Você está na página 1de 2

A Dramaturgia Narrativa de Comunidade

Julio Larroyd, estudante

A transposição de um texto em prosa para o teatro pode seguir caminhos


diversos na sua constituição: o texto narrativo pode ser tomado como um
dispositivo disparador para o processo de recriar a trama ou até mesmo a
transposição fiel do texto para o palco. O diretor de Comunidade, espetáculo
livremente inspirado no livro de Camus, O Estrangeiro, optou pela fidelidade ao
texto.
Nessa performance solo, Ismael Caneppele rompe com um cânone do
drama: a ação. A grande riqueza de Comunidade está na palavra, naquilo que é
dito, mas não é exibido. Se por um lado a encenação é abundante no discurso,
é escassa em teatralidade.
A proposta de dialogismo com o espectador ancora-se em outra
perspectiva: ao ouvir o relato da personagem, que é feito de maneira linear,
constituindo uma dramaturgia discursiva, o espectador precisa recorrer à sua
representação imagética pessoal para que esse diálogo se estabelece em sua
completude.
A opção de Caneppele pelo “mínimo de movimento”, conforme transcrito
no programa da peça, é uma forma de dramaturgia que rompe o tradicional e,
em alguma medida, pode ser o ponto vulnerável do espetáculo. Nesse sentido,
as exibições de vídeos e recursos midiáticos amenizam essa percepção e dão
certa mobilidade à peça.
Eclode no espetáculo, portanto, o romance publicado em 1942 que serve
de interface para a narrativa das experiências pessoais do ator/diretor. Como se
Ismael encontrasse nas palavras do autor argelino a sua outra face do espelho,
não sendo preciso criar o seu relato vivencial, afinal a experiência de ser um
estrangeiro fora e dentro de sua pátria e de si mesmo já está posta por Camus.
Muitos elementos subjetivos da personagem camusiana, M. Mersault,
estão presentes no protagonista de Comunidade: a indiferença, a incapacidade
de estabelecer vínculos e afetos com o outro, o narcisismo expresso através da
apatia dele em relação às demais personagens, e — por que não dizer— com
o espectador?
Essa experiência narcísica ultrapassa a quarta parede e chega ao
espectador na forma de um grand finale: ao término do espetáculo fecham-se as
cortinas, e Ismael não retorna ao palco. Ao desconcertar o público, negando-lhe
a oportunidade do aplauso, ocorre uma suspensão do gozo final da relação
ator/espectador.
O tear do espetáculo é a experiência rapsódica; pelo fio da palavra,
Caneppele conduz o espectador ao labirinto obscuro da subjetividade da
personagem e abruptamente corta esse fio, gerando uma cisão, um hiato na
relação estabelecida até então.
Um espetáculo que tem sua força no relato, na palavra, termina com a
ausência dela, fica um “não dito” — e o resto é silêncio ensurdecedor.

Você também pode gostar