictícias, com o "grande dirigente p roletá
rio", o u "grande fu n d ad o r da m odernidade artística".
Sem d ú v id a é u m a v e rte n te o b scu ra do relato épico,
em que o século se co m p razeu , o fa to de p recisar ta m
bém de falsos heróis.
168
u m Dois antidialético, sem síntese. O ra, tem os em to d a
m anifestação d a frate rn id ad e u m Dois essencial: o do
"nós" e do "o -q u e-n ão -é-n ó s". O século faz se en fren
ta re m duas m a n eiras de conceber o "o -q u e-n ão -é-n ó s".
O u se vê aí u m a am o rfia m u ltifo rm e, u m a realidade n ão
o rg an izad a. O u se vê aí outro "nós", sujeito exterior e,
p o rta n to , an tag ô n ico . O conflito en tre essas d u as con
cepções é fu n d a m e n ta l, e in sta la a dialética da a n tid ia-
lética. Se, com efeito, o "nós" se relacio n a ex terio rm en te
com algo inform e, s u a ta re fa é a de fo rm alização desse
inform e. Toda frate rn id ad e é en tão o m o m en to subjetivo
de u m "colocar em fo rm a" su a exterioridade in fo rm e.
Pode-se a d u z ir que o P artido precisa g a n h a r os indife
rentes, que a esq u erd a deve u n ificar o cen tro p a ra iso lar
a direita, o u que u m a v a n g u a rd a artístic a deve encon
tr a r as fo rm as de endereçam ento sensível a todos. M as,
então, o século se vê com o século fo rm a lista no sentido
de que to d o su jeito -n ó s é p ro d u ção de fo rm as. O que fi
n alm en te q u er dizer que o acesso ao real se faz pela for
m a, com o p e n sa ra m co m to d a evidência, ju s ta m e n te , o
Lenin de Que fazer? (o Partido é a fo rm a do real político),
os "form alistas" ru sso s após a Revolução, assim com o os
m a tem á tic o s da escola B ourbaki, o u com o m o stra m o s,
B recht e Pirandello. Se, ao co n trá rio , o "o -q u e-n ão -é-
nós" fo r o b rig ato riam en te sempre já fo rm a liza d o , com o
subjetividade an tag ô n ica, a ta re fa p rim eira de to d a fr a
tern id ad e é o co m b ate em que a d estru ição do o u tro é
169
o que está em jo g o . Pode-se dizer en tão que q u em q u er
que n ã o esteja com o Partido é c o n tra ele, que a esq u erd a
deve a te rro riz a r o cen tro p a ra esm ag ar a direita, o u que
u m a v a n g u a rd a a rtística deve p ro c u ra r a dissidência e
o iso lam en to , p a ra n ã o ficar "alienada" n a sociedade do
espetáculo.
No coração do século, p o r razões que re s u lta m da
an tid ialética de to d a d u alidade p rim o rd ial, desenrola-
se a co n trad ição p ro p ria m e n te dialética en tre fo rm a li
zação e destru ição . É a essa co n trad ição d erivada que
M ao, n u m te x to to ta lm e n te in o v ad o r,39 deu s u a fo rm a,
distin g u in d o as "contradições an tag ô n icas" - que são de
fato sem síntese o u antid ialéticas - e as "contradições no
seio do povo" - que incidem sobre a m a n eira de tr a t a r as
p rim eiras - e, fin alm en te, sobre a escolha en tre fo rm a li
zação e destru ição . A d iretiv a essencial de M ao é ja m a is
tr a ta r as "contradições n o seio do p o v o ” de m a n e ira a n
tagônica. P ortan to : regular o conflito entre form alização e
destruição pela fo rm a liza çã o .
É talvez u m a das lições m ais p ro fu n d as, m a s ta m
bém m ais difíceis, que o século nos lega.
170
26 de janeiro de 2000
10= Crueldades
171
florescesse como um a ferida comichando na carne
irreal da m inha alma!
Os T r ê s A g ita d o r e s
- Nós decidimos:
Então, ele tem de desaparecer com pletam ente.
Pois nós precisam os voltar ao nosso trabalho
e não podemos levá-lo nem deixá-lo aqui.
Portanto temos de matá-lo e jogá-lo na mina de cal,
pois a cal o queim ará.
O C oro de C ontrole
- Não encontraram o u tra saída?
Os Q u a t r o A g i t a d o r e s
- Como o tem po era pouco, não encontram os
o u tra saída.
Assim como o anim al ajuda o anim al,
172
tam bém nós desejávamos ajudá-lo, àquele que
lu ta ra conosco pela nossa causa.
Distante cinco m inutos dos perseguidores
pensam os num a
alternativa melhor.
Também vocês agora estão pensando
n u m a alternativa melhor.
(Pausa)
Portanto, decidimos separar
Agora o nosso próprio pé do corpo.
É terrível m atar.
Mas não som ente os outros, tam bém nos m ata
ríam os, caso fosse necessário,
já que só com violência é possível tran sfo rm ar
esse m undo assassino,
como sabe todo ser vivo.
Ainda não nos foi dado, dissemos,
não m atar. Unicam ente
pela vontade inabalável de tra n sfo rm ar o m undo
é que justificam os
a decisão.
O C o ro de C ontrole
- C ontinuem contando. Podem estar certos
de nossa sim patia.
Não foi fácil fazer o que era correto,
não foram vocês que pro n u n ciaram a sua sen
tença, m as sim
A realidade.
173
Que h á de co m u m en tre esses dois textos? Evidente
m ente, n e m os a u to re s n em o estilo n em m esm o a p o s
tu r a subjetiv a o u a fig u ra de en g ajam en to . O que h á
de co m u m é que o real, ta n to da p a rte de u m q u a n to
da p a rte de o u tro , é considerado com o insep aráv el da
crueldade, de u m a espécie de fascinação p a ra o que te m
a fo rm a do crim e m ais abom inável.
O p rim eiro tex to é c u rto fra g m e n to da Ode m aríti
m a * p o em a assin ad o p o r u m h eterô n im o do p o eta p o r
tu g u ê s F ernando Pessoa: Á lvaro C am pos. O segundo é
extraído da cena sexta de A decisão,** u m a das ch am ad as
peças "didáticas" de B ertold Brecht.
E m bora Pessoa seja o m ais velho, pode-se dizer que
h isto ricam e n te os dois h o m e n s n ão estão tã o d istan tes, a
n ão ser pelo fa to de o p o rtu g u ê s escrever desde an tes da
P rim eira G u erra M u n d ial e, m o rre n d o p re m a tu ra m e n te
em 1935, n ã o po d er conhecer a S egunda G u erra M u n
dial. Tanto u m com o o u tro estão, n o e n tan to , em plena
criação nos an o s 2 0 e 30.
A d istân cia deles n ão procede do tem p o , re s u lta da
relação, n a E u ro p a desses an o s, en tre o que é cen tral e o
que é lateral. Brecht, que j á situ ei n a conferência in titu
lad a "M undo novo, sim , m as quando?", lida com todos
os fios do d ra m a eu ro p eu : a A lem anha, as d u as g u erras,
o nazism o, o co m u n ism o , o exílio, a relação com os Es
tad o s U nidos, o "socialism o real" etc. Pessoa escolhe com
174
o rg u lh o identificar-se ap en as com P ortugal, p o rta n to à
m a rg e m da E uropa, n u m peq u en o país entorpecido sob
Repúblicas im po ten tes, depois sob a d ita d u ra de Salazar,
cujo a u to rita rism o cinzento que n ã o tr a z n a d a a n ã o ser
a conservação das coisas e u m e n teso u ra m en to policial
av aro , opõe-se co m p letam en te ao fascism o ru tila n te . É
aí que Pessoa, to rn a n d o -se p o r ele só a g ran d eza que
falta, escreve a poesia sem d ú v id a m ais in ten sa e m ais
v a ria d a do século. É sin to m ático , p o rém , que, pelo que
sei, Pessoa e B recht n ão soubessem u m do o u tro .
A lém da separação pelos locais d a H istória, ta m p o u
co se podem a p ro x im a r os destinos pessoais.
N ascido n a Á frica do Sul, e an g ló fo n o v irtu o so , Pes
soa, tendo ido m u ito jo v e m a Lisboa, j á n ão deixará essa
cidade. Sua vida é síntese en tre a invisibilidade rela ti
v a do em pregado de com ércio e o ativ ism o do p o eta de
v a n g u a rd a . Pessoa sabe que está - com o está, p a ra su a
d esv en tu ra provisória, P o rtu g al - ao ab rig o da H istória.
E n tretan to , ele a atra v essa o b liq u am en te (é u m dos sen
tidos de u m gran d e p o em a in titu la d o Chuva oblíqua), e
p a ra isso, ele deve p ro teg er-se de to d a visão u n ila te ra l das
coisas, e co n stru ir, so litariam en te, u m m u n d o m e n ta l de
ex trem a com plexidade. Pessoa, em su m a, s u b stitu i a in
tensidade p o lítico -h istó rica que se a p a g o u em seu país
desde a gran d e época das descobertas, pela com plexidade
das construções do p en sam en to . Elem ento crucial dessa
operação é o "to rn a r-se v ários", ao que ele deu o n o m e
de "heteroním ia". A o b ra p oética p ro p õ e-se com efeito
sob q u a tro nom es e é, n a verdade, o co n ju n to in to ta liz á -
vel de q u a tro o b ras to ta lm e n te diferentes p o r seu estilo,
175
seu alcance, su a m etafísica etc. Esses h eterô n im o s são
A lberto Caeiro, Á lvaro de C am pos, "Pessoa em pessoa"
e Ricardo Reis.40 É com o se u m h o m e m tivesse a ssu m i
do escrever to d as as v irtu alid ad es da poesia p o rtu g u e s a
n o século. Poesia dig n a da situ ação h istó rica m u n d ia l da
q u al P o rtu g al histó rico se tin h a retirad o . Pessoa é aquele
que lu ta c o n tra a esclerose te m p o ral pela invenção de
com plexidade p oética sem precedente.
B recht está logo às v o ltas com a com plexidade das
situações e n ã o te m necessidade de cria r seu espaço p o
ético. Seu p ro b lem a é an te s e n c o n tra r p o n to s de refe
rência poderosos, sim ples e orgânicos, n u m a situ ação
com plexa, e que se vê com o tal. É p o r isso que ele se to r
n a rá g ran d e h o m e m de te a tro , sendo o te a tro a a rte p o r
excelência d a sim plificação, da força estilizada. B recht
p e rg u n ta -se q u al poética te a tra l n o v a te rá o p oder direto
de educar o público q u a n to ao tu rv o devir d a época.
Pode-se fin alm en te dizer que a m a io r diferença entre
Pessoa e B recht é que u m lu ta c o n tra a sim plificação m e
d ian te poética da com plexidade e o o u tro p ro c u ra tra ç a r
n a com plexidade os cam in h o s de u m a sim plificação p o
ética a tu a n te .
176
E m ais su rp reen d en te ain d a é vê-los co nvergir n a
representação, a nossos olhos q uase com placente, da
ex trem a violência, d a m ais radical crueldade. É nesse a s
pecto que ta n to u m com o o u tro são desse século. De
fato, o te m a d a crueldade é im p o rta n te do século XX
literário. C ertam ente, pode-se logo rem eter essa in sis
tência da crueldade n a s arte s à o n ip resen ça da crueldade
nos Estados. Seria u m ta n to insuficiente. O que é preciso
considerar é a crueldade ao m esm o te m p o com o m a té ria
e com o fo n te da p ro d u ção literária. A crueldade n o sé
culo foi m enos u m a q u estão m o ra l do que (ainda u m a
dívida p a ra com N ietzsche) q u estão estética. Q ue se p en
se em A rta u d e em su a reivindicação de u m "teatro da
crueldade", que se pense n as reflexões de Bataille sobre o
sacrifício, o u ta m b ém , com o já o vim os, n a d u reza b a s
ta n te serena, d ian te das m aio res violências, dos a v e n tu -
reiros-escritores com o Law rence o u M alrau x .
Em Pessoa, a crueldade está co n tid a n a m e tá fo ra
dos p ira ta s. Com o p a n o de fu n d o , tra ta -s e da crueldade
colonial, cujos p recu rso res fo ra m os p o rtu g u eses. Para
Brecht, sob o n o m e de "os ag itad o res", tra ta -s e do Par
tido C om unista, do q u e o Partido exige, daq u ilo do que
ele é capaz em te rm o s de crueldade, e de ju stificação r a
cional da crueldade. C om efeito, a decisão dos ag itad o res
é liq u id ar o "jovem cam arad a" que n ã o está de acordo,
que q u er sep arar-se do Partido, m a s que sabe dem ais
p a ra que seja deixado n as m ão s do inim igo.
Nos dois casos, h á estabelecim ento te x tu a l de u m lo
cal da crueldade. E n c o n tra m o -n o s n o m o m e n to em que
o indivíduo é de a lg u m a m a n e ira tran scen d id o p o r algo
177
m ais v a sto que ele, a P irataria com o em blem a do lu g a r
m a rítim o devorador, o u o Partido com o fig u ra da His
tó ria. M o m en to em que a subjetividade pessoal explode,
dissolve-se, o u co n stitu i-se de o u tra m an eira. A c ru eld a
de é no fu n d o o m o m en to em que deve ser decidida a dis
solução in te g ra l do "eu". A crueldade é necessária, dizem
Á lvaro de C am pos e B recht, p a ra que o "nós" e a idéia
se to rn e m ap en as u m , p a ra que n a d a v en h a re strin g ir a
a u to -a firm a ç ã o do "nós". A idéia n ã o to m a corpo a n ão
ser n u m "nós", m a s o "eu" só acede à su a dissolução com
o risco assum id o , inclusive desejado, do suplício.
Nos dois casos, h á a aceitação da crueldade com o fi
g u ra do real. Para os dois escritores, a relação com o real
n u n c a é d ad a com o h a rm o n ia , ela é contradição, b r u s
quidão, corte. Com o escreve B recht, "só com violência
é possível tra n s fo rm a r esse m u n d o assassino". E, com o
escreve Á lvaro de C am pos, o que é preciso in te rio riz a r é
o p u ro m ú ltip lo , "no seu to ta l de crim es, terror, barcos,
gente, m ar, céu, nu v en s, b risa, latitu d e, longitude, vo ze
aria". O real acaba sem pre p o r oferecer-se com o p ro v a
do corpo. É idéia terrível, p o ré m an tig a, de que o ú nico
corpo real é o corpo supliciado, esq u artejad o pelo real. É
isso que ro n d a n a im ag em dos p iratas, com o n a sin istra
visão do corpo do "jovem cam arad a" atirad o à m in a de
cal. A vocação da poesia e do te a tro n ã o é de dizer o que
n ã o se diz, e que a política p ra tic a sem realm en te confes-
sá-lo? O que a te sta que u m corpo foi exposto ao real é a
ferida. No fu n d o , a aceitação da crueldade pelos m ilita n
tes de u m a v erdade v em do fa to de que o n ó s-su jeito é
rep resen tad o com o corpo insensível u m a vez que eterno.
178
A sensibilidade à violência é ap en as o co m p o n en te in d i
v id u al de u m "nós" im o rtal.
A v e rd a d e ira d ialética s itu a -se , pois, e n tre c ru e l
dade e im p assib ilid ad e, im p assib ilid ad e d a v erd ad e. O
século XX s u s te n ta q u e a idéia im p assív el, u n iv e rsa l,
tra n s c e n d e n te , e s tá e n c a rn a d a n u m co rp o h is tó r i
co que, p o r s u a vez, é c o m p o sto de co rp o s n ã o im
p assív eis, de co rp o s so fred o res. C om o pro cesso , u m a
v e rd a d e é u m co rp o ao m e sm o te m p o so fred o r (pelo
q ue o com põe) e im p assív el (pelo seu ser de idéia). A
cru eld ad e, p o rta n to , n ã o é p ro b le m a , é m o m e n to , o
m o m e n to d a ju n ç ã o p a ra d o x a l e n tre co rp o so fre d o r e
co rp o im passível.
M etaforicam ente, com o o v iu M an d elstam , é v erd a
de que h á no século algo de crístico. C om efeito, o século
a p resen ta a questão : que é encarnação? Ele a ap resen ta
sob a fo rm a: que é o ab so lu to n a H istória? O em blem a
de Deus en carn ad o era o corpo supliciado de Cristo. H á
n o século u m longo m artiro ló g io que é a exposição do
corpo supliciado d a idéias.
Filosoficam ente é p la to n ism o ao inverso. Para Pla
tão , o p roblem a é re tira r a Idéia do sensível. No século,
a q u estão é d a r à Idéia su a força sensível. É an tid ialética
descendente ao invés de dialética ascendente.
Tudo se desenrola em definitivo sobre o "eu" e o
"nós". É necessária a com posição de u m sujeito m o rta l e
sofredor e de u m sujeito im o rta l e im passível, p e rm a n e
cendo tu d o isso in sep arad o . O p ro b lem a é en tão saber a
que p ro v as o ab so lu to da Idéia su b m ete u m corpo o rig i
n a ria m e n te im passível.
179
A ú n ic a crueldade v erd ad eira é a da Idéia. É ju s ta
m en te o que, n a crueldade, fascina nossos a rtista s. Sa
bem os hoje que q u an d o a Idéia está m o rta , o carrasco
m o rre ta m b ém . Resta saber se do v o to legítim o de que
m o rra o carrasco deve in ferir-se o im perativ o : "Viva
sem Idéia".
180
3. Esse m o m e n to é desfeito pela e n tra d a em cena
de u m m ú ltip lo ab so lu tam en te fu rio so . Esse m ú ltip lo
cria apelo coletivo n a direção do 'n ó s', q u eb ra a solidão.
A presento u m excerto dessa cesu ra (citação A):
[A]
Quero ir convosco, quero ir convosco,
ao mesmo tempo com vós todos
pra toda a parte pr'onde fostes!
Quero encontrar vossos perigos frente a frente.
Cuspir dos lábios o sal dos m ares
que beijaram os vossos,
ter braços na vossa faina, partilhar
das vossas tormentas,
Chegar como vós, enfim, a extraordinários portos!
[...]
Ir convosco, despir de m im - ah! Põe-te daqui
pra fora! -
O m eu traje de civilizado, a m inha brandura
de ações,
m eu medo inato das cadeias,
m inha pacífica vida,
a m inha vida sentada, extática, regrada e revista.
[B]
Ah! os piratas! os piratas!
