Você está na página 1de 18

Identidade e a Degradação da Carne

Christian Ingo Lenz Dunker

Resumo

A modernidade caracteriza-se por um duplo movimento na construção do corpo. Seu desencantamento e


progressiva colonização como espaço homogêneo à natureza se faz acompanhar de um reencantamento
de sua superfície como imagem. Neste movimento o corpo surge como matriz última do indivíduo
ideologicamente reificado e esteticamente fetichizado. O presente estudo procura mostrar como há
elementos críticos para pensar a corporeidade, como substrato identificatório do sujeito, na noção
medieval de carne. Partimos da hipótese de que tal noção ainda não está totalmente impregnada da
topologia que opõe interioridade e exterioridade para pensar e colonizar o corpo. Tal noção reaparece em
em Lacan com a função teórica de subverter o dualismo moderno, em outros termos que não a oposição
mente-corpo. Nosso objetivo é mostrar como a noção carne pode ser útil para uma teoria social da
identidade, particularmente aquela que se desenvolve nos estudos de Ciampa.

Abstract

1. Introdução:

Em Freud o corpo possui um duplo estatuto. Por um lado ele é uma forma de
objetificação do eu. Um lugar onde o eu apreende-se como tal, como projeção de uma
superfície. O corpo é o lugar onde o eu enuncia radicalmente sua alienação: eu sou isso.
Por outro lado o corpo é também a fonte suposta das pulsões, a mola energética do
sujeito. Este corpo somático absorve para dentro de suas profundezas tanto as
exigências de um certo fisicalismo (Herbart, Helmholz, Fechner) quanto da
naturalização romântica que o aproxima da interioridade enigmática do sujeito (Goethe,
Nietszche).
A ligação necessária entre esta interioridade invisível, porém real, e esta
exterioridade visível, porém ideal é um velho tema na modernidade: o espírito é o osso,
afirmara Hegel; o corpo que domina e submete o eu, afirmara Montaigne. De certa
forma a história da corporeidade moderna é a história de um desencantamento e a
epopéia de um reencantamento. Desencantamento porque o que caracteriza a
corporeidade após o século XVII, e em oposição à antiguidade e ao medieval, é a sua
progressiva e contínua anexação ao universo dos objetos e a racionalidade que os
administra. O corpo é só mais um objeto, banal e destituído de autonomia. Mas se sua
interioridade se objetiva, uma película exterior parece recolher sobre si, de forma
deslocada, o antigo encanto. A imagem do corpo se subjetiva na medida mesma em que
seu interior se tona anódino.
Isso coloca certos problemas para a questão da identidade. Problemas que
pretendo pensar no quadro de um certo debate entre psicanálise e psicologia social.
Segundo a concepção proposta por Ciampa 1 , que tem organizado um conjunto
considerável de pesquisas sobre o tema, podemos pensar a identidade como um
processo que se apreende na história de sua construção. História que se organiza
dialeticamente tomando, portanto, como motor a negação, recíproca e determinada,
entre os termos que lhe constituem.
O caráter de negatividade, próprio da identidade, explica assim a atualização de
formas transitivas onde o eu se aliena progressivamente. Daí a tese de que a identidade
pode ser apreendida em uma metamorfose. Daí o corolário que procurará apreender as
vicissitudes desta mudança da forma valor da identidade a partir de categorias extraídas
da teoria da ação comunicativa proposta por Habermas. Para Ciampa a ação
emancipatória teria por condição uma certa relação com a linguagem considerada como
meio de inclusão e mediação universal. A forma identitária, que não incorpora em si a
negatividade, presente nas inúmeras figuras da alteridade que a habitam e constituem,
torna se assim mera reposição de um personagem – forma sem conteúdo.
Ora, a forma reificada ou fetichizada do personagem é sempre uma imagem
onde o sujeito se aliena em uma forma-objeto. Isso fará com que a teoria pressuponha,
sempre, e por definição, possibilidades de superação desta alienação. Em outras
palavras a possibilidade de metamorfose, - literalmente, ir além de uma dada morphé –
é uma decorrência teórica do conceito de liberdade, subsumido na idéia de
emancipação. Outra implicação da idéia de forma (morphé) é sua oposição àquilo que a
forma sepra, esculpe ou contém, ou seja, a hylé (matéria), concebida como in-forme,
não delimitada, contudo pré existente e em relação potencialmente reflexiva e simétrica
com a forma.
Do ponto de vista da psicanálise a descrição de um processo nestes termos nos
remete imediatamente à teoria do narcisismo em Freud e sua releitura por Lacan na
figura do Estádio do Espelho. A tese do estádio do espelho nos fala justamente de um “
drama que vai da insuficiência à precipitação” 2 , em outras palavras, de uma

