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Explicando política às crianças

(Rubem Alves)
Meninas e meninos: Às vezes, para explicar o comportamento dos homens, os escritores contam estórias. Pois hoje eu vou
contar uma estória.
Mas os carnívoros eram espertos. Sabiam que a verdade nem sempre deve ser dita. Perceberam que nenhum membro do Partido
das Bananas iria votar num candidato do Partido da Lingüiça. Por uma razão simples: os bichos vegetarianos seriam aqueles
que seriam transformados em churrasco. Os bifes das vacas, as lingüiças dos porcos, os peitos dos francos, os perus assados, as
coxas dos avestruzes... Todas as pesquisas do IBOPE indicavam que os vegetarianos ganhariam as eleições, por serem em
número muito maior que os carnívoros. Assim, astutamente, reuniram-se para saber o que fazer. Um camaleão chamado Duda,
carnívoro, apreciador de rinhas de galo, o sangue sempre o excitava, pediu a palavra: "Companheiros", ele disse, "guerras são
ganhas enganando-se o inimigo. Essa é uma lição que aprendemos dos humanos. Os soldados se camuflam para chegar perto de
suas presas. Vestem-se de forma a parecer árvores e folhagens. Quando os inimigos se dão conta é tarde demais. É assim que eu
faço. Mudo de cor. Fico parecendo um galho de árvore. O inseto só me percebe quanto minha língua visguenta o lambe. Queria
sugerir, então, que usassem a minha tática. Se nos proclamarmos carnívoros os vegetarianos não votarão em nós. Vamos nos
fantasiar de vegetarianos!" Todos aplaudiram a brilhante reflexão do camaleão Duda e resolveram dar ao seu partido um nome
bem ao gosto dos vegetarianos: "Partido dos Abacaxis". Todo mundo gosta de abacaxis, tão doces, tão perfumados, tão
brasileiros. E assim foi. Iniciou-se, então, a campanha do Partido das Bananas contra o Partido dos Abacaxis. Os vegetarianos
faziam comícios em que bananas eram distribuídas por todos. As galinhas, os patos e os perus não perdoavam nem mesmo as
cascas... Os carnívoros promoviam grande churrascos só que, ao invés de picanhas sobre as brasas, eram abacaxis sobre as
brasas. Faziam churrasco de tudo quanto é vegetal. Além dos abacaxis, bananas, pinhões, batatas, mandioca, cebolas, tomates,
pimentões. Assim, os dois partidos tinham o mesmo programa: dieta vegetariana para todos.
Os membros do Partido das Bananas sentiram, de longe, o cheiro bom dos churrascos dos Partido dos Abacaxis. E começaram a
se aproximar. Perceberam que os membros do Partido dos abacaxis não eram tão maus quanto se dizia. Chegaram mais perto.
Provaram. Gostaram. "É, churrasco de banana é mais gostoso que banana crua", disseram. E até os macacos aderiram.
Aí veio a eleição. É preciso não esquecer que eleições têm por objetivo escolher aqueles que terão o poder de fazer as leis.
Eleitos democraticamente, decidiriam democraticamente a dieta de todos os bichos. As decisões dos representantes seriam leis
para todos. Ao dar aos seus representantes o poder para decidir, os bichos estavam, com esse ato, abrindo mão do seu direito de
decidir. Depois de feitas as leis, só lhes restava obedecer.
Empossado o congresso, os representantes elegeram o seu presidente. O bicho que recebeu mais votos foi a Hiena, famosa por
seu senso de humor: estava sempre dando risadas. Na sua posse ela fez um lindo discurso sobre as excelências da dieta
vegetariana. E para terminar deu uma aula de filosofia. "Como disse o filósofo alemão Ludwig Feuerbach, nós somos o que
comemos. Vacas e veados comem capim; portanto são capim. Macacos comem banana; portanto são bananas. Galinhas e patos
comem milho; portanto são milho. Pássaros comem alpiste; portanto são alpiste. Assim, onças que comem vacas e veados estão,
na verdade, comendo capim. Uma cobra que come um macaco está, na realidade, comendo bananas. Um gambá que come
galinhas está, na realidade, comendo milho. E um gato que come passarinhos está, na realidade, comendo alpiste. Assim sendo,
e em cumprimento às promessas que fizemos no período eleitoral, proclamo a lei de que todos os animais terão de ser
vegetarianos, cada um do seu jeito. Viva a República Vegetariana!"
O discurso da Hiena foi saudado com uma grande salva de palmas, seguido por um festival gastronômico em que hienas, onças,
lobos, cães vadios, cobras, gambás e gatos churrasqueavam vacas, veados, macacos, galinhas e passarinhos. "Pois Feuerbach
não disse que somos o que comemos? A lei é clara: todos os animais são vegetais transformados...
Aí os membros do Partido das Bananas perceberam que haviam caído numa armadilha. Leis são armadilhas. Uma vez feitas não
podem ser desrespeitadas, a menos que sejam revogadas por aqueles que as fizeram, os representantes eleitos.
Mas quem teria poder para revogar essa lei? Olhando para os gordos animais do Congresso era claro que nenhum deles estava
disposto a trocar costeletas, lombos e lingüiças por alface, couve e cenoura... Concluíram, então, que com aquele congresso de
carnívoros a reforma política jamais seria realizada. Aprenderam então a mais dura lição da política: quem faz as leis são
aqueles que têm poder. O ganso grasnou então um ditado que havia lido num livro inglês: "might makes right", o poder faz o
Direito.
Foi então que um leitão rechonchudo chamado Alfred Hitchcock pediu a palavra. Ele já havia experimentado a dor da perda de
sua mãe, comida por uma onça que falava enquanto comia: "Que deliciosa é essa porca! Ela é milho, é abóbora, é mandioca, é
batata! Como é boa a dieta vegetariana!" Pois bem. O dito leitão ponderou: "Eu não posso enfrentar a onça. As galinhas não
podem enfrentar os gambás. Os cordeiros não podem enfrentar os lobos! Mas os pássaros! Milhares de pássaros em seus vôos
rasantes e bicos pontudos! Que poderão fazer as onças, os gambás e os lobos contra o ataque de milhares e pássaros? Vamos
chamar os pássaros! Eles são vegetarianos! São nossos aliados!"" E assim aconteceu. Vieram então, em bandos que tapavam o
sol, milhares de andorinhas, pássaros pretos, sabiás, pardais, tico-ticos, periquitos... Invadiram o edifício do Congresso. Foi um
pandemônio. O espaço escureceu. O barulho dos pios e dos gritos dos pássaros era ensurdecedor. Milhares de bicos bicando
sem parar em mergulhos certeiros. Além disso, por onde iam soltavam seus excrementos moles e fedidos que escorriam pelas
caras dos excelentíssimos. Os representes gritavam histéricos: "Isso é conspiração! Estão tentando desestabilizar o governo!"
Mas os pássaros nem ligaram. Continuaram a fazer o que estavam fazendo. Os gambás, onças, lobos, cães vadios e hienas
fugiram e nunca mais voltaram, com medo de que os pássaros lhes furassem os olhos..."
Agora, meninos e meninas: ajudem-me a chamar os pássaros...

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