181
A ânsia do ilegal unido ao feroz,
a ânsia das coisas absolutam ente cruéis
e abomináveis,
que rói como um cio abstrato os nossos
corpos franzinos,
Os nossos nervos femininos e delicados,
E põe grandes febres loucas nos nossos olhares
vazios!
[··.]
tom ar sempre gloriosamente a parte submissa
nos acontecimentos de sangue e
nas sensualidades estiradas!
[C]
As viagens, os viajantes - ta n ta s espécies deles!
Tanta nacionalidade sobre o m undo!
Tanta profissão! Tanta gente!
182
Tanto destino diverso que se pode dar à vida,
à vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma!
Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas
e nada traz ta n ta religiosidade como olhar m uito
p ara gente.
A fraternidade afinal não é um a idéia revolucionária.
E u m a coisa que a gente aprende pela vida fora,
onde tem tolerar tudo,
e passa a achar graça ao que tem que tolerar,
e acaba quase a chorar de te rn u ra
sobre o que tolerou!
183
Partido, do Partido C o m u n ista, concebido com o subjeti
vidade política, en carreg ad o das ta re fas da revolução, e
p rin cip alm en te p a ra d ig m a o rg an iz ad o da articu la ção do
"eu" e do "nós". Por m ais en g ajad a que seja p o liticam en
te essa peça, é claro que B recht fala do Partido n a condi
ção de a rtis ta . O que lhe in teressa n ão é a c o n ju n tu ra o u
a tática. B recht q u er m a n ife sta r n o palco a essência do
Partido, su a fu n ção genérica no período p ó s-len in ista.
O títu lo da peça é m u ito preciso. Indica que o te m a
cen tral é o p artid o en tendido com o m á q u in a de decidir.
Que q u er dizer que o Partido decide? Q uais são os m o ti
vos e os procedim entos de decisão to m a d a em n o m e do
Partido? Q ue pode o Partido exigir de seus m ilitan tes,
em n om e de su a capacidade tran sce n d en te de decisão?
Brecht, e é escolha artística, escolha da experiência dos
lim ites, te a tra liz a u m a decisão abom inável. A peça con
ta a h istó ria de ag itad o res c o m u n istas ru sso s enviados
à China. O palco, fig u ra a b s tra ta da In tern a cio n al co
m u n ista , é, p o rta n to , a te rr a in teira, assim com o p a ra
Pessoa os p ira ta s d esig n am violência cósm ica. Onde os
ag itad o res estão, a situ ação é terrív el p a ra as pessoas,
e com risco de piorar. M as a lógica política o rd en a n ão
ag ir im ed iatam en te, llm jo v e m ca m a ra d a p en sa que, a
despeito dessa lógica, é preciso ag ir im ed iatam en te, em
no m e do so frim en to das pessoas; que ele n ã o to le ra que
co n tin u e sem que os responsáveis políticos façam a lg u
m a coisa. Os o u tro s m ilitan tes te n ta m em v ão reco n -
duzi-lo à racionalidade política, c o n tra a sensibilidade
im ediata. Com o ele resiste, e coloca assim em perigo
todo o g ru p o agindo com o su jeito -n ó s, o u com o Partido,
184
seus cam arad as v ão decidir executá-lo e jo g a r seu corpo
n u m a m in a de cal.
O J ovem C am arada
- Mas quem é o Partido?
Ele está sentado em um a casa com telefones?
Seus pensam entos são secretos, suas decisões
desconhecidas?
Quem é ele?
Os T r ê s A g ita d o r e s
- Nós somos ele.
Você e eu e vocês - nós todos.
Ele está na sua vestim enta, cam arada, e pensa
com a sua cabeça. Onde eu m oro, é a sua casa,
e onde você é atacado ele luta.
M ostre-nos o cam inho que devemos percorrer
e o percorrerem os com você, m as
185
não percorra sem nós o cam inho correto,
sem nós ele seria
o m ais errado,
não se separe de nós!
Podemos estar errados e você ter razão, portanto
não se separe de nós!
Que o cam inho m ais cu rto é m elhor do que o
m ais longo ninguém nega.
Mas se alguém o conhece
e não é capaz de m ostrá-lo a nós, de que nos
ad ianta a sua sabedoria?
Esteja sabiam ente conosco!
Não se separe de nós!
O J o v em C am arada
- Porque tenho razão, não posso ceder.
Vejo com os m eus dois olhos que a m iséria
não pode esperar.
O c o ro de C o n tr o le
E logio ao P artido
O indivíduo tem dois olhos,
o Partido tem m ilhares de olhos.
O Partido vê sete países,
o indivíduo vê u m a cidade.
O indivíduo tem a sua hora,
m as o Partido tem m u itas horas.
O indivíduo pode ser aniquilado,
m as o Partido não pode ser aniquilado,
pois ele é a tro p a avançada das m assas
186
e lidera a sua lu ta
com os métodos dos clássicos, que foram criados
a p a rtir do conhecim ento da realidade.
187
pelo c o n trá rio , j á q u e "podem os e s ta r e rra d o s e você te r
ra z ã o ". A m á x im a , afin a l b a s ta n te su til, é que o "eu"
se m a n te n h a n o "nós" sob fo r m a inseparada. A m a n u
ten ção dessa in sep ara ção é tu d o o q u e e stá em jo g o no
debate. C o n cretam en te, isso q u e r dizer q u e o "jovem
c a m a ra d a " pode e deve c o m b a te r n o seio do P artido p o r
su a convicção (é preciso a g ir im ed iatam e n te), m a s n ã o
pode m a n te r essa o p in ião com o decisão sep arad a c o n tra
a o p in ião dos o u tro s. Q u an d o o jo v e m c a m a ra d a diz:
"Porque te n h o ra z ã o , n ã o p o sso ceder", ele ig n o ra a
c o n stru ç ã o do real n o asp ecto de a rtic u la ç ã o in s e p a ra
da do "eu" e do "nós", ig n o ra o P artido com o fo rm a de
c a p tu ra desse real. Ele d everia dizer: "Eu te n h o ra z ã o ,
m a s m in h a ra z ã o só é real ao ceder, m esm o q u e p r o
v iso ria m en te , ao "nós" que, só ele, confere existência
política". Q u ain d a: in ferir de "eu te n h o ra z ã o " u m "eu
n ã o cedo" que está na fo r m a da separação com referência
ao "nós" equivale a s u b s titu ir a p o lítica pela m o ra l e,
p o rta n to , liq u id a r to d o o real da situ ação . A essência
do "nós" n ã o é o acordo, o u a fu são , é a m a n u te n ç ã o
do in sep arad o .
188
su b m issão ab so lu ta é reg u lad a p o r princípio do p ra z e r
e n ã o apenas pelo co n sen tim en to . A dissipação do "eu"
jo g a a energia c o n tra a inércia. T rata-se an tes de tu d o
de "despir [...] o tra je civilizado", de ro m p e r com a vida
"sentada, extática, reg rad a e rev ista", de p a rtir "pra to d a
a p a rte p r'o n d e [vós, os p iratas] fostes". E esse despir
a u to riz a que se d esapareça com o sujeito pessoal e que o
"eu" seja engolido n o "nós" feroz que a n im a "a ân sia das
coisas a b so lu tam en te cruéis e abom ináveis ".Em ú ltim a
análise, Á lvaro de C am pos e Brecht te ste m u n h a m em fa
v o r da existência de d u as fig u ras im p o rta n te s da relação
"eu /n ó s" no século.
189
2. U m a f ig u r a do in s e p a ra d o , q u e é m a is d ia lé ti
ca. O "eu" e n tr a em co n e x ã o in s e p a rá v e l co m o "nós",
m a s s u b sis te aí, a té m e sm o co m o p ro b le m a in te rn o .
A q u i, o e le m e n to p o lític o é p ra g m á tic o , m u ito p r ó
x im o do e le m e n to m ilita r, e ta m b é m do ro m a n e sc o
e do cin e m a , q u a n d o essas a r te s a c e ita m s u a o rig e m
épica.
190
Esse te m a p erp assa o século, que é m u ito freq ü en te
m ente, em su a ação e em suas obras, apelo à coragem . O
que im obiliza o indivíduo, o que faz su a im potência, é o
m edo. N ão ta n to o m edo da repressão e da d o r q u a n to o
m edo de já n ão ser o pouco que se é, de n ão ter o pouco
que se tem . O prim eiro gesto que co n d u z à incorporação
coletiva e à transcendência criadora é p a ra r de te r m edo.
Gostamos de que nossa vida seja regrada p ara escapar
da insegurança. E o guardião subjetivo da regra é o medo.
Ora, esse medo é o que faz que sejamos incapazes de querer
o real da Idéia. Disso resulta ser fundam ental a questão de
saber com o não ser frouxo. Trata-se, com efeito, da força do
pensam ento. Essa questão é tratad a nas inum eráveis obras
rom anescas, entre 1920 e 1960, e m ais ainda em filmes.
Talvez seja a grande contribuição da América do N orte à te
m ática do século ter im plantado no coração de seu cinem a a
questão da genealogia da coragem e da lu ta íntim a contra a
frouxidão. É o que faz do faroeste, em que se tra ta quase so
m ente dessa luta, u m gênero sólido, m oderno, e que to rn o u
possível excepcional quantidade de obras-prim as.
A p reocupação q u a n to ao elo e n tre coragem e Idéia
sem d úvida perdeu m u ito de seu v ig o r hoje em dia. Fun
d am en talm en te, p a ra o século q u e acab o u , ser fro u x o é
ficar onde está. N ão h á o u tro co n teú d o p a ra a fro u x id ão
do que o co n serv ad o rism o p a u ta d o n a seg u ran ça. É exa
ta m e n te o que diz Á lvaro de C am pos: o o b stácu lo do de
v ir extático do "nós" fu rio so é a v id a "pacífica", o u "sen
tad a". O ra, é ju s ta m e n te essa v id a q u e se glorifica hoje
em dia. N ada m erece que se dispa d a fro u x id ão co rren te;
m enos ain d a a Idéia, o u o "nós", do q u a l rap id a m en te se
191
te rá declarado que se tr a ta ap en as de "fan tasm a s to ta li
tário s". Então, o cu p em o -n o s com n o ssas coisas, e divir
ta m o -n o s. C om o dizia V oltaire, u m dos m ais considerá
veis p ensado res da m ediocridade h u m a n itá ria , venenoso
inim igo de R ousseau, o h o m e m da coragem : "Devemos
c u ltiv ar nosso ja rd im ".
192
Eu m esm o experim entei cabalm ente essa correlação
en tre tran sg ressão e subm issão. Foi em M aio de 68, e
n os anos que se seg u iram . Percebi que o d esen raizam en -
to de m in h a vida an terio r, a de u m sim ples fu n cio n ário
do interior, casado e pai de fam ília, cuja ú n ica visão da
Salvação era escrever livros; a p a rtid a p a ra u m a vida
subm issa, ard en tem en te su b m issa, às obrigações m ili
ta n te s em locais a n te rio rm e n te desconhecidos, casas, fá
bricas, m ercados de periferia; e o en fre n ta m e n to com a
polícia, as prisões e os processos; tu d o isso n ão p ro v in h a
de decisão lúcida, m a s de fo rm a especial de passividade,
de ab an d o n o to ta l ao que acontecia.
Passividade n ão q u er dizer resignação. Trata-se de
passividade quase ontológica, a que m u d a o ser da pessoa
a rra sta n d o e m ediante dependência de alg u m o u tro p o n
to absoluto. É surpreendente que Á lvaro de Cam pos exibe
essa passividade, criadora e ao m esm o tem p o dissolven
te, sob em blem as fem ininos. Com efeito, constatei que as
m ulheres se aju stav am m ais p ro fu n d am e n te que os h o
m ens a esse desenraizam ento abandonado, assim com o
inversam ente elas são m ais secas e m ais obstinadas no
te m o r e no conservadorism o. O fem inino é o que, q u an d o
deixa de ser a organização dom éstica da seg u ran ça e do
m edo, vai m ais longe n a an u lação de to d a a frouxidão.
Por essa razão, volto m e u p en sam en to a Ulrike M einhof,
revolucionária alem ã da Facção Exército Vermelho, suici
dada n o calabouço. E ta m b ém a N athalie M énigon, rev o
lucionária francesa do g ru p o Ação direta, que apodrece
atu alm e n te nas prisões nacionais. Essas m ulheres fo ram ,
de q u alq u er form a, "a ân sia do ilegal u n id o ao feroz".
193
3. Citação C da Ode marítima
194
d eterio ra em aceitação e em to lerân cia. De m odo que,
pela m ediação da su b m issão orgíaca e cruel, p assam o s
no final das co n tas de u m a fro u x id ão p rim eira (o m edo,
a vida pacífica, sentada) a u m a seg u n d a fro u x id ão (o
h u m a n ism o religioso, b u rg u ês e to leran te), que em ú l
tim a análise vê p o r to d a a p a rte o h o m e m e, p o rta n to ,
conclui que h á ap en as "a vida, afinal, n o fu n d o sem pre,
sem pre a m esm a!"
P a rtic u la rm e n te su rp re e n d e n te é a a lu sã o de Á lvaro
de C am pos à fra te rn id a d e , n a q u a l p ro p u s v er a su b -
je tiv a ç ã o ex em p lar do p o d er do "nós". Q u an d o o p o eta
declara que "a fra te rn id a d e afin a l n ã o é u m a idéia re
v o lu c io n ária ", ele n o s in cita a d is tin g u ir a fra te rn id a d e
p ro p ria m e n te d ita, que é despir da v id a leg ítim a, a b a n
d o n o ao p o d er aco n te c im e n ta l do 'n ó s '; e fra te rn id a
de deriv ad a e c o rro m p id a, q u e é ap en a s h u m a n is m o
piedoso, cuja fó rm u la é a to lerân cia co m tu d o , a acei
ta ç ã o das diferenças, os "se n tim en to s h u m a n o s" sobre
os q u ais é p a rtic u la rm e n te ju s to dizer que são "m etafi-
sicam en te triste s", pois im p licam re n ú n c ia a q u a lq u e r
p aix ão pelo real.
P ara o pessim ism o poético de Á lvaro de C am pos, é
essa seg u n d a versão da frate rn id ad e que im põe su a lei
e red u z-n o s, com o risco de to le ra r ain d a ser fro u x o , à
m ais com pleta solidão. É que visão ex tática e fu sio n ai do
acesso à Idéia, p o rta n to da relação 'e u '/'n ó s ' que n o sé
culo é su a chave, n ã o fu n d a n e n h u m tem p o , e se dissipa
em seu com eço. Q u alq u er insistência j á é lu to .
Para Á lvaro de C am pos, a Idéia é ato , n u n c a a cons
tru ç ã o de u m tem po.
195
4. A citação de Brecht
196
concreção subjetiva. N ada que ver com o que virá a ser, o
Partido-Estado im potente e sinistro, burocracia meio ter
rorista, meio dem agógica. Por ser ele esse concentrado de
pensam ento e de vontade p u ra, propõe, com o diz Brecht,
urna form a singular de inseparação do "eu " e do “nós". O Par
tido designa m an eira p articu lar de co n stru ir - unicam ente
com 'eu ' - u m 'nós', senhor do tem po. O Partido, com o di
zem os agitadores, é "nós, você, eu, vocês", ele "pensa com
a su a cabeça", é o "nós" n a qualidade de cada u m .
C om preende-se en tão que seu im p erativ o seja: "Não
se separe de nós". D iferentem ente do êxtase passivo da
Ode m arítim a, a articu lação política do "eu" e do "nós"
n ã o é fusão. É, pois, possível sep arar-se, m a s o Partido
só existe à m edida que isso n ão é feito. O P artido é o in -
separado. O Partido é c a d a -u m -n ã o -se m -n ó s. É o local
da p a rtilh a , n o sentido em que n e n h u m co n hecim ento é
ú til se n ão se diz: "Esteja sab iam en te conosco".
No fundo, o fato de o Partido ser o in sep arad o q u er
dizer que é som en te p a rtilh a, sem q u e se saib a an tes o
que é p artilh ad o . A essência da q u estão é a fra te rn id a
de. "Nós" é a p a rtilh a . Se u m "nós", com o o Partido, é
feito apenas de "eu", h á circularidade co n stitu tiv a : o in
separado é a lei do "nós", m as só à m ed id a q u e o "nós"
in s ta u ra su a lei é que h á insep aração . A disciplina é o
n o m e dessa circularidade, o n o m e dos efeitos possíveis
da injunção: "Não se separe de nós".
O u ainda: em to d o s os reg istro s da o b ra e do p en sa
m ento, u m im p erativ o do século foi: "N ão sem nós".
Predicado m u ito im p o rtan te do Partido q u e sustém ,
j á o dissemos, o poder m aterial da Idéia com o encarn ação
197
n o coletivo é que ele é indestrutível: "O individuo pode ser
aniquilado, m as o Partido n ão pode ser aniquilado".
O século, en tre 1917 e 1980, propôs-se criar indes-
trutibilidade. Por que essa aspiração? Porque a in d estru -
tibilidade, a não -fin itu d e, é o estigm a do real. Para criar a
indestrutibilidade, é preciso d estru ir m u ito . É o que m u ito
especialm ente sabem os escultores que destroem a pedra
p a ra que, m ediante seus vazios, ela eternize u m a Idéia. O
real é o-im possível-a-destruir, o que sem pre e p a ra sem
pre resiste. N ão se p ro d u z o b ra a n ão ser se h o u v er a sen
sação de estar baten d o -se com essa resistência.
Século das resistências e das epopéias, d estru id o r
sem rem o rso s, o século quis ig u alar-se em su as o b ras ao
real pelo q u a l tin h a paixão.
1o de março de 2000
11. Vanguardas
io im a n e n te fixado logo
p e rg u n to : do p o n to de
wv que ele m o s tro u ser ca
p a z de p ro d u zir, q u e d eclaro u o p ró p rio século a re s
p eito das sin g u la rid ad es a rtística s? É ta m b é m m a n e i
r a de su b m e te r à v erificação, n u m dos g ran d es tip o s
de p ro ced im en to genérico, a h ip ó tese q u e a n im a essas
conferências, e q u e faz da p aix ão pelo real a p ed ra de
to q u e das subjetividades do século. H á o u n ão , n o sé
culo, v o n ta d e de fo rç a r a a rte a ex trair, d a m in a d a re a
lidade, e p o r m eios do artifício v o lu n tá rio , u m m in e ra l
real d u ro com o o d ia m an te ? Vemos m e d ra r crítica do
sem b lan te, d a re p resen tação , d a m im ese, do " n a tu ra l"?
