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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM


CURSO DE LETRAS

MONOGRAFIA

NEM TUDO TEM GRAÇA:

A CONSTRUÇÃO DE ESTEREÓTIPOS E REPRESENTAÇÕES

SOCIAIS NEGATIVAS NO DISCURSO “HUMORÍSTICO” DE

PROFESSORES DE CURSOS PRÉ-VESTIBULARES

LARISSA GIACOMETTI PARIS

CAMPINAS

2013
LARISSA GIACOMETTI PARIS

NEM TUDO TEM GRAÇA:

A CONSTRUÇÃO DE ESTEREÓTIPOS E REPRESENTAÇÕES

SOCIAIS NEGATIVAS NO DISCURSO “HUMORÍSTICO” DE

PROFESSORES DE CURSOS PRÉ-VESTIBULARES

Monografia apresentada ao Instituto de


Estudos da Linguagem, da
Universidade Estadual de Campinas,
como requisito parcial para a obtenção
do título de Licenciado em Letras –
Português.

Orientadora: Profa. Dra. Terezinha de


Jesus Machado Maher.

CAMPINAS

2013

ii
AGRADECIMENTOS

Acredito que a identidade, sendo uma construção social, edifica-se conforme as


experiências que vivenciamos e as interações a que somos submetidos nas relações
formais e informais de nossa existência. Dessa forma, penso que me tornei aquilo que
sou (mesmo sabendo que ainda estou em um contínuo processo de mudanças) graças a
algumas pessoas presentes em minha vida. Sendo assim, agradeço, em especial, pela
influência que tiveram sobre a minha construção identitária nesse período de graduação:

Aos meus pais, Claudio e Francisca, os primeiros e mais importantes modelos docentes
em minha vida, que mostraram não só que uma família de professores pode, sim, viver
com dignidade, como também fizeram com que eu me apaixonasse pela docência.
Muito gratificante quando podemos atribuir algum sentido à nossa carreira profissional,
sendo assim, meus sinceros agradecimentos a vocês.

Aos meus irmãos, Lucas e Danilo, que cumprindo o papel de irmãos mais velhos
também acabaram por se tornar modelos em minha vida. Vocês iniciaram o caminho da
UNICAMP na família Paris, e, com toda a certeza, influenciaram a minha decisão em
continuar com essa “tradição”. Sinto-me honrada em afirmar que somos uma família de
professores.

À Professora Teca, pessoa e profissional que tive o privilégio de conhecer, que, em


todas as nossas reuniões, foi capaz de acalmar essa orientanda que é tão ansiosa.
Agradeço pela sensibilidade em sua orientação, mostrando a mim que uma pesquisa
acadêmica também deve ser prazerosa, e ajudando na construção não só de análises e
teorias, mas também da minha segurança em relação a essa monografia e ao universo
acadêmico.

A todos os professores do IEL, bem como do Ensino Médio e Fundamental, que, de


algum modo, ajudaram a construir a minha identidade profissional e acadêmica.

À Marina, a minha amiga da “pedago”, que compreende e compartilha das dificuldades


da docência. Agradeço pelos inúmeros conselhos acadêmicos (afinal, você foi a
veterana a quem eu recorria quando me sentia perdida nesse mundo UNICAMP) e pelas
conversas e reflexões que sempre, de algum modo, faziam-me repensar sobre
determinadas “verdades”.

Aos amigos do curso de Letras do IEL que sempre acompanharam e apoiaram minhas
angústias, mas que também estiveram presentes em muitos momentos prazerosos:
Bruno, Juliana, Poliana e Ricardo. Sinto-me honrada com nossa amizade e em poder
vivenciar tantas situações memoráveis com vocês.

iii
À Jéssica, companheira de orientação, e, acima de tudo, minha amiga. Percorremos esse
caminho lado a lado, e só tenho a agradecer pelo companheirismo, apoio, e conselhos.
Como foi bom poder compartilhar com você as alegrias e amarguras de nossa
monografia.

À Vitória, amiga que desde o início se mostrou solícita em ajudar. Só tenho a agradecer
pelo ombro amigo que me acolheu em sua casa, pelas histórias vivenciadas, pelos
conselhos ditos, e, claro, pelo prazer em ouvir a sua risada nos momentos de felicidade.
Serei sempre grata pela sua amizade.

À Beatriz, minha companheira de quarto, CAF, disciplinas eletivas, estágio, e, claro,


ônibus circular, com quem pude dividir inúmeras histórias, agonias e alegrias. Agradeço
pelo apoio incondicional e pelo companheirismo que sempre acompanhou nossa
amizade. Você dividiu comigo a sua história, e, com toda a certeza, ajudou a construir a
minha.

Aos amigos de Ribeirão Preto: Isabella, Larissa, Lívia, Rafaella, Roberta, Vanessa e
Murilo. Apesar de vocês não participarem ativamente da minha vida acadêmica, o apoio
que forneceram a mim foi muito significativo. Mesmo seguindo caminhos profissionais
separados, permanecemos unidos, dividindo angústias, receios, alegrias (muitas),
risadas (muitas), “gordices”, e, acima de tudo, princípios e valores. Agradeço por
encontrar tão cedo amigos que, apesar de diferentes, mostram-se iguais naquilo que de
fato importa.

À memória da Vó Iva, que esteve presente em parte de minha graduação, e que contava
os dias, desejando que eu voltasse para casa para lhe fazer companhia. Em suas
pequenas atitudes, foi para mim uma grande guerreira, mostrando-me que não importa
qual seja o obstáculo, a superação sempre se torna um caminho possível. Fica a minha
admiração e eterna saudade.

iv
Por um mundo onde sejamos socialmente iguais,
humanamente diferentes e totalmente livres.

Rosa Luxemburgo

v
RESUMO

Este estudo monográfico visa evidenciar, bem como analisar, a (re)produção de


estereótipos e representações sociais negativas referentes a construções de identidades
de gênero e sexualidade presentes em discursos, supostamente humorísticos, de
professores de cursos pré-vestibulares. O referencial teórico da investigação que serviu
de base para a monografia em questão fundamenta-se nos Estudos Culturais e na
Linguística Aplicada, tomando como referência a concepção de identidade e
representação social de Hall (2006), Woodward (2009) e Silva (2009), bem como o
conceito de identidade de gênero e sexualidade de Louro (1997, 2000) e Moita Lopes
(2002). Os dados aqui analisados foram gerados por meio de gravações em áudio de
aulas de dois cursos pré-vestibulares, bem como anotações escritas em um diário de
campo, durante os meses de maio e junho do ano de 2012. Este estudo se mostra
relevante no campo da pesquisa qualitativa interpretativista em Linguística Aplicada,
visto que investiga os usos e as práticas sociais da linguagem, levando em conta os
fatores contextuais. Considerando que a escola é um dos espaços institucionais mais
importantes para a construção identitária do sujeito, esta investigação buscou mostrar
que o discurso supostamente humorístico em sala de aula pode propagar, ainda mais,
discursos não oficiais que a própria sociedade, por meio de outras instituições e relações
sociais, produz. Nos excertos analisados, mulheres e homens são representados ou
reconhecidos como não verdadeiros e autênticos por viverem feminilidades,
masculinidades e sexualidades diferentes das hegemônicas.

Palavras-chave: identidade; discurso; humor; professor de cursinho; estereótipo e


representação social.

vi
ABSTRACT

This report aims at analyzing and giving evidence of stereotype (re)production and
negative social representations of gender and sexual identities present in supposedly
humorous discourses of teaches in charge of preparing students to enter university
courses. The theoretical bases of the investigation here described derive from the field
of Cultural Studies that includes the notion of identity and social representation as found
in Hall (2006), Woodward (2009) e Silva (2009), as well as the concepts of gender and
sexual identities proposed by Louro (1997, 2000) and Moita Lopes (2002). The
analysed data was gathered, between March and June 2012, through audiotaped
classroom interaction that occurred in two “cursos pré-vestibulares”, and through field
notes. The study is characterized as a bing qualitative-interpretativist research in
Applied Linguistics since it investigates social language uses and practices taking
contextual factors into account. Considering that the school is one of the most important
institutional spaces for the identity construction of self, this study tried to show that
supposedly humorous discourses in the classroom can help spread non-official
discourses produced by society by means of other institutions and social relations. Data
revealed that people who experience their masculinity, their femininity and their
sexuality in ways that differ from hegemonic models are considered or represented as
not being “true” or “authentic” man and women.

Key-words: identity; discourse; humor; “cursinho” teacher; stereotype and social


representation.

vii
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .........................................................................................................01

2. JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS DA INVESTIGAÇÃO ...................................02

3. REFERENCIAL TEÓRICO .................................................................................... 05

3.1 O discurso humorístico ......................................................................................... 05


3.2 A construção de identidades e de representações sociais .....................................07
3.3 A construção de identidades de gênero e de sexualidade .....................................12

4. METODOLOGIA DE INVESTIGAÇÃO ............................................................... 17

4.1 O ingresso na Universidade e os “cursinhos” ....................................................... 17


4.1.1 Os vestibulares ............................................................................................ 17
4.1.2 Os cursos pré-vestibulares ..........................................................................18
4.2 A pesquisa qualitativa interpretativista em Linguística Aplicada ........................ 19
4.3 O contexto pesquisado .......................................................................................... 21
4.4 O processo de geração de dados ...........................................................................21

5. ANÁLISE DE DADOS .............................................................................................. 23

5.1 Igual cachorro na porta de padaria .....................................................................24


5.2 A virgem da orelha esquerda ................................................................................25
5.3 Hoje é o dia gay ....................................................................................................28
5.4 Que gay! ................................................................................................................30
5.5 Até a igreja fala ....................................................................................................32
5.6 Seus viado!... seus bicha!...................................................................................... 34
5.7 Sempre tem um que gosta de uma ninfeta............................................................. 35
5.8 Quem nunca plantou um feijãozinho? ..................................................................37

6. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. 40

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................42

ANEXO ........................................................................................................................... 44

viii
1. INTRODUÇÃO

Em meu terceiro ano do ensino médio, tive aulas com professores que também
eram docentes em cursos pré-vestibulares. Assim, grande parte das minhas aulas seguia
o modelo utilizado nessa modalidade de ensino, em que o grande objetivo é expor o
aluno a uma enorme quantidade de conteúdos, sem haver preocupação com a formação
crítica do sujeito. Vale ressaltar que esse modelo, infelizmente, exerce a função de
propiciar a entrada de alunos em universidades com poucas vagas e muitos candidatos.

Contudo, incomodava-me o fato de que, a fim de tornar as aulas mais dinâmicas,


alguns professores produziam, em seus discursos, determinadas “piadinhas” que eu,
ainda como aluna, já considerava inadequadas. Muitas vezes, presenciei discursos
humorísticos que faziam referência a visões extremamente machistas, e penso que o que
mais me incomodava era o fato de alguns colegas parecerem endossar aqueles
discursos.

No Curso de Letras do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp tive a


oportunidade de aprender sobre o funcionamento do discurso, particularmente do
discurso pedagógico. E foi assim que fiquei sabendo que, para além dos conteúdos
pragmáticos que fazem parte das grades curriculares que devem ser explicitamente
ensinados aos alunos, há outros “conteúdos”, que terminam por compor um “currículo
oculto”, e que também nos são ensinados por meio do discurso pedagógico.

Desse modo, como foco da minha Monografia ou Trabalho de Conclusão de


Curso (TCC), decidi evidenciar e analisar alguns discursos supostamente humorísticos1
produzidos em aulas de professores de cursos pré-vestibulares, com o intuito de
investigar se, de fato, a construção de determinados estereótipos e representações
sociais se fazem presentes nesses discursos e como essas manifestações discursivas
podem influenciar na construção identitária de alguns grupos minoritários.

Apresento, a seguir, as seções encontradas nesta monografia, fazendo uma breve


síntese daquilo que será abordado em cada segmento, a fim de apresentar ao leitor o
modo como esta monografia está organizada.

1
Irei, a partir de aqui, utilizar aspas no termo “humorístico” quando esse fizer referência aos discursos
produzidos pelos professores para evitar a repetição de palavras como “supostamente” ou “em tese”.

1
Após essa breve Introdução, faço, na seção 2, algumas considerações a respeito
do papel que a escola pode exercer na construção identitária de sujeitos sociais e
étnicos, deixando claro os motivos pelos quais as produções discursivas de professores
no contexto escolar são significativas nesse sentido. Também exponho o objetivo da
investigação relatada nesta Monografia e explicito quais são as perguntas que
orientaram a pesquisa em questão.

Na seção 3, proponho-me a fazer a revisão bibliográfica dos conceitos utilizados


como alicerce para a análise dos dados da pesquisa aqui descrita. Assim, discorro sobre
o papel do discurso “humorístico” em sala de aula, bem como a construção de
estereótipos nele frequentemente presente. Considerando as contribuições dos Estudos
Culturais, pondero sobre a construção de identidades e de representações sociais,
tomando como base os teóricos Hall (2006), Woodward (2009) e Silva (2009), dentre
outros. A fim de, especificamente, problematizar as construções de identidades de
gênero e sexualidade, recorro às contribuições de Louro (1997, 2000), Moita Lopes
(2002), dentre outros especialistas.