1
Ciampa, A C. – A História de Severino e a História de Severina, Brasiliense, São Paulo, 1986.
2
Lacan, J. – O estádio do espelho como formador da função do je, in Escritos, Jorge Zahar, 2000:67.
discordância radical e constitutiva entre o eu e suas formas, pelas quais ele se apreende
e nas quais ele se reconhece. Não há boa forma para o eu humano – no sentido da
fixação de uma identidade estável e perene - justamente porque a apreensão de sua
corporeidade lhe é sempre vacilante. Vacilante pois dependente do olhar do outro,
vacilante porque não apreensível imediatamente, mas duplamente mediada: pela
imagem e pela linguagem. O corpo torna-se assim e desde a origem, um corpo estranho;
forma mas forma precária, unificada por um artifício, um estado da forma. Seu
conteúdo, não deriva sua origem na interioridade corporal mas do olhar em posição de
exterioridade.
Esta figura do corpo estranho, do estranhamento corporal , do desdobramento do
corpo, aparece clinicamente em associação com a construção histórica da histeria desde
a época pré freudiana, em contextos como demonologia, mesmerismo, transe hipnótico
e êxtase religioso. Mas não se poderia reduzir tal figura a uma vicissitude da histeria.
Ela é muito mais uma incidência da divisão do sujeito entre o imaginário e o real que se
poderia pensar como inerente à própria estatura do eu. Por exemplo, como se vê na
seguinte lembrança infantil de Klaus Vianna, o grande bailarino, coreógrafo e teórico da
dança:
“Durante esses anos de infância vivia com freqüência certos estranhamentos de
si: “Meu corpo se tornava ausente. E, com muita dificuldade, meu corpo
começava a reaparecer: do chão, da base, dos pés”. 3
Isso poderia trazer algum apoio psicanalítico à tese genérica de que a identidade
não é uma condição, mas um estado, como a expressão “estádio do espelho” sugere. O
relato do coreógrafo fala de um corpo que gradativamente começa a reaparecer. Em que
lugar o corpo estava antes de reaparecer ? Um corpo ausente é ainda um corpo ?
A passagem ilustra bem o que Lacan chamou de encorpsificação (encorpse). A
expressão neológica é bastante feliz pois remete tanto a “em corpo, no corpo” (encore)
quanto à “cadáver” (corpse) e ainda à “coração” (en core). Além disso, afirma-se que o
drama da identidade humana começa e encontra seu limite na alienação ao seu objeto
mais próximo e mais distante: o corpo. Aqui encontramos um problema: se o corpo é
figura primaz da identidade e se a identidade se organiza pela emancipação, como
emancipar-se do corpo? Como pensar a liberdade, ou a escolha, dado que há corpo ?
Para tanto seria preciso pensar o corpo fora da lógica do instrumento, o que exclui, tanto

3
Borgia, I. – Reflexões sobre o corpo ausente, in Folha de São Paulo, Caderno Mais ! 7 de Abril de 2002.
a dimensão de instrumento de gozo, prazer ou satisfação quanto a dimensão de
instrumento de uma lei pura. Precisaríamos, para tanto, postular um aspecto da
corporeidade que resista a se inscrever como sujeito ou alienar-se como objeto. Este
aspecto real da corporeidade propomos chamar carne, para distingui-lo da corporeidade
imaginária (baseada nos estados do eu) ou simbólica (baseada nos suportes
identificatórios). Tal distinção aparece em Lacan:
“Se trata (...) de reconstituir a via pela qual, não o corpo, senão algo que ele
4
chama a carne do mundo, pode surgir como o ponto original da visão”

2. O Corpo em Diagnóstico

Na clínica psicanalítica há muitas formas de corporeidade: corpo falado, corpo


representado, esquema corporal, imagem corporal, solicitação somática. No entanto há
também momentos em que o corpo aparece em uma realidade mais extensa e direta: o
corpo em ato ou movimento. É o caso então de organizar o estatuto heterogêneo destas
remissões ao corpo, segundo sua etiologia diferencial e segundo sua semiologia própria,
para situar a problemática da carne. Claro está que neste ponto divergem as mais antigas
tradições de estudo sobre a psicossomática psicanalítica e o consenso dos termos é
ainda bastante precário. Esbocemos uma síntese:

a) Formação Psicosomática: o termo foi sugerido por Nasio 5 como uma extensão da
idéia de Formação do Inconsciente, onde se inclui propriamente o sintoma. A formação
psicosomática deve ser contrastada com o paradigma das neuroses atuais (Escola
Francesa de P. Marty) e com o paradigma do Sono-Sonho (Escola Francesa
Contemporânea). Para Nasio é preciso pensar as formações piscosomáticas como
formações do objeto a. Neste caso o evento corporal não faz história, o sujeito não
consegue se lembrar de nenhuma circunstância simbolicamente relevante. Está ali o
fato, geralmente remetido a uma subjetivação indireta, um saber originado no Outro,
médico, psiquiátrico ou mesmo no senso comum ou religioso. Um traço clínico desta