A lém m e sm o dessas verificações, j á a m p la m e n te e n ta
b u la d a s, c o n sta te m o s q u e fo rte c o rre n te do p e n s a m e n
to a firm o u q ue era m e lh o r sacrificar a a rte do que ce
der d ia n te do real. Podem ser ch a m a d o s de v a n g u a rd a s
a rtís tic a s do século XX os d iferen tes a v a ta re s dessa co r
ren te, to d o s a d o rn a d o s co m v o cáb u lo s a b s tru s o s com o
d ad aísm o , acm eísm o, su p re m a tis m o , fu tu ris m o , sen -
sacionism o, s u rre a lism o , situ a c io n ism o ... T ín h am o s j á
en tre v isto , com o Quadrado branco em fu n d o branco de
199
M alevitch, q u e o século ten d e a ser ic o n o clasta. N ão h e
sita em sacrificar a im a g e m p a r a q u e o real se p ro d u z a
en fim n o g esto a rtístic o . M as sem d ú v id a, a p ro p ó sito
da d e stru iç ã o da im ag em , é p reciso a c re sc e n ta r logo
que h á sem p re a o u tr a te n d ên cia, a d a su b tra ç ã o , que
p ro c u ra a im a g e m m ín im a , o sim ples tra ç o im a g in a n -
te, a im a g e m evanescente. A a n tin o m ia d a d e stru iç ã o e
da s u b tra ç ã o a n im a to d o o pro cesso de d estitu iç ã o da
sem elh an ça e da im ag em . H á n o ta d a m e n te u m a a rte
da ra re fa ç ã o , d a o b ten ção dos efeitos m a is s u tis e m ais
d u ráv eis, n ã o m e d ian te p o s tu r a ag ressiv a p a r a com
fo rm a s h e rd a d a s, m a s m e d ia n te a rra n jo s q u e dispõe
essas fo rm a s n a b eira do v azio , n u m a rede de co rtes e
desaparições. O exem plo ta lv e z m a is c o n su m a d o dessa
m a n e ira de a tu a r é a m ú sic a de W eb ern .43
200
Fica p a ra n ó s a incum bência de identificar n a a rte
do século as fo rm as sacrificiais e iconoclastas da paix ão
pelo real, experim en tan d o ao m esm o tem p o a co rrela
ção, caso p o r caso, en tre destru ição e su b tração .
U m a p o rta p a ra essa identificação consiste em exam i
n a r as significações da p alav ra "vanguarda". Toda arte do
século XX reivindicou em m aio r o u m e n o r escala função
de v an g u ard a , e hoje o term o é obsoleto, até m esm o pejo
rativo. Temos, pois, de lidar com sin to m a im p o rtan te.
201
ro m p e r com to d a a idéia de existência de leis fo rm ais do
Belo, extraíd as do acordo en tre nossos receptores senso-
riais e a expressão intelectual. T rata-se de aca b ar com os
rebentos da estética de K ant, que fazem do belo o sinal de
h a rm o n ia de n o ssas faculdades, sin tetizad a p o r s u a vez
em ju lg a m e n to reflexivo. U m a v a n g u a rd a , m esm o que
p ro m o v a certos dispositivos fo rm ais m ais que o u tro s,
s u ste n ta in fin e que to d o a rra n jo sensível pode p ro d u z ir
efeito de arte, se so u b erm o s p a rtilh a r su a reg ra. N ão h á
n o rm a n a tu ra l, h á ap en as coerências v o lu n tá ria s que ti
ra m p artid o do acaso das ocorrências sensíveis.
O resultad o é que a r u p tu r a declarada atinge n ão so
m ente u m estado c o n ju n tu ral da p ro d u ção artística, m as
os grandes dispositivos form ais to rn ad o s len tam en te he
gem ônicos n a h istó ria artística da Europa: a tonalidade
em m úsica, a figuração em p in tu ra , o h u m a n ism o em
escultura, a inteligibilidade sintática im ediata em poesia
etc. Por isso, as v an g u ard a s n ão são apenas "escolas" es
téticas, to rn a m -se fenôm enos de sociedade, referências de
opinião, co n tra os quais se desencadeiam violentas polê
m icas, bem além da referência às obras o u ao conheci
m en to dos escritos teóricos. É que u m a v a n g u a rd a p ro
clam a, freqüentem ente com os term o s m ais violentos, re
je ita r o consenso sobre o que to rn a o u n ão plausível u m
ju lg a m e n to de gosto, e se coloca com o exceção das regras
correntes da circulação dos "objetos" artísticos.
Para a g ü e n ta r-se firm e n as tem p estad es de opinião
que desencadeiam , as v a n g u a rd a s são sem pre o rg a n iz a
das. "V anguarda" q u er dizer g ru p o , m esm o que seja re
duzido a po u cas pessoas, e g ru p o que dá a conhecer su a
202
existência e su a dissidência, que publica, que a tu a e que
é a n im ad o p o r fortes p ersonalidades po u co inclinadas a
p a rtilh a r seu poder. A ssim foi, exem p larm en te, p a ra res
trin g ir-se à França, com o su rrealism o , sob o cajado de
A ndré B retón, e com seu descendente, o situacionism o,
sob o cajado de G uy Debord.
Essa dim ensão o rg an izad a, e am iú d e v ig o ro sam en
te sectária, tece já u m elo, ao m en o s alegórico, en tre
as v a n g u a rd a s artísticas e a política (na qual, aliás, os
Partidos co m u n istas se ap re se n ta m ta m b é m com o v a n
g u a rd a das m assas p o p u lares). Há agressividade das
v a n g u a rd a s, elem ento provocador, gosto d a in terv en ção
pública e do escândalo. A o rg an ização q u ase m ilitar, p o r
Théophile G autier, da b a ta lh a de Hernani será an tecip a
ção b a s ta n te b o a das p ráticas da v a n g u a rd a n o século
XX. A arte, p a ra as v a n g u a rd a s, é m u ito m ais do que a
pro d u ção so litária de o b ras geniais. É q u estão da exis
tência coletiva, é q u estão da vida. A a rte n ã o se concebe
sem violento m ilita n tism o estético.
É que as v a n g u a rd a s, e é su a m a n e ira de ab rig a r a
paixão to ta lm e n te n o v a pelo real, n ão concebem a arte,
a n ã o ser n o presente, e q u erem fo rçar o reconhecim ento
desse presente. A invenção é v alo r intrínseco, a novidade
é p o r si m e sm a deleitável. O an tig o e a repetição são odi
áveis, daí que a r u p tu r a a b so lu ta é salu tar, ela que leva
às im plicações apenas do presente. É a in terp reta ção d o
m in an te, pelas v a n g u a rd a s, do enu n ciad o de R im baud:
"É preciso ser a b so lu tam en te m o d ern o ". A a rte essencial
m en te n ão é p ro d u ção de eternidade, a criação de o b ra
cujo ju iz será o fu tu ro . A v a n g u a rd a está p reo cu p ad a
203
em que h aja u m p resen te p u ro da arte. N ão h á o que
esperar. N ão h á posteridade, h á com bate artístico c o n tra
a esclerose e a m o rte, a q u i e ag o ra, e é preciso a rre b a ta r
a v itó ria. E com o o p resen te está c o n stan tem e n te sob a
am eaça do passad o e é frágil, é preciso im p ô -lo m ed ian
te a intervenção p ro v o cad o ra do g ru p o que asseg u ra a
salvação do efêm ero e do m o m e n to c o n tra o estabelecido
e o in stitu íd o .
Essa questão do tem po da arte é antiga. Q uando Hegel,
em suas lições sobre a estética, declara que a arte é daí em
diante coisa do passado, ele sim plesm ente quer dizer não
que já não existe atividade artística, m as que a arte já não
é a detentora do suprem o valor do pensam ento, com o o
foi no tem po dos gregos. A arte já não é a fo rm a histórica
privilegiada da apresentação da Idéia absoluta. Daí resulta
evidentem ente que as obras do passado são insuperáveis,
já que são adequadas a u m m om ento da efetividade do Es
pírito; isso, n en h u m a obra no presente, p o r m ais cheia de
talento e até de genialidade que seja, pode agora pretender.
Reconhece-se aí concepção p ro p riam en te clássica da
arte, inclusive, d en tro do classicismo, a que opõe os A n
tigos e os M odernos. Prova suplem entar, se é que h á ne
cessidade disso, de que a estética de Hegel n ão é de fo rm a
alg u m a rom ân tica, talvez n em m esm o m o derna. Já os
m aiores artistas franceses do século XVII estão conven
cidos de que a g ran d e a rte j á ocorreu, que a A n tigüida
de greco-latina p ro d u ziu m odelos inigualáveis. Vendo de
m ais perto, o verdadeiro su sten tácu lo desse classicismo é
o essencialismo. Existe u m a essência do Belo, distribuída
p o r regras nos diferentes gêneros artísticos. A a rte con-
204
su m ad a é a que está à a ltu ra de su a p ró p ria essência, ou
que dá o m ais alto exem plo daquilo do q u al esse gênero
de a rte é capaz. M as u m a coisa: aquilo do que ela é capaz,
isso já foi m edido e experim entado. D ar o exem plo é sem
pre v o lta r a dá-lo. Dizer que a arte deve ser o que é (rea
lizar su a essência) é dizer igu alm en te que deve to rn ar-se
o que j á teve a chance de ser. N ão há, em ú ltim a análise,
n e n h u m a distinção entre o fu tu ro da arte e seu passado.
As v a n g u a rd a s, n isto m ais ro m ân tica s que clássicas,
defendem g eralm en te que a a rte é a m ais elevada desti-
n ação de u m sujeito e que seu poder n ã o se efetivou, que
ela esteve, ju s ta m e n te pela reação clássica, co n sta n te
m en te en tra v ad a. A a rte é en tão , c o n tra ria m e n te ao que
diz Hegel, algo do p resente, e o é de m odo essencial. Que
o tem p o da a rte seja o p resen te é m u ito m ais im p o rta n te
p a ra as v a n g u a rd a s do que a r u p tu r a com o passado,
que é apenas conseqüência, e n ão im pede de m odo al
g u m , com o se vê com o su rrealism o , a d eterm in ação no
passad o de u m a genealogia das intensidades do p resente
(Sade, certos ro m ân tico s alem ães, L au tréam o n t...).
U m g ru p o de v a n g u a rd a é o que decide u m p resen
te, pois o presente da a rte n ã o foi decidido pelo passado,
com o crêem os clássicos; pelo co n trá rio , foi im pedido.
N ão se é herdeiro n em im itador, m as sim aquele que
p ro cla m a v io len tam en te o p resen te da arte.
A q u e s tã o o n to ló g ic a d a a r te n o século XX é a do
p re se n te . A credito q u e esse p o n to esteja lig ad o à co n
vicção, q ue co m fre q ü ê n c ia te m o s e n c o n tra d o , de que
o século é u m com eço. O classicism o p o d e ig u a lm e n te
d efin ir-se com o a c e rte z a de que, em m a té ria de a rte ,
205
isso co m eço u h á m u ito . A v a n g u a r d a diz: n ó s co m e
çam o s. No e n ta n to , a v e rd a d e ira q u e s tã o do com eço é
a de seu p re se n te . C om o sen tir, co m o v e rific a r q u e se
e s tá com eçand o ? A re s p o s ta m a is c o rre n te das v a n
g u a rd a s a essa q u e s tã o é q u e a p e n a s a intensidade v i
ta l d a criação a r tís tic a p e rm ite reco n h e cer o com eço. A
a rte , n o século XX, é a a te sta ç ã o do com eço com o p re
sença in te n s a d a a rte , co m o seu p re s e n te p u ro , com o
p re se n tific a ç ã o im e d ia ta de seu re c u rso . T endencial-
m e n te , a arte do século X X centra-se no ato m ais do
que na obra, p o rq u e o a to , sen d o p o tê n c ia in te n s a do
com eço, só é p e n sa d o n o p resen te .
A dificuldade, b em conhecida, é sab er que a d o u
trin a do tem p o , d a d u ra ç ã o envolve a do com eço com o
n o rm a . A tese q u e ro n d a é a de u m com eço p erp étu o ,
u m a das q u im e ra s do século, e q u im e ra suicida que
m u ito s a rtis ta s p a g a ra m com a vida. Há, p o rém , o u
tro s p ro b lem as, em p a rtic u la r este: se o com eço é im
p e rativ o , com o se d istin g u e de recom eço? C om o fazer
d a v id a da a rte u m a espécie de m a n h ã e te rn a sem re s
ta u r a r a repetição.
Essas questõ es p ro d u z e m , com o c o n sta ta m o s no
p o em a frenético de Á lv aro de C am pos, d esg aste fa ta l
do com eço. A co n seq ü ên cia m ais m edíocre, o u m ais
com ercial, desse d esg aste é a necessidade de in v e n ta r
q u ase que c o n sta n te m e n te o u tr a d o u trin a rad ical do
com eço, de m u d a r de p a ra d ig m a fo rm al, de s u b s titu ir
u m a v a n g u a rd a p o r o u tra , o acm eísm o pelo su p re m a -
tism o o u o sen sacio n ism o pelo fu tu rism o . Essa fo rm a
b a ix a to m o u n o s a n o s 60 e 70, especialm ente n o s Es
206
ta d o s U nidos, a r de sucessão acelerad a de "m u taçõ es"
fo rm ais, de m o d o que a v id a das a rte s p lásticas cal
cav a-se sobre a d a m o d a das ro u p a s. A fo rm a eleva
da, que te n ta c o n se rv a r a in ten sid ad e p resen te do ato
a rtístic o , consiste em conceber a p ró p ria o b ra de a rte
com o c o m b u stã o q u ase in s ta n tâ n e a da p o tê n cia de seu
com eço. A idéia d ire triz é q u e o com eço e o fim aca b am
p o r coincidir n a in ten sid ad e de u m a to ú n ico . C om o já
dizia M allarm é, "o d ra m a se d á de im ed iato , o tem p o
de m o s tr a r s u a d e rro ta q u e se d esen ro la fu lg u ra n te
m e n te". Essas "d erro tas", q u e são a v itó ria do p resen te
p u ro , sin g u la riz a m p o r exem plo peças de W ebern, que
ro ç a m p o r a lg u n s seg u n d o s u m silêncio q u e as a b so r
ve, o u certas c o n stru çõ e s p lá sticas que estão p resen tes
ap e n a s p a ra serem a p ag a d as, o u certo s p o em as co m i
dos pelo b ra n c o da p ág in a.
Com o nesse caso as o b ras são incertas, q u ase esvae
cidas an tes de nascer, o u co n cen trad as n o gesto do a rtis
ta m ais do que em seu resu ltad o (assim a action-painting
sob diferentes form as), é preciso co n serv ar seu p ro p ó sito
n a teoria, n o com en tário , n a declaração. É preciso g u a r
d a r m ed ian te a escrita a fó rm u la desse p o u co -real extor
quido pela fugacidade das fo rm as.
D aí que declarações e m an ifesto s são, ao longo do
século, atividades essenciais das v a n g u a rd a s. Foi dito
p o r vezes que era a p ro v a de su a esterilidade artística.
Com o se vê, d esm in to esses desprezos retrospectivos. O
M an ifesto -testem u n h a, ao co n trá rio , v io len ta te n são v i
san d o a su jeitar ao real to d o s os poderes d a fo rm a e do
sem blante.
207
Que é M anifesto? A q u estão interessa-m e ta n to m ais
pelo fato de eu p ró p rio te r escrito, em 1989, u m M anifes
to pela filosofia.* A tradição m o d ern a do m anifesto está
estabelecida desde 1848 com o M anifesto do Partido Comu
nista de M arx. Parece realm ente que m anifesto é anúncio,
p ro g ram a . "Os p ro letário s n ad a tê m a perder, exceto seus
grilhões. Têm u m m u n d o a g a n h a r" , conclui M arx. Esse
"m u n d o a g a n h a r" é opção p a ra o fu tu ro . O p ro g ra m á
tico n ão é, parece, da ord em da u rgência presente do real.
T rata-se de finalidade, das condições do que v irá u m dia,
de u m a prom essa. Com o com preender que o im perativo
do ato e do presente te n h a sido inscrito em ta n ta s declara
ções e m anifestos? Q ual é ainda essa dialética do presente
e do fu tu ro , da intervenção im ediata e da anunciação?
É sem dú v id a o m o m en to de dizer u m a p a la v ra de
A ndré Breton, do q u al ex trairei a segu ir o tex to do dia.
Q uem m ais que ele, no século, v in cu lo u as p ro m essas
d a a rte n o v a à fo rm a política do M anifesto? Prim eiro e
segundo M anifesto do surrealism o** estão aí p a ra teste
m u n h a r. M as, de m a n e ira m ais insistente, é to d o o estilo
de B reton que está v o ltad o p a ra a to rm e n ta do fu tu ro , a
certeza poética de u m a vin d a : 'A beleza será convulsiva
o u n ão será". Onde, pois, reside essa beleza, cujo a trib u to
("convulsiva") b em se vê é o de u m real vio len tad o , m as
que, fo ra do p resente, p erm anece su sp en sa à a lte rn a tiv a
de "ser o u n ão ser", assim com o M arx po d ia convocar a
H istória h u m a n a p a ra o a n g u s tia n te dilem a: "socialism o
208
o u barbárie"? O gênio de B reton co n cen tra-se freq ü en te
m e n te nessas fó rm u la s em que a im ag em m o s tra a car
ga d a u rg ên cia, m as ao m esm o tem p o n ão se en co n tra
asseg u rad o nelas que a própria coisa já esteja presente.
No te x to que v o u ler, en co n tra-se: "Ela [a rebelião] é a
faísca que p ro c u ra a fábrica de pólvora". A faísca é n a
v erdade co n su m ação do passado, m as onde está, pois,
essa "fábrica de pólvora" p ro cu rad a? É, localizado pela
escrita, o m esm o p ro b lem a que o global, o da fu n ção
dos M anifestos. Onde se s itu a o p o n to de equilíbrio en tre
a pressão do real, que é v o n ta d e ab so lu ta do presente,
dissipação da energia n u m só ato , e o que o p ro g ra m a , o
an ú n cio , a declaração de in ten ção su p õ em de espera e de
apoio conseguido no indiscernível fu tu ro ?
M inha hipótese é que, ao m enos p a ra aqueles que no
século estão a to rm e n ta d o s co m a paixão pelo p resente, o
M anifesto sem pre é retó rica que serve de g u a rid a a algo
diferente do que ela n o m eia e an u n cia. A atividade a r
tística real p erm an ece sem pre descen trad a co m relação
aos p ro g ra m a s que declaram com insolência su a n o v i
dade, assim com o o que h á de inventivo n o p en sam e n to
de H eidegger perm anece e stra n h o ao an ú n cio patético, e
que p ro d u z g ran d e efeito, de u m a "virada salv ad o ra", o u
do ad v en to poético e p en san te de u m Deus.