Na seção 4, aponto inicialmente algumas considerações a respeito do exame


vestibular e das características específicas dos cursos pré-vestibulares. Além disso,
busco descrever o contexto pesquisado e o processo de geração de dados, bem como
discorrer sobre alguns dos pressupostos epistemológicos da pesquisa
qualitativa/interpretativista em Linguística Aplicada.

A seção 5, por sua vez, apresenta os dados gerados para a pesquisa, bem como a
análise dos mesmos, tendo por base, para o exame dos excertos selecionados, os
conceitos descritos na seção 3.

Finalmente, a seção 6 tem por objetivo expor algumas ponderações finais acerca
dos resultados da pesquisa realizada para compor esta Monografia. Esclareço que o
intuito não é o de apresentar ao leitor grandes conclusões, verdades ou certezas
incontestáveis, mas, sim, apenas trazer algumas reflexões baseadas na pequena análise
de dados por mim empreendida.

2. JUSTIFICATIVA E OBJETIVO DA INVESTIGAÇÃO

A escola é um dos espaços institucionais mais importantes para a construção


identitária do sujeito (MOITA LOPES, 2002). É na escola que a criança entra em
2
contato com indivíduos diferentes de si e de sua família. Consequentemente, é também
no espaço escolar que as práticas discursivas desempenham um papel importante no
desenvolvimento da conscientização da identidade do sujeito e da identidade dos
outros.2

Por exercer esse papel, a escola também se mostra influente na consolidação de


estigmas, já que, em muitas circunstâncias, há um silenciamento por parte de gestores e
professores diante de práticas discursivas preconceituosas. Nesses casos, “o educador
está sujeito a uma escolha inevitável — ainda que inconsciente — quanto a ser agente
privilegiado da expansão ou da contração do preconceito e da discriminação” (BRASIL,
2000, p. 22). Portanto, profissionais da educação podem desestimular a propagação de
preconceitos ao não reagirem com indiferença às conjunturas que o rodeiam, ou podem,
também, posicionarem-se como agentes de produção e expansão de estereótipos e
representações sociais negativas, tal como retratam os dados analisados nesta
Monografia.

Ademais, é preciso considerar que, no contexto escolar, a construção de


conhecimento envolve assimetria interacional: o professor, considerado o detentor do
conhecimento, é posicionado em um papel de autoridade, enquanto que o aluno é muitas
vezes representado como mero aprendiz, como mera tabula rasa. Em outras palavras,
devido à relação assimétrica de poder instituída no espaço escolar, o professor ocupa
uma posição hierarquicamente superior ao aluno. Em decorrência disso, os significados
gerados na instituição escolar possuem mais crédito social do que significados
construídos em outros contextos. Portanto, aquilo que o docente diz supostamente
brincando, pode influenciar, de forma decisiva, na construção identitária do discente e a
construção que esse faz acerca das identidades de outros atores sociais que o rodeiam.
Como afirma Moita Lopes (2002, p. 192), “é de esperar que a sala de aula exerça
influência na definição de como aprendemos a nos representar e a representar os outros
no mundo social”. As identidades e representações sociais construídas na instituição
escolar podem, assim, desempenhar um papel relevante na vida de muitos indivíduos
“quando se depararem com outras práticas discursivas nas quais suas identidades são
reexperienciadas ou reposicionadas” (MOITA LOPES, 2002, p. 38). Portanto, é

2
Ao me referir à conscientização de si e da alteridade, não estou pressupondo que as identidades do
sujeito ou dos outros contenham em si mesmas qualquer essência, como espero deixar claro na seção 3.

3
fundamental que o professor tenha consciência dos efeitos de sentido que seu dizer tem
em seus alunos.

Considerando o anteriormente exposto, o estudo realizado para compor esta


monografia de final de curso teve por objetivo, como já dito, tentar evidenciar, no
discurso “humorístico” de professores de cursos pré-vestibulares, a presença de
estereótipos e de representações sociais negativas de gênero e de sexualidade, já que
muitas vezes esses podem passar despercebidos justamente devido à natureza
humorística desse tipo de discurso, uma vez que o senso comum pressupõe que não se
deve dar credibilidade à “brincadeiras”.

Além disso, esta pesquisa também busca analisar algumas “verdades”, isto é,
alguns saberes instaurados e normatizados por meio desses discursos em relação às
questões de gênero e sexualidade envolvendo, principalmente, as identidades de
mulheres e de homossexuais. Nesse sentido, as análises têm como objetivo desnudar
aquilo que está sendo dito implícita ou metaforicamente nas falas dos docentes, isto é,
os discursos que são produzidos em outras instituições sociais e que são (re)produzidos
pelos professores.

Este estudo se propõe a ainda discutir a forma como a produção discursiva


desses professores pode influenciar na construção identitária do que é ser mulher,
homem, hetero ou homossexual, visto que a escola, como já apontado, é um espaço
institucional relevante para a construção identitária dos alunos sobre si mesmo e sobre
os outros. Assim, será investigado o modo como alguns comportamentos e atitudes são
considerados tipicamente femininos ou masculinos, bem como homo ou heterossexuais,
nos excertos analisados.

Para atingir os objetivos acima elencados, a análise de dados do estudo aqui


relatado procurou obter respostas para as seguintes perguntas de pesquisa:

1. Que estereótipos e representações sociais negativas de gênero e de


sexualidade podem ser percebidos no discurso “humorístico” de professores
de cursos pré-vestibulares?

2. Quais são os saberes construídos e instaurados nesses discursos acerca de


manifestações de identidades de gênero e de sexualidade?

4
3. Como a produção desses estereótipos e representações sociais podem
influenciar na construção identitária feminina, masculina, hetero e
homossexual?

3. REFERENCIAL TEÓRICO

Nesta seção, discuto as bases teóricas utilizadas na análise dos dados aqui feita.
Primeiramente, discorro sobre o discurso humorístico e sobre a sua presença no
contexto escolar. Em seguida, baseando-me em autores filiados aos Estudos Culturais,
reflito sobre a construção de identidades e de representações sociais. Finalmente,
conceitos relativos à identidades de gênero e sexualidade aqui adotados também são
discutidos.

3.1 O Discurso Humorístico

Utilizar o humor como instrumento pedagógico na sala de aula pode auxiliar


tanto na interação entre professor e aluno quanto no processo de aprendizagem. O riso
“aproxima os seres humanos, auxilia nas relações sociais” e “é um instrumento de
grande valia para a comunicação entre os indivíduos, pois possibilita despertar o
interesse, isto é, alcançar um acesso ao ouvinte” (VANNY, 2006, p. 1), permitindo que
o professor promova no aluno um estado de ânimo e um ambiente escolar
descontraídos. Por isso, o trabalho com diversos gêneros humorísticos, envolvendo
piadas, anedotas, charges e até mesmo vídeos, bem como o próprio discurso do
professor (leve e engraçado, ao invés de sério e formal), podem motivar o aluno no
processo de aprendizagem.

Assim, são vários os aspectos positivos para o uso do humor como ferramenta
pedagógica. Contudo, o discurso humorístico também pode ser uma arma nas mãos do
professor quando utilizado, mesmo que não intencionalmente, para promover e
intensificar determinadas representações sociais estereotipadas. Com o objetivo de
conquistar a atenção de seu aluno e tornar a aula menos tensa, o professor pode produzir
efeitos de sentido que ratificam certos preconceitos presentes em nossa sociedade.

Segundo Ávila (2009), baseando-se nas ideias de Pierrot e Amossy (2001),


estereótipos são sistemas culturais preexistentes, nos quais uma peculiaridade de uma

5
parcela do grupo é eleita, tornando essa característica como inerente a todo o grupo. A
identidade do grupo estereotipado, então, é atribuída a ele por um outro grupo, e
envolve relações de poder. Essa mesma autora, com base nas argumentações de Possenti
(2002), afirma que o estereótipo é concebido “como algo social, imaginário e
construído, e se caracteriza por ser uma imagem supersimplificada (frequentemente
negativa) ou convencional de um grupo ou assunto” (ÁVILA, 2009, p. 56). Assim, o
estereótipo é muitas vezes interpretado, segundo o senso comum, como uma verdade
universal, e não como uma construção histórica, social, e ideológica.

Complementando essa definição, Nogueira & Saavedra (2007) afirmam que

poder-se-ia dizer que os estereótipos sociais são generalizações acerca


dos membros de certos grupos e que derivam predominantemente, ou
são uma instância do processo cognitivo da categorização. (...) Os
estereótipos servem, de uma forma geral, para fazer ilações acerca de
grupos baseados na idade, nacionalidade, etnicidade, raça, género,
classe social, profissão, estatura física, orientação sexual, entre outras.
O primeiro objectivo dos estereótipos é o de simplificar e organizar
um meio social complexo, tornando-o menos ambíguo. (...) Mas eles
servem também para justificar a discriminação de grupos e gerar
preconceitos. (NOGUEIRA & SAAVEDRA, 2007, p. 13).

Nesse sentido, todas as mulheres seriam passionais e emotivas, por exemplo,


enquanto que todos os homens seriam seres racionais. São estereótipos como esses que
podem ratificar a produção de discursos preconceituosos. A isso se dá o nome de
estereotipificação de gênero (NOGUEIRA & SAAVEDRA, 2007), processo no qual o
sujeito constrói e internaliza determinados valores e comportamentos considerados
socialmente adequados para o seu sexo biológico.

De acordo com Possenti (1998), as piadas são um interessante corpus de


pesquisa na medida em que reconhecem e confirmam estereótipos e manifestações
culturais e ideológicas de uma sociedade. O autor ainda afirma que elas veiculam
discursos proibidos, subterrâneos e não oficiais presentes na sociedade, mas que podem
ser considerados politicamente incorretos e preconceituosos. O discurso humorístico na
sala de aula pode se manifestar do mesmo modo, na medida em que alguns professores
reproduzem discursos homofóbicos e machistas (isto é, discursos proibidos e não
oficiais) ao produzir um comentário supostamente engraçado durante sua aula, por
exemplo. Talvez esses mesmos professores não fizessem esses comentários fora do

6
contexto informal em que o discurso humorístico está inserido. Contudo, apenas porque
foi produzido em um momento informal, não equivale dizer que ele não pode ser
entendido, também, como algo a ser aprendido pelo aluno, já que, como vimos, o
professor é também um modelo para seus alunos, que não aprendem somente em
situações formais de aprendizagem.

Além disso, o discurso humorístico em sala de aula tem, quase sempre, como
foco, grupos minoritários: mulheres, homossexuais, negros, entre outros. Mas por que
os exemplos envolvendo minorias são considerados tão engraçados?

Se seguirmos Freud, admitiremos que o desejo de destruição do outro –


de qualquer um que seja diferente – só não é posto em prática por
repressão, dito de outra maneira, como efeito de civilização, que é em
grande parte um conjunto de tecnologias para controlar pulsões,
instintos. A distância entre uma guerra e uma piada racista é grande,
certamente, mas ambas pertencem à mesma linhagem: são uma forma
de agredir o outro, de expressar a certeza de que o outro não é como
nós. (POSSENTI, 2009, p. 76-77).

Desse modo, o humor é uma forma de agredir o outro, de agredir o diferente de


quem enuncia. É devido a essa característica presente no humor que as piadas que
envolvem as minorias, isto é, aqueles que são socialmente construídos como diferentes,
são tão numerosas e provocam tanto riso.

3.2 A Construção de Identidades e de Representações Sociais

A definição de identidade, no senso comum, é entendida como um fato


autônomo, auto-contido, e autossuficiente, isto é, “aquilo que eu sou” (SILVA, 2009).
Da mesma forma, a diferença também é vista de um modo independente, sendo “aquilo
que o outro é”. Contudo, Silva (2009) argumenta que identidade e diferença constituem
uma relação de dependência, e são mutuamente determinadas. Sendo assim, a afirmação
de uma identidade pressupõe uma cadeia de negações, isto é, de diferenças, já que existe
o “outro” que “não é aquilo que eu sou”.

Na mesma esteira argumentativa, Woodward (2009) destaca que a identidade é


relacional, pois ela é construída por meio de diferenças estabelecidas através de
sistemas classificatórios e marcações simbólicas em relação a outras identidades. Como
a diferença é sustentada pela exclusão (ser homem é não ser mulher, por exemplo), uma

7
identidade depende de outra para existir, para se afirmar como diferente do que ela é.
Desse modo, a diferença, e, consequentemente, a identidade, podem ser construídas
negativamente, por meio da exclusão e marginalização das pessoas que são definidas
como “Outros”.

Além disso, a identidade e a diferença são entendidas por Silva (2009) como o
resultado de atos de criação linguística. Esse conceito implica dizer que ambas não são
elementos da natureza, fatos da vida, essências pré-existentes que são apenas
“descobertas” pelo ser humano. Muito pelo contrário, a identidade e a diferença são
ativamente produzidas no contexto de relações culturais e sociais, determinadas pelos
sistemas discursivos e simbólicos que as definem, e criadas por meio de atos de
linguagem (SILVA, 2009). Sendo assim, elas são instituídas por meio de atos de fala, e
“não podem ser compreendidas fora dos sistemas de significação nos quais adquirem
sentido” (SILVA, 2009, p. 78).

