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Instituições e poderes locais: as origens históricas das câmaras municipais no Brasil

colonial
Avanete Pereira Sousa

INTRODUÇÃO

A organização municipal, consubstanciada em concelhos ou câmaras, cumpriu papel


fundamental no processo de formação da sociedade brasileira, pois representou, para a
metrópole portuguesa, a melhor forma de povoar e administrar, simultaneamente, o
território conquistado. Daí a importância de se compreender as suas origens e
características no Brasil colonial.
Diferentemente do Brasil, onde os estudos sobre as câmaras, enquanto uma das
instâncias e nível específico do poder local, não têm ainda merecida relevância, em
Portugal, depois da temática relativa à Expansão Ultramarina, a do poder local talvez ocupe
o segundo lugar no universo quantitativo da produção historiográfica. Sem contar que, de
Norte a Sul, inclusive nas ilhas da Madeira e dos Açores, há uma particular predileção pelo
estudo do tema em pauta, refletida na elaboração substantiva de trabalhos acadêmicos.
Saliente-se que a atual organização político-administrativa portuguesa, sob a luz da
tradição historiográfica iniciada por Alexandre Herculano (1989) e retomada, dentre outros,
por Marcelo Caetano (1940), tem propiciado resgatar e realimentar muito do papel e das
atribuições da câmara.
Enquanto em Portugal, e também na Espanha, os estudos e reflexões sobre as
origens do poder municipal, tiveram início ainda no século XIX, o mesmo não ocorreu com
a produção historiográfica brasileira. Por muito tempo tivemos que nos contentar com os
trabalhos pioneiros de Edmundo Zenha (1948) e Brasil Bandecchi (1972).
Quando muito, o tema aparece de forma pontual em livros centrados na história
político-administrativa, e, por vezes, nas histórias econômica e social, do Brasil colonial, a
exemplo do que se constata nas obras de Max Fleiuss (s/d), Rodolfo Garcia (1975) e Caio
Prado Júnior (1989).


Professora do Departamento de História da UESB. Doutoranda em História Econômica (USP).
O estudo monográfico da temática, privilegiando os diferentes matizes do poder
local, teve seu similar em trabalhos como os de Affonso Ruy (1953), com sua História da
Câmara Municipal da cidade de Salvador; de Maria Helena Ochi Flexor (1974), em seu
estudo sobre a relação entre a municipalidade de Salvador e os oficiais mecânicos; de
Charles. Boxer (1965), que analisou, comparativamente, as câmaras de Goa, Macau, Bahia
e Luanda e de John Russell-Wood (1977), em artigo sobre a Câmara de Vila Rica (Ouro
Preto).
Nos últimos anos, as pesquisas e investigações sobre as câmaras e o seu papel no
ordenamento cotidiano do espaço urbano-social das cidades e vilas do Brasil colonial têm
culminado em importantes trabalhos, entre artigos, dissertações (de mestrado), teses (de
doutorado) e mesmo comunicações apresentadas em eventos científicos. Citam-se, a título
de ilustração: para o Rio de Janeiro, os estudos de Maria Fernanda Bicalho (1998); para
Minas Gerais, os de Cláudia Damasceno Fonseca (1996;1997); e para a Bahia, os de
Avanete Sousa (1996).
No entanto, a historiografia atual e mais significativa, tanto entre nós, quanto entre
nossos patrícios, centra-se sobretudo na questão da identificação do estatuto econômico
social dos denominados homens bons e sua participação nos organismos e instituições
locais, nomeadamente nas câmaras. Destacam-se para Portugal os estudos recentes de Nuno
Gonçalo Monteiro(1997), Joaquim Romero Magalhães, Maria Helena da Cruz Coelho
Objetiva-se, com este estudo, elucidar a amplitude e o grau de poder adquiridos
pelas câmaras ou concelhos no Brasil, no decorrer dos séculos XVI e XVII, momento em
que, em Portugal, donde derivou, este tipo de instituição já havia entrada em franco
processo de decadência.
Desse modo, partir-se-á da premissa de que as câmaras municipais no Brasil
colonial, no que se refere à sua implantação e ação práticas, não obedeceram aos critérios
constantes nas Ordenações e Leis que regiam este órgão em Portugal no século XVI. Ao
contrário, no Brasil, as câmaras possuíram os mesmos objetivos e desempenharam os
mesmos papéis que a instituição local portuguesa dos séculos XI e XII.