O p ro b lem a é m ais u m a vez o do tem p o . O M anifes
to é a reco n stru ção , em fu tu ro in d eterm in ad o , daquilo
que - sendo da o rd em do ato , d a fu lg u raç ão logo esm ae
cida - n ã o se deixa n o m e a r n o presente. R econstrução
daquilo ao qual, to m ad o que é n a sin g u larid ad e evanes
cente de seu ser, n ão convém n e n h u m nom e.
209
De W ittg en stein a Lacan p erco rre no século o e n u n
ciado: "N ão h á m e talin g u ag em ". O que q u e r dizer que a
lin g u ag em está sem pre a ta d a ao real de ta l m a n e ira que
n e n h u m a o u tr a te m atizaçã o lin g ü ística desse n ó é p o s
sível. A lin g u ag em d iz, e esse "dito" n ão pode ser re-d ito
com n e n h u m dizer p ertin en te. L eitura co m petente dos
M anifestos e declarações das v a n g u a rd a s deve sem pre
ser feita com base n o axiom a: n ão h á m etalin g u ag em
p e rtin en te à p ro d u ção artística. Na m edida em que u m a
declaração refere-se a essa p ro d u ção , ela n ão pode cap
tu r a r seu presen te e é, p o rta n to , m u ito n a tu ra l inven-
ta r-lh e u m fu tu ro .
Essa invenção retó rica de u m p o rv ir daquilo que está
existindo sob a fo rm a do ato é, n o tem o s, algo ú til, até
necessário em política e em arte, assim com o em am or,
em que o "Eu te am o p a ra sem pre" é o M anifesto, evi
d en tem en te su rrealista, de u m a to incerto. Q u an d o La
can diz: "Não h á relação sexual", q u er ig u alm en te dizer
que n ã o h á m e talin g u ag em do sexo. O ra, é u m teo rem a
que onde n ão h á m e talin g u ag em deve su rg ir u m a re tó ri
ca projetiva. Essa retó rica ab rig a n a lín g u a o que ocorre,
sem , e n tre ta n to , n o m eá-lo o u apreendê-lo. O "eu te am o
p a ra sem pre" é fig u ra de retó rica to ta lm e n te ú til p a ra a
p ro teção dos poderes ativos do v ín cu lo sexual, em b o ra
n ã o te n h a n e n h u m a relação com esses poderes.
N ão é boa crítica de u m p ro g ra m a estético c o n sta ta r
que n e n h u m a de su as p ro m essas foi cu m p rid a. De certo,
as belezas incontestáveis da a rte p oética de B retón n ad a
tê m de "convulsivo". Reconhecemos m u ito m ais nela a
re sta u ra ç ã o de u m a lín g u a francesa esquecida, ao m es
210
m o te m p o c a rn u d a e im ag in o sa, e m u ito solidam ente
a rq u ite tu ra d a m ed ian te sin tax e o rató ria. M as p ro g ra
m a n ão é n em c o n tra to n em p ro m essa. É retó rica que
m a n té m com o que realm en te ocorre ap en as relação de
envolvim ento e proteção.
As v a n g u a rd a s a tiv a ra m no p resen te as r u p tu r a s
fo rm ais e sim u lta n e a m e n te p ro d u zira m , sob fo rm a de
m an ifesto s e declarações, o in vólucro retó rico dessa a ti
vação. P ro d u ziram o in v ó lu cro do p resente real em fu
tu ro fictício. E c h a m a ra m de "experiência artístic a nova"
essa d u p la proteção.
Logo, n ã o nos c a u s a rá esp an to a correlação en tre
o b ras evanescentes e p ro g ra m a s re tu m b a n te s. A ação
real existe, sem pre p recária e q uase in d istin ta , de m odo
que ela deve ser a p o n tad a, salientada, com v ig o ro sas de
clarações, u m pouco com o o ap resen tad o r de circo a m
plifica o an ú n cio e faz b a te r o ta m b o r p a ra que u m a
p iru e ta d a trap e zista , m u ito difícil e n o v a, m a s m u ito
fugaz, n ã o fique ig n o rad a pelo público.
Em su m a, tu d o isso visa realm en te a dedicar as
energias ao presente, m esm o que a subjetivação desse
presente caia às vezes n o logro da retó rica d a esperança.
Só a co n statação de u m a fabricação do p resen te liga as
pessoas às políticas de em ancipação, o u à a rte co n tem
p o rân ea. M esm o o fu tu rism o , a despeito de seu nom e,
era fabricação do presente.
O que caracteriza n osso hoje, que q uase n ã o m erece
ser ch am ad o - p a ra re to m a r u m a expressão de M allar-
m é - de u m "belo hoje", é a au sên cia de to d o presente,
n o sentido do presen te real. Os an o s que se seg u iram a
211
1980 assem elh am -se ao que M allarm é diz ju s ta m e n te
dos anos que se seg u em a 1880: "Falta u m presente".
C om o os períodos co n tra -rev o lu cio n ário s se assem elh am
bem m ais do que as revoluções, n ã o se deve esp a n ta r
com o fato de que, depois do "g au ch ism o " dos an o s 60,
vo lta-se às idéias reativ as que se seg u iram à C o m u n a
de Paris. É que o in terv alo en tre u m acon tecim en to da
em ancipação e o u tro nos deixa falacio sam en te cativos
da idéia de que n a d a com eça n em v ai com eçar, m esm o
que sejam os to m ad o s de in fern al ag itação im óvel. Por
ta n to , re to rn a m o s, sem te r seus m eios, ao classicism o:
tu d o já com eçou desde sem pre, e é in ú til im a g in a r que
alg u ém fu n d a com base em n ad a, q u e se v ai criar u m a
a rte n o v a o u u m h o m e m novo.
É bem isso que a u to riz a a dizer q u e o século acabou,
j á que se pode definir a a rte do século XX e o que as v a n
g u a rd a s fo rm a liz a ra m , com o a te n ta tiv a radical de a rte
n ã o clássica.
A lguns fu n d a m e n to s subjetivados desse n ão -clas-
sicism o, alg u n s elem entos de seu p ro g ra m a e m u ito s
exem plos de retó rica p ro te to ra estão contidos n o tex to
de A ndré B reton co m o q u al v o u concluir.
212
suas estranhas capacidades, para poder saudar com o
m esm o dom ilimitado de si m esm o o que vale a pena
viver. A única desgraça definitiva em que se poderia
incorrer diante de tal dor, porque ela to rn a ria im pos
sível essa conversão de sinal, seria opor-lhe a resig
nação. Sob qualquer ângulo que, diante de m im , tu
tenhas m encionado reações às quais te expôs o m aior
desastre que tenhas concebido, sempre te vi enaltecer
a rebelião. Não há, com efeito, mais descarada m en
tira do que aquela que consiste em sustentar, m es
m o e sobretudo, em presença do irreparável, que a
rebelião de nada serve. A rebelião se justifica por si
m esm a, com pletam ente independente das oportuni
dades que tem de m odificar ou não o estado de fato
que a determ ina. Ela é a faísca no vento, m as a faísca
que procura a fábrica de pólvora. Venero o fogo som
brio que passa nos teus olhos cada vez que recupe
ras consciência do dano irreparável que te causaram
e que se exalta e se som breia m ais ainda à lem brança
dos miseráveis sacerdotes tentando aproxim ar-se de ti
naquela ocasião. Sei tam bém que é o m esm o fogo que
produz para m im tão altas as suas cham as claras, que
as enlaça em quim eras vivas aos m eus olhos. E sei
que o amor, que nesse ponto só conta com ele mesmo,
não posso retom á-lo de ti, e que o m eu am or por ti
renasce das cinzas do sol. Por isso, cada vez que um a
associação de idéias traiçoeiram ente te leva de volta a
esse ponto em que, p ara ti, toda a esperança u m dia
foi renegada e, por m ais alto que te encontres então,
ameaça, como flecha procurando a asa, precipitar-te
213
de novo no abism o, sentindo eu m esm o a inutilidade
de toda palavra de consolo e considerando toda ten
tativa de diversão como indigna, convenci-me de que
só u m a fórm ula m ágica, neste caso, poderia ser ope
rante, m as que fórm ula poderia condensar nela e de
volver-te im ediatam ente toda a força de viver, de viver
com toda a intensidade possível, ao passo que sei que
ela te havia sido devolvida tão lentam ente? Aquela, à
qual decido apegar-m e, a única pela qual julgo acei
tável fazer-te voltar para m im , quando te acontece de
inclinar-te de repente em direção da o u tra vertente,
encerra-se nestas palavras com que, ao passo que co
meças a desviar a cabeça, quero som ente roçar o teu
ouvido: Osíris é um deus negro.
214
ren ça pela p ra g m á tic a dos resu ltad o s, hoje m ereceria ele
ser lido e relido.
Q u a tro observações, p a ra ap o iar a le itu ra.
215
N ão h á alq u im ia que p o ssa m u d a r o sinal dos estados
h ab itu ais, que possa, baseado em sinal n eu tro , p ro d u z ir
excesso encantador, rebelião criad o ra. Só se pode p assar
de excesso sofrido, infligido, de terrív el sinal negativo,
de sinal negro (com o o deus Osíris), p a ra a possibilidade
co n q u istad a de sa u d a r "o que vale a p en a viver". Essa
p assag em é operação ao m esm o tem p o v o lu n tá ria e m i
racu lo sa que in v erte o sinal do excesso, e que B retón
n om eia de "rebelião".
A lição capital de to d a essa elaboração é: saber s u
p o rta r as m ais terrív eis dores é v irtu d e criadora, e que
n ã o hav eria n ad a que valesse a p en a se n ã o fôssem os ex
postos ao excesso. R eencontram os nisso o tip o p a rtic u la r
de estoicism o que o desejo in d u z a tir a r da v id a tu d o o
que ela contém de intensidade. E ta m b é m o elogio p a ra
doxal da passividade criadora, que j á en co n tram o s es
pecialm ente n o p o em a de F ernando Pessoa. Com efeito,
aceitar a lição do que h á de pio r é condição da in ten si
dade vital. É preciso, m ed ian te aceitação rebelde, "haver
ido ao fu n d o da d o r h u m a n a , h av er descoberto su as es
tra n h a s capacidades" p a ra poder re s titu ir "toda a força
de viver, de viver com to d a a in ten sid ad e possível". Toda
afirm ação deve ser co n q u istad a, o u reco n q u istad a, com
base n u m a exposição co n sen tid a ao sinal n eg ativ o do
excesso, e a passividade arriscad a de u m a exposição ao
p io r é o recurso m ais p ro fu n d o da v id a afirm ativ a. De
fato , a criação só pode ser m u d a n ç a de sinal do excesso,
n ã o o sobrevir do p ró p rio excesso. Nesse sentido, repe
lindo a lim alh a do espírito do pólo n eg ativ o p a ra o pólo
positivo, e con fo rm e o u tra im ag em q u erid a a B retón,
216
ela é operação m agn ética. O peração que, fazen d o p a ssa r
"o indisponível h u m a n o p a ra o lado do disponível", con
fro n te o sujeito com seu p ró p rio im possível e, p o rta n to ,
com su a capacidade p ro p ria m e n te real.
217
consiste em n ã o defender d iretam e n te que a rebelião é
m á. O "sacerdote" u s a v o z insidiosa que é hoje a que p o r
to d o can to m u r m u r a o u vocifera, a v oz dos políticos,
dos ensaístas e dos jo rn a lis ta s . Essa v o z pede dia após
dia que se faça o fa v o r de av aliar a rebelião segundo seus
resu ltad o s, e co m p a rá -la - ap en as m ed ian te este critério
- com a resignação. Ela estabelece, então, com m odesto
triu n fo , que p a ra resu ltad o s objetivos com paráveis, o u
m esm o m u ita s vezes inferiores, a rebelião é ex tre m a
m e n te cu sto sa em te rm o s de vida, de dores, de d ram as.
É a essa onipresen te v o z "realista" que de fo rm a esp eta
c u la r B reton declara que ela ap en as faz exprim ir a "m ais
descarada m e n tira", v isto que a rebelião n ã o m a n té m
n e n h u m a relação com a p ra g m á tic a de resu ltad o s.
U m a das p oderosas fo rm as da paix ão pelo real, da
ação p en sad a a q u i e ag o ra, do v a lo r in trín seco da rev o lta
(o ax io m a de M ao, "tem os ra z ã o de rev o ltar-n o s"), te rá
sido, até esses ú ltim o s anos, a recu sa a lta n e ira de com
parecer diante do trib u n a l em b u steiro dos resu ltad o s
econôm icos, sociais, "h u m an o s" e o u tro s. No âm ag o da
are n g a realista do sacerdote h á ap en as o desejo reativo
de fo rçar os sujeitos a escolher o p ra to de len tilh as que
no s é servido com o c o n tra p a rtid a de n o ssa resignação.
Se o século foi nietzschiano, é ta m b ém p o rq u e v iu
n o sacerdote bem m ais que u m fun cio n ário das religiões
estabelecidas. É sacerdote q u alq u er u m que deixa de con
siderar a rebelião com o valo r incondicionado, é sacerdo
te q u alq u er u m que m ede tu d o segundo seus resultados
"objetivos". Nesse fim de século, que pena!, h á sacerdote
p o r to d a parte.
218
3. "M eu am or por ti renasce das cinzas do sol"
O século foi u m g ra n d e século d a p ro m o ç ã o do
a m o r com o fig u ra de v erd ad e , o q u e é to ta lm e n te d i
fe re n te d a concep ção f a ta lis ta e fu s io n a i do r o m a n tis
m o , ta l com o e stá im o rta liz a d a em Tristão e Isolda de
W agner. A p sican á lise tev e s u a p a r te n e ssa tr a n s f o r
m a ção , a ssim co m o as su cessiv as v a g a s d a lu ta pelos
d ire ito s das m u lh e re s. O q u e de c a p ita l e stá em jo g o é
p e n s a r o a m o r n ã o co m o d estin o , m a s co m o e n c o n tro
e p e n s a m e n to ,44 devir ig u a litá rio d essim é trico , in v e n
ção de si.
O su rrealism o foi etap a dessa reco n stru ção do a m o r
com o cenário de verdade, do a m o r com o procedim ento
p a ra u m a verdade da diferença.45 U m a etap a som ente,
p o rq u e o su rrealism o co n tin u a ain d a prisioneiro de m i
tologias sexuais que g ira m em to rn o de u m a fem inilidade
m isteriosa e fatal, a que passeia, n as ru a s da m etrópole,
219
n u a sob m a n to de pele. D aí decorre visão m u ito u n ilate-
ralm en te m ascu lin a, cujo clássico reverso é o elogio h i
perbólico da M ulher. No p ró p rio tex to citado, q u an d o se
v en era “o fogo som brio que p assa nos teu s olhos", algo
de id o latria m ais estética do que a m o ro sa se deixa ouvir.
No e n tan to , o su rrealism o e especialm ente B reton m ais
que a c o m p a n h a ra m o m o v im en to pelo q u al as m u lh eres
su b iam ao palco do a m o r com o as m assas tin h a m subi
do ao palco da H istória: p a ra to rn a r-se sujeito de u m a
verdade. Q uando B reton escreve que "o a m o r que nesse
p o n to só co n ta com ele m esm o, n ão posso reto m á-lo ",
diz algo essencial. O a m o r já n ão pode ser fu são m ísti
ca, conjunção astral, proposição ao h o m e m de u m Eter
n o fem inino, m esm o que p a ra levá-lo "p ara o alto ".46 É
a v e n tu ra d u al do corpo e do espírito, experiência e p en sa
m e n to do que é o Dois, m u n d o refratado e tran sfig u ra d o
n o contraste. Desse m u n d o , n ão h á reto m ad a.
No fundo, lig an d o o a m o r à an tid ialética do excesso,
B reton inclui-o n o s recu rso s p en san tes da vida, n a ap o s-
220
ta da intensidade. Daí, com o n osso tex to te ste m u n h a , é
sem d úvida hoje a u m a m u lh e r que m e lh o r cabe ser a
h ero ín a incontestáv el e co m p leta de ta l ap o sta.
221
ve o p ro g ra m a . Em política, to d o o m u n d o sabe que a
fó rm u la é a p a la v ra de ordem , q u an d o ela se ap o d era da
situação, q u an d o é re to m a d a p o r m ilh ares de pessoas
em m a rc h a. Q u an d o a fó rm u la é en co n trad a, já n ã o se
pode d istin g u ir en tre o corpo m a te ria l e o espírito de
invenção que o h ab ita, estam o s com o R im baud, de novo
ele, n o fim de Uma estadia no inferno:* "Conhecerei a v er
dade n u m a a lm a e n u m corpo". Para B reton, a fó rm u la
d á seu no m e à m u d a n ç a de sinal, à p assag em rebelde da
d o r p a ra a intensidade a firm a tiv a da vida. Boa p a rte das
iniciativas do século, ta n to políticas q u a n to artísticas,
foi dedicada a e n c o n tra r a fó rm u la, p o n to ínfim o de fi
xação ao real d aq u ilo que an u n c ia su a novidade, estalo
n a lín g u a pela q u al u m a p alav ra, u m a só, é a m esm a
coisa que u m corpo.
No au g e de su a síntese, a a rte do século - m a s ta m
bém , segundo seus p ró p rio s recursos, to d o s os procedi
m en to s de verdade - visa a co n ju g ar o presente, a in te n
sidade real da vida, e o n o m e desse p resen te dado n a fó r
m u la que é sem pre ta m b é m a invenção de u m a fo rm a.
E ntão a dor do m u n d o se m u d a em alegria.
P roduzir u m a in ten sid ad e desconhecida, sobre u m
fu n d o de dor, m ed ian te a intersecção sem pre im p ro v á
vel de u m a fó rm u la e de u m in sta n te: ta l é o desejo do
século. D aí que a despeito de su a crueldade m u ltifo rm e,
ele chega a ser, m ed ian te seus artista s, seus sábios, seus
m ilitan tes e seus a m an tes, a p ró p ria Ação.
222
28 de março de 2000
1. A n a lo g ia s d a m a n h ã
47 Pode-se citar nessa linha de pensamento (em Rancière, ela acompanha num
entretom a linha arqueológico-operária, mas continua enxertada no século XIX),
em primeiro lugar, a edição do seminário de muita notoriedade que dirigiu e que,
como o faz o livro que recolhe suas exposições, intitulava-se significativamente
La politique des poetes (Paris, Albin Michel, 1992). Mas também, desta vez
voltado para a prosa, o opúsculo La parole muette (Paris, Hachette, 1998).
