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Bom dia, eu sou a Danielle e faço parte do projeto de pesquisa “Pobreza e

Desigualdade na Favela: trajetórias e mobilidade social de moradores de favela


carioca” há 2 anos, sob orientação da professora Sarah Telles, a quem eu gostaria
de agradecer por essa oportunidade. Gostaria de corrigir um erro da apresentação
do ano passado e agradecer também à Dornele, que nos ajudou fazendo
intermediação com alguns moradores do Santa Marta, nosso campo de pesquisa.
Além disso, agradeço ao Grupo ECO, que abriu espaço para realizarmos as
entrevistas com os adolescentes e jovens participantes do projeto, e também à
Lílian, que está aqui hoje, que tem me ajudado muito com a pesquisa, me
convidando para as atividades de lazer do Grupo.
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A pesquisa aborda os processos de mobilidade social das famílias moradoras


de favelas do Rio ao longo das gerações, a partir da análise de suas trajetórias. No
momento atual, a investigação tem se concentrado no lazer e consumo de
adolescentes e jovens da favela Santa Marta. A escolha por esses dois grupos
etários se deu pois, inseridos ou não no mundo do trabalho - formal ou
informalmente - muitos passam pela fase de elaboração dos projetos de vida que
envolvem mobilidade social e econômica. Muitos desses jovens estão pensando se
continuam ou não os estudos, se começam ou não a trabalhar, quais cursos fazer,
qual área escolher, se vai prestar vestibular etc. Projetos estes, que levam o sonho
de “dar uma casa melhor para a mãe” e viajar para o exterior, por exemplo, em
consideração. Comprovando, assim, que práticas de lazer e consumo podem ser
fatores são fatores importantes que influenciam as decisões de adolescentes e
jovens que, em última instância, podem modificar suas trajetórias.
Sobre a escolha pelo Santa Marta devem ser consideradas algumas
questões:
1) Sua localização em um bairro de classe média da Zona Sul do Rio de
Janeiro, o que revela um contexto de desigualdade e segregação social e
espacial, trazendo assim a dimensão territorial para a pesquisa. Cabe
ressaltar que há na pesquisa o cuidado em fazer um exercício em não tratar
“morro” e “asfalto” como uma oposição binária, nos termos de Vera Telles.
2) A presença de uma UPP na favela desde 2008 o que colaborou fortemente
para a reconfiguração das formas de comércio e lazer no “morro” e abriu
caminhos para turistas e moradores de outras regiões da cidade.

Por que mencionar a questão da UPP?

