Você está na página 1de 6

Condenados à vida.

Raimundo Carrero.

665 páginas.

CEPE Editora.

A relação entre História e Literatura não é nova, e a medida em que a primeira

abre mão da imaginação em favor da objetividade e, a segunda, colhe o que foi

desperdiçado pelo historiador para encher suas narrativas com a riqueza de detalhes,

continua motivo de controvérsias. Para um escritor, o risco de pintar um grande painel

histórico onde colocar seus personagens é justamente o risco de desaparecer atrás da

miríade dos atos e dos acontecimentos. Mas isso não parece assustar Raimundo Carrero

que, em sua profunda e corrosiva epopeia (repleta de crítica social) sobre a elite nordestina

em absoluta decadência, elege a escrita como principal possibilidade de enriquecimento

da História, a partir dos detalhes que ela ignorou no quadro geral de suas explicações

totalizantes.

A tetralogia “Condenados à vida” (lançada em um belíssimo trabalho da CEPE

Editora) é a edição definitiva desse esforço, e reúne os quatro romances de Raimundo

Carrero, cuja espinha dorsal é o testemunho da ruína da família do patriarca Ernesto

Cavalcante do Rego. A edição é constituída pelos livros Maçã agreste (1989), Somos

pedras que se consomem (1995), O amor não tem bons sentimentos (2008) e

Tangolomango (2013).

Ainda que não obedeçam a uma ordem cronológica, visto que outras obras

atravessaram a produção desses romances, os quatro possuem uma unidade temática, na

1
medida em que constituem um palco para personagens que, interconectados e recorrentes,

dão à tetralogia a unidade estrutural necessária: um quadro surpreendente, cruel e visceral,

de vidas cujos destinos se entrecruzam graças à habilidade de um autor experimentado.

Foi com Maçã Agreste que o escritor pernambucano inaugurou a saga sobre o clã

incestuoso, cujos familiares romperam o mais proibitivo dos tabus para garantir (ou até

mesmo acelerar) a própria aniquilação, tendo como pano de fundo, a derrocada da elite

nordestina da cana de açúcar frente à industrialização. O sexo praticado sob o mesmo teto

sugere a tentativa de manter o núcleo familiar coeso diante das mudanças sociais, refletida

em uma pretensa ojeriza de se misturarem com classes “inferiores”.

Da união infeliz do casal Dolores e Ernesto Cavalcante do Rego, seguiram-se mais

três romances, os quais, apesar de independentes, atravessam e entrelaçam filhos e

irmãos. Sua herança? Pares nefastos que instigam o leitor a seguir a incestuosa família,

totalmente chafurdada em culpa, ressentimento, loucura e tragédia. De um livro a outro

as personagens quicam, criando pontes referenciais e novas janelas de entendimento.

Maçã Agreste fala de destruição, sexo e depravação. Nessas páginas, Dolores e

Ernesto têm dois filhos: Jeremias e Raquel. Raquel tem relações sexuais com o pai e

Carrero sugere (do ponto de vista de Ernesto) que há algo lascivo entre mãe e filho, entre

Dolores e Jeremias. A consanguinidade de Jeremias seria a expressão mais pura desse

mundo arruinado. Mas, ainda que esteja imerso em um destino de desencantamento e

angústia, Jeremias dá a impressão de não querer sair dele, como se o merecesse, ou como

se, ao perambular pelas sarjetas do Recife, a angústia de compartir do sofrimento dos

miseráveis deixasse sua dor menor.

Carrero tece essas relações com a maestria e a precisão de um deus brincando com

seu universo. Algumas personagens são restabelecidas em Somos pedras que se

2
consomem, acrescentadas de novas outras, todas resultado de relações incestuosas que se

confirmam no romance de 2007 – O amor não tem bons sentimentos. Desse modo,

Ernesto e Raquel, pai e filha, fruem do corpo um do outro sem grandes problemas,

enquanto o irmão Jeremias alcunha jocosamente a irmã de “a Grande Puta”. À essa altura

o leitor já reconhece a semente de uma nova genealogia, que requer outra maneira de

abordar a corrosão que o incesto é capaz de promover em um universo fechado.

Já os irmãos, Ísis e Leonardo, de “Somos pedras que se consomem”, não se

relacionam sexualmente de modo fortuito; logo, o caso incestuoso não configura um

episódio isolado na trama. Ao contrário, eles formam um casal que, com a chegada do

alemão Siegfried, passa a compor um triângulo amoroso.

Estamos no terreno do segundo romance da tetralogia, todo construído a partir das

próprias formas como a história é contada, com poemas, editoriais de jornal, diários e

várias citações de autores nacionais e estrangeiros, que compõem uma trama enredada,

no centro da qual fulgura Siegfried – um alemão obscuro que toma seu lugar no palco

desumano, truculento, sadomasoquista e criminoso da narrativa, cujo leitmotiv é a

pretensa e tão conhecida ideia de “purificar” a humanidade. Em Somos Pedras, Carrero

carrega nas cores da violência, enquanto demonstra não haver um só modo de enxergar a

realidade ou interpretar os acontecimentos. À certa altura, o romance se transforma em

uma espécie de romance de palavras-cruzadas, bem ao estilo Cortázar ou Milorad Pavitch.