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ORIGENS HISTÓRICAS E SIGNIFICADO DO TERMO MUNICÍPIO
O processo de formação de concelhos municipais no Brasil colônia está relacionado
à existência concreta do município enquanto divisão territorial de caráter essencialmente
administrativo. Com efeito, somente em localidades que possuíssem pelo menos a categoria
de vila, concedida por ato régio, podiam instalar-se câmaras. O título de vila era condição
para a autonomia nos negócios municipais (Abreu, 1976:127).
Observando o significado do termo município em diferentes épocas, perceber-se-á
que a palavra sempre esteve vinculada à instituição em localidades habitadas por número
razoável de pessoas de um aparelho administrativo local capaz de gerir e conduzir os
anseios, reivindicações e necessidades daquela comunidade, sem contudo perder o caráter
de extensão e poder do Estado. Assim, historicamente, município, concilium, concelho e
câmara vêm designar a mesma coisa. Estes termos se confundem e se concretizam em um
só conceito(Soares, s/d:137-139).
Do ponto de vista sociológico, um certo número de homens reunidos sobre uma
superfície limitada e em pleno desenvolvimento de convivência comunitária já seria
condição suficiente para a constituição de um município. Porém, por si só, tal fator não
delega a qualquer aglomeração humana a qualidade jurídico-administrativa para que,
efetivamente, seja formado um município. Somente o ato legal, outorgado por um poder
jurídico superior pode conferir-lhe tais prerrogativas (Zenha, 1948:22).
Tomado no contexto histórico específico do Brasil colonial, o município será
compreendido como a extensão territorial na qual a câmara, mais tarde Senado da câmara,
vai exercer a sua administração (Garcia, 1975:43; Salgado, 1985:69).
A origem do município enquanto unidade administrativa remonta aos tempos das
conquistas romanas. Roma, ao submeter uma região, permitia que os vencidos se
governassem localmente e concedia-lhes a condição de cidadãos. A partir daí, estes podiam
se reunir em assembléias, eleger os seus representantes, promulgar as suas leis locais e
solucionar negócios comuns (Herculano, 1989:70).
Depois de concretizado o Império Romano, “a administração municipal padronizou-
se”, as liberdades foram se estreitando e a força do município concentrou-se na Ordem dos
Decuriões, que depois passou a chamar-se Cúria (Alves, 1986:16), a necessidade de
centralização do poder vai, pouco a pouco, enfraquecendo a própria ordem curial. Cria-se o

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cargo de defensor, representante direto da autoridade central, modificando a organização
municipal e quase extinguindo-a (Zenha, 1948:11). A presença do poder central se torna
uma constante na vida dos indivíduos.
A força da instituição municipal romana, antes exercida pelos próprios cidadãos,
indistintamente, vai, gradativamente, sucumbindo frente à altivez do império. O município
passa a ser um elemento opaco, oco, não mais representativo dos interesses e anseios dos
cidadãos. É assim, quase relegado ao nada que as invasões bárbaras vão encontrá-lo.
Os bárbaros, enquanto novos dirigentes do Estado, na condição de grupo dominante,
mantém as instituições romanas e, “passadas as turbulências provindas da derrocada do
império, o município vai novamente ocupar lugar destacado na evolução dos povos que se
formaram pela Europa”e, principalmente, na Península Ibérica (Zenha, 1948:12). Ao
contrário do que se poderia imaginar, o município romano continuou existindo durante o
período de dominação bárbara e adquiriu importância cada vez maior. “É nesse período que
se alicerçam as estruturas dos Concelhos Municipais legados às comunidades hodiernas”
(Alves, 1986:22). Este tipo de organização , reestruturada, enraizou-se tanto que suportou a
invasão árabe e, finda esta, volta a assumir papel de extrema relevância.
Os árabes chegaram á Península Ibérica no início do século VIII e, apesar de já
possuírem uma cultura desenvolvida, mostraram-se tolerantes a ponto de respeitarem as
instituições dos vencidos. A exemplo dos romanos, os árabes deixaram que os ibéricos
continuassem a praticar certos usos e costumes (Alves, 1986:13).
A prova concreta da permanência do sistema municipalista, nesta parte da Europa
dominada pelos árabes, é o fato de serem de origem árabe grande parte dos vocábulos que
designavam os órgãos dos concelhos portugueses, introduzidos pelos cristãos ibéricos
arabizados (Alves, 1986:24).
Para o cronista português Alexandre Herculano, o município em Portugal, durante o
domínio árabe, entrou em decadência, mas não se extinguiu. A instituição local ressurge
posteriormente, com a reconquista neogótica, como forma de repovoar o território
devastado pelas guerras de expulsão, fundamentar o novo Estado e proteger os habitantes
da prepotência e das violências dos poderosos (Herculano, 1989: 70).
Há certas controvérsias quanto à origem romana do concelho português (Serrão,
1995:184; Moreno, 1986:10-11). Porém, não se entrará no âmago da discussão, uma vez