4
Lacan, J. – O seminário livro XI – Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, Jorge Zahar, Rio
de Janeiro, 1988:97.
forma de articulação da memória, sem história é a freqüente associação com um fato
traumático que, não obstante, permanece isolado, como uma espécie de fala outra
aderida como significação em suplência à formação psicosomática. Há uma supressão
dos afetos e uma relativa indiferença à indução de sentido ou de saber sobre o sintoma
(Didier Castanet 6 ). Em geral a apresentação é anódina e crônica, o paciente não associa
livremente, ele não narra, mas relata e descreve. Não há lacunas, interrupções e
fragmentação discursiva. O relato simplesmente se esgota em um certo ponto e pode ser
reiniciado à pedido do analista, mas pouco se acrescente perto da versão inicial. Apresar
disso geralmente encontra-se uma transferência estável e muito responsiva à dimensão
sugestiva (identificação adesiva). Possui conexões com datas e locais com inscrição
simbólica no sujeito e repetições de reincidências típicas (J. Guir 7 ). O desencadeamento
liga-se temporalmente à uma grande ruptura simbólica, cujo estatuto traumático é
incerto. Aliás a ligação mais forte que se observa na literatura é com o
desencadeamento e com a intensificação dos sintomas. Há indícios de uma relativa
fragilidade simbólica (alexitimia, sonhos ausentes ou evacuativos, esvaziamento
subjetivo): psoríase, vitiligo, retocolite ulcerativa, doença de Crom e talvez Lúpus
Eritomatoso.

b) Somatização: o uso deste termo é mais vago e indeterminado do que os demais e


ajusta-se bem aos estudos seminais em psicosomática, desenvolvidos por Franz
Alexander (Escola de Chicago). Aqui se trata da presença de uma alteração orgânica
induzida pelo efeito da angústia ou ansiedade continuada sob o sistema adrenérgico:
gastrite, úlcera, asma, processos alérgicos, alopécia. Deve-se incluir ainda todas as
manifestações corporais cuja origem é indiretamente psíquica, ou seja, diante de uma
atitude, caráter ou esquema corporal que tende a sobreinvestir o conjunto da
corporalidade manifesta-se uma afecção, geralmente em um órgão sujeito a uma certa
complacência somática, também chamado órgão de choque. Neste caso é comum uma
recorrência de manifestações, todas de difícil diagnóstico, com diferenças entre si. Ou
seja, o sujeito adoece repetidamente, diferentemente e tende a ser pouco responsivo ao

5
Nasio, J.D. – Psicossomática as formações do objeto a, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2000.
6
Castanet, D. – Psicosomática e Psicanálise, in Revista Stylus, Fórum do Campo Lacaniano, n
7:2004:121-134.
7
Guir, J. – Psicosomática, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1995.
tratamento médico. Inclui-se aqui certas manifestações da LER (Lesão por Esforço
Repetitivo), problemas articulatórios e psicomotores.

c) Conversão histérica: aqui há sempre uma circunstância anterior que torna erotizável
o órgão, produzindo a condição para a complacência somática. O orgânico abre
caminho para o psíquico. Surge como uma resposta ao desejo do Outro, daí sua relação
direta com modificações na condição intersubjetiva. Representa também uma formação
de gozo (ganho primário do sintoma) bastante responsiva à palavra e às circunstâncias
intersubjetivas. O sintoma rapidamente se instala na transferência, em geral com uma
apresentação hiperintensa e transitória. Aqui há abertura para a associação livre e sua
interrupção deve ser encarada no quadro da resistência. Freud, em Estudos sobre
Histeria 8 indicou que a conversão pode ser:
a) motora: paralisias, impotência sexual, astasias, abasias, parapraxias.
b) sensorial: cegueira, hipersensibilidade, falta de sensibilidade, dores nas
costas, geralmente móveis, certos tipos de enxaqueca e a fibromialgia parecem
ser uma variante deste tipo de conversão.
As conversões, geralmente concebidas como sintomas mais ou menos crônicos
alternam-se com os:
c) ataques histéricos: manifestações agudas, no entanto periódicas. responde à
retomada de um significante elidido (geralmente S1, mas também S2). Exprime
sempre a encenação de uma fantasia de caráter bisexual, etc., são acompanhados
por estados de alteração da consciência e posterior esquecimento. (Freud,
Psicogênese dos Ataques Histéricos) Incluem-se aqui certos tipos apresentações
“convulsivas”, com gestos espásticos, algumas crises de choro aparentemente
imotivadas, agitações psicomotoras, tais como se observa na Disfunção das
Pregas Vocais (quadro que mimetiza os ataques espásticos da asma).

c) Equivalente de angústia: Há uma oscilação proporcional entre formações


conversivas e formações de angústia. Aqui há manifestação motora ou parapraxias
(como tiques nervosos ou a gagueira) que se desencadeia subitamente (neurose de
angústia) ou de forma mais basal e extensa (neurastenia). Destaca-se a hipótese do

8
Freud, S. – Estudos sobre histeria (1893), in Obras Completas de Sigmund Freud V. III, Amorrortu,
Buenos Aires, 1988.
acúmulo da “toxina sexual” com particular importância do percurso de descarga 9 .
Episodicamente responsiva a práticas catárticas ou de relaxamento, sem no entanto
solução do quadro. Há uma abertura rigorosa para a associação livre com ampla
produção de lembranças, porém sem grande trabalho de elaboração. Na transferência
encontra-se um reforço hiperintenso do laço analítico. Este é o paradigma das neuroses
atuais, presente na Escola Francesa (P. Marty). Inclui-se aqui ataques de pânico, suor
frio, taquicardia, opressão toráxica, irritação difusa e permanente, hiperesensibilidade
auditiva, visual ou cenestésica, certas formas de tosse crônica, e também tiques faciais
e corporais.

