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Como toda e qualquer obra de arte digna de ser considerada como tal, The recognitions diz

respeito a uma busca. Desde o título — homônimo de um “romance teológico” do século 3 —


até a maneira como introduz temas e personagens, passando pelas epígrafes que abrem cada
um dos capítulos, Gaddis propõe uma odisseia em que a busca pela autodescoberta e por
reconhecimento, seja de que espécie for, quase sempre resulta em um descolamento da
realidade imediata e, não raro, do próprio eu.

A espinha dorsal da narrativa diz respeito ao pintor Wyatt Gwyon, cujo pai é um presbítero da
Nova Inglaterra que abraçou o mitraísmo depois de perder a mulher — primeiro movimento de
irreconhecimento que irrompe do livro. Após sofrer um contratempo, Wyatt deixa-se aliciar pelo
mefistofélico Recktall Brown e passa a forjar telas “perdidas” de mestres como Bosch e Van Eyck,
integrando uma rede criminosa que inclui o crítico de arte Basil Valentine, responsável por
autenticar as pinturas depois que são “encontradas”.

Das ironias: o contratempo citado acima é fruto da honestidade de Wyatt, que se recusa a fazer
um “acerto” com um crítico (que elogiaria seu trabalho em troca de uma porcentagem sobre as
vendas); e seu insucesso como pintor também se deve à concepção anacrônica que possui do
fazer artístico, incorporando técnicas e crenças renascentistas segundo as quais o que ele faz é
algo deiformemente guiado e observado. Traduzo um trecho:

(…) Porque eles viam Deus em toda parte. Não havia nada que Deus não observasse, nada, e
então isso… e então cada detalhe da pintura reflete… a preocupação de Deus com os objetos
mais insignificantes da vida, com todas as coisas, pois Deus não descansa por um instante
sequer, e nem o pintor poderia descansar. Você vê a perspectiva nisso? — ele perguntou,
segurando a réplica amarrotada diante deles. — Não tem nenhuma.

Hilário e absurdo

Dezenas de outros personagens pipocam nas páginas, não raro em longos capítulos crivados de
diálogos — marca registrada do autor, que em romances posteriores radicalizaria tal
expediente. São aspirantes a poetas, aspirantes a dramaturgos, aspirantes a romancistas,
aspirantes à paternidade, viciados, falsificadores, editores, todos (se) debatendo com todos,
falando sem parar em festas, parques, bares, restaurantes e zoológicos.

Em uma dessas festas, na véspera de Natal, as maluquices atingem níveis hilariantemente


absurdos: uma criança bate à porta a todo instante e pede pílulas para a mãe, obtendo-as sem
problemas; um gato é acidentalmente morto por uma convidada, que trata de ocultar o cadáver
em sua bolsa, furtada mais tarde; um bebê passeia por ali e é afinal sequestrado por uma infeliz,
que depois será abandonada pelo marido (ele se assume homossexual); alguém se tranca no
banheiro e tenta se matar; um crítico é exposto diante de todos como um rematado punheteiro,
e depois, sozinho com a dona do apartamento, faz jus à fama; a música de Handel ressoa sem
parar ao fundo etc.

E todos os personagens alimentam os irreconhecimentos que percorrem a narrativa: Esther,


mulher de Wyatt, vê no marido algo que ele poderia ou deveria ser (um reverendo como
Gwyon).

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