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que a retrospectiva histórica ora realizada visa somente compreender os fundamentos da
implantação desse organismo no Brasil colônia. Fruto ou não da evolução do município
romano, é a explicação do modo como a organização municipal portuguesa foi instituída e
a forma que assumiu no decorrer dos séculos, até a sua transplantação para o Brasil, no
período colonial, que são essenciais para a apreensão do objeto central desse estudo. Eis,
pois a questão.

O MUNICÍPIO EM PORTUGAL

Sancionado pelo poder real, através da Carta foral, que determinava o ato de
instituição do governo de dada comunidade e expunha os deveres, as garantias, imunidade e
privilégios da mesma, o município português emerge em fins do século X, atingindo, nos
séculos XI e XII, o ápice do seu desenvolvimento (Mattoso, 1997:179).
São basicamente duas as causas do desenvolvimento das instituições municipais em
Portugal. A primeira delas está relacionada à libertação gradual das camadas servis e a
segunda, ao reconhecimento, por parte do poder superior, da legitimidade e emancipação
popular (Herculano, 1989: 70-71).
O surgimento, cada vez mais freqüente de municípios, muitas vezes impulsionados
pelo próprio rei, na luta contra o poder da nobreza, gerou o enfraquecimento do sistema de
servidão de gleba. De um lado, os servos encontravam condições de fugir de seus senhores
e se refugiar nos termos dos concelhos, onde lhes eram concedidos determinados
privilégios não oferecidos pelos feudos. De outro, os próprios senhores passaram a
conceder forais aos domínios servos, temendo que estes fossem buscar, por conta própria e
através de atos de sublevação, a proteção e liberdades almejadas.
Assim, os municípios portugueses foram se constituindo e se solidificando, frente à
prepotência da nobreza e do clero, à medida em que progredia a libertação do homem do
trabalhos servil e ao passo em que se tornava moral e materialmente mais livre (Herculano,
1989:71).
O poder local, inicialmente centrado no senhor, no clero e na extensão dos seus
domínios, passa, a partir de então, a descentralizar-se e a focalizar-se também no âmbito
dos concelhos que, por sua vez, adquirem relevância na vida dos indivíduos. Regido pela

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legislação foraleira , o concelho, enquanto instituição local, vai se incumbir da defesa da
comunidade, do bem estar das famílias, da manutenção da ordem e da preservação da
propriedade.
Foram essas as características e atribuições dos concelhos portugueses nos séculos
XI e XII. Rico de variações e de tipos, distanciados do poder central, favorecidos pelas
dificuldades que o soberano encontrava na luta contra os grandes do reino, o município
cresceu e chegou mesmo a tornar-se principal unidade política, jurídica e administrativa da
época (Zenha, 1948:52).
Nesse período, era a assembléia popular democrática representada, essencialmente,
pelos homens bons, que exercia diretamente o governo do município. “No velho município
ibérico, os homens bons formavam o conselho que assessorava a edilidade na solução dos
problemas. As vias de acesso a tal posição eram muitas, dentre as quais dotes de fortuna,
inteligência, coragem, honradez e utilidade à comunidade” (Fleiuss, s/d:33). Esta
assembléia escolhia os juizes ou alvazis para presidirem o concelho que deliberava sobre
questões da vida administrativa e judiciária da comunidade.
Nos séculos seguintes, com o fortalecimento da autoridade central, medidas foram
tomadas no sentido de reaverem do município o poder antes adquirido. O rei já não
precisava mais sustentar-se nos concelhos para empreender a sua política geral.
Magistrados régios foram então designados para promoverem visitas de correições nos
concelhos, a justiça ficava agora a cargo daqueles que aplicavam cada vez mais, o direito
romano em detrimento dos direitos costumeiros (Avelar, 1976:29-30). Estes funcionários
acabam amputando a jurisdição do povo que, antes, era o responsável por essa esfera
(Zenha, 1948:17).
As várias tentativas de centralização se faziam presentes nas leis promulgadas ao
longo da evolução do Estado português. Entretanto, só a partir do século XV, com a
elaboração dos códigos Afonsino, Manuelino e Filipino, é que tais normas vão de fato se
consolidar. As Ordenações representavam o verdadeiro estabelecimento de um sistema
comum de organização municipal, procurando, simultaneamente, estreitar os laços entre
concelho e poder central (Garcia, 1975:44). “Os novos códigos colocaram ponto final no
combate político em que o Estado português se empenhou para obter um regime jurídico