d) Inibição: há sempre uma circunstância claramente isolável que precipita sua


aparição, uma apresentação pública, uma invocação, por exemplo. Em geral o sujeito
constrói suportes auxiliares para evitar tal circunstância. A inibição, geralmente, se faz
acompanhar de outras vicissitudes no plano do eu: introspecção, timidez, e seus
equivalentes corporais: enrubecimento, rigidez corporal (total ou parcial). Ela é uma
afetação de uma função (como a motilidade, ou a respiração, por exemplo) que se torna
10
erotizada . A inibição caracteriza-se por uma falta de resposta do órgão, sendo,
portanto, um sintoma negativo. Pode ocorrer em certos casos de impotência sexual,
distúrbios da ereção ou nas inúmeras formas de frigidez feminina.

e) Hipocondria: historicamente associada às formações de angústia distingue-se desta


pela posição do Outro. Não há propriamente uma demanda para além do
reconhecimento. Acusa uma problemática narcísica de outra ordem. Inclui certas formas
de insônia, preocupação corporal e da apercepção corporal, presentes, por exemplo na
bulimia e na anorexia. Inclui certas manifestações iatrogênicas como a Síndrome de
Münchausen, e a Síndrome de Ganser (compulsão a fingir uma doença). Há uma
“hemorragia da libido” que exige ser contida pelo apelo ao testemunho do outro.

É importante salientar a regularidade destas diferentes formas de manifestação


clínica do corpo. Tal regularidade, que permite uma relativa estabilidade diagnóstica,

9
Freud, S. – Alguns motivos para separar da neurastenia uma síndrome particular qualificada de neurose
de angústia (1895), in Obras Completas de Sigmund Freud, V. IV, Amorrortu, Buenos Aires, 1988.
10
Freud, S. – Inibição, sintoma e angústia (1925, in Obras Completas de Sigmund Freud, V. XX, Buenos
Aires, 1988.
contrasta com reconhecimento, presente em quase todos os casos, de que as formas de
representação e expressão do corpo soam sempre insuficientes para o próprio sujeito.
Virtualmente cada uma destas condições traz consigo uma narrativa cuja característica é
o seu não inteiro reconhecimento pelo outro. O hipocondríaco que jamais se satisfaz
com a forma como apresenta seu corpo em seus estados indiscerníveis. O ataque de
pânico que logo se apresenta sob a epígrafe “se você não teve jamais compreenderá
como é”. A bela indiferença histérica diante do médico impotente. O silêncio renitente
do paciente psicosomático. A mudez vacilante do que sofre de uma inibição. Todas
estas formas compreendidas em um espaço de corporeidade que não precisa ser pensado
como pré-reflexivo, anterior à linguagem ou puramente vivencial. Ou seja, a
inadequação do corpo ao simbólico não revela apenas uma negatividade no interior do
simbólico ou um excesso imaginário. Há algo de real, e não apenas de indizível, na
semiologia corporal psicanalítica. Neste espaço indiscernível, no duplo sentido do que
não se pode contar e do que não encontra um centro, podemos sugerir a introdução da
idéia de carne. Uma idéia que aparece a princípio em Lacan para reter o caráter não
inteiramente articulável do desejo:
“... esse desejo está situado ali entre o Outro como lugar puro e simples da
palavra e o outro enquanto ser de carne a cuja mercê estamos para satisfazer nossa
demanda.” 11
Para falar da origem deste processo de constituição da demanda e do desejo
Lacan recorre a uma espécie de mito. O mito da entrada no campo simbólico à partir da
necessidade que lhe precederia geneticamente (mas não logicamente). No contexto
desta hipótese Lacan afirma que é sob a forma de uma libra de carne que o sujeito
“paga” sua entrada no campo simbólico. Isso sugere que a carne é uma espécie de
resíduo necessário para a constituição de um corpo. A carne é corpo antes que haja
corpo, propriamente dito, ou seja, como função de identificação imaginária do sujeito.
Como todo mito ele tenta capturar a origem impossível de um processo. No caso do
mito lacaniano da carne esta origem impossível esboça uma teoria da contra-
identidade, ou seja, isola uma região da subjetividade que não é dominada pelo empuxo
à identidade e á identificação.

11
Lacan, J. – O Seminário, livro V – As Formações do Inconsciente (1958), Jorge Zahar, Rio de Janeiro,
2001:45.
3. O Corpo na Dialética do Ter e do Ser