Conforme a literatura especializada na questão das UPPs, não há dúvidas de


que a atuação dessa política de segurança facilitou a expansão dos mercados
dentro das favelas e gerou uma reconfiguração local. Essa nova configuração,
provocada por dispositivos de segurança e de mercado [2], modificou os modos de
vida nos “morros”, sobretudo, as práticas de lazer de seus moradores. Alguns
relatam que alguns empresários promovem festas cujos preços da entrada, das
bebidas e comidas eles não tem condições de pagar, que são festas para “quem é
de fora” frequentar. Além de muitas vezes terem as próprias festas interrompidas
pela polícia com a alegação de som alto - o que, segundo eles, nunca ocorre com
os “empresários”.
Além disso, no dia seguinte da implantação das UPPs, como todos sabem,
empresas fornecedoras de serviços como água, luz, internet e tv a cabo se
estabeleciam no local e eram fortemente beneficiadas com a regularização das
instalações dos mesmos, incluindo os moradores no consumo regularizado, porém
impactando negativamente no orçamento das famílias.
Vemos também o estímulo ao microempreendedorismo através do apelo à
formalização dos estabelecimentos informais e do incentivo para que os moradores
comecem seus próprios negócios – e se tornem microempreendedores individuais.
É o que podemos ver com nas parcerias entre o Governo do Estado com o SENAC,
para oferecer cursos aos moradores de favelas pacificadas para atuação na área da
beleza, gastronomia, informática, telemarketing etc1; e também o projeto Mulher
Empreendedora realizado pela parceria o Rotary Internacional e o Sebrae-RJ que
oferecia cursos de empreendedorismo para mulheres moradoras de favelas
pacificadas2. O estímulo a tal prática se baseia na constatação de que a produção e
o comércio local, sobretudo o realizado pelas mulheres, amplia a circulação de
dinheiro dentro da favela, conforme a fala de uma idealizadora de um dos projetos.
Bom, esses agenciamentos e dispositivos para uma inclusão produtiva e/ou
via consumo dos moradores de favelas, segundo Leite (2015) [2]: inscrevem-se em
uma racionalidade de gerenciamento de populações perfeitamente consistente com
o ‘novo espírito do capitalismo’ (designado por Boltanski e Chiapello como a ‘cité par
projets’).” (p.397). Nesse sentido, podemos entender que há por trás da proposta do
Estado de pacificação, a normalização dos moradores de favelas, a produção de um
“novo homem civilizado e territorializado, para depois capturá-lo para o mercado
(através da ideologia do empreendedorismo que anima a atuação estatal e não
estatal no território), parece ser, assim, o imperativo estratégico matriz, nos termos
de Foucault (2004), dos dispositivos de alteração do lugar de margem das favelas
na cidade.” (p. 398). Uma “inclusão social via mercado” (Leite, 2015) que modificou
a perspectiva sobre os moradores de favela. Antes vistos à margem da sociedade
de consumo, são atualmente tratados através de representações morais que
classificam esses sujeitos como consumidores e empreendedores a integrar e
bandidos a encarcerar (Feltran, 2014, p. 498) [4], restando, aos que não se
adequam à nova lógica, estigma e criminalização.
A atuação dos dispositivos de seguraná e mercado que acabei de mencionar
alteraram a relação da favela com seu entorno (que também se alterou com a
impalntação da UPP) e a tornou ainda mais complexa, uma vez que ao analisarmos
a fundo as falas dos entrevistados, pode-se perceber que tais territórios, outrora,
tinham diferenças mais marcadas e fronteiras mais estabelecidas. Nesse sentido,
não poderia fixar “morro” e “asfalto” em lados totalmente opostos, pois, conforme diz
Vera Telles, existem “agenciamentos intermediários e intersecções por onde as
coisas circulam, os fatos são produzidos, as tramas de relações (e poder) são
construídas.” (TELLES, 2006, p. 92). Outras práticas e discursos são mobilizados,
são novos agenciamentos, como dito anteriormente, que se fazem necessário
compreender, ainda em um momento em que se fala no fracasso das UPPs.

Bom, dada a observação do contexto em que os adolescentes e jovens do


Santa Marta estão inseridos, se faz necessário considerar a agência dos mesmos.
Desse modo, a pesquisa se encaminha para a compreensão de como os
adolescentes e jovens do Santa Marta, ao terem seus modos de vida, suas práticas
de lazer e consumo redefinidos, agem/operam nesse cenário estabelecido. Longe
de se colocarem passivamente, os moradores da favela também tem
questionamentos e agenciamentos próprios. É o que podemos ver no Grupo ECO,
por exemplo, onde adolecentes e jovens se reunem para refletir de maneira crítica e
discutir questões cotidianas, tanto de dentro da favela como fora dela, que
atravessam suas vidas e também organizam suas atividades de lazer como festas
com diferentes ritmos musicais, idas ao teatro, colônia de férias etc. com o intuito
de preservar práticas anteriores à implantação da UPP. É o que podemos ver na
fala de Joana, uma de nossas entrevistadas, ao nos relatar sobre a cobrança
abusiva da Light (empresa fornecedora energia elétrica na região):

“Algumas pessoas não pagam porque não tem


condições de pagar. Tem muita gente
desempregada. Até um dia eles vieram aqui,
cortaram a luz de um monte de gente, mas
quando eles foram embora eles foram lá e
colocaram tudo de novo. Aí o cara falou assim: Ó
isso dá cadeia! Aí o outro cara falou assim: então
vai ter que prender a comunidade inteira! Traz o
caminhão, o ônibus, lota aí porque vai ter que
levar todo mundo.”