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legal, sobrepondo a heterogeneidade do direito local, consuetudinário e lacunoso, com um
corpo de leis homogêneas” (Zenha, 1948:17).
Com as Ordenações Afonsinas (1446), o conselho sofre grandes transformações,
tanto no que concerne à sua estrutura como à sua competência. Como reforma social é
introduzido o sistema de representativo de participação indireta do povo, por meio de
delegados chamados vereadores. Não mais vigoraria o costume das assembléias populares
para todas as reuniões e nas quais os homens bons tinham o voto de importância (Fleiuss,
s/d:33). Os municípios do reino português foram reduzidos a um só tipo e todos tinham que
seguir o preconizado nas Ordenações.
O Código Manuelino, publicado em 1521, em nada alterou o estabelecido no
Afonsino e sob aquele regimento viveram os concelhos municipais até 11 de janeiro de
1603, quando foram promulgadas as Ordenações Filipinas. Estas modificaram
profundamente a forma de organização, competência e sistema eleitoral do concelho
delegando-lhe funções puramente administrativa, ficando as judiciárias reduzidas ao
julgamento das ações de injúrias verbais e pequenos furtos (Fleiuss, s/d:34).
Esta é a trajetória experimentada pelo município português. Inicialmente é vigoroso
e forte, porque fruto da inconsistência e fraqueza do poder central; era também mantido
pelas vontades e lutas de uma burguesia nascente e de grupo servil ansioso por garantias e
liberdades. À medida em que a autoridade real conseguiu sobressair-se em relação à
nobreza e ao tempo em que os interesses da burguesia e os do rei se consubstanciam, o
município, enquanto instituição popular, perde a sua razão de ser e esvai-se, à proporção em
que fortalece a centralização do Estado monárquico.
Assim, de acordo com as Ordenações Manuelinas e, principalmente, com as
Filipinas, seria completamente pobre e inócua a instituição municipal transposta para o
Brasil no início da colonização portuguesa. Resta, entretanto, saber o que de fato
impulsionou o transplante e quais as formas concretas assumidas por esse organismo no
decorrer do processo colonizador.