O dilema “tenho um corpo”; “sou um corpo” ou “estou envolvido ou possuido


por um corpo” não escapa à alienação primária que é fazer disso que é um sujeito um
objeto, uma forma-imagem na qual posso me reconhecer. Um modo bastante
simplificado de traduzir o problema pode ser encontrado no chamado paradoxo do
comediante proposto por Denis Diderot. O iluminista perguntava qual seria o melhor
modelo para pensarmos o ator. O legítimo ator é aquele que tecnicamente sabe
controlar todos os movimentos de seu corpo, a impostação de sua voz e as mais sutis
manifestações do gesto ou, ao contrário, o ator por excelência é aquele que vive seu
papel, aquele que en-carna seu personagem de tal forma que é capaz de chorar com ele
e realmente rir quando este se alegra. Qual é a verdadeira mímesis: a do fingidor que
finge ou a do fingidor que finge que finge ... a dor que deveras sente ?
No primeiro caso, o do nosso ator de pura técnica e indústria, que no fundo pode
estar pensando na contabilidade doméstica enquanto representa a mais tórrida cena de
sedução, o axioma prevalente é: eu tenho um corpo. No caso inverso, o do ator
“romântico”, ele torna-se o personagem que está representando, ele é tomado por seu
personagem a tal ponto que pode sair de cena mas continuar a agir como ele. Pode-se
dizer que o axioma aqui é: eu sou um corpo.
Observe-se que no primeiro exemplo o corpo conta fundamentalmente como imagem
de corpo. Não como imagem destacável que é o que lhe daria um tom essencialista, mas
como imagem em uma trama narrativa. No segundo exemplo a intuição nos leva a falar
de um corpo “encarnado”.
A dialética entre ser um corpo e ter um corpo pode nos revelar inúmeras
alternativas de subjetivação que a teoria da identidade como metamorfose parece tentar
mapear. No entanto o que ela não pode é pensar este corpo, ele mesmo, como um
personagem da narrativa. Este é o primeiro ponto que pretendo destacar: o corpo como
imagem, reificado ou não, mercantilizado ou não, é ao mesmo tempo, um “outro
personagem de mim mesmo” e uma parte, um adereço deste “mesmo personagem que
sou eu”. O corpo conta como conjunto e também como parte.
Não é isso que vemos na ideologia contemporânea da corporeidade ? Uma
imagem corporal que ganhou o estatuto de personagem independente: ela não é mais
designação de existência, mas a parte que se impõe ao personagem. A imagem tornou-
se um personagem autônomo – uma imagem sem carne. É o que nos mostra Oscar
Wilde em O Retrato de Dorian Gray: uma imagem num quadro envelhece, em vez, do
protagonista. No entanto o protagonista é definido exatamente por esta relação de
substituição pela imagem. É o que nos indica ainda o trabalho crítico da fotógrafa
americana Cindy Sherman: corpos que vão se degradando até a putrefação. No processo
os adereços da cultura de massas vão ocupando o espaço antes reservado ao
encantamento da imagem. A imagem se desvitaliza no kitch na medida em que a carne
irrompe na superfície do corpo. A carne aparece por degradação do corpo. Outro
exemplo do mesmo processo é o que se poderia chamar de estética do ferro-carne,
testemunhada em filmes como Blade Runner e Exterminador do Futuro. Formação
ideológica de colonização do corpo pela afirmação de seu isomorfismo à matéria mais
icônica da baixa modernidade: o ferro. A carne aparece por negativização do corpo.
Uma espécie de vingança da hylé.
Salientemos que estas duas formas de precipitação da carne, a degradação e a
negativização correspondem ao movimento inverso que salientamos no início deste
trabalho a propósito do corpo na modernidade e na psicanálise: positivação do corpo
interior e elevação do seu valor de superfície exterior. Em seguida vimos como a
psicanálise parece ter absorvido esta dupla dimensão, simbólico-imaginária, tanto em
sua metapsicologia, quanto em sua diagnóstica. Em terceiro lugar sugerimos que as
diversas formas de identidade, pensadas no quadro da psicologia social, prendem-se
também a esta articulação, nas figuras do corpo-personagem e do corpo-autor. Vejamos
agora como a articulação simbólico-imaginário e seu correlato nas diferentes formas de
mediação, são insuficientes para pensar esta outra forma de corporeidade: a carne.

4. A Carne como Degradação do Imaginário

Supondo-se que o estádio do espelho não é um estágio, mas um estádio, que


permanece como matriz articuladora do narcisismo do sujeito, visto que tal estado
refere-se primariamente ao corpo, o que devemos então entender por corporeidade da
carne se procuramos para esta noção uma chave crítica ?
Como se sabe a noção de imaginário em Lacan possui duas versões
relativamente distintas. No início da obra o campo do imaginário pode ser associado à
experiência de alienação, dependência e agressividade que caracteriza a estrutura
paranóica do eu. Tal experiência decorre de certas propriedades do olhar materno.
Olhar, que funcionando ao modo de um espelho, permite que a criança se reconheça
como um eu. O estádio do espelho funcionaria assim como uma matriz formadora da
identidade, entendida como uma rede incoerente de identificações. Portanto falar em
imaginário é falar de circuitos identificatórios. Mas o que é a identificação para Lacan ?
Uma das definições possíveis afirma que:
“uma identificação é a transformação que se produz no sujeito quando ele
assume uma imagem.” 12
Quero enfatizar aqui dois aspectos desta definição. O primeiro reside no termo
transformação, ou seja, uma identificação e portanto uma forma de identidade, é
basicamente uma transformação, uma modificação, um trânsito que se opera no sujeito,
e não um estado fixo e essencial a que ele se reduz ao se reconhecer nos objetos.
O segundo aspecto que me interessa destacar é que esta transformação ocorre
diante de um ato bastante específico, o ato de assumir. Nem todas as imagens são
assumidas pelo sujeito, e não é diante de todas as imagens que o sujeito se
transforma.De todas as imagens disponíveis há algumas que parecem ter precedência
sobre outras, e estas são as imagens que podemos inferir ligadas ao corpo.
Teríamos assim uma corporeidade imaginária, plenamente compatível com a
noção de eu em Lacan, tal qual ele apresenta no artigo “O Estádio do espelho como
formador da função do eu (Je) tal como nos mostra a experiência psicanalítica” 13 . O
título condensa muito bem a tese. Trata-se de pensar um estado que possui um valor
formativo. Lembremo-nos do peso desta expressão na tradição dialética. A formação é a
formação do espírito, tal qual, por exemplo, Hegel nos narra na Fenomenologia do
Espírito. A formação (Bildung) é o que aparece na idéia de metamorfose, isto é,
preservação do processo no interior do produto e negatividade do agente no interior de
sua alteridade. Trata-se de pensar o eu como uma função. Em outras palavras como uma
função identificatória onde produto e processo se sobrepõe. Mais ainda, trata-se de
como, á partir de tal função, não identificar o eu com a totalidade do subjetivo muito
menos com a totalidade do ser. Eu é só função, não ontologia ou estrutura.

