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O Corvo, de Edgar A. Poe. "estes rumores anormais. Mas eu grasnando “Nunca mais”.

Tradução de Manuel José Gondim da depressa vou saber donde procede tal
Fonseca (1924) mistério: Mil coisas pressupus... Não lhe falava,
é o vento, é o vento e nada mais!" mas sentia que me abrasava o coração o
Certa vez, quando, à meia-noite eu lia, duro
fraco, extenuado, um livro antigo e Eis que, de repente, abro a janela, e olhar da ave sombria. E assim fiquei, num
singular, sobre doutrinas do passado, meio esvoaça então, um corvo grande, ave devaneio, em deduções conjecturais,
dormindo - cabeceando -, ouvi uns ancestral, dos tempos bíblicos - Sem cabeça reclinando - à luz da lâmpada
sons, trêmulos como se leve, bem de leve, cortesias, sem parar, batendo as asas fulgente nessa almofada de veludo, em
alguém batesse à minha porta. É um triunfais, ele, com ar de grão-senhor, foi, que
visitante", murmurei, "que bate, leve, à sobre a porta do meu quarto quedar Ela, agora - à luz fulgente - não mais
minha porta, Apenas isso e nada mais." sombrio e nada mais. descansa - ah! nunca mais.

Bem me recordo. Era em dezembro. Um EU estava triste, mas sorri, vendo o meu Subitamente o ar se adensou, qual se em
frio atroz, ventos cortantes. hóspede noturno meu quarto solitário, pousassem,
Morria a chama no fogão, pondo no chão Tão gravemente repousado, hirto, solene balançando um invisível incensário.
sombras errantes. e taciturno. “Sem crista, embora” - “Infeliz" - eu exclamei. - "Deus apiedou-
Eu nos meus livros procurava - ansiando ponderei - "embora ancião pros teus iguais, se dos
as horas matinais – és medroso, ó Corvo hediondo, ó filho teus ais! Acalma-te e domina essas
um meio (em vão) de amortecer fundas errante da escuridão! Que nobre nome é saudades de Lenora!
saudades de Lenora – acaso o teu, no escuro império de Ò, com o vinho benfazejo esqueço a
bela adorada, a quem, no céu, os Plutão?" imagem de Lenora!"
querubins chamam Lenora. E o corvo disse: “Nunca mais”. E o corvo disse: "Nunca mais."
Aqui, ninguém chamará mais.
Fiquei surpreso - pois nunca imaginei que "Profeta!" - brado. "Anjo do mal, ave ou
E, das cortinas cor de sangue, um arfar fosse possível, de um corvo, tal demônio irreverente que a tempestade,
soturno e brando e vago Resposta, embora incerta e ou Satanás, aqui lançou tragicamente, e
causou-me horror nunca sentido - horror incompreensível. Bem que, em tempo que te vês, soberbo e só, nestes
fantástico de presságio algum, em noite desertos areais, nesta mansão de eterno
Então, fiquei (para acalmar o coração de Alguma, entre mortais viram um pássaro horror! Fala! responde ao certo! Existe
sustos tais) adejar, voando por cima de uma porta e alívio no Paraíso? Existe? Fala, ó Corvo!
a repetir: " alguém que bate, alguém que declarar (no alto de um busto, erguido Fala!"
bate à minha porta, acima de uma porta) que se chamava E o corvo disse: "Nunca mais".
algum noturno visitante, aqui batendo à “Nunca mais”
minha porta: é isso. "Profeta!" - brado. “Anjo do mal! Ave ou
É isso e nada mais. Porém o Corvo, solitário, essas palavras demônio irreverente dizei, por Deus que
e só murmura, nelas refletindo uma está nos céus, dizei! Eu peço humilde dizei
Fortalecido já por fim, brado perdendo a alma cheia de amargura. Depois a esta pobre alma sem luz, se lá nos
hesitação: concentra-se e não move - inerte sobre prados astrais, poderei ver, um dia, ainda,
"Senhor! Senhora! quem sejais! Se os meus umbrais – uma só pena. a bela e cândida Lenora, amada minha,
demorei, peço perdão. Eu dormitava, Exclamo então: "Muitos amigos me a quem, no céu, os querubins chamam
fatigado, e fugiram... Lenora”.
tão baixinho me chamais, bateis tão Tu fugirás pela manhã, como os meus E o corvo disse: "Nunca mais."
manso, mansamente, assim de noite à sonhos me fugiram.
minha Responde o corvo: "Oh! Nunca mais." "Seja essa frase o nosso adeus" - grito,
porta que não é fácil escutar." de pé. "Vai-te! Regressa à tempestade, à
Porém, só vejo, abrindo a porta, a Pasmo ao varar o atroz silêncio uma noite escura de Plutão. Não deixes pluma
escuridão - e nada mais. resposta assim tão justa, que recorde essas palavras funerais!
"Certo, ele só sabe essa expressão com Mentiste! Sai! Deixa-me só! Sai desse
Perquiro a treva longamente. Estarrecido, que me assusta. busto junto à porta!
amedrontado, Ouviu-a acaso, de algum dono, a quem Não rasgues mais meu coração! Piedade!
sonhando sonhos que, talvez, nenhum desgraças infernais Sai de sobre a porta!
mortal tenha sonhado hajam seguido, e perseguido, até cair E o corvo disse: “Nunca mais”.
Silêncio fúnebre! Ninguém. De visitante, nesse estribilho, chorar as ilusões com
nem sinais. esse E não saiu! E não saiu! Ainda agora se
Uma palavra apenas corta a noite plácida: lúgubre estribilho de - "nunca mais! oh! conserva
- "Lenora." nunca mais!". pousado, trágico e fatal, no busto branco
Digo-a em segredo e, num murmúrio, o de Minerva.
eco repete-me “Lenora”. De novo, foram-se mudando as minhas Negro demônio sonhador: seus olhos são
Isto somente – e nada mais. mágoas num sorriso. como punhais!
Então rodei uma poltrona, olhei o Corvo De cima, a luz, brilhando, espalha a
Para o meu quarto eu volto enfim - e de improviso no estofo mergulhei, sombra dele, que flutua…
sentindo n'alma estranho ardor formando hipóteses mentais É a alma infeliz que me tomou a sombra
e novamente ouço bater, ouço bater com Sobre as secretas intenções que essa e não há de erguer-se,
mais vigor. "Vêm da janela", presumi, medonha ave agoureira tinha, "Nunca mais".

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