Além disso, Hall (2006) afirma que as identidades são formadas e transformadas
no interior da representação. Por serem representadas como um conjunto de
significados, as identidades são consideradas pelo autor um sistema de representação
cultural, no qual a representação também é concebida como um sistema de significação.

Sendo a representação um sistema de significação linguístico e cultural, ela


também é, assim como a linguagem, arbitrária, indeterminada, instável e ligada às
relações de poder (SILVA, 2009). Assim, os grupos sociais que detêm o poder de
representar são aqueles que definem e determinam as identidades. A representação,
então, não é um meio transparente e uma expressão do real, pois, como qualquer
sistema de significação, ela é uma forma de atribuição de sentido.

Portanto, é através dos sistemas de símbolos e da linguagem pelos quais ela é


representada que a identidade adquire sentido (WOODWARD, 2009). De acordo com a
autora, a representação atua simbolicamente para classificar o mundo e nossas relações
em seu interior. É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos
sentido à nossa experiência e àquilo que somos. A representação compreendida como
um processo cultural estabelece identidades individuais e coletivas. Desse modo, os
discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os
indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar.

8
Seguindo esse raciocínio, a autora afirma que a construção da identidade é tanto
simbólica quanto social (WOODWARD, 2009). A marcação simbólica, então, é a
responsável por dar significado às práticas e às relações sociais. Em outras palavras,
damos sentido as nossas próprias posições por meio dos sistemas simbólicos.

Baseando-se nas ideias de Hall, Fochzato (2010) argumenta que a identidade


significa o ponto de encontro entre os discursos e as práticas que tentam nos interpelar e
nos convocar para que assumamos nossos lugares como sujeitos sociais de discursos
particulares. Assim, é por meio da diferenciação social que os sistemas classificatórios
se instituem nas relações sociais, organizando a sociedade em ao menos dois grupos,
“nós e eles” (WOODWARD, 2009). Todas as práticas de significação envolvem
relações de poder, incluindo o poder para excluir e marginalizar, demarcar fronteiras,
classificar, e normalizar (SILVA, 2009).

A identidade, portanto, está sujeita às relações de poder, já que ela é socialmente


construída. Silva (2009) ainda complementa que tais relações de poder não são
definidas, mas, sim, impostas. Desse modo, “elas não convivem harmoniosamente, lado
a lado, em um campo sem hierarquias; elas são disputadas” (SILVA, 2009, p. 81).

Baseando-se em Lane (1981), Fochzato (2010) complementa essa ideia ao


defender que o discurso de autoridade impõe representações cuja finalidade é a
reprodução das relações sociais dominantes. Para a autora, “a ideologia se faz pela
autoridade do dizer que encobre relações de poder e as contradições daí decorrentes,
idealizando uma realidade diferente da real” (FOCHZATO, 2010, p.52). A definição e a
afirmação da identidade, portanto, são disputadas pelos grupos sociais assimétricos que
lutam por garantir o acesso privilegiado aos bens sociais. Nessa perspectiva, “nós” e
“eles”, isto é, os diferentes grupos sociais, não são apenas categorias gramaticais, mas
indicadores de posições-de-sujeito marcadas por relações de poder (SILVA, 2009).

Além disso, as classificações (“nós” e “eles”) são sempre feitas a partir do ponto
de vista da identidade, na medida em que dividir e classificar também envolve relações
hierárquicas. Classificar pressupõe deter o privilégio de atribuir diferentes valores aos
grupos que serão classificados (SILVA, 2009). As oposições binárias são formas de
classificação na qual um dos termos recebe um valor positivo, e o outro, um valor
negativo. Para Silva (2009), as relações de identidade e diferença são concebidas por
meio de oposições binárias, como masculino/feminino e heterossexual/homossexual.
Sendo assim, “questionar a identidade e a diferença como relações de poder significa
9
problematizar os binarismos em torno dos quais elas se organizam” (SILVA, 2009, p.
83).

Fixar uma identidade como a norma, o modelo social, e o padrão a serem


seguidos também é uma forma de exercer o poder por meio da hierarquização das
identidades e das diferenças. Normalizar, portanto, significa escolher arbitrariamente
uma identidade em especial como parâmetro de avaliação de outras identidades. Desse
modo, é atribuído à identidade modelo características positivas, restando às outras
apenas características negativas. A identidade “normal” é a natural, desejável, única,
hegemônica (SILVA, 2009). Contudo, vale ressaltar que a definição da identidade
“normal” depende da definição da “anormal”, isto é, do outro, daquilo que é rejeitado, já
que “a diferença é parte ativa da formação da identidade” (SILVA, 2009, p. 84).

Outro modo de fixar uma identidade é compreender a representação como uma


forma de descrevê-la. A descrição pressupõe que a identidade seja naturalmente de
determinada maneira, sendo ela um fato do mundo, e não que ela tenha se tornado assim
devido a questões sociais e culturais. Butler (1999 apud SILVA, 2009), a partir do
conceito de performatividade, afirma que ao se descrever uma característica identitária,
não estamos apenas descrevendo uma situação, pois “aquilo que dizemos faz parte de
uma rede mais ampla de atos linguísticos que contribuem para definir ou reforçar a
identidade que supostamente apenas estamos descrevendo” (SILVA, 2009, p. 93). Além
disso, quanto mais vezes os enunciados performáticos são repetidos, mais eficazes eles
se tornam. Entretanto, Butler (1999, apud SILVA, 2009) afirma que essa repetibilidade
dos atos performáticos pode ser questionada e contestada, tornando possível a
possibilidade de instauração de novas identidades.

Hall (2006) apresenta três concepções de identidade: a do sujeito do Iluminismo,


a do sujeito sociológico, e a do sujeito pós-moderno. A primeira baseia-se em um
indivíduo unificado e centrado, sendo sua identidade contínua e fixa ao longo de sua
existência. Já na concepção de sujeito sociológico, a identidade é formada na interação
do eu e da sociedade; assim, ela não é autônoma, mas formada na relação com o outro.

Por outro lado, na última concepção, o sujeito se torna fragmentado, e sua


identidade não é fixa, imutável, e permanente, mas uma celebração móvel, “formada e
transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou
interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 2006, p. 13). Para Silva
(2009), as identidades são indeterminadas e instáveis por fazerem parte de um processo
10
de produção simbólica e discursiva, e por serem resultado de atos de criação linguística.
Sendo a estrutura da linguagem caracterizada pela indeterminação e pela instabilidade, o
processo de significação é sempre incerto e vacilante, justificando a celebração móvel
das identidades. Desse modo, o sujeito pós-moderno, antes constituído por somente uma
identidade, se encontra deslocado em meio a várias identidades que podem ser
contraditórias entre si. Além disso, Woodward (2009) ainda ressalta que as identidades
são diversas e cambiantes, sendo as posições que assumimos e com as quais nos
identificamos constituintes de nossas identidades.

Hall (2006), com base no que afirma Laclau (1990), ainda complementa a
concepção de sujeito pós-moderno com o conceito de deslocamento das estruturas
centrais de poder: nas sociedades pós-modernas, o centro de poder é deslocado, sendo
substituído por uma pluralidade de centros de poder. Assim, tais sociedades são
atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma
variedade de identidades para os indivíduos.

Devido a essa pluralidade de centros de poder, a produção da identidade hesita


entre o processo que tende a sua fixação e a sua estabilização e o processo que tende sua
subversão e de sua desestabilização (SILVA, 2009). Em grande parte das vezes, os
grupos sociais hierarquicamente inferiores, isto é, aqueles que não detêm o poder de
definir as identidades homogêneas, são os responsáveis por lutarem pela subversão e
desestabilização da identidade. Silva (2009) ainda acrescenta que as interpretações
biológicas, geralmente utilizadas como argumentos para a fixação das identidades,
também são essencialismos culturais, já que antes de serem científicas, são apenas
interpretações.

Finalmente, Woodward (2009) apresenta duas perspectivas de identidade. A


primeira delas – a perspectiva essencialista – sugere que há um conjunto cristalino e
autêntico de características que são partilhadas e que não se alteram ao longo do tempo.
Assim como na concepção de sujeito do Iluminismo apresentada por Hall (2006), nessa
perspectiva a identidade é fixa e imutável, pautada na oposição binária “nós e eles”. A
perspectiva não-essencialista ou construtivista, por sua vez, reconhece que as
identidades têm um passado, contudo, elas são reinvidicadas e reconstruídas ao longo
do tempo, isto é, são constantemente criadas e recriadas. Desse modo, as identidades
são processos de produção social inacabados, que podem ser sustentados ou
abandonados. Além disso, as identidades são consideradas pela autora fluidas, pois

11
“aqueles que reivindicam a identidade não se limitam a ser posicionados por ela, já que
são capazes de posicionarem-se a si próprios e de reconstruírem e transformarem as
identidades históricas, herdadas de um suposto passado comum” (WOODWARD, 2009,
p. 28). Essa perspectiva enfatiza as diferenças e as características comuns ou partilhadas
entre as diversas identidades.

3.3 A Construção de Identidades de Gênero e de Sexualidade

De acordo com Louro (1997), o conceito de gênero é utilizado em oposição ao


conceito de sexo: enquanto o primeiro é uma construção social, o segundo se baseia nas
diferenças biológicas entre o sexo masculino e o feminino. Em outras palavras,
acrescentando, ainda, o conceito de sexualidade, Silva & Rezende (2005) e Weeks
(2000) esclarecem as diferenças entre sexo, sexualidade e gênero:

(...) entendemos sexo como uma conformação particular que distingue


o macho da fêmea, atribuindo-lhes um papel determinado na geração e
conferindo-lhes certas características distintivas. A sexualidade será
tratada por nós como o modo pelo qual uma pessoa dirige seu desejo
sexual e o gênero como a forma culturalmente elaborada que a
diferença sexual toma em cada sociedade e que se manifesta nos
papéis e status atribuídos a cada sexo e constitutivos da identidade
sexual dos indivíduos (SILVA & REZENDE, 2005, S. I.).

(...) "Sexo" será usado (...) como um termo descritivo para as


diferenças anatômicas básicas, internas e externas ao corpo, que
vemos como diferenciando homens e mulheres. Embora essas
distinções anatômicas sejam geralmente dadas no nascimento, os
significados a elas associados são altamente históricos e sociais. Para
descrever a diferenciação social entre homens e mulheres, usarei o
termo “gênero”. Usarei o termo "sexualidade” como uma descrição
geral para a série de crenças, comportamentos, relações e identidades
socialmente construídas e historicamente modeladas que se
relacionam com o que Michel Foucault (1993) denominou "o corpo e
seus prazeres" (WEEKS, 2000, p. 40).

Portanto, é na esfera das relações sociais que o gênero e a sexualidade são


estabelecidos (LOURO, 1997), pois é nesse âmbito que as relações desiguais entre os
sujeitos se constroem e se reproduzem.

12
O conceito de gênero, então, se refere ao modo como as características sexuais
são representadas e no qual essas diversas representações sobre homens e mulheres são
vistas de um modo plural. Assim, as concepções de gênero são distintas não apenas em
diferentes momentos históricos, como também dentro de uma própria sociedade,
levando em conta os diferentes grupos que a constituem.

Desse modo, o gênero é constituinte das identidades dos sujeitos (LOURO,


1997), para quem as identidades também são plurais, múltiplas, não são fixas ou
permanentes, e se transformam continuamente. Nessa perspectiva, o gênero faz parte do
sujeito e de sua identidade, e constitui as diferentes instituições e práticas sociais.
Assim, tais práticas sociais produzem-se a partir do gênero, assim como a partir das
relações de classe, etnia, entre outras, e influenciam a construção identitária dos
sujeitos.

O argumento essencialista de que homens e mulheres são biologicamente


distintos é utilizado para justificar a desigualdade social e a relação na qual cada um é
responsável por desempenhar um papel. Contudo, é a forma como essas diferenças
sexuais, e, portanto, biológicas, são representadas e valorizadas que constitui o que é
masculino e feminino em uma determinada sociedade em um determinado contexto
histórico. De acordo com Bonomo; Barbosa & Trindade (2008), a construção da
identidade masculina é sustentada no imaginário social pelas instituições e saberes que
reúnem esforços, criam crenças e as disseminam como verdade equivalente de uma
única realidade possível: “ser homem” é ser heterossexual, provedor, e pai de família,
por exemplo.

Segundo Silva & Rezende (2005), o discurso essencialista, por ser amparado
institucionalmente, estabelece relações de poder nas quais em oposição à emotividade e
à passividade compreendidas como inerentemente femininas, por exemplo, é que se
concebe o gênero masculino. Assim, o homem passa a ocupar a posição de provedor do
lar por ser essencialmente racional e ativo, em uma visão fixa e naturalista das
identidades de gênero. O essencialismo, portanto, explica as propriedades de um todo
complexo por referência a uma suposta verdade ou essência interior. Essa abordagem
reducionista procura explicar os indivíduos como produtos automáticos de impulsos
internos (WEEKS, 2000).