12
Lacan, J. – O estádio do espelho como formador da função do je, in Escritos, Jorge Zahar, Rio de
Janeiro, 2000:57.
13
Lacan, J. - O Estádio do espelho como formador da função do eu (Je) tal como nos mostra a
experiência psicanalítica, in Escritos, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1998.
Em outras palavras, a constituição do sujeito prescreve que ele se indague, em
um dado momento, sobre o estatuto de realidade destas imagens, ou seja, sobre o
fundamento não especular desta especularidade. Esta indagação confere a tais imagens
um valor simbólico. Tais imagens representam simbolicamente o desejo do outro na
medida em que são incorporadas, lidas ou transcritas como significantes. O segredo da
imagem é portanto o significante que a representa, o nome que a unifica, mas também a
divide e desloca.
Apoio-me aqui em algumas teses de Judith Butler, uma autora pós-lacaniana que
vem se interessando pelo tema do corpo, do gênero e da sexualidade em psicanálise.
Para Butler 14 é preciso desconstruir a idéia de que o corpo preexiste à aquisição de seu
significado sexual. Tal idéia remonta a uma série de dicotomias metafísicas, desde a
tradicional entre mente e corpo, mas também seu desdobramento em termos de cultura e
natureza ou superfície e inscrição.
Pode-se depreender do trabalho de Butler três dimensões diferentes da
corporeidade imaginária: a anatômica (posto que “o orgânico” é também uma
construção histórica), a identidade de gênero e a performace de gênero. A identificação
de gênero corresponde a identificação com uma fantasia de uma fantasia (metafantasia
). O gênero é uma imitação sem origem. Assim a identidade de gênero deve ser pensada
como uma fluidez significante, sujeita a resignificação e recontextualização. Estas três
versões da corporeidade haveriam sido colonizadas por matrizes de fixação simbólica,
ideologicamente orientadas, a forma-heterosexual, a forma-androcêntrica e a forma-
patriarcal.
Mesmo Foucault teria sucumbido a este problema com a idéia de que “o corpo é
a superfície inscrita pelos acontecimentos”. Trata-se de um drama único de dominação,
inscrição e criação que nos fazem olhar para a história como esta destruição sacrificial
do corpo. Modelo de história com o qual Freud concordaria e que reencontraríamos em
Nietszche para quem o corpo são os valores culturais inscritos no corpo. Nesta vertente
o corpo é, portanto, uma superfície, um meio, uma página em branco sobre a qual se
inscrevem as significações, e particularmente as de gênero. Reencontramos aqui o tema
da escrita do corpo como reedição da dicotomia forma-matéria.
Uma imagem se define pela sua borda, por sua fronteira, pela sua zona de
transição para outra imagem. No caso da imagem do corpo são estas fronteiras, entre o

14
Butler, J. – Problemas de Gênero, record, Rio de Janeiro, 2002.
dentro e o fora, entre o masculino e o feminino, ou entre legítimo e o ilegítimo, que se
tornam fonte de perigo e poder. O corpo, como diz Butler é uma “sinédoque para o
sistema social” 15 e o fato de ele sempre ter sido evocado como metáfora fundamental na
teoria política e na sociologia deveria ter nos alertado sobre isso. O corpo possuiria esta
propriedade, como vimos, de se apresentar como falta, de ser inscrito e marcado com
significantes, uma folha de papel, ou uma massa amorfa moldada pela lei e pelos
discursos. Daí o corpo pode ser lido como um texto social e intersubjetivo.
É contra esta concepção que nossa crítica deve trabalhar. Afinal é essa
concepção que tem dominado as representações contemporâneas da corporeidade como
lugar de liberdade e escolha. Das tatuagens, piercings, cirurgias e modelagens até as
formas mais agudas da body-art e do discurso médico-estético, há uma tendência a
explorar a corporeidade como um espaço infinitamente maleável. Toda a concepção
pós-moderna de corporeidade se fixa nesta metáfora do corpo como imagem sem forma,
matéria prima para a técnica e livre para a sua transformação e criação. Mesmo a idéia,
consensual na psicanálise, de que a criança nasce em um banho de linguagem, que a
“esculpe” e delimita, é uma idéia que merece ser revista neste quadro crítico.
Para Butler são os atos, gestos e desejos que produzem, por efeito, a identidade
do corpo e não o contrário. O corpo não possui um estatuto ontológico diferente dos
atos que constituem sua realidade. O corpo e o gênero no qual este corpo é capturado é
performativo. Coextensivamente temos uma flexibilização das identidades. É esta série
de performaces que produzem a ilusão de uma identidade que atuaria como causa.
Podemos distinguir então duas dimensões diferentes da corporeidade imaginária:
a identidade de gênero e a performace de gênero. A identificação de gênero corresponde
a identificação com uma fantasia de uma fantasia (metafantasia). O gênero é uma
imitação sem origem. Assim a identidade de gênero deve ser pensada como uma fluidez
significante, sujeita a resignificação e recontextualização. No fundo a teoria de gêneros
defendida por Butler é uma teoria da contra-identidade sexual. Uma concepção que
procura desintegrar toda e qualquer forma de ontologização ou naturalização das
posições sexuais. O que Butler deixa de lado nesta operação é o potencial crítico da
noção lacaniana de Real, como dimensão possível da corporeidade, ou seja, aquilo que
do corpo é irredutível tanto à imagem quanto ao discurso, ou seja, a carne.