OS CONCELHOS MUNICIPAIS NO BRASIL COLONIAL

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A criação dos concelhos municipais no Brasil colonial pode ser compreendida como
uma adaptação das instituições políticas metropolitanas a uma realidade bastante diferente e
específica, com a qual se defrontou o Estado português (Gurfield, 1983:116).
Do ponto de vista da coroa era necessário colonizar, não apenas para conter as
incursões estrangeiras contra o território como, principalmente, para montar um sistema
econômico capaz de gerar riquezas para a Metrópole, já em crise comercial com as Índias.
A natureza da empresa colonizadora implicava em povoar, desenvolver atividades
produtivas e administrar todos os aspectos da vida colonial, o que requeria a implantação de
um aparato capaz de representar e defender os interesses do poder colonizador.
Foi nesse contexto que, na colônia, a criação de municípios teve como base a
organização e administração local. Os municípios, além de não gerarem ônus para a coroa,
tinham uma estrutura fácil de ser montada e, o mais importante, representariam uma esfera,
mesmo que pequena, do poder do Estado, suficiente para manter aceso o sentido de posse
(Prado Júnior, 1971:28). Desse modo, durante muitos anos, foram os concelhos os únicos
instrumentos administrativos locais da colônia, o que contribuiu para conferir-lhes a
autonomia e os poderes alcançados.
Embora os concelhos municipais no Brasil colonial tenham surgido no momento em
que este tipo de instituição já havia, há muito, entrado em decadência no reino, expressaram
a melhor forma administrativa frente às necessidades crescentes de colonização.
Regulamentadas pelas Ordenações Filipinas, as câmaras eram compostas por dois
juizes ordinários, três vereadores, um procurador, um escrivão e um tesoureiro, e suas
funções se restringiam à administração local (Fleiuss, s/d:34). Sob a responsabilidade dos
vereadores estavam a decretação de posturas (leis municipais) e tudo o mais necessário à
manutenção da ordem nas cidades e vilas; os juizes tratavam do julgamento dos feitos de
injúrias verbais e pequenos furtos (Almeida, s/d:134); ao procurador cabia a fiscalização
dos bens do concelho e a cobrança das coimas (penas pecuniárias); ao tesoureiro competia
arrecadar a renda do município e fazer as despesas da Casa; e ao escrivão registrar as
reuniões da câmara (Fleiuss, s/d:34).
Caso fossem seguidas rigorosamente estas determinações, as ações dos concelhos
no Brasil ficariam circunscritas ao funcionamento administrativo do município, enquanto a
Justiça e a Fazenda não fariam parte de sua alçada. Findaria aí a história da instituição

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municipal da colônia portuguesa na América. Entretanto, os caminhos tomados por esta
instituição foram bem diferentes dos traçados pelas Ordenações e, principalmente, dos
imaginados e desejados pela coroa.
Muito antes da promulgação das Ordenações Afonsinas, os concelhos portugueses
sofriam as pressões centralizadoras. Com o Código Filipino os municípios foram
completamente cerceados pelo poder central que suprimiu, de uma vez por todas, a sua
identidade e autonomia. No Brasil, nessa mesma época, a organização municipal era
desenvolvida e próspera, devido a própria necessidade de autogestão das comunidades
locais, vez ser a autoridade maior distante e constantemente ausente. Porém, esse fator não
é totalmente esclarecedor do dinamismo que alcançou o poder local no Brasil, pois nem
mesmo a constituição de uma estrutura administrativa mais organizada, como a criação do
Tribunal da Relação e da Ouvidoria Geral, em 1609, impediu que os concelhos se
tornassem aparelhos autônomos, com autoridade quase paralela.
As câmaras do Brasil colonial tiveram uma prática diferente da determinada pelas
Ordenações. A especificidade geo-espacial e social levou-as a adaptações que lhes tornaram
bastante originais e divergentes em relação ao que preconizava a sua organização legal.
No concernente à composição social do concelho, apesar das Ordenações definirem
o tipo de homem que poderia compô-lo, excluindo expressamente degradados, judeus e
oficiais mecânicos, no início se fizeram eleger, na colônia, pessoas de posições sócio-
econômicas variadas, desde senhores de fortuna até pessoas totalmente despossuídas (Ruy,
1953:32). No que diz respeito à sua competência, extrapolava, usualmente, o constante nas
leis.
As Ordenações Filipinas preconizavam o caráter exclusivamente administrativo das
câmaras. Isto, no entanto, não se verificou, sendo a sua função política e judiciária
igualmente ampla. Assim, as câmaras atuavam sobre a defesa do território e a manutenção
da ordem; nomeava funcionários e, entre estes, até mesmo os fiscais da Intendência do
ouro; representava e defendia todos os direitos dos colonos ameaçados ou mal interpretados
por leis absurdas e inaplicáveis; orientava toda a vida econômica e social das cidades e
vilas, fiscalizando e zelando pelo seu devido aprovisionamento (Ruy, 1949:35).
Era de tamanha amplitude o raio de ação das câmaras que, em casos extraordinários,
chegavam mesmo a convocar Juntas Gerais, representação da nobreza da terra, milícia e