Weeks (2000), então, faz referência ao conceito de “construcionismo social” em


oposição à perspectiva essencialista:
13
A expressão [construcionismo social] talvez tenha um tom áspero e
mecânico, mas tudo o que ela basicamente pretende fazer é
argumentar que só podemos compreender as atitudes em relação ao
corpo e à sexualidade em seu contexto histórico específico,
explorando as condições historicamente variáveis que dão origem à
importância atribuída à sexualidade num momento particular,
compreendendo as várias relações de poder que modelam o que vem a
ser visto como um comportamento normal ou anormal; aceitável ou
inaceitável. (WEEKS, 2000, p. 40).

Moita Lopes (2002), corroborando essa argumentação, afirma que a sexualidade


não possui uma essência a ser desvelada, já que ela é um produto do processo de
aprendizagem de significados socialmente construídos. Para o autor, a sexualidade é
dinâmica e não possui apenas uma única direção ao longo da vida de um indivíduo.
Assim,

nos posicionamos diferentemente em identidades sexuais diferentes


em períodos diferentes de nossas vidas e em práticas discursivas
diferentes. As sexualidades parecem ser compreendidas como fluidas
e interconectadas de modo complexo atualmente (MAC AN GHAIL,
1994, p. 3 apud MOITA LOPES, 2002, p. 100).

Para Louro (2000), a sexualidade, assim como o gênero, também é uma


invenção social, uma vez que se constitui, historicamente, a partir de múltiplos
discursos que regulam, normatizam, instauram saberes e produzem "verdades" sobre o
sexo.

Além disso, as identidades sexuais e as identidades de gênero estão


profundamente inter-relacionadas, sendo confundidas frequentemente (LOURO, 1997).
Uma mulher pode exercer sua feminilidade e sua sexualidade de diversos modos.
Contudo, elas não são a mesma coisa: mulheres femininas podem ser heterossexuais,
homossexuais ou bissexuais, por exemplo. Ambas as identidades estão sempre se
construindo, são instáveis, e, portanto, podem sofrer transformações, atravessadas por
diferentes discursos, símbolos, representações e práticas sociais. Assim, em relação às
identidades sexual e de gênero, os sujeitos arranjam e desarranjam seus lugares sociais,
suas disposições, suas formas de ser e de estar no mundo (LOURO, 1997). Portanto, as
identidades sexuais e de gênero possuem o caráter fragmentado, instável, histórico e
plural, assim como todas as identidades sociais. Os outros sujeitos sociais se tornam

14
marcados e são denominados a partir da referência “normal” e “padrão”, isto é, do
homem branco, heterossexual, de classe média urbana e cristão (LOURO, 2000).

Em relação à suposta dicotomia entre o homem e a mulher, Louro (1997) afirma


que é preciso desconstruir a ideia de que a identidade de gênero se constitui por meio de
uma oposição binária entre masculino e feminino. Isto é, as representações do
pensamento dicotômico e polarizado entre os gêneros concebem o homem e a mulher
como polos opostos que se relacionam dentro de uma lógica invariável de dominação-
submissão. Contudo, cada polo não é uno, mas sim plural, pois cada um supõe e contém
o outro (LOURO, 1997). Os polos são internamente fragmentados e divididos, afinal
não existe uma mulher, mas várias mulheres que não são idênticas entre si, por
exemplo.

Nessa mesma linha de raciocínio, Bonomo, Barbosa e Trindade (2008)


argumentam que a masculinidade do sujeito é socialmente construída através da
desvalorização da masculinidade do outro, de modo que essa última seja vinculada à
identidade feminina. Assim sendo, a ameaça se dá ao feminino do homem, deixando
claro, mais uma vez, a relação dicotômica entre o que é masculino e o que é feminino.

Além da oposição binária entre a masculinidade e a feminilidade, há também a


oposição entre o igual e o diferente. Ao discutir sobre as diversas manifestações da
sexualidade, Moita Lopes (2002) afirma que a representação do outro se dá em termos
do binômio igualdade/diferença, que define como nos engajamos no discurso com esse
outro. Desse modo, “o reconhecimento do outro, daquele ou daquela que não partilha
dos atributos que possuímos, é feito a partir do lugar social que ocupamos” (LOURO,
2000, p. 12).

Moita Lopes chama nossa atenção para o fato de que pensar as identidades em
termos de polos rígidos de identificação (negro/branco, homoerótico/heterossexual,
pobre/rico) não é produtivo, pois “há outros matizes da identidade social como
bissexual, mulato, etc., e ainda que esses não sejam necessariamente fixos: as pessoas
podem não ter sempre o mesmo tipo de desejo sexual, por exemplo” (MOITA LOPES,
2002, p. 201). Desse modo, a perspectiva dicotômica e binária do gênero implica em
uma ideia singular de masculinidade e feminilidade, excluindo todos os sujeitos que não
se enquadram em uma dessas formas. Assim, mulheres e homens não são representados
ou reconhecidos como verdadeiros e autênticos por viverem feminilidades e
masculinidades diversas das hegemônicas. Nessa perspectiva, há um lugar natural e fixo
15
para cada gênero, e há apenas uma forma permanente de relação entre o homem e a
mulher. Assim como Louro (1997), Moita Lopes (2002) defende que a oposição homem
x mulher não é fixa e nem inerente, já que ela é socialmente construída.

Ademais, não há como afirmar que apenas o polo masculino, de modo estável,
detém o poder. O exercício de poder envolve técnicas, manobras e disposições e é
contestado. Se não houver resistência, não é poder, mas apenas uma relação de
violência. Nessa perspectiva, na relação entre homens e mulheres há negociação,
avanços, recuos, consentimentos, revoltas e alianças, não sendo fixo o vencedor
(LOURO, 1997).

Louro (1997), portanto, defende que os gêneros se produzem na e pelas relações


de poder. A construção social do que é ser homem e mulher se dá por meio de práticas
sociais que instituem modos de estar e ser no mundo, gestos, e formas apropriadas de
falar e agir, além de ferramentas de repressão e censura. É no interior das redes de poder
que são construídas as diferenças e desigualdades de gênero, classe, sexualidade,
nacionalidade, etnia, entre outras, que são nomeadas a partir de uma determinada
referência.

Assim, o discurso, devido a sua natureza dialógica (BAKHTIN 1981 apud


MOITA LOPES 2002) e socioconstrucionista (WERTSCH 1991 apud MOITA LOPES
2002), é um meio pelo qual as relações de poder se concretizam. Ele é um meio eficaz e
persistente para instituir as distinções e as desigualdades, pois atravessa a maioria das
práticas e parece, muitas vezes, “natural”.

Para Louro (1997),

são, pois, as práticas rotineiras e comuns, os gestos e as palavras


banalizados que precisam se tornar alvos de atenção renovada, de
questionamento e, em especial, de desconfiança. A tarefa mais urgente
talvez seja exatamente essa: desconfiar do que é tomado como
"natural (LOURO, 1997, p. 63).

O discurso, então, produz e pretende fixar as diferenças, instituindo relações,


poderes e lugares. Desse modo, institui e demarca os lugares dos gêneros pelas diversas
adjetivações que são atribuídas aos sujeitos. Ademais, Moita Lopes (2002) afirma que a
natureza social do discurso permite que se altere o outro e que o outro também possa
nos modificar. Em outras palavras: “ao mesmo tempo em que consideramos as

16
identidades dos participantes discursivos, estamos também (re-)construindo as
identidades deles nas práticas discursivas nas quais estamos envolvidos e eles estão (re-)
construindo as nossas através do discurso” (MOITA LOPES, 2002, p. 94).

4. A METODOLOGIA DE INVESTIGAÇÃO

Tendo me situado teoricamente, proponho-me, nesta seção, a descrever o


contexto pesquisado, discorrer sobre os pressupostos epistemológicos da pesquisa
descrita nesta Monografia, bem como sobre os procedimentos metodológicos nela
utilizados. Antes, porém, teço algumas breves considerações sobre o processo seletivo
para a entrada no ensino superior e sobre os cursos pré-vestibulares.

4.1 O ingresso na Universidade e os “cursinhos”

4.1.1 Os vestibulares

O exame vestibular é um concurso classificatório para o ingresso nos cursos


regulares de graduação das instituições de Ensino Superior no Brasil. É relevante
esclarecer, no entanto, que os exames vestibulares nem sempre foram aplicados como
ocorre nos moldes atuais. De acordo com Whitaker (2010), em 1911 foi estabelecida a
Lei Orgânica para o Ensino Superior, sendo esta a primeira referência aos processos
seletivos para o ingresso no Ensino Superior. O exame consistia em provas escritas e
orais, e seu conteúdo era diferente conforme o curso que o candidato gostaria de fazer.
Não houve grandes alterações nas características das provas até 1960.

A partir da década de 1960 e com a intensificação do processo de


industrialização no país, os concursos vestibulares classificatórios foram
regulamentados. No estado de São Paulo, os exames vestibulares se estruturaram em
três áreas: CESCEM, área de biológicas; CESCEA, área de humanas; e MAPOFEI, área
de exatas (WHITAKER, 2010). Cada área agrupava um número grande de cursos e
faculdades.

Com o golpe militar de 1964, foram criadas várias universidades por todo o
território com o intuito de modernizar um país que se urbanizava de modo acelerado e
gerar mão-de-obra para a realização do milagre brasileiro (WHITAKER, 2010). Assim,
precisava-se cada vez mais de profissionais capacitados. A procura pelo ingresso nas
universidades passa a ser maior que o número de vagas oferecidas, tornando o exame

17
vestibular um mecanismo de contenção do acesso ao Ensino Superior e também um
mecanismo de seletividade social (PORTO JÚNIOR, 2002). Era preciso selecionar uma
minoria, e o vestibular se tornava cada vez mais elitizante.

A partir de 1976, houve a unificação das três áreas (biológicas, humanas e


exatas) nos exames vestibulares (WHITAKER, 2010). Desse modo, os candidatos de
diferentes cursos fariam uma prova com os mesmos conteúdos.

4.1.2 Os cursos pré-vestibulares

Os assim chamados “cursinhos” surgem juntamente com os exames de 1911, já


que é nessa época que a ideia de que seria preciso preparar os candidatos para os
vestibulares de Medicina, Direito, e Filosofia torna-se concreta.

Contudo, foi somente a partir da década de 1960, com a aplicação dos moldes de
exame vestibular classificatório, que os cursos pré-vestibulares se tornaram grandes
redes empresariais. Whitaker (2010) afirma que

os cursinhos pré-vestibulares se constituíram por um duplo


movimento: por um lado, eram estratégias das elites para garantir a
trajetória dos seus filhos em direção à universidade, enquanto, por
outro lado, eram nichos atrativos para a efetivação de capitais em
busca de expansão e lucros (WHITAKER, 2010, p. 293).

De acordo com essa mesma autora, os cursos pré-vestibulares podem ser


considerados uma “anomalia” e se constituem em um paradoxo. Ao mesmo tempo em
que reforçam o fracasso do sistema educacional brasileiro público e privado em preparar
os candidatos para o vestibular, utilizam práticas e metodologias antipedagógicas
“ligadas à memorização pura e simples, como a aula-show e a repetição de fórmulas
químicas em ritmos populares, sem tempo para debates, reflexões, e críticas”
(WHITAKER, 2010, p. 290). Além de os “cursinhos” serem ao mesmo tempo
marginais ao sistema de ensino oficial, eles são quase que institucionalizados na
trajetória de alguns jovens.

Porto Júnior (2002) argumenta que o surgimento dos “cursinhos” se deu como
uma consequência da carência do Ensino Médio, já que os conteúdos cobrados nos
vestibulares não estavam inseridos na realidade do Ensino Médio da maioria das escolas

18
brasileiras. Assim, os cursos pré-vestibulares “forneciam aos candidatos um acúmulo de
conhecimentos e informações científicas cuja finalidade seria a aprovação no concurso e
não a formação científica e crítica” (PORTO JÚNIOR, 2002, p. 41).

É significativo destacar que Whitaker (2010) estabelece uma relação entre o


número de ingressantes nas universidades e o número de ingressantes que fizeram
“cursinho”, chegando à conclusão que a maioria dos ingressantes no modelo de
vestibular classificatório é composta por candidatos que frequentaram um ou dois anos
esse tipo de instituição escolar. Desse modo, apesar dos métodos condenáveis utilizados
pelos cursos pré-vestibulares, não há como negar que eles são eficientes para a
aprovação no vestibular, sendo esse mais um paradoxo. Whitaker (2010) nomeou tal
relação de “efeito cursinho”.

4.2 A pesquisa qualitativa – interpretativista em Linguística Aplicada

A tendência contemporânea da pesquisa em Linguística Aplicada (doravante


LA) é a de investigar os usos e as práticas sociais da linguagem, levando em
consideração os fatores contextuais (FABRÍCIO, 2006). Nessa perspectiva, entende-se
que estudar a linguagem como objeto autônomo e que existe em si mesmo, faz com que,
consequentemente, se deixe o contexto em um segundo plano e se desconsidere que os
fenômenos sociais só existem inseridos em um campo de problematizações.

Desse modo, a linguagem nas pesquisas de cunho qualitativo interpretativista em


LA é entendida como uma prática social, já que “ao estudarmos a linguagem estamos
estudando a sociedade e a cultura das quais ela é parte constituinte e constitutiva”
(FABRÍCIO, 2006, p. 48), o que torna possível estabelecer um entrelaçamento entre
cultura, práticas discursivas, conhecimento e visão de mundo. Em decorrência desse
posicionamento, a investigação das práticas discursivas de sujeitos historica e
culturalmente inseridos em um determinado contexto social coloca-se como parte da
agenda da vertente da LA a qual me filio.