15
Op. cit. p. 102.
4. A Carne como Exterioridade do Corpo

Este corpo, articulado entre simbólico e imaginário tem a matéria própria de uma
narrativa (ou drama) e a estrutura, ou forma, própria de um discurso. Em relação a ele
retornemos ao primeiro fato já considerado: ele me é inacessível (em sua totalidade)
direta e imediatamente. Não posso, por exemplo, enxergar minhas próprias costas. Não
posso me enxergar, olhando para o outro. Os recursos que tentam suplantar
tecnicamente tal impossibilidade, como a fotografia, a pintura e demais meios de
representação, introduzem um intervalo temporal e espacial onde sou projetado na
mesma tarefa de me reconhecer em outra coisa que não eu mesmo e enquanto eu
mesmo. Aí temos dois movimentos.
Só posso reconhecer meu corpo quando o reconheço pelo olhar do outro. Mas
esse outro não é um espelho neutro. Ele é um espelho “ideológico”. Ele não me mostra
apenas a imagem de mim mesmo como corpo, mas também o que ele quer, deseja ou
exige desta imagem. Este espelho “ideológico” me devolve tanto aquilo que eu sou,
quanto aquilo que eu não sou, quanto aquilo que eu deveria ser.
Isso produz uma insatisfação constitutiva, um estado de discordância com o
“corpo próprio” ou ainda um “desconhecimento” de si neste corpo, que se poderia
prolongar para a identidade. Estou afirmando com isso que a identidade é sempre virtual
e também que ela contém uma patologia insuperável: o desconhecimento que ela produz
ao afirmar-se. Por que não pensar a metamorfose, na corporeidade, como uma mudança
que se produz no sujeito quanto este assume uma imagem ? Assunção que lhe permite
dizer – “ Eu sou aí. !”, no espaço restrito do ato no qual se dá esta assunção. Assunção
que, como os diversas narrativas da corporeidade mostram, traz consigo efeitos no
plano dos afetos que vão do júbilo à agressividade. Mas, para poder-se reconhecer em
uma imagem é preciso deixar de fora um ponto desta mesma imagem, produzir um
ponto de desconhecimento de si, o lugar de onde se vê. Ora, este ponto de
desconhecimento, no nível do sujeito, é correlativo de uma perda na esfera da própria
corporeidade.
Esta “não totalidade” esta “não integração” não precisa ser pensada como
herdeira de um dualismo dicotômico de extração cartesiana. Basta que a tomemos como
uma instância de contra-identidade. Por outro lado não penso que ela seja inteiramente
uma contingência ideológica. Ao contrário a ideologia a desconstruir é, hoje, em termos
de corporeidade, a ideologia da complementação. Seja ela conjunção bio-psico-social,
seja ela conjunção corpo-mente. Nada mais ideológico do que pregar a totalidade do
sujeito ali onde ele por definição de aliena.
Esta tese, da discordância fundamental do imaginário ao real poderia ser
entendida como uma espécie de “motor da metamorfose” – uma espécie de causa
estrutural da metamorfose. Em outras palavras: é preciso “mudar de forma” porque a
forma me escapa, porque a forma não me é completamente acessível e porque forma e
matéria deixam de lado a carne.. Não porque há um abismo entre mente e corpo a ser
superado, mas porque há uma irredutibilidade entre o si mesmo e o outro, uma
discordância entre imaginário e simbólico. O cartesianismo, assim como o anti-
cartesianismo, incorrem no mesmo equívoco que é o de pensar a corporeidade no
quadro de uma topologia dominada pela alternativa entre interior e exterior, uma
corporeidade em forma de “saco”, que afinal é coextensiva da emergência histórica da
categoria de indivíduo (a mônada de Leibnitz, por exemplo). Em alternativa a este
modelo é preciso pensar uma corporeidade que reconheça o corpo como dalética entre
interioridade projetada e exterioridade subjetivada, mas que, além disso, seja uma
corporeidade que reconheça o caráter não dialetizável da carne.
A carne é o que falta ao corpo para se totalizar e que por definição deve ser não
especularizável, ou seja, não cabe na imagem. Zizek passa por esta idéia ao comentar a
presença do corpo na cinematografia de David Linch:
“Na ordem simbólica, não estamos realmente nus mesmo quando estamos sem
roupas, já que a própria pele funciona como “vestimenta da carne”. Esta suspensão
exclui o real da substância vital, sua palpitação; uma das definições do real lacaniano é
que ele é o corpo esfolado, escalpelado, a palpitação da carne vermelha, viva.” 16
Carne designa assim tanto esta interioridade exteriorizada, o espaço vazio de
negativização da imagem, quanto esta experiência testemunhada pela mística medieval,
como exterioridade corporal. O êxtase - tal como aparece desde São Bernardo e as
místicas medievais, até Santa Teresa de Ávila e as visionárias do barroco - traz consigo
esta idéia fundamental de uma corporeidade exterior (ao simbólico), mas não externa
(ao imaginário). Lugar de uma experiência dolorosa e gozoza, de estigma e