224
fu ro r secessionista, incessantes diatribes c o n tra este o u
aquele e protocolo s de exclusão.
Seria b em in teressa n te estu d a r a q u estão in stitu c io
n a l da exclusão com o p rá tic a fu n d a m e n ta l de to d o s os
g ru p o s com a lg u m a inventividade n o século, sejam eles
v a sta s potências estatais, com o n u m e ro so s p artid o s co
m u n ista s, sejam eles pequeníssim os a g ru p a m e n to s es
téticos, com o os situ acio n istas. Parece que a convicção,
afinal séria, de que se v ai to c a r no real im plica u m a fe-
brilidade subjetiva ex trem a, da q u al u m a das m an ifes
tações é a assinalação p e rm a n e n te de heréticos e suspei
tos. Essa d ep u ração crônica n ão foi m o n op ó lio dos sta -
linistas, longe disso. Personalidades tã o diversas com o
Freud, A ndré B retón, Trotski, G uy Debord, Lacan leva
ra m ad ian te processos im placáveis p o r cau sa de desvio,
estig m atizaram , excluíram o u d isp ersaram n u m e ro so s
heréticos.
A exclusão está certam en te ligada à dificuldade que
existe em d e te rm in a r os critérios da ação legítim a, q u a n
do su a p ed ra de to q u e é a su b v ersão real. Tudo co nduz
en tão a essa identificação n eg ativ a da q u al j á falei: a es
sência do U m está n o Dois, só se está seg uro de su a p ró
p ria u n idade n a p ro v a da divisão. Daí a encenação solene
das cisões e das exclusões. U m a das g ran d es m áx im as
do Partido C o m u n ista Francês (PCF) em su a época stali-
n ista inicial - a única, a b em dizer, em que esse p artid o
m edíocre ao m enos significou a lg u m a coisa - era que as
pessoas n ão deixavam o Partido, m as sim era m exclu
ídas dele. N ão se pode liv rem en te ficar desobrigado do
real se se to c o u nele. É ele que nos ju lg a in dignos dele.
225
O u tro m odo de dizer, com o v im os B recht fazer: "N ão se
separe de nós".
A b em dizer, in te rro g a r-s e so b re a fre q ü ê n c ia das
exclusões e cisões n o s g ru p o s p o étic o -p o lític o s e q u iv a
le a co lo car o a c e n to n a p a la v ra "p o lítica". A final, n o
século, o que d e n o m in a essa p a la v ra p a r a q u e se p o ssa
tr a n s f e r ir aos im p e ra tiv o s da a r te a tra d ic io n a l v io lê n
cia dos co n flito s de p o d er? H á u m a h is tó ria d a p a la v ra
"p o lítica", e dev em o s p o s tu la r q u e s u a sig n ificação te
n h a sido re in v e n ta d a pelo século. Q u a n d o se a trib u i à
a r te v o cação p o lític a, q u e q u e r d izer "política"? Desde
os an o s 20 , a p a la v ra a m p lia -s e a p o n to de d esignar,
de m o d o v ag o , to d a r u p t u r a rad ic al, to d a saíd a fo ra
do co n sen so . "Política" é o n o m e c o m u m p a r a r u p t u
r a c o letiv a m en te reco n h ecid a. N esse sen tid o , p o d e-se
im a g in a r p o r q u e ex istem in u m e rá v e is g ru p o s "p o líti
cos", ta n to a rtís tic o s com o p sican a lítico s, te a tra is o u
cívicos, p o ético s o u m u sic ais; p o r q u e ra z ã o se ch eg a
a s u s te n ta r, com o depois de M aio de 68, que "tu d o é
p o lítico ", p rin c ip a lm e n te a sex u alid ad e. "Político" de
n o m in a o desejo do com eço, o desejo de q u e a lg u m
fra g m e n to do re a l seja en fim exibido sem m ed o n e m
lei, m e d ia n te a p e n a s o efeito d a in v e n ção h u m a n a - a
in v e n ção a rtís tic a , p o r exem plo, o u a eró tica, o u a das
ciências. A co n ex ão a rte /p o lític a é in c o m p reen sív e l se
n ã o se der à p a la v ra "político" esse sen tid o a m p lia d o
e su b jetiv ad o .
E n tre ta n to , p o r m ais tra n s fo rm a d a que seja, a p a
la v ra "político" rem e te sem p re em ú ltim a in stâ n c ia à
p o lítica p ro fissio n al, à que co n cern e ao poder, ao Es-
226
ta d o , e ta n to m ais q u e as p a la v ra s "rebelião", "rev o lu
ção", " v an g u ard a" ficam divididas en tre a a rte com o
p o lítica e a a rte p o lítica (é Lenin que disse q u e a in s u r
reição e ra arte). O perigo, en tão , co n siste em tr a n s f o r
m a r a vocação p o lítica d a a rte , que é s u a v ocação no
com eço real, em a ssu je ita m e n to o p o rtu n is ta ao P artido
o u ao Estado. É q u e te m o s dois p rocessos im bricados:
u m processo in te rn o à a rte , que co n cern e à r u p tu r a ,
à p aix ão pelo real com o m a n h ã do Ser ta l com o ela
se in v e n ta n a ativ açã o das fo rm as; e u m p rocesso ex
te rn o , que diz resp eito à posição da a rte e dos a rtis ta s
com relação a políticas efetivas e o rg a n iz a d a s, em p a r
tic u la r às políticas rev o lu c io n árias que ta m b é m fa la m
da r u p tu r a e d a m a n h ã , m as o fazem em n o m e de u m
in fin ito coletivo que n a m a io ria das vezes se a p re se n ta
com o tra n sc e n d e n te a to d a s as r u p tu r a s p a rtic u la re s. A
q u e stã o é en tã o inevitável: q u a l o g ra u de a u to n o m ia
das revoluções a rtístic a s e, p o rta n to , das v a n g u a rd a s
a rtístic a s, em relação à rev o lu ção p o lítica e, p o rta n to ,
em relação ao P artido que é o d irig en te dessa rev o lu ção
o u ao m en o s q u e m a b o n a s u a possibilidade? P ara os
q ue ace ita m co m ed id am en te a in clu são d aq u elas n esta,
h á m o m e n to s em que a liberdade a b s o lu ta reiv in d icad a
p ela a rte se in v erte em su b m issão a b s o lu ta às d ireti
vas do P artido. Esse en ig m a dialético é a p en a s u m a das
sínteses d isju n tiv as em q u e se concretiza, n o século,
a p aix ão pelo real. N ão é co n tra d ição fo rm a l. E ntre o
Louis A ra g o n s u rre a lista q u e d ifu n d e fu rtiv a m e n te o
devaneio p o rn o g rá fic o Le con d lrè n e e q u e m ais ta rd e
diz do ícone fem inino:
Teus olhos são tão profundos que m e inclinando
para beber
vi todos os sóis virem neles se m irar.
Teus olhos são tão profundos que neles perco a
m em ória.
228
demais unificada de su a fragm entação foi que n em a arte
de v a n g u ard a nem a política revolucionária fo ram as be
neficiárias de su a proclam ada "fusão". Sabemos hoje que
são dois procedim entos de verdade distintos, duas confron
tações heterogêneas da invenção pensante das form as e da
indistinção do real. Só o sabem os, entretanto, p o r term os
re-pensado o destino das v an g u ard as e p o r term os, p ara
sem pre, saudado su a esplêndida e violenta am bição.
Igualm ente, p o r ocasião ju s ta m e n te dos g ru p o s p o -
ético-políticos, a essência v erd ad eira da 'fu sã o ' era ser
v ir de v e to r a u m a q u estão m ais an tig a, e p ró p ria das
verdades da arte, a q u estão da objetividade artística, a
q u estão do que as arte s produzem.
229
m im . Sob sua fo rm a m ais radical, a orientação p a ra u m a
inoperância da a rte a firm a que a p ró p ria arte, com o ati
vidade separada, deve desaparecer, que ela deve realizar-
se com o vida. Tal hiper-hegelianism o propõe su p erar a
a rte n u m a estetização do cotidiano. Esse se -to rn ar-arte
da vida co n stitu ía u m a das orientações fu n d am en tais do
situacionism o, com a condição de que fosse im anente,
subjetivado de m a n eira intensa, e ja m a is p ro p o sto com o
espetáculo. Os filmes de G uy Debord, e de m odo especial
o grandem ente fascinante In girum im us nocte et consu-
m im ur igni, b uscam ser ao m esm o tem p o atos, até m es
m o destruidores, e os m anifestos desses atos; in te n ta m
enunciar o fim do cinem a com o p ro d u ção de espetáculos
e realizar essa m e ta em film es que sejam não-film es (na
verdade, são apenas, o que j á é considerável, belas m edi
tações nostálgicas. Isso, porém , é o u tra história).
Essa discussão forçada e que realm en te n u n c a conclui
pela inutilidade das obras n em pela encenação dos ato s é
n a m in h a opinião, em arte com o em o u tra s questões, u m
dos avatares de ta re fa que o século se d eterm in o u e que
n ão pôde levar a cabo. Essa tarefa consiste em en co n trar
os m eios de r u p tu r a decisiva com o ro m an tism o .
Q ual é o to rm e n to do século? É que ele se dispõe
a acab ar com o ro m a n tism o do Ideal, a m a n ter-se no
a b ru p to do efetivam ente-real, m as que o faz com m eios
subjetivos (o e n tu siasm o som brio, o niilism o exaltado, o
cu lto da g u erra...) que são ain d a e sem p re ro m ân tico s.
Isso aju d a a com preender as incertezas do século, e
ta m b é m su a ferocidade. Todo o m u n d o diz: "É preciso
p a ra r de sonhar, de c a n ta r o Ideal. Ação! Ao real! O fim
230
ju stific a os m eios!", m a s a relação exata, n essa subjeti
vidade ten sa, en tre a fin itu d e dos desejos e o in fin ito das
situações, p erm an ece m a rc a d a p o r exagero ro m án tico .
No a n ti-ro m a n s tism o do século, discerne-se, p o r cau sa
da p ersistência do elem ento ro m án tico , algo de ra iv o
so, u m en ca rn içam en to d a ação c o n tra ela p ró p ria e de
todos c o n tra todos, que v ai d u ra r até que se estabeleça,
p o r fadiga e satu raç ão , a p rete n d id a p a z doída de hoje.
M as, enfim , que é o ro m an tism o ? D uas coisas, te
n u em en te articu la d as ñ as o b ras e n as declarações.
231
A cabar com o ro m a n tism o n a a rte equivale, pois, a
dessacralizar a o b ra (chegando até a seu rep ú d io a fav o r
do ready made de D ucham p, o u das instalações p ro v i
sórias) e a d e stitu ir o a rtis ta (chegando a p reco n izar a
dispersão do ato artístico n a v id a do dia-a-dia). Nesse
sentido, o século XX é sem d ú vida o p rim eiro a fixar-se
com o objetivo u m a a rte atéia, u m a a rte realm en te m a te
rialista, e é ju s ta m e n te o que faz de B recht - talvez o a r
tis ta m ais b ru ta lm e n te consciente disso que está em jo g o
- u m de seus ato re s privilegiados. Por que, e n tre ta n to , os
a rtista s, os filósofos, os en saístas p erm an ecem tã o fre
q ü en tem en te n o elem ento daq u ilo que com batem ? Por
que fazem ain d a tã o g ran d e u so do páthos rom ân tico ?
Por que a p ro sa de B retón, e a de D ebord, p a ra n ão fala r
da de M alrau x em seus escritos sobre a arte, o u da de
H eidegger confiando aos p o etas a g u a rd a do Ser, o u da
de René Clair, esse p o eta ta len to so que p o r vezes se to m a
p o r H eráclito, p o r que, pois, to d as essas retó ricas são tão
p ró x im as, n o fu n d o , da de V ictor H ugo, co m p reen d en
do aí a in trig a n te realização de u m a postura sublim e do
p e n sa d o r-a rtista m e d itan d o sobre a H istória?
É que se tra ta do infinito e que essa questão, q u an to ao
seu nó com a do real, está longe de ter chegado no século
a u m a clarificação capaz de au to rizar saída serena do ro
m antism o. Digam os que as lições fundam entais de Cantor,
profeta isolado e trem u lo de concepção integralm ente laici
zada do infinito, estão ainda longe, m esm o hoje, de ter pe
netrado no discurso dom inante da m odernidade artística.
Como a arte pode assu m ir a finitude inevitável de seus
meios, incorporando ao m esm o tem po a seu pensam ento
232
a infinitude do Ser? O ro m an tism o propõe dizer que a arte
é precisam ente o advento dessa infinitude no corpo finito
da obra. M as ele só pode fazer a preço de u m a espécie de
cristianism o generalizado. Se se quiser ro m p er com essa
religiosidade latente, é im p o rtan te en co n trar o u tra a rti
culação do finito e do infinito. É disso que o século n ão foi
verdadeiram ente capaz de m an eira coletiva e p ro g ra m á ti
ca, oscilando então entre a m an u ten ção de subjetividade
ro m ân tica que conteria em si o infinito, ao m enos com o
p ro g ram a de em ancipação, e o sacrifício integral do infini
to que n a realidade é liquidação da arte com o pensam ento.
O to rm en to da arte contem porânea a p ropósito do infinito
o in stala entre u m a im posição p ro g ram ática em que re
to rn a o páthos ro m ân tico e u m a iconoclastia niilista.
N en h u m verd ad eiro a rtis ta , en tre ta n to , é redutível
aos im passes coletivos, m esm o q u an d o co m p a rtilh a p u
blicam ente seus enunciados. Sua o b ra tra ç a cam in h o in
te rm ed iá rio en tre ro m a n tism o e niilism o, e a cada vez
reinventa, m esm o que seja ra ro que ela seja explícita,
u m a idéia origin al do in fin ito -real. Essa idéia equivale
a fazer com o se o in fin ito n ã o fosse o u tra coisa que o
p ró p rio finito, daí que o p en sam , n ão em su a fin itu d e
objetiva, m as n o ato do q u al resu lta. N ão h á in fin ito
separado o u ideal. H á fo rm a fin ita que, to m a d a n a a n i
m ação de seu ato , é o in fin ito do q u al a a rte é capaz. O
infinito n ã o é ca p tu ra d o na fo rm a, ele tra n sita pela fo r
ma. A fo rm a fin ita pode equivaler a a b e rtu ra infin ita, se
for u m acontecim ento, se fo r o que advém.
A a rte do século XX, n ã o n as declarações das v a n
g u ard as, m a s em seu processo efetivo, está m a rc ad a p o r
233
co n stan te in q u ietu d e fo rm al, to ta l im possibilidade de
m a n te r u m a d o u trin a das disposições locais, o u m esm o
das m a c ro e s tru tu ra s . Por quê? Porque a fo rm a é trâ n s i
to do ser, superação p e rm a n e n te de su a p ró p ria finitude,
e n ã o sim ples v irtu alid ad e a b s tra ta p a ra u m a descida do
Ideal, sob cujo im p u lso ela só te ria de "m o v im en ta r" os
dispositivos estabelecidos. Já n ã o pode haver, ju s ta m e n
te, dispositivo estabelecido. Existe so m en te a m ultiplica
ção das form alizações.
Os co m en taristas, n a su a m a io ria p artid ário s da
a tu a l R estauração - que evidentem ente ta m b é m é reação
artística, cujo alfa e ôm eg a é a sin istra m a n ia a n tiq u á ria
das in terp retaçõ es "barrocas" de q u a lq u e r m ú sica - , fre
q ü en tem en te a firm a m que "a a rte co n tem p o rân ea" (es
tr a n h a expressão, q u an d o se sabe que se tr a ta às vezes
de obras com o a de Schoenberg, de D u ch am p o u de M a-
levitch, que tê m q u ase u m século) te m sido "d o g m áti
ca", até "terro rista ". Podem n a v erdade ch a m a r de Terror
a paixão pelo real, concordo, m as q u an d o d en u n ciam a
o bstinação em a priori fo rm ais, é asn eira m irab o lan te. O
século está, ao co n trá rio , m arcad o p o r variabilidade sem
precedente dos im p erativ o s de co n stru çã o e o rn a m e n
tação, p o rq u e o que o solicita n ã o é o len to m o v im en to
histórico do equilíbrio das fo rm as, m a s a u rg ên cia de ta l
o u q u al fo rm alização experim ental.
A arte que os restau rad o res estig m atizam qu er ao
m esm o tem po so lap ar a encarnação, a fig u ra cristã da fi
n itu d e da obra, e m a n tê-la com o su p o rte de u m a a b e rtu ra
da fo rm a em que o infinito advém como desencarnação. A
visão m ais radical é evidentem ente su b stitu ir a objetivida-
234
de da obra p o r precariedades acontecim entais, disposições
form ais feitas p a ra serem desinstaladas, e m esm o happe
nings coextensivos à su a d u ração . H á ta m b ém o recurso
à im provisação sob todas as fo rm as, p o rq u e ela ilim ita a
fo rm a, im pede de prevê-la o u m esm o de fixar indicadores
estáveis. É, aliás, a razã o pela q u al o jazz, essa estu p en d a
escola de im provisação, é realm ente a rte do século.
Instalações, acontecim entos, happenings, im p ro v isa
ções: tu d o a p o n ta p a ra a b u sca de u m a espécie de te a tr a
lidade generalizada, j á que o te a tro sem pre a ssu m iu que
ele era a rte precária, a rte arte sa n al, ligada a in u m eráv eis
contingências públicas.49 O ideal do século é: que o infi
n ito possa re s u lta r de acaso cênico, estan d o j á decidida
a fo rm a de m a n e ira p arcial m a s rig o ro sa. Essa é su a di
retiv a p a ra retirar-se, com dificuldade, do ro m a n tism o .
É o ideal de form alização m aterialista. O in fin ito procede
diretam ente do finito.
O filósofo observa que nesse p o n to , com o n o que
concerne ao te m a do "fim da arte ", o século está em dis
cussão com Hegel. D essa vez, e n tre ta n to , n u m a p ro x i
m idade inconsciente m ais do que n u m a referência obses
siva m as conflituosa.