Uma vez que a pesquisa busca fazer uma análise do lazer e consumo dos
adolescentes e jovens do Santa Marta, surgiu a possibilidade abordar essas práticas
não apenas como uma forma de assimilição com as classes médias e altas - como
alguns estudos sobre consumo das classes populares fazem. Foi possível notar
durante as entrevistas algumas dessas práticas como forma de oposição. pruma
nova questão deparou com uma nova questão: diferente do senso comum que vê o
consumo das classes populares apenas como uma forma de assimilação às classes
médias e altas, Ao ouvir alguns entrevistados sobre suas escolhas de lazer e
consumo, o fator financeiro não é o único impedimento de acesso às opções
disponíveis fora do Morro. Conforme a fala de Larissa (16 anos), uma das
adolescentes do Grupo ECO, ao responder à pergunta sobre as opções de lazer
existentes em Botafogo:
"É legal esses eventos que tem aí fora, mas é
mais pra quem tem mais dinheiro, entendeu?
Porque se você for, tipo, eu, negra, chegar nesse
local, eu não vou ser tratada do mesmo jeito que
minha amiga, que é loira. Eu não vou ser tratada
do mesmo modo. Tipo eu com minhas tranças, se
alguém quiser falar comigo não vai falar se fosse
com ela. Não sei como explicar, é diferente. O
evento que tem lá fora é mais pra quem tem muito
dinheiro, pra quem tem o aspecto de ter dinheiro,
entendeu? É muito preconceito."

Nesse sentido, percebe-se que a segregação entre "morro" e "asfalto" não foi
superada e a integração da favela com os demais espaços da cidade ocorre de
forma muito limitada. A relação entre estes, embora redefinidas, continua
conflituosa. Embora a circulação de turistas e moradores de outras partes da cidade
tenha aumentado no morro, a circulação de moradores de favela em espaços de
lazer e consumo do “asfalto” ainda é marcada por conflitos derivados do estigma
que recai sobre o favelado. COLOCAR A PARTE QUE EU COLOQUEI DO
SHOPPING EM UM DOCUMENTO AVULSO.
Ao interpretar os modos de vida das classes populares pela perspectiva
simbólica e cultural, é possível notar que o lazer e consumo dos adolescentes e
jovens do Santa Marta são dotados de agência, ainda que o senso comum os vejam
como subalternos em relação às classes mais abastadas. Tais práticas das classes
populares é resultado de escolhas - em alguns momentos planejadas ou em alguns
momentos impulsivas - sobre o que comprar, qual a melhor marca, onde comprar e
como pagar (à vista, no crediário, ou parcelado no cartão de crédito etc.). Em última
instância, suas escolhas acabam por contribuir para a elaboração de identidades
que diminuem ou reforçam a diferença entre os moradores do Santa Marta e os
moradores do entorno, e também entre os moradores do próprio morro. Como diz
Scalco e Pinheiro-Machado (2010) [3]:
“A cultura material é responsável, desse modo,
por transmutar exclusão em inclusão. Os bens e
as marcas globais consumidas passam a ter
sentido no universo local, atuando um sinal
distintivo. Sob essa perspectiva, o consumo deve
ser tratado como uma forma de agência,
empoderamento e cidadania.” (p. 325)

Apesar do morro se localizar em um território de classe média, morar nesse


espaço não significa oportunidade acesso a todas as opções de lazer e consumo
disponíveis em Botafogo, tampouco a integração entre as classes médias e
populares. Com a implantação da UPP e a reconfiguração local, os conflitos apenas
tomaram novas formas e proporções.
Para acessar os serviços disponíveis no bairro é necessário deter não
apenas o capital econômico, mas, também, o capital simbólico, além de um certo
tipo de comportamento normatizado. Alguns entrevistados relataram que sentem
que a suas presenças em espaços de classe média como bares e shoppings do
bairro, é vigiada e que tem sua liberdade cerceada por não poderem se comportar
da maneira que se sentem à vontade. A fala de Tatiana ilustra bem a diferença de
comportamento quando está no "morro" e quando está no "asfalto":

"Já reparou que é só a gente começar a


subir o morro que a gente começa a falar
alto e a xingar palavrão? Lá na rua a gente
não fala desse jeito. Aqui a gente se sente
mais à vontade."

Ao considerar que seus habitantes não constituem um grupo homogêneo,


seria demasiadamente insuficiente abordar o consumo dos jovens do Santa Marta
apenas como forma de assimilação/aproximação com a classe média de Botafogo.
De longe, o consumo e lazer desses grupos devem ser tratados apenas como
desejo de se adequar às elites, conforme sugere Bourdieu em "A Distinção" (2007)
[7]. A partir das falas de alguns entrevistados pode-se perceber que as classes
populares que moram e circulam pelo bairro, são dotadas de uma lógica própria, em
que também é possível identificar práticas de consumo como forma de oposição ao
que é valorizado pelas classes mais abastadas. Além do mais, os sujeitos
mobilizam as duas formas em alguns momentos. Sendo assim, o consumo se
mostrou um mecanismo fundamental de resposta aos efeitos das desigualdades
social e econômica, além da discriminação racial.

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