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Raimundo Carrero.
665 páginas.
CEPE Editora.
desperdiçado pelo historiador para encher suas narrativas com a riqueza de detalhes,
miríade dos atos e dos acontecimentos. Mas isso não parece assustar Raimundo Carrero
que, em sua profunda e corrosiva epopeia (repleta de crítica social) sobre a elite nordestina
da História, a partir dos detalhes que ela ignorou no quadro geral de suas explicações
totalizantes.
Cavalcante do Rego. A edição é constituída pelos livros Maçã agreste (1989), Somos
pedras que se consomem (1995), O amor não tem bons sentimentos (2008) e
Tangolomango (2013).
Ainda que não obedeçam a uma ordem cronológica, visto que outras obras
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medida em que constituem um palco para personagens que, interconectados e recorrentes,
Foi com Maçã Agreste que o escritor pernambucano inaugurou a saga sobre o clã
incestuoso, cujos familiares romperam o mais proibitivo dos tabus para garantir (ou até
mesmo acelerar) a própria aniquilação, tendo como pano de fundo, a derrocada da elite
nordestina da cana de açúcar frente à industrialização. O sexo praticado sob o mesmo teto
sugere a tentativa de manter o núcleo familiar coeso diante das mudanças sociais, refletida
irmãos. Sua herança? Pares nefastos que instigam o leitor a seguir a incestuosa família,
Ernesto têm dois filhos: Jeremias e Raquel. Raquel tem relações sexuais com o pai e
Carrero sugere (do ponto de vista de Ernesto) que há algo lascivo entre mãe e filho, entre
angústia, Jeremias dá a impressão de não querer sair dele, como se o merecesse, ou como
Carrero tece essas relações com a maestria e a precisão de um deus brincando com
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consomem, acrescentadas de novas outras, todas resultado de relações incestuosas que se
confirmam no romance de 2007 – O amor não tem bons sentimentos. Desse modo,
Ernesto e Raquel, pai e filha, fruem do corpo um do outro sem grandes problemas,
enquanto o irmão Jeremias alcunha jocosamente a irmã de “a Grande Puta”. À essa altura
o leitor já reconhece a semente de uma nova genealogia, que requer outra maneira de
episódio isolado na trama. Ao contrário, eles formam um casal que, com a chegada do
próprias formas como a história é contada, com poemas, editoriais de jornal, diários e
várias citações de autores nacionais e estrangeiros, que compõem uma trama enredada,
no centro da qual fulgura Siegfried – um alemão obscuro que toma seu lugar no palco
carrega nas cores da violência, enquanto demonstra não haver um só modo de enxergar a
faulknerianas impecáveis. Leitor declarado de Faulkner, Carrero nunca quis esconder essa
influência e, assim como o uruguaio Juan Carlos Onetti, lança mão das conquistas formais
A narrativa de Somos pedras abrange e alterna vários pontos de vista que vão e
ganha contornos mais definidos no uso variado dos laços e ligações intertextuais e
linearidade das histórias que conta para explorar, também ou principalmente, os aspectos
à primeira vista desconexos que compõem as tramas paralelas das experiências humanas.
Dessa forma, o autor espera dar mais dramaticidade à sua cosmogonia de derrisão e
agonia.
decorrer do romance por conta da defesa, feita por Siegfried, do sonho purificador de
Hitler. Essa acentuação não é gratuita, uma vez que um dos cernes da literatura de Carrero
evitar, ou até mesmo inibir, a indiferença social acerca desses fatos, pela via do choque e
das ações dos personagens em Somos pedras. O estrangeiro hitlerista não propõe nada
A tara ariana pela pureza, bem como as distorções e crimes eugênicos dela decorrentes,
indivíduo, uma fração especular de algo maior. É nesse sentido que Siegfried, no auge
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dos seus devaneios, espera criar uma sociedade secreta, “sob o símbolo da cruz, do fogo
alto de seu domínio da técnica narrativa, coloca um narrador pouco confiável como fiador
da história, até o ponto onde sua personalidade indefinida passa a ser aludida na própria
inconstância da grafia do seu nome (Mateus/Matheus). À essa altura, o autor joga com a
com o qual dialoga a todo o momento. Trata-se de uma cisão, de uma fratura de
derrota refletida em crimes, perda de bens materiais e em uma total pulverização de laços
referências para trás, de volta à família que começou a ser desenhada em “Maçã agreste”
morte de Biba (concebida pelos irmãos Jeremias e Isís), com que Mateus (filho da relação
também incestuosa entre Jeremias e sua mãe Dolores), procura restaurar seu passado
remoto e recente.
uma escrita semelhante a um diário em terceira pessoa dessa senhora que, dedicada a criar
o sobrinho Matheus, alimenta desejos reprimidos que irão explodir de vez durante seu
encontro com o Galo da Madrugada (maior bloco de rua do mundo, segundo o Guines).
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Lido sob a luz retrospectiva dos três livros anteriores, “Tangolomango” parece querer
responder a essa pergunta: o peso do passado de fato determina o destino dos indivíduos?
A tetralogia “Condenados à vida”, por fim, repisa a tese cruel de um amor capaz
a tetralogia encerra uma epopeia que canta com voz áspera o desaparecimento de um
possuem vida – e em determinado ponto da leitura nos pegamos pensando nelas como se
fossem pessoas de carne e osso. Isso só é possível de ser feito se o autor decidir se retirar
por completo de cena. Em outras palavras: quanto mais vida têm as personagens, menos