235
Para a q u ila ta r essa proxim idade, é preciso ler, em La
logique, n a seção "A q u an tid ad e", a exposição in titu la d a
"Infinitude q u a n tita tiv a " . Eu m e apóio n a tra d u ç ã o de
R-J. L abarrière e G w endoline Jarczy k . A definição sin
tética que Hegel p ro p õ e (falo aq u i su a língua) é que a
in fin itu d e [do q u a n tu m ] acontece q u an d o o ato de sair
p a ra além de si é reto m ad o em si p ró p rio . Hegel acres
centa que nesse m o m e n to o in fin ito excede a esfera do
q u a n tita tiv o e to rn a -s e q u alitativ o , to rn a -s e "q u alid a
de p u ra do p ró p rio finito". Em su m a: o in fin ito é n a
verdade, com o eu su ste n ta v a que a a rte co n tem p o rân ea
p ro p u n h a seu conceito real, determinação q u a lita tiva do
fin ito . M as em que condições? É aí que a análise hegelia-
n a nos é útil.
Hegel p a rte da co n statação de que o finito, to m ad o
em su a realidade concreta, é sem p re devir, m o v im en to ,
com o to d a categ o ria concreta. O que confere esse m o
v im en to à fin itu d e é que ele é repetitivo. É finito o que
n ão sai p a ra além de si, a n ão ser p a ra p erm an ecer aí.
E o que Hegel ch a m a de "o sair p a ra além de si" (das
H inausgehen). O fin ito é o que sai p a ra além de si em si
m esm o, o u seja, o que, saindo p a ra além de si p a ra p ro
d u z ir O utrem , p erm an ece n o elem ento do M esm o. Em
vez de alteração de si, h á ap en as iteração.
Acho m u ito p ro fu n d a a idéia seg u n d o a q u al a es
sência do finito n ão é a fro n teira, o lim ite, que são in -
tuições espaciais v ag as, m as a repetição. É ju s ta m e n te à
"com pulsão de repetição" que Freud, depois Lacan, a tri
b u irã o a finitu d e do desejo h u m a n o , cujo objeto re to rn a
sem pre ao m esm o lugar.
236
Hegel c o n tin u a en tão a firm a n d o que o sair p a ra além
de si com o série repetitiva, com o p a tin a r da saída de si
no M esm o, é o "m a u infinito"(cia.s Schlechte-Unendliche),
o que p o r exem plo faz com que depois de u m n ú m e ro
h a ja o u tro n ú m e ro e assim p o r d ian te "ao in finito". O
m a u in fin ito rep resen ta a esterilidade rep etitiv a do sair
de si. Nesse sentido, n ã o é o u tra coisa a n ão ser o p ró p rio
finito, em su a d eterm in ação n eg ativ a (a repetição).
É nesse p o n to que a análise de Hegel v ai d a r u m a
g u in ad a. Até ago ra, consideram os o sair p a ra além de si,
que é o ser concreto do finito, som ente em seu resultado:
a esterilidade repetitiv a, a iteração, a insistência do M es
m o. E n tretan to , c o n sta ta Hegel an tecip an d o os a rtista s
a tu a is, podem os te n ta r ap reen d er e p e n sa r o sair p a ra
além de si n ão m ais em seu resu ltad o que é ap en as u m
" m a u infinito", m as em seu ato. É preciso aq u i d istin g u ir
e te n ta r se p a ra r o ato e o resu ltad o , a essência criad o ra
do sair p a ra além de si e o fracasso da criação. Ou, hoje
diríam os, o gesto e a obra. N ão é p o rq u e u m ato é esté
ril que estam os dispensados de p en sá-lo como tal. Hegel
descobre en tão que a lg u m a coisa é realmente infinita no
"m a u infinito", a saber, o ato de sair p a ra além de si, n a
m edida em que se chega a desvinculá-lo da repetição.
D esvinculá-lo d a repetição e, p o rta n to , do resu ltad o , ex
pressa, n a lín g u a de Hegel, o "reto m ar em si m esm o".
C o n tra a tira n ia do resu ltad o objetivo, a "reto m ad a em
si m esm o" do ato de sair p a ra além de si p erm ite p en
sa r o fu n d o "subjetivo" do finito, isto é, o in fin ito real
im an en te a seu m o v im en to . A tingim os, en tão , o infini
to com o criação p u r a pela reap reen são do que faz v aler
237
"em si", e n ão n a repetição su b seq ü en te, a o b stin ação de
sair p a ra além de si. É essa capacidade criad o ra im a n e n
te, esse poder in d e stru tív el de "tran sp o sição " das b a rre i
ras, que é o in fin ito com o qualidade do finito.
N otem os q u e a a rte n o século XX se in te rro g a ig u a l
m e n te sobre as n o v a s fo rm a s de rep etição . N u m te x to
to rn a d o m u ito fam o so , W alter B enjam in p o n tu a (com
b ase n a fo to g ra fia , n o cinem a, n a s técnicas de serig ra-
fia etc.) que o século se ab re à série artístic a , ao p o d er
da "rep ro d u tib ilid ad e técnica". Pela ace n tu a ç ã o a r tís ti
ca do objeto serial (a bicicleta de D u ch am p , o u as co
lagens de to d o s tip o s do cubism o), tr a ta - s e n a v erdade
de circunscrever, de colocar em cena o a to rep etitiv o à
p a rte o v a lo r b r u to d a repetição. Esses gestos a rtístico s
são d em o n straçõ es d a "reto m ad a em si m esm o " hege-
lian a. N u m ero so s p ro jeto s a rtístico s do século v isa m a
q ue se to rn e sensível n u m a repetição a p o tên cia do ato
d a p ró p ria rep etição . É ex a ta m e n te o que Hegel n o m e ia
de in fin ito q u a lita tiv o , q u e é a visibilidade da potência
do fin ito .
Com o idéia, a o b ra de a rte do século XX é, com efei
to, apenas a visibilidade de seu ato . É nesse sentido que
u ltra p a s sa o p á th o s ro m ân tico da descida do in fin ito no
corpo finito d a o bra. De fato, ela n ão te m n a d a que m o s
tr a r de infinito a n ã o ser su a p ró p ria fin itu d e atuante.
Se a "obra" de a rte está sob essa n o rm a , com preende-
se bem que ela n ã o seja ex atam en te u m a obra, m enos
ain d a objeto sag rad o . Se u m a rtis ta faz apenas to r n a r
visível o ato p u ro im an en te a u m a repetição qualquer,
é claro que n ão é ex atam en te u m a rtista , u m m ediador
238
sublim e en tre o Ideal e o sensível. A ssim se e n co n tra re a
lizado o p ro g ra m a a n ti-ro m â n tic o de dessacralização da
o b ra e de dessublim ação do artista .
O p ro b lem a fu n d a m e n ta l que su rg e en tão é o do
vestígio, o u d a visibilidade do visível. Se tem o s recu rso
in fin ito apenas n a p u r a q u alidade ativ a, q u a l é o vestígio
dessa qualidade, suficiente p a ra que p o ssa sep arar-se v i
sivelm ente da repetição? H á vestígios do ato? Com o iso
la r o ato de seu resu ltad o sem reco rrer à fo rm a sem pre
sa g ra d a da obra?
Precisem os o p ro b le m a m e d ian te an alo g ia: pode-se
n o ta r rig o ro sa m e n te u m a co reo g rafia? A d an ça é, des
de os Balés ru sso s e Isad o ra D u n can , a rte fu n d a m e n ta l,
p recisa m en te p o rq u e ela é ap en as ato . P arad ig m a da
a rte evanescente, a d an ça n ã o faz o b ra n o sen tid o co r
ren te. Q ual é, p o rém , seu vestígio, onde en tã o ela faz
p e n sa m e n to circ u n sc rito de s u a sin g u larid ad e? H averia
vestígio ap en a s d a rep etição , e ja m a is de seu ato? En
tã o a a rte seria o q u e h á de irrep etív el n u m a repetição.
N ão h a v e ria o u tro d estin o q u e o de colocar em fo rm a
esse irrepetível. Resolvem os o p ro b lem a? N ão é certo. E
n ã o é preciso co n clu ir que a a rte tr a t a so m en te do irre
petível com o se fosse a in stâ n c ia fo rm a l d a repetição?
Seria preciso a q u i c o n fro n ta r dois sen tid o s da p a la v ra
"form a". O p rim eiro , tra d ic io n a l (ou aristo télico ), é no
que diz respeito à colocação em fo rm a de u m a m a té
ria, à ap a rê n c ia o rg ân ic a d a o b ra, à su a evidência com o
to talid ad e. O seg u n d o , que é o p ró p rio do século, vê
a fo rm a com o aquilo que o ato artístico a u to riza como
pensam ento novo. A fo rm a é, en tão , u m a Idéia d ad a em
239
seu indício m a te ria l, u m a sin g u la rid ad e q u e n ã o é a ti-
vável, a n ã o ser m e d ia n te in flu ên cia real de u m ato . É,
dessa vez n o sen tid o p latô n ico , o eidos do a to artístico ,
e é preciso co m p reen d ê-lo do ponto da form a liza çã o . De
fato , a fo rm a liz a ç ã o é n o fu n d o o g ra n d e p o d er u n ific a
d o r das te n ta tiv a s do século, desde as m a te m á tic a s (as
lógicas fo rm ais) a té a p o lítica (o P artido com o fo rm a
a priori de to d a ação coletiva), p a ssa n d o p ela a rte , seja
ela em p ro sa (Joyce e a odisséia das fo rm as), em p in
tu r a (Picasso, in v e n to r - fre n te a q u a lq u e r o co rrên cia
do visível - de fo rm a liz a ç ã o ad eq u ad a) o u em m ú sica
(a c o n stru ç ã o fo rm a l p o liv alen te do W oyzeck de A lban
Berg). M as em "fo rm alização ", a p a la v ra "fo rm a" n ão
se opõe a " m atéria", o u a "co n teú d o ", ela se ju n t a ao
real do ato .
Essas q u estõ es e x tre m a m e n te difíceis a g ita r a m o
século. M in h a h ip ó tese é que, p o r c a u s a de co n cep
ção p ó s -ro m â n tic a do in fin ito , q u a lita tiv o m a s ta m
b ém ev an escen te, a a r te n o século se in screv eu , p a r a
d ig m á tic a m e n te , e n tre a d a n ç a e o cin em a. O cin em a
p ro p õ e re p ro d u tib ilid a d e técn ica in te g ra l e in d iferen te
a seu público . Ele se re a liz a co m o " ite r-o b ra ", im p u
re z a sem p re disp o n ív el. A d a n ç a é o c o n trá rio : p u ro
in s ta n te sem p re ap a g a d o . E n tre d a n ç a e cin em a ja z
a q u e stã o do q u e é a rte n ã o relig io sa. A rte em q u e o
in fin ito n ã o se e x tra i de o u tr a coisa sen ão dos efeitos
de a to , efeitos reais, d aq u ilo q u e se expõe p o r p rim e iro
a p e n a s com o v a c u id a d e rep e titiv a . A rte d a fo rm a liz a
ção, n ã o d a o b ra. A rte m u ito d is ta n c ia d a do com ércio
dos h u m a n o s .
240
3. A univocidade
241
N ão digo triste, d esfigurada, n eu ró tica, n ão : som bria.
A rte em que a p ró p ria alegria é som bria. B reton te m
razã o , Osíris é u m deus negro. M esm o q u an d o frenética
e dionisíaca, essa a rte é som bria, p o rq u e n ão se devota
a n a d a que em nós, an im ais h u m a n o s preo cu p ad o s com
su a sobrevivência, seja im ediato e rep o u san te . M esm o
que ela p ro p o n h a o cu lto de u m deus so lar e a firm a ti
vo, os m eios dessa p ro p o sição c o n tin u a m som brios. O
“sol negro" de N erval é a m e lh o r im ag em an tecip ad a da
a rte do século, talv ez do século p o r inteiro. N ão é a lu z
plácida que b a n h a u m m u n d o nascente. É u m sol p a ra a
Fênix, cujas cinzas, das quais se lev an ta, n ão p o d em ser
esquecidas. A inda aí, Breton: a arte, com o o ar, com o a
política, com o a ciência em su a am bição m ais elevada,
renascem "das cinzas do sol". Sim. O século: sol cinza.
A sobre-hum anidade im põe a abolição de qualquer
particularidade. O ra bem , anim ais que somos, só n a p arti
cularidade tem os p razer simples. Daí que aquilo pelo qual o
século perm anecerá n a m em ória dos hom ens não tem nada
que ver com a satisfação deles. O que o século deseja, n a
edificação do socialismo com o n a arte m ínim a, n a axiom á
tica form al com o nos incêndios do am o r louco, é universa
lidade sem resto, sem aderência a qualquer particularida
de que seja. Como a B auhaus em arq u itetu ra: construção
que nada particulariza porque é reduzida a funcionalidade
translúcida, universalm ente reconhecível, e deixa de lado
qualquer particularidade estilística. Bem se vê que a pala
v ra de ordem é aq u i a da form alização, no nível do real, e
que é precisam ente isso que p roduz de im ediato o austero
efeito de indiferença com o ju lg am en to dos hom ens.
242
O so b re-h u m an o é o que, dispensado das p articu la ri
dades, su b trai-se a q u alq u er interpretação. Se a o b ra deve
ser in terp retad a, pode ser in terp retad a, é que nela h á de
m asiad a particularid ad e subsistente, que ela n ão atin g iu
a tran sp are n cia p u ra do ato, que n ão pôs a n u seu real.
Que ainda n ão é unívoca. A h u m an id ad e é equívoca; a
sobre-hum anidade, unívoca. Toda univocidade, porém ,
resu lta de form alização, cujo ato é o real localizável.
O século foi - e espero q u a n to a m im que é o que
p erm a n ecerá p a ra além da a tu a l R estauração, ta n to
m ais m e n tiro sa e equívoca q u a n to m ais se p reten d e h u
m a n is ta e convivial - o século da univocidade. Deleuze
afirm a com v igo r a univocidade do ser e, com efeito,
nosso tem p o quis, m ed ian te o b ras em que se deposita
u m a universalidad e sem resto , riv alizar in u m a n a m e n te
com o ser.50 E xplorou sem fro u x id ão , e em to d o s os d o
m ínios, as vias da fo rm alização .
Defendo que o pensam ento do ser en q u an to ser o u tra
coisa n ão é senão a m atem ática. Por conseguinte n ão é de
se adm irar, a m eus olhos, que a m atriz dos projetos g ra n
diosos do século XX te n h a sido a ten tativ a dos m atem áticos
do século, entre Hilbert e Grothendieck: "p artir em dois",
243
p a ra falar com o Nietzsche, a historia das m atem áticas, a
fim de in sta u ra r u m a form alização integral, u m a teoria
geral dos universos do pensam ento pu ro . Produzir assim
a certeza de que todo problem a co rretam ente form ulado
pode ser p o r conseguinte resolvido com certeza. Reduzir a
m atem ática a seu ato: o poder de univocidade do form alis
m o, a força n u a da letra e de seus códigos. O grande tr a
tado de Bourbaki é a contribuição francesa a esse projeto
m ental ciclópico. É preciso reduzir tu d o a u m a axiom ática
unificada, indexar ao form alism o a dem onstração de sua
própria coerência, p ro d u zir u m a vez p o r todas a "coisa
m atem ática", n ão ab an d o n á-la á su a penosa e contingente
história. É preciso oferecer a todos universalidade m a tem á
tica anónim a e integral. A form alização do ato m atem áti
co, que é o dizer do real m atem ático, e n ão u m a fo rm a a
posteriori colada sobre m atéria inapreensível.
O m o n u m e n ta l Traité de B ourbaki é o equivalente
em m a te m á tic a ao que era em poesia o p ro jeto m a llar-
m ean o do Livre. C om a diferença de que o Traité, m esm o
inacabado, existe, e com o o q u eria M allarm é, "em v ário s
to m o s", c o n tra ria m e n te ao Livre. P rova su p lem en tar do
que, com o a firm a m o s desde o início, o século XX fez
sem pre o que o século XIX se c o n ten tav a em anunciar.
Assim com o se to rn o u lu g ar co m u m o pretenso "fra
casso" de M allarm é, h á quem goste de dizer hoje, q u an
do m esm o em m atem ática a "m odéstia concreta" está n a
m oda, e quando principalm ente os m atem áticos desejam
m u ito freqüentem ente to rn ar-se analistas financeiros, que
o projeto bourb ak ista fracassou. Só é verdade se for red u
zido a u m dos aspectos, o m ais ultrap assad o e realm ente o
244
m enos inovador: o desejo de fecham ento lógico (de "com-
pletude", dizem os lógicos). É verdade que Gõdel m o stro u
ser im possível que u m form alism o m atem ático dispondo
dos recursos da aritm ética elem entar (o que é realm ente o
m ínim o...) contenha dem onstração de su a p ró p ria consis
tência. M as a paixão pelo real no projeto de Bourbaki está
apenas m u ito secundariam ente ligada à propriedade de
com pletude que m elhor rem o n taria às ambições sistem áti
cas da m etafísica clássica. O que im p o rta é que a apresen
tação form al da m atem ática envolve radicalidade fu n d a
dora q u an to à n atu re za de seu ato. E esse p o n to perm anece
a m eus olhos com o exigência do pensam ento, ta n to p ara
os m atem áticos q u an to p a ra os filósofos.
A lguns in terp reta ra m o resultado técnico de Godel no
seguinte sentido: to d a disposição form alizante do pensa
m ento deixa u m resto, e p o r conseqüência o sonho do sé
culo de u m acesso unívoco ao real deve ser abandonado. O
resíduo n ão -tratad o , e intratável, p o r não ser form alizado,
será inevitavelm ente interpretado. É preciso reto m ar os ve
lhos cam inhos variados e equívocos da herm enêutica.
É m u ito espan to so que ta l n ão seja a lição que Gõdel,
o m a io r gênio q u a n to ao exam e d a essência das m a te
m áticas desde C antor, tira de su as p ró p rias d e m o n stra
ções.51 Ele vê aí u m a lição de infinidade, e a c o n tra p a rtid a
51 Certamente não é má coisa concluir esse ligeiro contato com o século pela
leitura do artigo fundamental de Gõdel: “What is Cantor’s continuum hypothe
sis?”. Repito: não é porque as meditações ‘estruturalistas’ saturaram esses auto
res que se pode hoje imaginar fazer filosofia sem ter lido os textos canônicos de
Cantor, de Frege e de Gõdel. E também os grandes textos filosóficos de caráter
matemático que são os ensaios de Cavaillès, de Lautman e de Desanti.
