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Escalpo.

Ronaldo Bressane.

256 páginas.

Editora Reformatório.

A crítica é unânime em afirmar que Dashiell Hammett e Raymond Chandler são


os responsáveis por renovar a novela policial, elevando-a à categoria de arte – fato que
teria forçado a crítica literária de suas respectivas épocas a levar o gênero um pouco
mais a sério. Ao alterarem, sem reservas ou purismos, a fórmula repetitiva da estrutura
básica da narrativa de detetives (já bem gasta pelo uso), Hammet e Chandler livraram
suas personagens do destino de meros ventríloquos dessa mesma estrutura, dando-lhes
complexidade humana e novos destinos.

Sem essa revolução formal e de conteúdo, Roberto Bolaño, por exemplo, não
teria metido a mão na narrativa policial para retratar a lógica perversa das ditaduras
latino-americanas. Compreender a opção de Bolaño (e de outros escritores latinos, como
o cubano Leonardo Padura ou o uruguaio Mario Levrero) pelo romance policial é
enxergar os elos que ligam sua narrativa à representação social do escritor e do
intelectual, e à relação da literatura com o poder e a violência, além do aprimoramento
do próprio gênero, criado por Edgar Allan Poe e seu detetive Auguste Dupin.

Essas questões também atravessam as páginas de “Escalpo”, mais recente


romance do escritor paulistano Ronaldo Bressane. O livro debruça-se sobre as
peripécias de Ian Negromonte, um conhecido quadrinista que, depois de um pé na
bunda, uma acusação de plágio e um acidente durante as manifestações políticas que,
em 2015, revelaram um país em convulsão, aceita o convite de um misterioso escritor
chileno de novelas policiais (chamado Miguel Ángel Flores) para iniciar uma viagem
pela América do Sul, em busca dos filhos de Flores, supostamente desaparecidos no
decorrer da ditadura de Pinochet em 1973.

É que "a todo pé na bunda segue-se um pé na estrada", conforme conclui


Negromonte, na página 13. E em “Escalpo”, o que pesa é isso mesmo: a viagem, o
movimento, a investigação, a casualidade dos encontros, na medida em que o que
organiza de fato todo o caos e o acaso de seus personagens errantes, em constante
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trânsito, é justamente o relato investigativo que, estruturalmente, parodia o estilo noir de
uma história de detetives. Em certa medida, trata-se de uma releitura do gênero policial,
ainda que, ao mesmo tempo em que o homenageie, revele suas limitações e busque
subvertê-lo. Desse pé na estrada, o autor embaralha as falas, as identidades, e a
localização geográfica desses seres à deriva; até que, do Chile a Paraty, passando por
São Paulo, o detetive Negromonte (ou Cisco Maioranos) empreende sua busca pelos
desaparecidos desse grande e violento continente, da qual extrai relatórios cada vez
mais cômicos e estranhos.

Um dos trunfos da escrita de Bressane é frustrar, de propósito, a expectativa do


leitor típico das histórias detetivescas, ao passo em que seu desenvolvimento
desconstrói as regras tradicionais do gênero embora, a princípio, dê a entender que irá
segui-las. A força da escrita de Bressane não está apenas na desenvoltura de suas vozes
e referências, mas em lembranças que, intercaladas, misturam-se com a ação presente de
modo natural, em uma velocidade que mistura tudo sem confundir nada: sexo, paisagens
oníricas, leões-marinhos, e mais uma plêiade de personagens de uma realidade que
surge sempre com ares de mistério, dando a impressão de que seu entendimento
depende do esclarecimento da última página.

Esse esclarecimento chega inacabado (como tem que ser) e revela um continente
marcado por desigualdades sociais e regimes de exceção, onde seus heróis (e anti-
heróis) só encontram a salvação mediante o sexo, a fuga e as drogas, ainda que toda
tentativa de escapar descambe para o mesmo ponto. A chegada à “idílica” cidade de
Paraty encerra o “road book” (definido assim pelo próprio autor) e revela um paraíso
com surto de dengue e dominado por traficantes, para além dos cliques dos turistas e
dos outdoors das sofisticadas feiras literárias.

Em “Escalpo, a violência é o vetor de tudo. O próprio título do livro aponta para


um doloroso procedimento de tortura que acontecia nos centros de detenção dos anos de
chumbo. Bressane consegue, a partir da tentativa de reconstrução de duas histórias (a de
Miguel Ángel Flores e a da própria América Latina assolada pelos generais), entender
nosso passado a partir de um presente esvaziado de sentido.

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