Fica claro, então, que, uma vez que a pesquisa em LA supõe o estudo de práticas
específicas de uso da linguagem em contextos específicos, ela se constitui como um
campo de investigação que está longe de ser neutro (SIGNORINI, 1998). Isso porque,
as práticas discursivas envolvem “escolhas ideológicas e políticas, atravessadas por
relações de poder, que provocam diferentes efeitos no mundo social” (FABRÍCIO,

19
2006, p. 48). Desse modo, tanto as escolhas feitas pelo sujeito pesquisador quanto os
dados a serem por ele analisados não podem ser compreendidos de forma imparcial,
visto que a própria seleção dos dados já revela uma interpretação singular acerca do
contexto pesquisado: procura-se regularidades durante a geração dos dados que
possibilitem a formação de um arquivo de dados relacionados às questões investigadas
(MOITA LOPES, 1994). O sujeito pesquisador, então, não é neutro, assim como a sua
análise não é compreendida como uma verdade incontestável, já que ela é fruto de uma
interpretação de um sujeito historicamente situado em uma determinada sociedade.

Além disso, também é preciso considerar os posicionamentos políticos, sociais,


culturais e ideológicos dos sujeitos da pesquisa. De acordo com Moita Lopes,

na posição interpretativista, não é possível ignorar a visão dos


participantes do mundo social caso se pretenda investigá-lo, já que é
esta que o determina: o mundo social é tomado como existindo na
dependência do homem (MOITA LOPES, 1994, p. 331).

Sendo assim, ao investigar a linguagem, deve-se avaliar também o sujeito que a


produz discursivamente, de modo que o pesquisador possa compreender os significados
construídos pelos participantes naquele contexto social particular. Em decorrência desse
objetivo, esse mesmo autor argumenta que

o acesso aos significados se dá através da utilização de instrumentos


de pesquisa tais como diários (do pesquisador-participante, dos alunos
e dos professores), gravação de aulas em vídeo e áudio, entrevistas,
documentos, etc., que apresentam descrições/ interpretações do
contexto escolar. (MOITA LOPES, 1994, p. 334).

O modelo de pesquisa qualitativa interpretativista foi o utilizado na investigação


que serviu de base para esta Monografia, tendo em vista que “na visão interpretativista,
os múltiplos significados que constituem as realidades só são passíveis de interpretação.
É o fato qualitativo, ie, o particular, que interessa” (MOITA LOPES, 1994, p. 332).
Desse ponto de vista, a subjetividade da pesquisa possibilita que a operação científica
seja entendida como uma construção social (MOITA LOPES, 1994), já que ela é
também construída e organizada por meio do discurso.

A pesquisa em LA, desse modo, tem como função questionar determinadas


práticas sociais, e, portanto, constitui-se ela mesma como uma prática problematizadora,

20
“que percebe questões de linguagem como questões políticas; que não tem pretensões a
respostas definitivas e universais, por compreender que elas significam a imobilização
do pensamento” (FABRÍCIO, 2006, p. 60). A produção do conhecimento, então, não é
neutra, mas, sim, resultado de uma interpretação que pode apenas ser aplicada ao
contexto da situação analisada.

4.3 O contexto pesquisado

Os dados analisados na pesquisa aqui relatada foram discursivamente


produzidos em aulas de diferentes professores de duas escolas de médio porte que
oferecem cursos pré-vestibulares, durante os meses de maio e junho do ano de 2012. A
escolha específica dessas duas escolas se deu devido aos contatos profissionais que
facilitaram o meu acesso às aulas dos “cursinhos”.

As escolas pertencem à rede particular de duas cidades do interior do estado de


São Paulo, e seu corpo discente é formado por alunos que têm interesse em ingressar em
universidades públicas. Grande parte desses alunos não pertence a grupos sociais
economicamente desfavorecidos e possui, portanto, condições financeiras para arcar
com os custos de um curso pré-vestibular.

O corpo docente se constitui, majoritariamente, por homens com idade


aproximada entre 30 e 55 anos. Pelo que pude observar, os professores dão aulas
expositivas, nas quais os conteúdos previstos para o exame vestibular são ministrados. É
característico desse procedimento metodológico que os alunos não se sintam motivados
a participar das aulas, já que muito raramente o docente propõe algum tipo de
participação por parte dos estudantes.

4.4 O processo de geração de dados

Ao todo, 25 aulas de diferentes disciplinas foram observadas e gravadas em


áudio, conforme ilustra o quadro a seguir:

Quadro 1: quantidade de aulas observadas por disciplina

21
Disciplina Quantidade de aulas observadas por disciplina
Biologia 5
Física 6
Gramática (Língua Portuguesa) 2
História 4
Literatura (Língua Portuguesa) 2
Matemática 3
Química 3

Além das gravações em áudio das interações professor-alunos ocorridas nessas


aulas, anotações sobre o que pude nelas observar foram posteriormente por mim
registradas em um diário de campo.

É importante ressaltar que a escolha das aulas observadas foi feita de modo
aleatório e sem nenhum planejamento prévio; apenas ajustei os horários que eu mesma
tinha disponíveis com os horários das próprias escolas. Esse é o motivo pelo qual, por
exemplo, geografia e sociologia não aparecem entre as disciplinas observadas. A
seleção das salas de aula observadas também foi aleatória, deixando claro que em um
dos cursos pré-vestibulares só havia uma sala, e, no outro, havia três, sendo que
acompanhei as aulas pelo menos durante um período em cada uma das salas.

Importa esclarecer, além disso, que observei mais de um professor por


disciplina, visto que, em cursos pré-vestibulares, cada disciplina tem, muitas vezes,
mais de um docente responsável por ministrá-la. Desse modo, os dados analisados
podem fazer referência a uma mesma disciplina, mas isso não significa que,
necessariamente, ela tenha sido ministrada pelo mesmo professor. As observações e
gravações ocorridas nas aulas de Língua Portuguesa (Gramática e Literatura), bem
como nas aulas de Matemática e Química não se mostraram relevantes, considerando os
objetivos da pesquisa conduzida, e não foram, por isso, consideradas na análise dos
dados.

O quadro abaixo faz referência aos sujeitos cujos discursos foram efetivamente
analisados:

Quadro 2: sujeitos da pesquisa

22
Sujeitos de Pesquisa
Professor* Idade Disciplina que ministra
Aproximada
Professor 5.1 35 anos Física
Professor 5.2, 5.5, 5.6** 30 anos História
Professor 5.3, 5.4** 30 anos História
Professor 5.7 e 5.8** 50 anos Biologia

* Numerado de acordo com o excerto incluído na análise de dados.


** O mesmo professor é analisado nestes fragmentos.

Observe-se que optei por não distinguir ou especificar as escolas ou nomear os


professores que aparecem nos excertos analisados, identificando apenas a disciplina que
estavam ministrando, para manter tanto os “cursinhos” quantos os sujeitos envolvidos
incógnitos, um compromisso firmado com os donos das instituições que abriram suas
portas para mim. Permissão expressa para a o processo de geração dos dados foi
fornecida por meio de assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido cujo
modelo pode ser encontrado ao final desta Monografia.

Em relação às convenções de transcrição dos dados analisados na pesquisa, o


seguinte quadro foi utilizado como modelo:

Quadro 3: convenções utilizadas nas transcrições de registros orais

CONVENÇÕES UTILIZADAS NAS TRANSCRIÇÕES


DE REGISTROS ORAIS

, pausa de menos de 2 segundos

... pausa de mais de 02 segundos

? entonação indicando pergunta

! entonação indicando exclamação

MAIÚSCULAS entonação enfática

:: alongamento de vogal

(...) supressão de trecho da fala

/ marca de corte sintático abrupto

[ Fala simultânea ou sobreposta

((em tom Descrição de atividade não vocal / explicação


irônico)) fornecida pelo pesquisador

23
5. ANÁLISE DE DADOS

A seguir, apresento a análise dos dados mais significativos gerados durante as


aulas dos professores de Cursos pré-vestibulares observados. Vale lembrar que esses
dados referem-se somente a questões de identidade de gênero e sexualidade que foram
tematizadas em discursos “humorísticos” em momentos informais das aulas. O objetivo,
então, é discorrer sobre a construção de representações sociais negativas e estereótipos
referentes à feminilidade e à masculinidade, bem como aqueles relacionados à
heterossexualidade e à homossexualidade.

5.1 Igual cachorro na porta de padaria

Contextualização: o excerto abaixo refere-se a um momento da aula de um


professor de Física, que estava discorrendo sobre a refração e reflexão da luz.

Professor: quer ver um exemplo? cê tá passeando no shopping...aí cê para na frente de


uma loja lá, e tinha alguma coisa lá dentro que te interessou.... a mulherada
tá andando e viu aquela loja de sapato e aí parou...fica lá...igual cachorro
na porta de padaria [vendo o frango rodando ((risos de alguns alunos))
Aluna: ((indignada)) [NOssa!
Professor: fica lá vendo o sapato, pensando o que poderia comprar e tudo mais...
quando você tá parada lá, mulher, olhando lá pro sapato que tá do outro lado
do vidro, a vendedora que tá lá dentro da loja... ela tá te vendo fora da loja?
sim ou não? ((os alunos não respondem)) SIM... isso significa o quê? que a
luz que tá sendo emitida pelo seu corpo tá atravessando o vidro e chegando
até a vendedora... certo ou errado? ((novamente, os alunos não
respondem)) certo... que fenômeno foi esse? qual, classe? partiCIPA,
gente, junto comigo...que feNÔmeno foi esse? ((os alunos continuam em
silêncio)) fala: re-fra-ção... que fenômeno foi esse?
Alunos: ((em coro)) refração...
Professor: i::sso.

A representação de “consumista”, qualificação frequentemente atribuída a


pessoas do sexo feminino, é construída no discurso do professor quando ele utiliza
como exemplo para discorrer sobre a propagação da luz uma situação em que uma
mulher estaria observando um sapato na vitrine de uma loja, e age como um cachorro
agiria ao ver um frango na porta de uma padaria: mulheres seriam seres humanos que

24
teriam desejos de consumo tamanho que fariam com que elas se comportassem como
animais irracionais frente ao objeto de desejo.
Considerando que é a forma como as diferenças entre homens e mulheres são
representadas e valorizadas em discursos que constitui o que caracterizariam os gêneros
masculino e feminino em uma determinada sociedade em um determinado contexto
histórico (LOURO, 2003), temos, assim, no excerto acima, a construção da identidade
feminina como seres irracionais e consumistas. E mais: ser obcecada e irracionalmente
consumista seria uma característica exclusivamente de mulheres. O professor poderia
ter considerado que muitos homens também ficam obcecados por seus objetos de
desejo, mas ele não faz qualquer referência a isso – ele silencia sobre um
comportamento que seria semelhante para focalizar somente a mulher. Certamente há
mulheres consumistas em excesso, mas, ao tomar uma parte do contingente feminino
pelo todo, ele reforça o estereótipo de que apenas mulheres seriam adeptas desse tipo de
comportamento. Contudo, uma mulher pode exercer sua feminilidade de diversos
modos, já que as identidades de gêneros são plurais (LOURO, 2003, 2008). No entanto,
no discurso desse professor não há espaço para a existência de mulheres que são
bastante parcimoniosas quanto ao que consomem.

A reação indignada de uma aluna ao dizer “NOssa!” também é significativa, já


que ela, muito provavelmente, não se identificou com o estereótipo reiterado pelo
professor. Assim, apesar de existir a influência do professor na construção do que é ser
homem e do que é ser mulher pelos alunos, há também a resistência das minorias
representadas e que rejeitam o modo como são posicionadas no discurso. O exercício de
poder, como afirma Louro (2003), envolve técnicas, manobras e disposições e pode ser
contestado. Mas é preciso também apontar que os demais alunos não contestam o dito
pelo professor. Ao contrário, riem da sua piada, indicando que o estereótipo de
feminilidade reforçado é possivelmente reconhecido por eles como procedente e
ridicularizável.

Finalmente, a atitude do professor de pedir para seus alunos se manifestarem,


fazendo perguntas como “certo ou errado?” ao longo da explicação, pode ser entendida
como um indício de que o discurso “humorístico” foi usado como estratégia para tornar
a aula mais atraente, fazendo com que os alunos se sentissem mais motivados a
participar e fazer perguntas durante a explicação. Entretanto, nem sempre essa estratégia
produz os resultados desejados pelo professor, como sugere a transcrição desse excerto,

25
já que os alunos continuam não participando da aula, mesmo após o exemplo
supostamente engraçado ter sido proferido. Será, então, que as ratificações de
estereótipos e representações sociais negativas das minorias são realmente necessárias
no discurso de professores de cursos pré-vestibulares como ferramenta “humorística”
para tornar as aulas mais dinâmicas?

5.2 A virgem da orelha esquerda

Contextualização: no trecho que segue um professor de História discorre sobre


a Rainha Elizabeth I.