245
de ig n o rân cia de que é aco m p an h ad o to d o saber to m ad o
do real: p a rtic ip a r de u m a v erdade é sem pre ta m b é m
calcular que existem o u tra s, das quais n ã o p articip am o s
ainda. É ju s ta m e n te o que sep ara a form alização , com o
p en sam e n to e pro jeto , de m ero u so p rag m á tic o das fo r
m as. É preciso, sem n u n c a desanim ar, in v e n ta r o u tro s
axiom as, o u tra s lógicas, o u tra s m a n eiras de form alizar.
A essência do p en sam e n to reside sem pre n o p oder das
fo rm as.
Sem dúvida, hoje é desejável que co n tin u em o s gó-
delianos, se ao m en o s q uiserm os salv ar em nós a in u -
m an id ad e das verdades co n tra a "h u m an id ad e" an im al
dos p articu la rism o s, das necessidades, dos proveitos e
das sobrevivências cegas.
Q uais são nossos axiom as? E a que conseqüências é
preciso chegar, que sejam im placavelm ente tira d a s des
ses axiom as? Indiferentes à opinião dos restau ra d o re s, é
exigido de nós resp o n d er a essas questões. E é ju s ta m e n
te isso do q u al n a d a nos desviará.
O século acabado, tem os de refazer a ap o sta que foi
a su a, a da univocidade do real c o n tra o equívoco do
sem blante. D eclarar de novo, e dessa vez, talvez, q u em
sabe?, g a n h a r essa g u e rra no p en sam e n to que foi a do
século, m as que ig u a lm en te já o p u n h a P latão e A ristó te
les: a g u e rra da fo rm alização c o n tra a in terp retação .
Há, dessa g u e rra , m u ito s o u tro s n om es m enos eso
téricos: a idéia c o n tra a realidade. A liberdade c o n tra a
n a tu re z a . O acon tecim en to co n tra o estado das coisas. A
verdade c o n tra as opiniões. A in ten sid ad e da v id a c o n tra
a insignificância da sobrevivência. A ig ualdade c o n tra a
246
eqüidade. A sublevação c o n tra a aceitação. A etern id a
de c o n tra a h istó ria. A ciência c o n tra a técnica. A a rte
c o n tra a c u ltu ra . A política c o n tra a ad m in istraç ão dos
negócios. O a m o r c o n tra a fam ília.
Sim, to d as as g u e rra s a gan h ar, com o p ro clam a
o Tchuvache, "en tre os sobressaltos do so p ro do n ã o -
dito".
Posfácio
249
entretanto, inconsoláveis com o fato de a "Revolução" ter
deixado de ser o no m e de todo acontecim ento autêntico; de
o antagonism o das políticas já n ão nos entregar a chave da
H istória do m undo; de ter soçobrado o caráter absoluto do
Partido, das M assas e da Classe. Aí estão eles, pois, pobres
intelectuais sem real recurso, em sim etria com os falsos
profetas barbudos e com seu Deus m ais o u m enos p etro
leiro, ocupados em fazer do exterm ínio dos ju d eu s pelos
nazistas o acontecim ento único e sagrado do século XX: do
anti-sem itism o, o conteúdo destinai da história da Europa;
da palavra "judeu" a designação v itim ária de u m absoluto
sobressalente; e da palav ra "árabe", com custo escondida
atrá s de "islâmico", a designação do bárbaro.
Desses ax io m as re s u lta que a política colonial do Es
ta d o de Israel é p o sto av an çad o da civilização d em o cráti
ca, e o exército am erican o a ú ltim a g a ra n tia de q u a lq u e r
m u n d o aceitável.
M in h a posição, n o to c a n te a esse p atétic o " g ra n
de rela to " do co m b ate fin al da d em o cracia h u m a n is ta
c o n tra a religião b á rb a ra , é de a sso m b ro sa sim plici
dade: o D eus dos m o n o teísm o s está m o rto h á m u ito
te m p o , sem d ú v id a ao m en o s h á d u z e n to s an o s, e o
h o m e m do h u m a n is m o n ã o so b rev iv eu ao século XX.52
250
N em as in fin ita s com plicações das políticas de Estado
n o O riente M édio, n e m os esponjosos estad o s de ân im o
das "dem ocracias" de n o sso s países tê m a m e n o r c h a n
ce de ressu sc itá-lo s.
A g u e rra das civilizações, o co n flito das d em o cra
cias e do te rro rism o , a lu ta m o rta l e n tre os direitos
h u m a n o s e os d ireito s do fa n a tis m o religioso, a p r o
m o ção de significan tes raciais, h istó rico s, coloniais o u
v itim á rio s, com o "árab e", "judeu" , "ocidental", "esla
v o", tu d o isso é ap en a s te a tro de so m b ra s ideológicas
a trá s do q u a l se re p re s e n ta a ú n ic a p eça v erd ad eira: a
do lo ro sa, esp alh ad a, co n fu sa e le n ta su b stitu iç ã o dos
co m u n ism o s d efu n to s p o r o u tr a v ia ra c io n a l d a e m a n
cipação po lítica das am p la s m a ssa s h u m a n a s hoje en
tre g u e s ao caos.
E que se sabe b em que n ã o faço m ais caso de "fran
cês" o u de "europeu". P ropus, em o u tro lugar, a dissipa
ção p u ra e sim ples dessas categ o rias n acio n ais.53
C om base nisso é in teressa n te reler u m a p ág in a do
século XX da q u al fu i te ste m u n h a pessoal: os ú ltim o s
sobressaltos do an tig o conceito do h o m em , em su a cor
relação com a re tira d a definitiva do divino.
O lhem os u m p o u co longe.
Sabem os que Dostoievski, com alg u n s o u tro s, expôs a
d ram ática questão: que ocorre com o h o m em se Deus está
m orto? Pode realm ente existir u m h o m em "sem Deus"?
251
Para s itu a r a fo rça dessa q u estão , é preciso lem b rar-
se de com o a n te rio rm e n te estav a m dispostos os laços
en tre "hom em " e "Deus", ta l com o a m etafísica m o d e rn a
m a q u in o u seu conceito. A p a rtir do m o m en to em que se
realça p o r co n ta p ró p ria a te m ática do h o m e m com o s u
je ito (com base n o m o tiv o p ó s-cartesian o da consciencia
de si), q u al é o devir filosófico da relação en tre a q u estão
do h o m e m e a q u estão de Deus?
Procedam os co m a rapidez de u m a m á q u in a h istó
rica a vapor.
Para D escartes, D eus é necessário com o g a ra n tia da
verdade. Daí que a certeza da ciencia en co n tra nele su a
justificação. Pode-se dizer, pois, com razão , n a lín g u a de
Lacan, que o D eus de D escartes é o Deus do sujeito da
ciência: o que faz o n ó do h o m e m e de Deus n ão é o u tra
coisa senão a v erdade ta l com o, sob a ap arên cia da cer
teza, ela se p ro p õ e a u m sujeito.
A segunda p o n tu a ç ã o é Kant. Há u m deslocam ento
m aior: o en o d am en to do h o m e m com Deus já n ã o é ope
ra d o r do sujeito d a ciência, sujeito ren o m ead o p o r Kant,
"sujeito tran scen d en tal". A v erd ad eira relação en tre o
h o m e m e Deus está n o dom ínio da ra z ã o p rática. É u m
laço in stitu íd o - com o o q u eria R ousseau - pela consci
ência m oral. Pode-se falar, p a ra p a ra fra se a r o p ró p rio
Kant, de religião n o s lim ites da sim ples ra z ã o prática.
O h o m e m n ão te m n e n h u m acesso p u ra m e n te teórico
ao supra-sensível. O Bem, e n ão o V erdadeiro, ab re o
h o m e m a Deus.
O que está p ró x im o do Deus am erican o de hoje, que
é suficientem ente v ag o p a ra n ão te r o u tro s a trib u to s n e-
252
gociáveis que n ã o sejam os de cau cio n ar o h u m a n ism o
dos "direitos h u m a n o s" e da "dem ocracia", h u m a n ism o
de co n q u ista. Deus, cuja fu n ção n acio n al é to ta lm e n te
v o lta d a p a ra ab en ço ar os m ilitares h u m a n is ta s em p re
gados p a ra b o m b a rd e ar e in v ad ir as regiões b árb aras.
Fora isso, existe ap en as su a fu n ção p riv ad a: ab en ço ar os
bons pais de fam ília.
C om Hegel, n o v o deslocam ento. O que ele ch am a de
D eus é o devir ab so lu to do espírito, o u a Idéia ab so lu ta,
"o ab so lu to com o sujeito", o u ain d a o U niversal con
creto. M ais precisam ente, o devir ab so lu to do espírito
subjetivo, que é n o sso p ró p rio devir, realiza o desdobra
m e n to de Deus. Pode-se dizer que Hegel p ro p õ e u m en o -
d am en to im an en te: Deus é o processo do h o m e m su p o s
ta m e n te acabado.
Essa visão escatológica é sin g u la rm e n te e s tra n h a ao
início caótico de n osso século XXI. Q u alq u er fig u ra do
ab so lu to lhe é su sp eita - em no m e da fin itu d e, que é a
essência ontológica da "dem ocracia" -, b em m ais ain d a a
que to rn a sse ab so lu to de m a n e ira im an en te ta l o u q u al
devir de u m a v a n g u a rd a h u m a n a .
No en ta n to , é nesse sentido ("Deus" red u zid o a ser
ap en as u m velho n o m e p a ra as verdades às q u ais som os
capazes de nos in co rp o rar) que co n tin u o sendo hegelia-
no, com o o foi to d o século XX que conta.
Enfim , o positivism o, que radicaliza a im an ên cia de
D eus n o h o m e m ta l com o a esboça Hegel. Para A uguste
Com te, com efeito, Deus é a p ró p ria h u m a n id ad e, m o r
to s e vivos sem distinção, h u m a n id ad e que ele ren o m eia
com o o "grande Ser". O po sitiv ism o p ro p õ e religião da
253
h u m a n id ad e, que é o resu ltad o do processo de im a n e n ti-
zação científica do V erdadeiro.
N esse p e rc u rs o pelo V erdadeiro, pelo Bem, p ela
H is tó ria d a im a n ê n c ia , v em o s ev o lu ir o asp ecto m a is
im p o rta n te p a r a n ó s: in d ecid ib ilid ad e n o m in a l circ u la
e n tre "h o m em " e "D eus". Tem os u m a d iv in izaç ão do
h o m e m , u m a espécie de c ris tia n is m o ao in v erso ? O u,
m a is p ró x im o do m o tiv o da e n c a rn a ç ã o , u m a h u m a
n iz a ç ã o do divino? Os dois, co locados em estad o de
rev ersib ilid ad e. U m a a n a lo g ia d iv in a é m a n tid a , m a s
n u m a fig u ra a g o ra in trin s e c a m e n te in se p a rá v e l do
h o m e m . D ig am o s q u e a essência do h u m a n is m o m e
ta físico clássico é a c o n s tru ç ã o de p red icad o indecidí-
vel e n tre h u m a n o e divino.
A in terv en ção desesperada de N ietzsche n ã o te m o u
tr a im plicação a n ã o ser desfazer esse predicado, decidir
no p ró p rio p o n to do indecidível. D eus deve m o rrer, e o
H om em ser su p erad o .
É ap en as a p a re n te m e n te que N ietzsche se dirige
c o n tra a religião, e em p a rtic u la r c o n tra o cristianism o.
Com efeito, ele n ã o v aticin a sobre D eus e sobre os sacer
dotes, a n ã o ser à m edida que eles co n stitu e m u m a fig u
ra da (im )potência h u m a n a . O fam o so enu n ciad o "Deus
está m o rto " é evidentem ente enu n ciad o sobre o h om em ,
n u m m o m en to em que, depois de D escartes, Kant, He-
gel, Com te, D eus está em situ ação de en o d am en to inde
cidível com o h o m em . "Deus está m o rto ", isso q u er dizer
que o h o m e m está m o rto tam b ém . O h o m em , o ú ltim o
ho m em , o h o m e m m o rto é q u em deve ser su p erad o a
fav o r do su p er-h o m em .
254
Q uem é o super-hom em ? Sim plesm ente o h o m em sem
Deus. O h o m em ta l com o se pode p en sar à p a rte q u alq u er
relação com o divino. O su p er-h o m em decide a indecidibi-
lidade, fra tu ra n d o assim o predicado h u m a n ista .
O p ro b lem a é q u e o su p er-h o m em ain d a n ão está
p resente. S om ente deve vir. E com o o su p er-h o m em n ad a
é senão o h o m e m p ro p ria m e n te dito, o h o m e m desvin
culado de Deus, deve-se dizer que, p ro fetizan d o to d o o
século XX, N ietzsche faz do h o m e m u m p ro g ra m a . "Eu
sou m e u p ró p rio p re c u rso r" , declara Z a ra tu s tra . O su
p er-h o m e m é o desfecho a v ir da H istó ria do h om em .
O século XX com eça assim - dissem os isso de m u ita s
m a n eiras - sob o te m a do h o m e m com o p ro g ra m a e já
n ão com o dado.
N o tem o s q u e ce rto século XXI, m a rc a d o pelos di
re ito s h u m a n o s co m o d ireito s do ser v iv e n te n a tu ra l,
da fin itu d e , d a re sig n a ç ã o à q u ilo q u e h á , te n ta r e to r
n a r a o h o m e m co m o d ad o . J á disse: ele fa z isso n o
m o m e n to em q u e a ciência a u to riz a (enfim !) q u e se
m u d e o h o m e m a té em s u a s u b e s tr u tu r a de espécie
a n im a l. Isto é, q u e essa "volta" desde j á é u m fracasso .
E q u e n o s sa q u e stã o p e rd u ra , m a is do q u e n u n c a : que
pode p ro m e te r-n o s o p r o g r a m a de u m h o m e m sem
D eus?
O ra, verificam os h av er d u as hipóteses em conflito
sobre essa q u estão d u ra n te os gloriosos an o s 60 do sé
culo de que falo.
O dado te x tu a l p o d eria ser aqui, q u a n to à p rim eira
hipótese, o tex to de S artre "Q uestões de m éto d o ", p u b li
cado em 1959 em Les temps modernes, an tes de to rn a r-se
255
a in tro d u ção de Crítica da razão dialética.* E q u a n to à
segunda, a fa m o sa p assag em do livro de Foucault, As
palavras e as coisas,** v o ta d a à m o rte do h om em .
A p rim eira g ran d e hipótese é que o h o m e m sem
Deus deve v ir n o lu g a r do D eus m o rto . N ão se tr a ta de
processo de divinização im an en te. T rata-se da ocupação
de u m lu g a r vazio.
R eparem os que, sem dúvida, é im possível a ocupação
efetiva desse lugar. No fim de O ser e o Nada,*** S artre diz
em essência q u e a p aix ão do h o m e m in v erte a paix ão de
Cristo: o h o m e m se perde p a ra salv ar Deus. E n tretan to ,
acrescenta ele, a idéia de D eus é c o n tra d itó ria, de m odo
que o h o m e m se perde em vão. D aí a fam o sa sentença
que conclui o livro: "O h o m e m é u m a p aix ão in ú til".
M ais tarde, S artre entenderá que esse ro m an tism o
niilista c o n tin u a sendo decorativo. Se o projeto do h o
m em é de fazer com que ele p ró p rio v en h a no lu g a r do
absoluto, a essência do h o m em é esse p ró p rio projeto, de
m odo que su a "realização" n ão é a m edida de seu desdo
bram en to . Há p ráticas históricas hom ogêneas com rela
ção a esse projeto, h á o u tra s que n ão o são. Há, pois, u m a
leitu ra h u m a n ista possível daquilo que tem os de fazer ou
n ão fazer, m esm o que a fig u ra su p o stam en te acabada do
hom em -deus seja ontologicam ente inconsistente.
Esse te m a d a o cu p ação im possível, m a s necessária
(ou real), do lu g a r deixado v azio pelos deuses, creio que
256
se p o ssa c h a m á -lo de h u m a n is m o rad ical. O h o m e m é
p a r a si seu p ró p rio a b so lu to ou, m ais e x atam e n te, é o
devir sem fim desse a b so lu to que ele é. Q u ase se pode
dizer q ue S a rtre leva ao a b so lu to , o u tr a n s f o r m a em
m etafísica, a d im en são p ro g ra m á tic a d as p o líticas re
v o lu c io n ária s, especialm ente em s u a v e rsã o c o m u n is
ta . O h o m e m é o q u e o h o m e m deve in v e n tar. Esse é o
c o n teú d o do que se a p re s e n ta m en o s com o m o ra l pes
soal do q ue com o h ip ó tese de em an cip ação . O h o m e m
te m p o r ú n ico dever faze r co m q u e ele p ró p rio a d v en h a
com o ú n ico ab so lu to .
C laro q u e essa h ip ó tese e s tá em in te ra ç ã o co m to d o
u m lad o do m a rx is m o . V in cu la-se a in tu iç õ e s p rim o r
diais do M a rx dos M anuscritos de 1844. A h u m a n id a d e
g en érica tr a z co n sig o (sob o n o m e de " p ro le ta ria d o " )
com q u e fa z e r so b re v ir s u a p ró p ria essência, p a r a além
das alienações q u e a m a n ife s ta m n a H istó ria co n cre
ta . É p o r essa ra z ã o q u e S a rtre v a i a f ir m a r ao m esm o
te m p o q ue o c o n te ú d o do sa b e r p o sitiv o é a a lie n a
ção do h o m e m , e q u e a im p lic ação re a l desse sab er é
o m o v im e n to pelo q u a l se "existe", a a lien aç ão com o
p ro g r a m a de d esalien ação . Podem os d iz er s im u lta n e
a m e n te q ue "o S aber m a rx is ta diz resp eito ao h o m e m
a lien ad o " (já q u e a serv id ão é o m eio h istó ric o a tu a l
onde existe a lib erd ad e, fa z e n d o a ssim do h o m e m livre
m e ro p ro g ra m a ), e q u e a im p licação - q u e j á n ã o é d a
o rd e m do S aber - é q u e "o q u e s tio n a d o r c o m p re en d a
com o o q u e stio n a d o - is to é, ele m e sm o - existe s u a
alien aç ão , com o ele a s u p e ra e se alie n a n e ssa p ró p ria
su p e ra ç ã o ".
257
O h o m e m com o p ro g ra m a é isto: a com preensão exis
tencial da su p eração da alienação do hom em , com in tu ito
de em ancipação, cujas etapas são sem pre novas fo rm as
de alienação. O u ainda: a dialetização do saber (objetivo)
da servidão m ediante a com preensão (subjetiva) de su a
condição, que é a liberdade: "[A] liberdade p rática só é
apreendida com o condição p erm an en te e concreta da ser
vidão, isto é, atrav és dessa servidão e m ediante ela com o
o que a to rn a possível, com o seu fu n d am en to ".