O turbilhão de citações e informações em Somos pedras ocorre na superfície da

temporalidade, deslocando-se junto das lembranças e devaneios de cada personagem e

reavendo episódios repetidos de acordo com novos pontos de vista, em digressões

faulknerianas impecáveis. Leitor declarado de Faulkner, Carrero nunca quis esconder essa

influência e, assim como o uruguaio Juan Carlos Onetti, lança mão das conquistas formais

do autor norte-americano para recontar a derrocada dessa outrora poderosa família


3
utilizando o labirinto de personagens, a complexidade de laços familiares, as descrições

obsessivas, como ganhos de força narrativa.

A narrativa de Somos pedras abrange e alterna vários pontos de vista que vão e

vem, ricocheteando em todas as páginas. Com frequência, esse movimento interpolado

ganha contornos mais definidos no uso variado dos laços e ligações intertextuais e

intratextuais (com as referências a Maçã agreste), na variedade de vozes protagonistas,

na assimilação de fatos e passagens de cunho histórico, no jogo permutativo entre

perversidade e nazismo, mas, sobretudo, na variada e inovadora proposta de leitura

sugerida pelo autor logo no início: linear ou ziguezagueada.

Mas a intenção de Carrero não é puramente formal, e sim a de se ver livre da

linearidade das histórias que conta para explorar, também ou principalmente, os aspectos

à primeira vista desconexos que compõem as tramas paralelas das experiências humanas.

Dessa forma, o autor espera dar mais dramaticidade à sua cosmogonia de derrisão e

agonia.

Os acentos tônicos sobre os ideais do nazismo são com frequência realçados no

decorrer do romance por conta da defesa, feita por Siegfried, do sonho purificador de

Hitler. Essa acentuação não é gratuita, uma vez que um dos cernes da literatura de Carrero

é a vontade de espelhar a violência e a crueldade através das palavras, como forma de

evitar, ou até mesmo inibir, a indiferença social acerca desses fatos, pela via do choque e

do exagero. Daí a grotesca e caricata defesa de Siegfried servir de mola impulsionadora

das ações dos personagens em Somos pedras. O estrangeiro hitlerista não propõe nada

novo: apenas o extermínio de moradores de rua, negros, deficientes físicos e prostitutas.

A tara ariana pela pureza, bem como as distorções e crimes eugênicos dela decorrentes,

são cimentados, sobretudo, por comportamentos sadistas, como se o autor analisasse, no

indivíduo, uma fração especular de algo maior. É nesse sentido que Siegfried, no auge
4
dos seus devaneios, espera criar uma sociedade secreta, “sob o símbolo da cruz, do fogo

e da cinza”, para queimar todos os considerados “indesejáveis”.

No terceiro livro da tetralogia, “O amor não tem bons sentimentos”, Carrero, do

alto de seu domínio da técnica narrativa, coloca um narrador pouco confiável como fiador

da história, até o ponto onde sua personalidade indefinida passa a ser aludida na própria

inconstância da grafia do seu nome (Mateus/Matheus). À essa altura, o autor joga com a

ideia de um duplo dostoievskiano: Mateus/Matheus é um outro diverso dele mesmo, e

com o qual dialoga a todo o momento. Trata-se de uma cisão, de uma fratura de

consciência, que permite um desdobramento da personalidade em uma manobra de

imagens de um espelho onde a fragmentação do indivíduo reflete, também, a

fragmentação do mundo ao seu redor.

Mais uma vez estamos diante de indivíduos derrotados economicamente; uma

derrota refletida em crimes, perda de bens materiais e em uma total pulverização de laços

consanguíneos. Com “O amor”, Carrero retoma personagens anteriores, estendendo as

referências para trás, de volta à família que começou a ser desenhada em “Maçã agreste”

e que ressurge também em “Somos pedras”. A trama parte da recordação da provável

morte de Biba (concebida pelos irmãos Jeremias e Isís), com que Mateus (filho da relação

também incestuosa entre Jeremias e sua mãe Dolores), procura restaurar seu passado

remoto e recente.

A tetralogia fecha com “Tangolomango” e resgata, com tia Guilhermina (que

surge em “O amor”), outra perspectiva sobre a família Cavalcante do Rego. Carrero

inclusive amolda a própria linguagem do romance à consciência da personagem, criando

uma escrita semelhante a um diário em terceira pessoa dessa senhora que, dedicada a criar

o sobrinho Matheus, alimenta desejos reprimidos que irão explodir de vez durante seu

encontro com o Galo da Madrugada (maior bloco de rua do mundo, segundo o Guines).
5
Lido sob a luz retrospectiva dos três livros anteriores, “Tangolomango” parece querer

responder a essa pergunta: o peso do passado de fato determina o destino dos indivíduos?

Ao recorrer a personagens anteriores em novos espaços onde eles possam se desenvolver

mais plenamente, Carrero parece afirmar que não.

A tetralogia “Condenados à vida”, por fim, repisa a tese cruel de um amor capaz

de justificar todas as exclusões, colocando, principalmente nos três primeiros romances,

a civilização como o resultado insuperável da queda das famílias tradicionais. No limite,

a tetralogia encerra uma epopeia que canta com voz áspera o desaparecimento de um

mundo para a ascensão de um novo mundo. E como nenhuma mudança é pacífica, a

violência é pintada sempre um tom acima. O fato é que as personagens da tetralogia

possuem vida – e em determinado ponto da leitura nos pegamos pensando nelas como se

fossem pessoas de carne e osso. Isso só é possível de ser feito se o autor decidir se retirar

por completo de cena. Em outras palavras: quanto mais vida têm as personagens, menos

o autor é necessário. Essa é a lição. Isso o que Carrero consegue.

Você também pode gostar