Professor: (...) nessa época a Inglaterra vivia uma era que na história inglesa eles
chamam de Era Elisabetana... que que é a Era Elisabetana? é a época que a
Inglaterra era governada por uma senhora conhecida como Isabel mas que
nós chamamos mais eh eh:: popularmente de Elizabeth I, conhecida pelo
apelido... pelo codinome de “A Virgem”... viu? ((em tom irônico)) “A
Virgem”... da orelha... esquerda... só se for, viu? ((risos de toda a sala))
porque o resto dos buraco ela dava que nem... vi::xi mas dava hein
((alguns alunos começam a assobiar fiu fiu)) dava... uma biscate hein...
aquela era saFAda mesmo... vocês já assistiram o filme? nunca viram o
filme? o filme Elisabeth, a era de ouro? nunca assistiram? no filme mostra
ela dando pra chuchu... ela tem um amante... um dos caras que vai para a
América do Norte... é um pirata... é um corsário inglês que comia ela... no
filme mostra ele comendo ela... BIScatona!

Ao observar esse discurso, levanto o seguinte questionamento: por que é


relevante para a aula de História discutir as relações sexuais da Rainha Elisabeth I?
Evidentemente, isso não é relevante, mas mesmo assim o professor o faz. Elisabeth I
foge da representação social da mulher sexualmente contida, que possui apenas um
parceiro ao longo de sua vida ou que espera para se relacionar sexualmente com alguém
somente após os laços matrimoniais. Nessa perspectiva, a rainha não se encaixa no
padrão de uma governante digna de respeito, como se o exercício da sexualidade fosse
um demérito para a sua figura política.

A perspectiva dicotômica de gênero e de sexualidade, segundo Louro (1997),


implica em uma ideia singular de masculinidade e feminilidade, excluindo todos os
sujeitos que não se enquadram em uma dessas formas. Desse modo, as práticas sexuais

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de Elisabeth I são ressaltadas nesse fragmento por não serem compatíveis com o ideal
hegemônico que uma mulher governante deveria demonstrar: a de uma mulher
assexuada. Além disso, ao deixar claro qual é o julgamento que faz a respeito do
comportamento sexual da rainha, o professor reitera a representação social de como
deve ser o comportamento sexual feminino a todas as mulheres, inclusive de suas
alunas.

Vale ressaltar também o silenciamento acerca do comportamento sexual


masculino no discurso do docente. Ao não destacar, de forma pejorativa, a quantidade
de parceiras sexuais que homens também podem ter, o professor reforça que esse
comportamento só é entendido de modo negativo em relação às mulheres. De acordo
com Louro (1997), o argumento essencialista de que homens e mulheres se comportam
de modo fundamentalmente distintos é utilizado para justificar a desigualdade social
entre os gêneros. Dessa perspectiva reducionista, homens e mulheres devem apresentar
comportamentos sexuais diferentes por serem distintos. Se, ao invés de uma rainha, o
professor estivesse se referindo a um rei, é provável que a questão sexual não fosse
abordada da maneira como foi, já que a representação masculina hegemônica permite e
autoriza que os homens tenham diversas parceiras sexuais.

A reação dos alunos aos comentários feitos pelo professor também é


significativa, tanto pelas risadas quanto pelos assobios (“fiu fiu”) realizados por alguns.
De acordo com Louro (2000), a sexualidade é uma construção social, na medida em que
se constitui, historicamente, a partir de múltiplos discursos que regulam, normatizam,
instauram saberes e produzem “verdades” sobre o sexo. Nesse excerto, os alunos
reforçam essas “verdades” acerca da sexualidade feminina produzidas no discurso do
docente, ao invés de se indignarem, o que denota uma visão machista, não só do
professor, como também dos próprios alunos. Desse modo, a aprovação por meio das
risadas e dos assobios indica que os alunos não só normatizam essa visão, como,
provavelmente, também (re)produzem esse discurso preconceituoso em outros âmbitos
sociais.

É interessante também observar o uso dos adjetivos “biscate”, “safada”, e


“biscatona”. A expressão popular “biscate”, pelo menos no estado de São Paulo, é
utilizada como sinônimo pejorativo de “prostituta”. Porém, ao se referir a uma mulher
como “biscate”, o locutor provavelmente não está insinuando que a mulher prostitui o
seu corpo, mas, sim, que ela possui vários parceiros sexuais e não coloca nenhum

27
empecilho ao ato sexual. No vocabulário popular, a mulher que é “biscate” é também
“safada” e “fácil”, no sentido de que os homens não precisam fazer muitos esforços para
ter relações sexuais com ela.

Assim, nesse trecho do excerto, é possível perceber novamente a visão machista


que se tem sobre a mulher: a rainha Elisabeth I, que supostamente opta por praticar o
ato sexual com diversos parceiros, é julgada no discurso do professor como “biscate” e
“safada”. Não só esses adjetivos, mas, também, os verbos utilizados nesse excerto
auxiliam na construção preconceituosa em relação às práticas sexuais femininas. As
expressões “ela dando pra chuchu”, “comia ela”, e “ele comendo ela” podem ser
consideradas formas agressivas e desrespeitosas, levando em conta que os verbos
“comer” e “dar”, nesse contexto, denotam apelo sexual. Desse modo, as escolhas
lexicais feitas pelo professor também revelam a representação que ele faz acerca da
sexualidade feminina.

5.3 Hoje é o dia gay

Contextualização: O excerto transcrito abaixo se refere a uma aula dada no


“Dia dos Namorados”. Ao escrever a data na lousa, o professor de História desenha um
coração em volta da informação e escreve logo abaixo do desenho que fez: “que gay!”.

Professor: bom dia pra todos vocês... lembrando que hoje é o dia gay... porque hoje
todos os homens estão bichonas, sentimentais... ((risos de toda a sala))
aqueles que têm uma namorada... se eles não estão desse jeito ‘tão fodidos
((risos de toda a sala)) vão dormir no sofá durante O RESTO DO ANO...
melhor ficar gay MESmo... para os outros... ótimo... porque assim a gente
se livra desse dia gay... ótimo.

É possível observar que no fragmento 5.3 tanto aspectos da identidade masculina


quanto da sexualidade hetero e homossexual foram discursivamente construídos pelo
professor. Como já apontado, para Louro (2008), a sexualidade, assim como as
identidades de gênero, são construções sociais, uma vez que se constituem,
historicamente, a partir de múltiplos discursos que regulam, normatizam, instauram
saberes e produzem "verdades" sobre essas identidades. Vejamos que “verdades” são
construídas pelo professor.

28
Fica evidente que, para o docente, a demonstração de sentimentos e emoções é
uma característica inerente exclusivamente a mulheres e a homossexuais: observa-se
que o professor utiliza como sinônimo de “sentimentais” a palavra “bichonas”, termo
utilizado popularmente para nomear homossexuais de forma pejorativa, e sugere que
homens que não se comportarem como gays, ou seja, que não externarem suas emoções
e sentimentos, deixarão de ser aceitos como parceiros das mulheres (se eles não estão
desse jeito ‘tão fodidos ((risos de toda a sala)) vão dormir no sofá durante O RESTO
DO ANO... melhor ficar gay MESmo...). A fala desse professor corrobora, assim, o
que afirmam Bonomo, Barbosa e Trindade (2008, p. 4):

a construção da própria masculinidade necessita de uma certa


desvalorização da masculinidade dos outros, buscando vinculá-la
à feminilidade. A ameaça, portanto, não é a mulher, mas o
feminino no homem. A auto-imagem positiva é assegurada através da
produção dos estereótipos de homens e de não-homens, alicerçados no
referencial ideológico do poder e da virilidade (ênfase minha).

O argumento utilizado pelo professor em seu discurso para sustentar essa


“verdade” é, como vimos, que homens gays seriam, por definição, seres sensíveis,
emotivos, sentimentais. Ora, a sexualidade humana não implica a existência de padrões
rígidos de comportamento: há certamente homens homossexuais que se comportam de
forma muito mais próxima do estereótipo de “machão” construído pelo docente. O
mesmo pode ser dito em relação às identidades de gênero. Como apregoam os
Parâmetros Curriculares Nacionais é preciso

[...] combater relações autoritárias, questionar a rigidez dos padrões de


conduta estabelecidos para homens e mulheres e apontar para a sua
transformação. A flexibilização dos padrões visa permitir a expressão
de potencialidades existentes em cada ser humano que são dificultadas
pelos estereótipos de gênero. Como exemplo comum pode-se lembrar
a repressão das expressões de sensibilidade, intuição e meiguice
nos meninos ou de objetividade e agressividade nas meninas
(BRASIL, 2000, 144) (ênfase minha).

É importante ressaltar que, se homens são vistos como seres humanos


“insensíveis” e mulheres como “sentimentais”, isso acontece porque o oposto é visto
como não desejável. Louro (2003) argumenta que mulheres e homens não são
representados ou reconhecidos como “verdadeiros” ou “autênticos” se suas identidades

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não corresponderem às feminilidades e masculinidades hegemônicas. Manifestações
singulares de expressões diversas de masculinidade e feminilidades que não se
enquadram em uma dessas formas são desconsideradas, excluídas, negadas, como faz o
outro professor de história no excerto anteriormente analisado. Nesse fragmento, a
masculinidade hegemônica do homem heterossexual é construída como se esse jamais
apresentasse qualquer indício de sentimentalismo. Assim, todo homem que se comporta
de forma oposta estaria “fora” do padrão de “homem de verdade”, já que estariam se
comportando como homens homossexuais.

Além disso, é importante chamar atenção para o fato de que as identidades


sexuais e as identidades de gênero, porque estão profundamente inter-relacionadas, são
frequentemente confundidas (LOURO, 2003, 2008). Um homem pode exercer sua
masculinidade e sua sexualidade de diversos modos. Contudo, elas não são a mesma
coisa: homens sentimentais podem ser heterossexuais, homossexuais ou bissexuais, por
exemplo. Ambas as identidades estão sempre se construindo, são instáveis, e, portanto,
podem sofrer transformações, atravessadas por diferentes discursos, símbolos,
representações e práticas sociais.

É também importante apontar que na fala do professor há o pressuposto de que


todas as mulheres desejariam um parceiro sentimental, emotivo, um estereótipo que
evidentemente também não se sustenta: nem todas as mulheres esperam que seus
parceiros assim se comportem. Mas, mesmo as mulheres que têm esse tipo de
expectativa, é interessante observar que, da perspectiva do professor, elas só estariam
autorizadas a “cobrar” essa atitude de seus parceiros no “Dia dos Namorados”.
Desenha-se aqui uma representação das mulheres como sendo pessoas que agiriam, se
não fosse pela ação da sociedade, de forma não razoável: elas seriam pessoas que
tendem a fazer “cobranças” indevidas e, por isso, precisam ser disciplinadas pela ação
dos outros, que lhes autorizam a fazê-las apenas em um único dia do ano.

Como vimos, o discurso do professor no fragmento 5.3 ratifica estereótipos que


envolvem tanto as identidades de gênero quanto as identidades sexuais, construindo
representações sociais hegemônicas e preconceituosas a respeito do que é ser homem
heterossexual, homem homossexual, e mulher.

5.4. Que gay!

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Contextualização: o mesmo professor de História cuja fala foi analisada no
excerto anterior discorre sobre o período do Renascimento em uma de suas aulas:

Professor: (...) é nesse processo renascentista que o homem volta a ter uma técnica do
uso da homem habilidoso... ((revirando os olhos para cima e adotando um
tom de voz e uma postura corporal frequentemente associada ao estereótipo
de homens homossexuais)) aDOro!
Aluno: que gay! ((risos de toda a sala))
Professor: que gay! ((risos de toda a sala))

Contextualização: esse mesmo professor, ao discorrer sobre Leonardo da Vinci,


ainda no mesmo tópico do período renascentista, desenha um coração na lousa e escreve
“Léo da Vinci”. Imediatamente, o professor diz:

Professor: (...) então vamos ficar íntimos de Léo... que gay! ((risos de toda a sala))

Primeiramente, vale ressaltar que os dois trechos de falas transcritos neste item
5.4 foram proferidas por esse professor de História na mesma aula em que proferiu o
discurso analisado no excerto 5.3, isto é, no “Dia dos Namorados”. Aqui é significativo
notar que a expressão “que gay!” é empregada quase como um jargão tanto pelos
alunos quanto pelo próprio docente, e vem sempre acompanhada de risos de todos. A
reação dos alunos, como anotado em meu diário de campo, leva-me a suspeitar que,
muito provavelmente, essa expressão seja utilizada diversas vezes durante as aulas desse
professor como um bordão, criando no alunado a expectativa de que em determinado
momento ele irá utilizá-la após a construção de um discurso supostamente
“humorístico” envolvendo atitudes e comportamento considerados típicos de
homossexuais.

Novamente, é possível perceber que o professor, nesses fragmentos, reitera o


estereótipo do homossexual: homens habilidosos denotaria um comportamento
exclusivo de homossexuais. Desse modo, não só há a generalização do que é ser
homossexual, como também do que é ser heterossexual, já que o homem heterossexual
não pode demonstrar nenhum tipo de habilidade com as mãos ou ser emotivo – como
sugere o fato de o professor ter desenhado um coração ao redor do nome de Da Vinci. É
interessante notar que as características do homem homossexual são socialmente
construídas como opostas às características do heterossexual, sendo impossível aceitar

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que tanto um quanto o outro possam ser, de fato, habilidosos com as mãos ou emotivos,
sem que isso implique automaticamente em um certo tipo de sexualidade.