A p a la v ra "fu n d am en to " reca p itu la a m etafísica do
h u m a n ism o radical: o h o m e m é o ser que é p a ra si seu
p ró p rio p ro g ra m a e que, com o m esm o m o v im en to ,
fu n d a a possibilidade de u m conhecim ento p ro g ra m á
tico de si: "O fu n d a m e n to da an tro p o lo g ia é o p ró p rio
ho m em , n ã o com o objeto do Saber prático , m as com o
o rg an ism o p rático que p ro d u z o Saber com o m o m en to
de su a práxis".
O cupar o lu g a r do D eus m o rto é to rn a r-se , daquilo
que se é, o ú nico fu n d o .
A seg u n d a g ran d e hipótese, n ietzsch ian a em seu
conteúdo principal, é que o a u se n ta r-se de Deus é u m
dos nom es do a u se n ta r-se do h o m em . A g ozosa catás
tro fe que afeta a fig u ra divina, (os deuses, repete N ietzs-
che, m o rre ra m de rir) é ao m esm o tem p o a g aia ciência
de u m a catástro fe h u m a n a , d em asiad am en te h u m a n a :
a dissipação, a decom posição da fig u ra do ho m em . O
fim do h u m a n ism o . Com o escreve Foucault: "hoje em
dia já n ão se pode p en sar a n ã o ser n o vazio do h o m e m
desaparecido". E com o N ietzsche, F oucault p reten d e aos
"que q u erem ain d a fala r do ho m em , de seu reino, de su a
258
libertação" op o r ap en as o que ele ch am a de "riso filosó
fico - isto é, de certo m odo, silencioso".
A hipótese co b erta p o r esse sorriso, o u p o r esse si
lêncio, é n a verdade a do ad v en to histó rico de u m a n ti-
h u m a n is m o radical.
Podemos, pois, dizer: certo século XX filosófico dei
xa-se identificar - n a s u a m etade: p o r v o lta dos an o s 50
e 60 - p o r u m e n fre n ta m e n to en tre h u m a n ism o radical
e a n ti-h u m a n ism o radical.
Com o o q u er o p en sam e n to dialético das c o n tra d i
ções, h á u n id ad e das d u as orientações em conflito. Com
efeito, ta n to u m a com o o u tr a tr a ta m da q u estão: que
é do h o m e m sem Deus? E ta n to u m a com o o u tra são
p ro g ra m á tic a s. S artre q u er fu n d a r n o v a an tro p o lo g ia
sobre a im ediatidade da práxis. F oucault declara que o
desaparecim ento da fig u ra do h o m e m é "o d isten d er de
u m espaço onde ele é enfim possível de p e n sa r n o v am en
te". O h u m a n ism o radical e o a n ti-h u m a n ism o radical
coincidem n o te m a do h o m e m sem Deus com o a b e rtu ra ,
possibilidade, p ro g ra m a de p en sam en to . É p o r essa r a
zão que as d u as orientações v ão cru za r-se em in ú m eras
situações, especialm ente em todos os episódios rev o lu
cionários.
Em certo sentido, as políticas do século ou, de fo rm a
m ais geral, as políticas rev o lu cio n árias cria m situações
su b jetiv am en te indecidíveis en tre h u m a n is m o radical e
a n ti-h u m a n ism o radical. Com o v iu M erleau -P o n ty de
m a n e ira ex tra o rd in á ria - m a s p a ra tir a r do indecidível
conclusões indecisas - , o títu lo p o d eria b em ser de teo r
conjuntivo: "h u m an ism o e te rro r" . E n q u an to o século
259
XXI se abre p a ra u rn a m o ra l d isju n tiv a: "h u m an ism o ou
te rro r" . G u erra (h u m an ista) c o n tra o te rro rism o .
Essa dim ensão co n ju n tiv a, esse "e" que se o b serv a
v a já n o p en sam e n to de R obespierre o u de S a in t-Ju s t
(Terror e V irtude), co n ju n ção que a u to riz a , depois de
q u a re n ta anos, q u e se escreva sem p arad o x o "S artre e
F oucault", n ão im pede, m as exige, p a ra estar à a ltu ra
daquilo que vem , fo rm a liz a r o conflito das orientações
radicais. C onflito que é ta m b ém em piricam en te n o sé-
culo a g a n g o rra dos an o s 50 aos anos 60 e 70. Isso a n
tes que os an o s 80 reco n d u z am à superfície, com o peixe
m o rto , u m a disjunção explicitam ente desprovida n ã o só
de q u a lq u e r radicalidade, m as ta m b é m de q u alq u er es
p eran ç a universalizável.
Q ue é a filosofia p a ra o h u m a n ism o radical? S artre o
diz com vigor: é an tro p o lo g ia. H á u m devir a n tro p o ló
gico da filosofia. Esse devir está evidentem ente p en d en te
d a criação do h o m e m pelo h o m em . A filosofia é em ú lti
m a análise an tro p o lo g ia p ro v isó ria que espera a efetiva
ção histórica, o u m ed ian te seqüências, deste p ro g ram a :
o c a rá te r ab so lu to do h om em .
No contexto do a n ti-h u m a n ism o radical, rejeita-se
logo de en tra d a a p a la v ra "filosofia". Por quê? Porque,
d iz-nos Foucault, "a a n tro p o lo g ia c o n stitu i talvez a dis
posição fu n d a m e n ta l que co m an d o u e co n d u z o p en
sam en to filosófico desde K ant até nós". M as p a ra u m
n ietzschiano, q u em diz "an tro p o lo g ia" diz ig u alm en te
'teo lo g ia', até m esm o "religião". C onseqüentem ente, a
filosofia, lo n g am en te fo rm a d a com o an tro p o lo g ia, é
suspeita. V ão preferir, ag o ra com Heidegger, a p a la v ra
260
"p en sam en to " à "filosofia". No fundo, o "p en sam en to ",
n a visão a n ti-h u m a n is ta rad ical (na verdade, an tecip ad a
p o r H eidegger desde os an o s 20), designa o que su b stitu i
a filosofia q u an d o se ab a n d o n a a a n tro p o lo g ia, co m a
q u al a filosofia está p ro fu n d a m e n te co m p ro m etid a. Tra
ta-se, segundo F oucault, que conserva e n tre ta n to o esti
lo p ro g ram á tic o , "de p e n sa r sem p en sar im ed iatam en te
que é o h o m e m que pensa". De p en sar "no vazio do h o
m e m desaparecido", e p o rta n to de começar a pensar.
H á assim , n a fro n te ira dos an o s 50 e 60, e sob u m a
ú n ic a p a la v ra de o rd em da m o rte de Deus, d u as defini
ções das ta re fas da filosofia:
261
Em ú ltim a análise, tu d o se d á com o se S artre p ro
pusesse à U.R.S.S. e ao Partido C o m u n ista n o v o ân im o ,
n o m o m e n to em que, com o fig u ras p arad ig m áticas da
em ancipação, esse Estado e esse Partido já são apenas
cadáveres políticos.
S artre delineia a fig u ra p atétic a e form idável do
co m p an h eiro de r o ta sem ro ta.
Se, n o fim dos an o s 60, o p ro g ra m a a n ti-h u m a n is ta
radical v ai prevalecer (e, n o m e u ju lg a m e n to , co n tin u a
sendo aquele n o q u a l é preciso basear), é p o rq u e veicula
as idéias em p arelh ad as do vazio e do com eço. O ra, essas
idéias v ão m o stra r-se ú teis p a ra os revoltosos de 68, de
pois ta m b é m p a ra os do início dos an o s 70. Pensa-se, en
tã o , co rren tem en te que algo está p ró x im o , vai acontecer.
E que esse "algo" m erece dedicação, ju s ta m e n te p o rq u e
n ã o é a enésim a re to m a d a do h u m a n ism o , ju s ta m e n te
p o rq u e é fig u ra do com eço in u m an o .
Com o se vê, essa q u estão do h u m a n ism o acaba p o r
a p o n ta r u m a divisão q u a n to à H istória. O h u m a n ism o
radical m a n té m a te m ática h egeliana de h isto rialid ad e
do Verdadeiro. O q u e a p a la v ra p ro g ra m á tic a "hom em "
designa é certo trabalho histórico do h o m em . O segundo
to m o da Crítica da razão dialética devia de resto ser co n
sag rad a à H istória, desde o Egito até Stalin. "H om em " é a
noção, de essência n o rm a tiv a , que p erm ite a inteligência
do tra b a lh o m o n u m e n ta l da h istó ria da em ancipação.
Sob o signo do a n ti-h u m a n ism o , F oucault p ro p õ e
visão da H istó ria p o r seqüências d esco n tín u as, p o r sin
gularidades h istó ricas, que ele ch a m a de episteme. "H o
m em " dever en tão ser entendido ap en as com o u m a das
262
p alav ras u tilizad as p a ra o discurso filosófico m o d ern o .
Por conseguinte, a H istó ria com o co n tin u id ad e do sen ti
do, o u devir do H om em , é categ o ria tã o o bsoleta q u a n to
a do discurso que a carreg a (a filosofia com o a n tro p o lo
gia). Deve-se e sta r ab so lu ta e u n ic am en te a te n to à ques
tã o de saber se algo com eça e em que redes discursivas
se ap re se n ta esse com eço.
É a h istó ria m o n u m e n to o u sucessão de começos?
No século, "hom em " co m p o rta essa a ltern ativ a.
O p ro g ra m a do h o m e m sem Deus ap re se n to u assim
d u as proposições diferentes. O u é o criad o r h istó rico de
su a p ró p ria essência ab so lu ta. O u é o h o m e m do com eço
in u m a n o , que coloca seu p en sam e n to n o que v em e se
m a n té m n a descontinuidade dessa vinda.
Hoje h á ab an d o n o sim u ltân e o das d u as proposições.
O ferecem -nos ap en as a re sta u ra ç ã o do h u m a n ism o clás
sico, m as sem a v italidade do Deus, p resen te o u au sente,
que su ste n ta v a seu exercício.
O h u m a n ism o clássico sem Deus, sem projeto, sem
devir do A bsoluto, é representação do h o m em a q u al o re
d uz a seu corpo anim al. A firm o que se sairm o s do século
a n u lan d o sim u ltan eam en te os dois p ro g ram a s de p ensa
m en to que eram o h u m a n ism o radical e o a n ti-h u m a n is-
m o radical, nós nos sujeitarem os necessariam ente a u m a
fig u ra que faz do hom em , sim plesm ente, u m a espécie.
S artre já dizia que se o h o m e m n ão tiv er com o p ro je
to o co m unism o , a ig u aldade in teg ral, en tão ele é apenas
espécie a n im al p o u co m ais in teressa n te que as fo rm ig as
o u os porcos.
Aí estam os. Depois de S artre e Foucault, u m m a u
263
D arw in. Com to q u e de "ética", p o rq u e com que se in
quietar, a p ro p ó sito de u m a espécie, senão com su a so
brevivência? Ecologia e bioética p ro v erão nosso devir
"correto" de porcos o u fo rm ig as.
Lem brem os, e n tre ta n to , que u m a espécie é, p o r ex
celência, aquilo que se domestica.
M esm o que eu v á escandalizar, devo expor m in h a
convicção: essa dom esticação, subjacente ao h u m a n is
m o sem p ro g ra m a que n o s infligem , j á está em ação n a
prom oção, com o espetáculo e com o n o rm a , do corpo v i-
tim ário .
De onde pro v ém , pois, que hoje a q u estão do h o
m em é tra ta d a d en sam en te só sob a fo rm a do to rtu ra d o ,
do m assacrad o , do fam in to , da v ítim a do genocídio? De
onde p ro v ém a n ã o ser do fato de o h o m e m j á ser apenas
o dado an im al de u m corpo, cuja m ais esp etacu lar ates
tação - a ú n ica vendável (e estam o s n o g ran d e m ercado),
é coisa sabida desde os jo g o s do circo - é o sofrim ento?
D igam os que as "dem ocracias" co n tem p o rân eas p re
ten d em im p o r ao m u n d o h u m a n ism o an im al. O h o m e m
existe apenas com o digno de piedade. O h o m e m é anim al
lastim ável.
Essa ideologia d o m in an te do século XXI incipiente
q u er d e stru ir p o r com pleto o p o n to co m u m a S artre e
a Foucault. N o m eadam ente, que o ho m em , se n ão fo r o
p ro g ra m a infin ito de su a p ró p ria ab solutidade, m erece
apenas desaparecer. S artre e F oucault p en sam o seg u in
te: o u o h o m e m é o f u tu ro do h o m e m (Sartre), o u é seu
passad o (Foucault). N ão poderia ser seu presen te sem
se red u zir aos co n to rn o s da b esta que ele te m em si o u
264
que é s u a in fra -e s tru tu ra . Os reacionários de hoje, p o r
exem plo, os que escreveram o libelo Por que não somos
nietzscheanos,54* d eclaram o co n trário : o h o m e m é o ú n i
co p resen te do ho m em .
No en ta n to , h á de se convir que, se ta l fosse o caso,
em v ista do que é n o sso presente, o h o m e m n ã o v aleria
coisa alg u m a.
N a retro a ção do h u m a n ism o an im al, vêem -se m e
lh o r os traço s co m u n s do h u m a n ism o rad ical e do a n ti-
h u m a n ism o radical.
Esses traço s co m u n s são em n ú m e ro de três:
265
2. S artre e F o u cau lt m a n ife s ta m v iv a h o stilid ad e
às categ o rias su b sta n c ia lista s. S a rtre p o lem iza c o n tra
q u a lq u e r sep aração su b sta n c ia l d a liberdade p rá tic a e
de su as alienações. É im possível "su p o r que a liberdade
do p ro jeto se e n co n tre em s u a realid ad e p le n a sob as
alienações de n o s sa sociedade". In sep aráv el do q u e o
m a n té m fo ra de s u a p ró p ria ab so lu tid ad e, o h o m e m
é tra je to de desalienação, o u p ro jeto , n u n c a id en tid ad e
separável. F ou cau lt, p o r s u a vez, zo m b a cru elm en te
daqueles q ue "expõem qu estõ es sobre o que é o h o m e m
em s u a essência".
O h o m e m do h u m a n ism o an im a l é, em c o n tra p a rti
da, categ o ria su b stan cial, o u n a tu ra l, à q u al tem os aces
so p o r em p atia n o espetáculo dos so frim en to s. M esm o
u m ta le n to tã o vivo com o o de G uy L ard ra u 55 acred ito u
dever desem bocar nessa m etafísica opressiva da pieda
de. M as a piedade, q u an d o n ão é a in stân cia subjetivada
da p ro p a g a n d a p a ra as intervenções 'h u m a n itá ria s ', é
apenas confirm ação do n a tu ra lism o , da an im alid ad e
p ro fu n d a a que se red u z o h o m e m n o h u m a n ism o con
tem porâneo.
N ossa época é ex atam en te aquela, ao m enos d a p a r
te dos pequenos b u rg u eses "ocidentais", da ecologia, do
m eio am biente, d a hostilidade à caça, q u er se tra te dos
266
p ard ais, das baleias o u dos ho m en s. É preciso viver em
n o ssa "aldeia global", deixar a n a tu re z a agir, a firm a r p o r
to d o can to os direitos n a tu ra is . Com o efeito, as coisas
tê m u m a n a tu re z a que é preciso respeitar. Im p o rta des
cobrir e consolidar os equilibrios n a tu ra is . A econom ia
de m ercado, p o r exem plo, é n a tu ra l, deve-se e n co n trar
seu equilíbrio, en tre alg u n s ricos infelizm ente inevitáveis
e pobres infelizm ente in u m eráv eis, assim com o convém
resp eitar os equilibrios en tre os ouriços e os escargots.
V ivem os n u m dispositivo aristotélico: h á a n a tu re
za, e a p a r o direito que se em p en h a b em o u m a l em cor
rigir os excessos ev en tu ais da n a tu re z a . O que se tem e,
o que se q u er excluir à força, é o que n em é n a tu ra l n em
em endável pelo direito apenas. Em su m a, o que é m ons
truoso. E, de fato , A ristóteles en co n trav a, sob a fo rm a do
m o n stro , delicados p ro b lem as filosóficos.
F oucault e S artre n u tr e m a respeito desse n a tu r a
lism o neo -aristo télico v erdadeiro ódio. U m e o u tro , n a
realidade, e com o convém , p a rte m do m o n stro , da exce
ção, do que n ã o te m n e n h u m a n a tu re z a aceitável. E daí,
daí apenas, con sid eram a h u m a n id ad e genérica com o o
que se m a n té m além de to d o direito.
267
o o u tro , o p en sar é diferente da sim ples execução das
form ações discursivas de u m a episteme. C onvenham os
(com o platônicos) em c h a m a r esses operadores de Idéias.
E ntão se p o d erá dizer que o im p erativ o fu n d a m e n ta l do
h u m a n ism o an im a l é: "Viva sem Idéia".
Para as g ran d es vozes de S artre e Foucault, o século
p e rg u n to u : o h o m e m que vem , que deve vir, sob a fo r
m a de u m a existência o u de u m p en sam en to , é fig u ra
s u p ra -h u m a n a o u fig u ra in u m a n a ? Vai-se dialetizar a
fig u ra do hom em , su p erá-la? O u v ai-se estabelecer em
o u tro s lugares? ll m "o u tro lu g a r" que Deleuze p ro cla
m a v a "in terestelar".
O h u m a n ism o an im al, n o fim do século, p retende
abolir a p ró p ria discussão. Seu g ran d e a rg u m e n to , com
cuja obstinação m u ita s vezes cru za m o s, é que o q u erer
político do so b re -h u m a n o (ou do h o m e m de tip o novo,
o u da em ancipação radical) só g ero u o in u m an o .
M as é que era preciso partir do in u m an o : verdades
das quais pode acontecer que to m em o s p arte. E daí ape
n as considerar o so b re-h u m an o .
Dessas verdades in u m an as, F oucault tin h a ra z ã o em
dizer (com o tin h a m ra z ã o A lth u sser e seu " a n ti-h u m a -
nism o teórico", o u Lacan e su a d esu m an ização radical
do Verdadeiro) que elas nos o b rig am a "fo rm alizar sem
an tro p o lo g iza r ".
Falemos, pois, da ta re fa filosófica - n o lim iar de novo
século, e c o n tra o h u m a n ism o a n im al que n o s assedia -,
com o de u m inum anism o fo rm a liza d o .
268
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