16
Zizek, S. – A lâmina de Linch, in Para ler o Seminário XI, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, p. 220.
arrebatamento, mas, sobretudo, de difícil descrição. Por exemplo, como na seguinte
passagem do Livro da Vida de Santa Teresa:
“Vi que trazia nas mãos um comprido dardo de ouro, em cuja ponta de ferro
julguei que havia um pouco de fogo. Eu tinha a impressão de que ele me perfurava o
coração algumas vezes, atingindo-me as entranhas. Quando o tirava parecia que as
entranhas eram retiradas, e eu ficava toda abrasada num imenso amor de Deus. A dor
era tão grande que eu soltava gemidos, e era tão excessiva a suavidade produzida por
esta dor imensa que a alma não desejava que tivesse fim nem se contentava senão com
a presença de deus. Não se trata de dor corporal; é espiritual, se bem que o corpo
também participa, e ás vezes muito. É um contato tão suave entre a alma e Deus que
suplico à Sua bondade que dê esta experiência a quem pensar que minto.” 17

5. Conclusão

Este trajeto sugere pensar a corporeidade como uma situação de permanente de


duplo descentramento, entre o sujeito e seu corpo, e entre o corpo e a carne.
Descentramento que aparece:
(1) temporalmente: pela antecipação (o corpo que eu terei), pelo atraso (o corpo que eu
teria tido) e pela finitude (o corpo que será negado como carne).
(2) espacialmente: pelos marcadores que o fazem um “objeto” na paisagem da infância,
um “traço no cenário”, um “ideal na fantasia” (degradação da carne em corpo).
A teoria da identidade como metamorfose, proposta por Ciampa, teria algo a
ganhar, segundo penso, ao reconhecer na corporeidade a carne como núcleo irredutível,
como uma anomalia para a marcha de incorporação simbólica dos processos
comunicativos. Seria útil, neste sentido, se a noção de estado fosse assimilada ao seu
campo conceitual. A identidade como referida também a um estado poderia nos permitir
visualizar algumas diferenças significativas nas configurações da alienação. Por
exemplo, poderíamos tomar algumas categorias propostas por Ricoeur 18 para,
aproximá-las das concepções de formas de identidade e sintetizar nosso conceito de

17
In Borges Nunes, A. – Do Recato da Clausura ao Turbilhão do Êxtase – Tese de Doutorado, Instituto
de Psicologia da USP, 2001.
18
Ricoeur, P. – O Si mesmo como Outro, Papirus, Campinas, 1998.
carne. Há três acepções de identidade que representam distintas formas de absorção do
tema da corporeidade e de exclusão da carne:
(1) Identidade idem: reposição da imagem como objeto mesmo. Aqui a identificação se
organiza em torno da pergunta “o que sou ?”. O corpo é considerado como imagem e
assume valor de personagem autônomo; discordante ou discordante (anamórfica) em
relação ao sujeito. A carne é degradada à condição de mero objeto, ou seja, cadáver.
(2) Identidade ipso : reconhecimento e assunção da imagem como própria. Aqui a
identificação se organiza em torno da pergunta “quem sou ?”. O corpo é considerado
como uma imagem investida de valor simbólico para o outro e, portanto, é um traço do
personagem. A carne é uma negativizada pelas operações simbólicas de inscrição,
nomeação e narrativização.
(3) Contra identidade: experiência do caráter não especular no interior-exterior da
corporeidade. Encontro com a carne como dimensão corporal mais além dos processo
de subjetivação e socialização que constituem e mantém aberta a demanda de
identificação.
Em suma o que estamos propondo é que a noção de carne, como figura teórica
do que Lacan chamou de Real, represente uma contribuição suplementar à dialética
entre simbólico e imaginário que compõe as formas de identidade na teoria em questão.
Uma aproximação entre a teoria social da identidade, representada pelos trabalhos de
Ciampa, e a concepção psicanalítica de corpo, representada pelos estudos lacanianos,
deve estar atenta, portanto, ao potencial crítico da noção de Real, aqui apresentado a
partir da noção de carne.
Christian Ingo Lenz Dunker
Instituto de Psicologia da USP
Programa de Pós Graduação em Psicologia Universidade São Marcos,
R. Abílio Soares, 932 Paraíso São Paulo SP
CEP 04005-010
chrisdunker@uol.com.br

Você também pode gostar