De acordo com Moita Lopes (2002), em relação às diversas manifestações da


sexualidade, a representação do outro se dá em termos do binômio igualdade/diferença,
isto é, em uma oposição binária. Assim, é preciso atribuir determinadas características
apenas a um desses dois grupos sociais (homens hetero ou homossexuais), sendo o
oposto atribuído ao outro grupo por meio de relações de poder que são socialmente
instituídas, de modo que seja estabelecida a diferença entre eles. Fica claro, portanto, a
revelação dessa oposição binária nos excertos acima, na medida em que, se o padrão
hegemônico para homens homossexuais é possuir a habilidade com as mãos, o padrão
hegemônico do homem heterossexual é exatamente o oposto: a negação ou a
demonstração de habilidades que poderiam levar alguém a classificá-los como homens
sensíveis.

É significativo, além disso, observar que a produção discursiva da expressão


“que gay!” não é feita apenas pelo professor, já que também os próprios alunos ecoam a
expressão, após o docente dizer que adora homens habilidosos. Desse modo, o
estereotipo do homossexual é reiterado pelo professor e reconhecido como procedente
por seus alunos. Será, então, realmente necessário que o professor utilize esse jargão
específico para tornar sua aula menos densa? Um jargão que autoriza o comportamento
hegemônico padrão e que confirma discursos preconceituosos acerca de um grupo
minoritário não me parece o mais adequado para um ambiente educacional.

5.5 Até a igreja fala

Contextualização: o mesmo professor de História cuja fala foi analisada no


item 5.2, ao discorrer sobre a Inquisição na América, começa a ler um documento que
elenca os principais motivos pelos quais as pessoas eram levadas à Santa Inquisição.

Professor: olha aqui, gente, oh, AINDA BEM que cês não tavam lá!... 11 ((foram
levados à Inquisição)) por pederastia... deram o cu... ((risos de toda a
sala)) não pode, gente... não pode dar o rabicó, véi ((risos de toda a sala)),
entendeu? não pode, tá vendo? até a Igreja fala... não podia dar o rabicó...
os cara deram o rabicó e se fuderam... foram pra Santa Inquisição.

32
É interessante notar o comentário inicial do professor em relação à prática da
pederastia: “AINDA BEM que cês não tavam lá”. Uma interpretação possível acerca
desse enunciado é que o professor sabe que pode ter alunos homossexuais na sua sala de
aula, o que o leva a apontar que, se esses alunos vivessem na época da Inquisição,
teriam sido alvo de castigo devido às suas práticas sexuais.

Outra provável interpretação é que o docente estaria insinuando, como uma


brincadeira, que todos os seus alunos seriam homossexuais ou se comportassem como
tal, enfatizando que esse tipo de comportamento diferente seria reprovável. De acordo
com Moita Lopes (2002), a sexualidade não possui uma essência a ser desvelada, já que
ela é um produto do processo de aprendizagem de significados socialmente construídos.
Este professor, então, pode estar ensinando aos seus alunos que a homossexualidade não
deve ser levada a sério, já que ele considera humorística a possibilidade de seus alunos
serem homossexuais.

Ainda nesse excerto, “dar o cu” e “dar o rabicó” são expressões usadas como
sinônimo de “pederastia” pelo professor. O motivo que provavelmente provoca o riso
entre os alunos é a mudança, no discurso, de uma expressão formal (“pederastia”, que
segundo o dicionário online Michaelis significa homossexualismo masculino3) para
outras duas informais (“dar o cu” e “dar o rabicó”, expressões populares utilizadas que
se referem ao ato sexual praticado por homossexuais).

Não se espera que um professor durante uma explicação, isto é, em um contexto


formador, produza um discurso jocoso envolvendo um grupo social que é alvo de
diversos estereótipos e preconceitos. Ao reiterar um discurso historicamente construído
que desabona as práticas sexuais de homossexuais, o docente rompe com a
representação que os alunos fariam, isto é, de que os professores sejam politicamente
corretos, ao menos em seu ambiente profissional, e, pior, autoriza e incentiva a
produção de discursos similares por parte de seus alunos. O discurso do docente, então,
produz e pretende fixar as diferenças (LOURO, 1997), na medida em que apresenta
como negativa e anormal as manifestações sexuais entre pessoas do mesmo sexo.

3
pederastia pe.de.ras.ti.a sf (gr paiderasteía) Sodomia entre homens; homossexualismo masculino.
Fonte: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portuguesportugues&palavra=pederastia.
Acesso em 27.08.2013.

33
Considerando a proposição de Louro (2000), em que a autora afirma que os
outros sujeitos sociais se tornam marcados e são denominados a partir da referência
“normal” e “padrão” do homem branco, heterossexual, de classe média urbana e cristão,
vale ressaltar no fragmento em questão o momento em que o professor utiliza em seu
discurso a expressão “até a Igreja fala ((que não pode dar o rabicó))”. A preposição
“até”, nesse caso, indica inclusão. Assim, tomando como base este excerto, é como se a
maioria das pessoas já afirmasse que não se deve praticar atos homossexuais, incluindo
a Igreja Católica. Em outras palavras, se uma instituição milenar religiosa, que
supostamente prega apenas dogmas para o “bem” de seus fiéis, adverte que os atos de
pederastia são uma forma de cometer pecado, e, portanto, seus praticantes merecem
receber os castigos da Santa Inquisição, então é porque tais atos de fato não devem ser
exercidos por ninguém.

Desse modo, o professor utiliza como argumento os preceitos da Igreja Católica


para justificar a sua própria opinião acerca de um grupo social. Na medida em que “o
reconhecimento do outro, daquele ou daquela que não partilha dos atributos que
possuímos, é feito a partir do lugar social que ocupamos” (LOURO, 2000, s/p.), pode-se
afirmar que o docente toma como referência os dogmas de um cristão para generalizar e
tornar padrão o comportamento de todas as pessoas, sejam elas cristãs ou não.

5.6 Seus viado!... seus bicha!

Contextualização: esse mesmo professor de História discorre sobre a


independência da Holanda e o embargo espanhol feito a esse país.

Professor: (...) quando a Holanda fica independente né? o Felipe II da Espanha decreta
o chamado embargo espanhol... que que é o embargo espanhol? o rei da
Espanha fala assim: ah tá bom... vocês ficaram independente? então vai
tomar no teu cu que a partir de agora vocês ((holandeses)) não vão mais
participar do negócio do açúcar no Brasil... ((muda o tom de voz como se
estivesse xingando os holandeses)) seus viADO!... seus BICHA! ((risos de
toda a sala)) entendeu?

Nesse excerto, as expressões populares “seus viado” e “seus bicha”, que fazem
referência aos homossexuais de um modo pejorativo, estão presentes no discurso do
docente como uma maneira de se dirigir ofensivamente aos holandeses. Assim,

34
qualificar alguém como homossexual é, para esse professor, o mesmo que insultar a
pessoa.

Considerando o argumento de Bonomo, Barbosa, & Trindade (2008), que,


baseando-se nas ideias de Whitehead (2002), afirmam que a masculinidade hegemônica
é uma verdadeira ideologia que ratifica e justifica a heterossexualidade como normal,
fazendo com que os grupos minoritários que não se enquadrem no modelo legitimado
ganhem um sentido negativo, é possível observar que a demonstração de ofensa
produzida pelo professor é um modo de consolidar e reforçar a identidade masculina
heterossexual hegemônica por meio da inferiorização de homossexuais.

Em outras palavras, a produção discursiva das expressões “seus viado” e “seus


bicha” como sinônimos de xingamentos autenticam e consolidam a identidade
masculina hegemônica socialmente construída, na medida em que a construção da
própria masculinidade carece da desvalorização da masculinidade do outro (BONOMO,
BARBOSA, & TRINDADE, 2008), isto é, da masculinidade do homossexual.

Novamente, a risada de grande parte dos alunos pode significar que a ideia de
ofensa presente no discurso do docente é identificada por eles como procedente. Desse
modo, não bastasse o valor negativo já socialmente presente em termos que se referem a
homossexuais, o professor ainda os (re)produz em um contexto formal de
aprendizagem, no qual não somente conteúdos das disciplinas são aprendidos e
interiorizados pelos estudantes, mas, também, determinadas representações sociais.

Vale ainda ressaltar que a linguagem empregada pelo professor é informal e


vulgar, já que neste fragmento o docente utiliza xingamentos (“vai tomar no teu cu”)
com o intuito de exemplificar o conteúdo explicado. Assim, é possível que seu objetivo
seja o de tornar a explicação mais atual e dinâmica de um evento ocorrido no passado, e,
talvez, ele busque tirar proveito de recursos linguísticos para tal. Contudo, essa
abordagem pode ser considerada agressiva por alguns estudantes, influenciando
negativamente na relação entre professor e aluno.

5.7 Sempre tem um que gosta de uma ninfeta

Contextualização: o professor de biologia discorre sobre o processo da


metamorfose, e utiliza o exemplo da ninfa para explicar o desenvolvimento incompleto
dos animais que sofrem tal processo.
35
Professor: como vai ser o desenvolvimento deles? ((animais que sofrem metamorfose
incompleta)) do ovo nasce uma ninfa... ((em tom de brincadeira)) então,
você, rapaz, que gosta de menininhas novas, ninfetas... ((risos de toda a
sala)) apesar dessa menina parecer uma mulher falta-lhe alguns
atributos pra isso... sempre tem um que gosta de uma ninfeta... ((risos
de toda a sala)) ((retorna ao tom de voz inicial)) então a ninfa é um
indivíduo jovem, porém falta-lhe alguns atributos para que ele seja... tenha o
corpo, né? considerado o corpo igual a de um adulto... por exemplo a
ausência de aves... e dessa ninfa surge o adulto chamado de imago... feito?

Nesse excerto, o professor utiliza o termo “ninfeta” para fazer referência às


“menininhas novas”. Segundo o dicionário online Michaelis, a palavra ninfeta4
significa menina adolescente que desperta desejo sexual. Assim, tal termo pode ser
utilizado como sinônimo de uma menina sexualmente desenvolvida e sedutora.
Considerando que em salas de cursos pré-vestibulares há alunas menores de idade, essas
“menininhas novas” podem ser as próprias estudantes presentes na aula. É possível,
então, que algumas alunas tenham se identificado na fala do professor como sendo
objeto sexual de desejo de alguns de seus colegas, mesmo que não tenham almejado
ocupar essa posição.

Além disso, o docente define claramente quem é o seu interlocutor no discurso:


os alunos (“você, rapaz”). Ao limitar o interlocutor apenas às pessoas do sexo
masculino, o professor exclui todas as mulheres, como se somente homens tivessem
desejos sexuais, deixando de fazer, também, a construção de uma imagem na qual os
homens mais novos sejam o objeto de desejo de mulheres mais velhas.

A representação feminina, desse modo, é construída nesse excerto como se a


função da mulher fosse meramente satisfazer as necessidades e as aspirações sexuais
masculinas, devido ao valor sexual atribuído ao termo “ninfeta” e a exclusão do
interlocutor feminino no discurso. Na perspectiva apresentada nesse fragmento, há um
lugar natural e fixo para cada gênero, e há apenas uma forma permanente de relação
entre o homem e a mulher (LOURO, 1997). O homem é o responsável por demonstrar
seus desejos sexuais, e a mulher deve se conformar em ser discursivamente abordada

4
ninfeta nin.fe.ta sf (ninfa+eta) Menina adolescente, que desperta desejo sexual. Fonte:
http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=ninfeta.
Acesso em 08.09.2013.

36
em uma visão machista. Assim, tanto a representação do homem como objeto sexual,
quanto a representação da mulher como sujeito passível de também possuir desejos,
foram deixados de lado pelo professor.

A mudança no tom de voz do docente, que alterna entre um tom de seriedade e


um tom de brincadeira, também é um ponto relevante dessa análise. De acordo com
Possenti (1998), as piadas difundem discursos que não são usualmente explicitados, e
que não se manifestariam, talvez, em outros contextos de enunciação, nos quais não
haveria lugar para que esses discursos não oficiais fossem abordados. Assim, é possível
perceber que o professor apenas faz alusão a representações sociais e estereótipos
preconceituosos durante a produção do discurso “humorístico”. No momento em que
retorna à explicação do conteúdo, e, portanto, ao momento formal da aula, o docente
não faz mais referência às “brincadeiras” ditas anteriormente.

5.8 Quem nunca plantou um feijãozinho?

Contextualização: o professor de biologia discorre sobre o processo de


metamorfose completa.