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clero, para tomarem parte no processo. Ressalte-se que a convocação das chamadas Juntas
só cabia ao governador, mas não foram raras as vezes em que as câmaras se arrogaram de
tal poder (Leal, 1986:67).
A participação do povo de forma mais ampla nas reuniões era, de início, bastante
representativa. A população local comparecia por ocasião das eleições e também quando da
deliberação de assuntos de relevante interesse público (Prado júnior, 1989:316). Somente
no decorrer do século XVII é que houve uma certa limitação da participação popular no
interior dos concelhos, sendo a sua representação expressa na figura do procurador que,
deixando de lado as suas funções fiscalizantes, assumia papel político ao tornar-se o porta
voz da comunidade junto à câmara (Alves, 1984:61).
Do conjunto da exposição pode-se constatar que os concelhos municipais no Brasil,
nos séculos XVI e XVII, destoavam do que diziam as leis que os regulamentavam. Além
disso, as características e funções que lhes foram peculiares eram distintas das dos seus
congêneres portugueses nesse mesmo período. Não obstante, mantinham grandes
semelhanças com as câmaras metropolitanas dos séculos XI e XII.
Essa homologia, em breves referências, pode ser detectada em alguns aspectos
gerais, nomeadamente no que se refere ao caráter político e social da instituição municipal.
De forma muito particular, o município português teve o seu desenvolvimento
impulsionado pela classe serva insurgente e assumiu também o papel de acolhedor e
protetor da mesma frente aos desmandos da nobreza e do clero.
É certo que não havia, no Brasil colônia, uma camada servil em processo gradual de
libertação e ansiosa por proteção e garantias, porém, existia uma massa de desqualificados
sociais, degradados, judeus e oficiais mecânicos que, reunidos na circunscrição do
município, eram acolhidos e, de certa forma, protegidos por este.
Em Portugal, a burguesia e os camponeses, estes, recém egressos do regime servil,
conviveram, simultaneamente, no interior dos concelhos, sendo que, pouco a pouco, o
grupo burguês foi se apropriando do organismo municipal e redefinindo sua estrutura de
forma que facilitasse o processo de construção da supremacia e conquista integral do
aparelho do Estado, o que se verificou séculos depois.
No Brasil, assim como ocorreu em Portugal, a hegemonia dentro dos concelhos
passou a ser detida por pessoas política e economicamente influentes.

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Tanto em Portugal como no Brasil, foram os concelhos municipais defensores dos
direitos individuais e coletivos, da moral e da ordem, e sempre atuaram como forte aparato
de controle e dominação social.
Foram estas as determinações que possibilitaram confrontar os concelhos
portugueses, durante a Idade Média, e os do Brasil, na época colonial, identificando os
pontos de aproximação e semelhanças.

CONCLUSÃO
A superestrutura jurídico-política e, portanto, as instituições em geral, em qualquer
Formação Social, são as mais permanentes e transcendem as épocas em que foram
originadas, desgarrando-se de sua base natural, sendo adaptadas a novas realidades sócio-
econômicas e culturais.
No caso específico das instituições municipais portuguesas, na fase de estruturação
do modo Capitalista de produção, percebe-se que houve uma metamorfose no seu caráter, à
medida em que se fez acompanhar o desenvolvimento social da burguesia e a centralização
do Estado. Concretamente, essa transformação do conselho em Portugal ocorreu em direção
ao esvaziamento de sua capacidade de dirigir a vida local e de exercer as garantias dos
direitos sociais e individuais.
Entretanto, quando esta instituição é implementada na área colonial brasileira, é
resgatada não a forma vigente em Portugal naquele momento, mas o modelo de outrora
que, aparentemente, havia sido historicamente superado. Isto foi possível e viável em
decorrência dos tipos de relações sociais e econômicas que foram engendradas para
empreender a colonização (convém lembrar: a monocultura, o latifúndio, o sistema de
sesmarias), o que implicava na adoção de um modelo de superestrutura, isto é, em um
arcabouço jurídico-político que, em certo sentido, servira à base de um outro Modo de
Produção. Todavia, é necessário perceber que a instituição municipal se adaptava, naquele
momento, aos objetivos sócio-econômicos da metrópole, a conquista e a colonização da
nova terra, bem como articulava-se com a lógica geral do processo de acumulação
capitalista e se adequava ao tipo de relação que a metrópole manteria com a sua colônia.

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