Professor: (...) quem aqui nunca viu uma metamorfose completa em casa, né? pode ter
problemas psicológicos ((risos de toda a sala)) não preciso dizer... quem
nunca plantou o feijãozinho... viu a semente crescer no algodão... quem
nunca capturou uma lagarta, aprisionou essa lagarta, né? e viu ela se
transformar em uma borboleta ou em uma mariposa NÃO completou a
sua infância... ((risos de toda a sala)) então faça isso HOJE... saia daqui
correndo e vai atrás de uma lagarta pra você não ter problemas
psicológicos, tá? ((risos de toda a sala)) (...) você tem que fazer certas coisas
na vida que precisam ser feitas senão o trauma vem depois... mais velho...
“nunca plantei um feijão no algodão” (...) a criança ama isso... toda criança
adora isso... metamorfose pra criança é algo fantástico que faz ela embutir a
sua criatividade... então você pode tá com sua criatividade travada, né?
precisa soltar... se libertar (...) tem um macete que eu vou dar pra vocês...
quanto mais feia a lagarta mais bela será a borboleta ((risos de toda a
sala)) você pega aquela lagarta linda e maravilhosa e nasce aquela mariposa
horrorosa... e aí o outro... seu vizinho pegou uma lagartinha... feinha...
nasce uma bela de uma borboleta... mostrando que muitas vezes
desabrochar, né? pra vida adulta você se transforma... então é isso, né?
Aluna: ((rindo)) que demais!

37
O fragmento 5.8 apresenta a continuação da explicação sobre metamorfose que
se iniciou no fragmento anterior, e, portanto, foi proferido na mesma aula que aquele.
Neste excerto, a sexualidade masculina é discursivamente abordada pelo docente.
Segundo ele, o menino que ainda não iniciou sua vida sexual pode desenvolver
problemas psicológicos. Considerando a hierarquia presente entre professor e aluno,
bem como a posição de educador e “detentor” do conhecimento que o docente ocupa, o
aluno pode pensar que de fato possui problemas psicológicos por não ser sexualmente
ativo. Vale ressaltar que é nessa faixa etária que os jovens desenvolvem determinadas
dúvidas e anseios a respeito da sexualidade, e, ao fazer essa afirmação, o professor pode
apenas tornar esse conflito ainda mais complexo para o seu aluno. Vejamos, a seguir,
algumas de suas afirmações.

Logo no começo do excerto, o docente questiona seus alunos, dizendo “quem


nunca plantou o feijãozinho?”. Essa prática consiste em plantar uma semente de feijão
em um recipiente com algodão e observar o seu crescimento, experiência
comumentemente realizada por crianças. Contudo, essa expressão também pode ser
considerada uma metáfora para a penetração do órgão sexual masculino no órgão sexual
feminino, devido à associação com a ideia de uma semente sendo plantada no corpo de
uma mulher, isto é, a ação de conceber um ser humano. É devido a esse duplo sentido
da expressão que o professor finaliza a frase dizendo que a pessoa “NÃO completou a
sua infância”, remetendo a experiência realizada por crianças.

Assim, fica claro nesse excerto que, para o docente, os meninos que ainda não
iniciaram sua vida sexual não podem se sentir totalmente completos, como se o ato
sexual fosse uma ação obrigatória a ser realizada por eles. E mais, esse “problema” pode
influenciar o desempenho cognitivo do estudante, já que pode travar a criatividade,
impedindo que esse se liberte. Considerando que, de acordo com Weeks (2000), as
atitudes em relação ao corpo e à sexualidade só podem ser compreendidas em seu
contexto histórico específico, e que as condições historicamente variáveis dão origem à
importância atribuída à sexualidade em um momento particular, é possível afirmar que a
cobrança existente em relação ao início da vida sexual dos meninos reflete os valores
socialmente construídos em nossa sociedade, já que para se mostrarem “verdadeiros”
homens, eles não devem apresentar nenhum tipo de insegurança, dúvidas ou anseios em
relação ao ato sexual. Assim, são instituídos comportamentos normais ou anormais,

38
aceitáveis ou inaceitáveis (WEEKS, 2000) que fazem referência ao modo como homens
devem desempenhar a sua sexualidade.

Contudo, pode existir alunos que ainda não estão seguros ou preparados para
possuir uma vida sexual ativa, e que se sentem ainda mais pressionados em relação a
essa questão após as piadas serem proferidas pelo professor. Tal coação ainda se faz
presente quando o docente afirma que aprisionar uma lagarta e vê-la se transformar em
uma borboleta também faz parte do ciclo da infância, e aqueles alunos que não
realizaram essa ação devem sair correndo e ir atrás de uma lagarta para não
desenvolverem problemas psicológicos, pois caso não o façam, “o trauma vem
depois”. A metamorfose da lagarta em borboleta também apresenta duplo sentido, visto
que essa transformação pode ser análoga a da menina tornando-se mulher, isto é,
iniciando a sua vida sexual e perdendo sua virgindade.

Desse modo, o rapaz que ainda não contribuiu para que uma menina iniciasse a
sua vida sexual, na visão do professor, deverá procurar fazê-lo o mais rápido possível, a
fim de que não desenvolva traumas ou problemas psicológicos. Novamente, fica clara a
pressão existente acerca do ato sexual realizado por jovens, já que o menino deve
obrigatoriamente ser sexualmente ativo, mesmo para aqueles que não desejam isso.

Além disso, a virgindade feminina deve ser considerada quase como um troféu a
ser adquirido pelos rapazes, isto é, um desafio que eles devem vencer. Sendo o discurso
um meio eficaz e persistente para instituir as distinções e as desigualdades, pois
atravessa a maioria das práticas e parece, muitas vezes, “natural” (MOITA LOPES,
2002), o uso dos verbos “capturar” e “aprisionar” pelo docente na expressão “quem
nunca capturou uma lagarta aprisionou essa lagarta, né?” também reforçam essa
ideia de desafio, já que é necessário o empenho em capturar e aprisionar a lagarta, ou
em outras palavras, conquistar a mulher, para ganhar o troféu. Assim, tais escolhas
lexicais que, a primeira vista, parecem inofensivas, também denotam um
posicionamento discursivo em que a mulher é construída como um mero objeto sexual a
ser “capturado”.

Finalmente, há também nesse excerto a representação social daquilo que é


considerado importante e que é esperado pelos homens, na visão do professor, que as
mulheres apresentem: a beleza. Lagartas feias que se tornarão belas borboletas são
referidas de modo positivo neste discurso, na medida em que o produto final é uma bela
mulher, assim como lagartas maravilhosas que se transformarão em mariposas
39
horrorosas são mencionadas negativamente. De acordo com Louro (2003), o que
caracteriza o gênero feminino e masculino em uma determinada sociedade é a forma
como a diferença entre homens e mulheres é valorizada e representada. Desse modo, o
professor apenas reforça o discurso já produzido pelos meios midiáticos e por diversos
grupos sociais em relação ao padrão de beleza feminino, em que a mulher é analisada e
julgada em decorrência de sua aparência, e são consideradas mulheres femininas
somente aquelas que se adequarem a esse padrão.

É também significativa a reação de uma aluna, que, enquanto ri, afirma “que
demais!”, expressão popular que se refere a um reforço positivo ao discurso
“humorístico” do professor. Assim, alguns alunos incentivam essa conduta do professor
não só por meio de risadas, mas também por meio de expressões linguísticas que
demonstram que eles aprovam e, talvez, identificam-se com aquilo que o docente
profere. Considerando que não é somente o discurso do professor que produz e pretende
fixar as diferenças (LOURO, 1997), as construções das identidades femininas e
masculinas também são produzidos, reforçadas, e autorizadas pelo discurso e pelas
atitudes dos próprios colegas de classe, e não apenas em decorrência exclusivamente do
discurso “humorístico” do docente no ambiente escolar.

6. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

Primeiramente, penso ser válido deixar claro que os excertos analisados nesta
pesquisa fazem parte de um contexto específico, e, portanto, generalizações não são
oportunas. Assim, não cabe a mim como pesquisadora afirmar que as construções de
estereótipos e representações sociais fazem parte de todos os discursos humorísticos de
professores de cursos pré-vestibulares.

Além disso, sendo esta uma monografia de final de curso, ressalto que a breve
investigação que aqui foi discutida representa apenas uma interpretação pessoal a
respeito dos dados, e que outros estudos posteriores podem e devem dar continuidade a
ela. Desse modo, também pondero que aquilo que afirmo ao longo da pesquisa não deve
ser considerado como uma verdade ou certeza incontestável, mas, sim, reflexões
passíveis de questionamentos.

Finalmente, esclareço que discursos preconceituosos relativos às identidades de


gênero e sexualidade não foram os únicos discursos derrogatórios encontrados nos

40
dados que constituíram o corpus da pesquisa que empreendi, mas que esse enfoque foi
uma escolha feita por mim para delimitar de algum modo a sua seleção. Como exemplo,
transcrevo trechos de falas que se referem à representação social negativa dos judeus e
dos índios, respectivamente:

Professor: quando cê vai pra São Paulo na região dos Jardins tem uns cara que usa
uma/um negocinho ((apontando para o alto da cabeça)) aqui oh tampando
o/a cuca... o chamado quipá... ou que usa uma cartola com uns cachinho
riDÍculo aqui do lado assim... desculpa às vezes tem algum judeu aí... mas
aqueles cachinho lá é feio pra caralho né? ((risos de toda a sala)) na boa...
aquilo lá tá fora de moda né? mas tudo bem... ((risos de toda a sala)) esses
cara... esses judeu aí... essas judeuzada... eles não acreditam em Cristo.

Professora: cadê o menino, gente? cadê? ((referindo-se ao aluno que tem o apelido
de Índio)) gente, ele sabe muito! ele já dançou pra mim a dança da chuva
((risos de toda a sala)) é SUper lindo!

Como o objetivo não é analisar os dados acima, apenas chamo a atenção para o
fato de que o pedido de desculpas do professor no primeiro excerto (desculpa às vezes
tem algum judeu aí...) não deve ser entendido literalmente, pois ele continua
expressando uma visão preconceituosa da cultura judaica após ter se “desculpado”.

De acordo com Ávila (2009, p. 45), “todo processo discursivo, do qual o humor
também faz parte, pressupõe efeitos de sentido num processo interlocutivo afetado pela
situação, pelo contexto histórico-social, isto é, pelas condições de produção”. Assim
sendo, o discurso “humorístico” em sala de aula, no contexto analisado, pode produzir,
como já afirmei anteriormente, efeitos de sentido que propagam, ainda mais, os
discursos não oficiais que a própria sociedade, por meio de outras instituições e relações
sociais, produz.

Assim, vale ressaltar que a disseminação desses estereótipos e representações


sociais no espaço escolar provém da construção social de discursos que privilegiam
certa manifestação cultural, “apresentada como a única aceitável e correta, como
também aquela que hierarquizava culturas entre si, como se isso fosse possível, sem
prejuízo da dignidade dos diferentes grupos produtores de cultura” (BRASIL, 2000, p.

41
21). Nos dados analisados, as práticas discursivas “humorísticas” dos professores
revelam uma perspectiva hegemônica e, portanto, considerada “correta em relação às
manifestações de identidades de gênero e de sexualidade, acarretando na deturpação e
inferiorização de outras. As escolas, desse modo, “acabam repercutindo, sem qualquer
reflexão, as contradições que a habitam” (BRASIL, 2000, p. 21). Desse modo, o
professor pode, mesmo que não intencionalmente, ratificar por meio do seu discurso
“humorístico” tais contradições presentes no discurso de diversas instituições e grupos
sociais.

Considerando que a escola pode influenciar o modo como o aluno aprende a


representar a si mesmo e aos outros no mundo social (MOITA LOPES, 2002), e que a
sala de aula é também um espaço para a construção identitária do sujeito, é importante
apontar que aquilo que é dito pelo docente no contexto escolar pode ser significado pelo
aluno como sendo o padrão normal a ser adotado. Por isso, nos excertos analisados, é
possível que as piadas produzidas nos discursos dos professores tenham influenciado na
maneira como seus alunos pensam que mulheres, homens, homo e heterossexuais
devem se comportar, sendo ressaltado que visões machistas e homofóbicas foram
expostas pelos professores. É preciso, então, ter consciência dos efeitos de sentido
(re)produzidos por meio do discurso docente no contexto escolar.

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44
ANEXO

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Instituto de Estudos da Linguagem

Projeto: A construção de representações sociais no discurso de professores de cursos pré-


vestibulares (título provisório)

Pesquisadora: Larissa Giacometti Paris

Orientadora: Prof. Dra. Terezinha de Jesus Machado Maher

Instituição: Instituto de Estudos da Linguagem/Universidade Estadual de Campinas

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Eu,________________________________________________, RG_______________,
dou meu consentimento, tendo sido informado/a e esclarecido/a sobre o assunto, para que dados
para a pesquisa “A construção de representações sociais no discurso de professores de
cursos pré-vestibulares” (título provisório), desenvolvida por Larissa Giacometti Paris, sob
orientação da Prof. Dra. Terezinha de Jesus Machado Maher (Instituto de Estudos da
Linguagem, Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP) sejam coletados nessa
instituição de ensino.
Fui ainda informado/a de que tenho toda liberdade de retirar meu consentimento em
qualquer momento do desenvolvimento da pesquisa. A pesquisadora em questão garante total
sigilo acerca de minha identidade e da identidade da instituição de ensino, uma vez que todos os
dados são considerados confidenciais. Além disso, a participação na pesquisa não envolve
riscos físicos ou morais previsíveis.

Sendo verdade, firmo o presente.

________________________________

Telefones para contato: (16) 99700 3098 (Larissa G. Paris) / (19) 3256-2142 (Terezinha J. M.
Maher).

Telefone do Comitê de Ética da UNICAMP: (19) 35218936.

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