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A Diáspora cristã-nova açoriana e madeirense para o

Brasil Colonial e seus reflexos no Rio Grande do Sul.


Sérgio Mota e Silva
in Santa Inèze Domingues da Rocha, AÇORIANOS NO RIO GRANDE DO SUL" Edições Est
e Caravela, pág. 78 - 99, Porto Alegre, RS, 2005

I – O TRIBUNAL DA INQUISIÇÃO EM PORTUGAL

O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição em Portugal foi instituído, definitivamente,


depois de diversas tentativas, pela Bula do Papa Paulo III, em 23 de maio de 1536, isto
é, quarenta anos após a "expulsão" dos judeus das terras lusitanas, em 5 de dezembro
de 1496, por édito promulgado pelo Rei D.Manuel I, em Muge, próximo a Lisboa.
D.Manuel, como seus antecessores, sempre protegeram os "seus" judeus, mas devido
a seu interesse em casar-se com uma princesa espanhola, aceitou a condição que lhe
foi imposta pela noiva: a expulsão dos judeus de Portugal. Entretanto, a vontade do rei
não era essa já que os judeus emprestavam dinheiro à Coroa e lhe pagavam muitos
impostos. D. Manuel disse que daria barcos para quem quisesse sair do Reino, o que
foi feito para poucas famílias abastadas, entre elas as famílias de Abraham Zacuto,
cosmógrafo, matemático e filósofo que aperfeiçoou as Tábuas de Navegação criando o
Almanach Perpetuum, trabalho que permitiu o desenvolvimento das navegações
portuguesas e a de Isaac Abravanel, banqueiro. A grande massa dos judeus de Lisboa e
arredores, num total de aproximadamente vinte mil pessoas, ficou "a ver navios", isto
é, sem os barcos prometidos pelo rei. Era o que o monarca queria e ordenou aos
sacerdotes católicos que batizassem a todos os que estavam na Ribeira à espera dos
barcos que não chegaram. Os cronistas da época contam que o desespero era grande
entre judeus devotos. Os infelizes judeus portugueses foram arrastados a pia batismal
ou simplesmente lhes era jogada a água benta na cabeça para que se tornassem
cristãos. Houve mães que jogaram seus filhos ao mar ou se suicidaram rejeitando o
chamado "batismo em pé". É que os filhos até catorze anos eram arrancados dos
braços das mães e entregues a famílias cristãs para adoção ou eram degredados para o
arquipélago africano de São Tomé, onde grande parte morreu devido às condições
inóspitas daquelas ilhas, chamadas à época as dos Crocodilos.

Foi assim o surgimento dos cristãos-novos em Portugal. Ao serem batizados, tomavam


o nome do padrinho, ou traduziam seus nomes hebraicos para o português, como
Jacob Shalom tornou-se Thiago da Paz, havendo transformações de nomes de toda a
ordem, tornando-se hoje, mais difícil a pesquisa para se saber quem descende de
judeus. Eles adotaram, praticamente, todos os sobrenomes portugueses, inclusive
nomes de árvore como Carvalho, e de animais como Leão e Lobo símbolos totêmicos
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das tribos de Judá e de Benjamim respectivamente, Passarinho, tradução de Zippor,
nomes de cidades como Porto, Lisboa, Almada além de outros critérios. Um batismo
famoso foi o de Gaspar da Gama, cujo nome verdadeiro não se tem certeza, o
intérprete de Pedro Álvares Cabral, o primeiro cristão-novo a pisar oficialmente o solo
brasileiro. Ele foi encontrado em Angediva, Índia, em 1498, quando Vasco da Gama lá
chegou pela primeira vez descobrindo o caminho para as Índias, com o nome de Yusuf
Adil, dizendo-se natural da Polônia e falando vários idiomas, entre eles o espanhol.
Vasco da Gama obrigou-o a ser batizado como católico, oferecendo-se como padrinho
e dando-lhe, daí em diante, o nome de Gaspar da Gama. Embarcado para Portugal sem
a família, já que sua mulher recusou-se ao batismo e fugiu, Gaspar tornou-se famoso
na Corte portuguesa onde era conhecido como Gaspar das Índias e ganhou muitas
mercês. Convocado por Cabral integrou a frota como marinheiro e intérprete, ou
"língua" como chamavam na época. Mais tarde envolveu-se, Gaspar da Gama, com o
contrabando proibido de Bíblias hebraicas para as sinagogas orientais, principalmente
a de Cochim, a mais antiga do Oriente em funcionamento desde o Século XVI até os
dias atuais. Essas bíblias, rolos contendo em hebraico os cinco primeiros livros da Bíblia
e que se chamam Torá e no plural Torot, tinham sido confiscadas das sinagogas de
Lisboa e de outros lugares do país. Mas Gaspar safou-se destas acusações e teve uma
vida de fidalgo em Portugal. A solução dada por D. Manuel foi cruel para os judeus
portugueses, que desde épocas imemoriais viviam em Portugal talvez trazidos pelos
romanos. Em 1300, na tomada de Santarém aos mouros, foi encontrada uma sinagoga
na Judiaria, como eram chamadas as comunidades judaicas no território luso, daquela
cidade. Na verdade existiam Judiarias, também chamadas de Alfamas, ou Rua dos
Judeus, em praticamente todas as cidades lusitanas. Em Lisboa chegou a existir três
comunidades, cada uma com sua escola, açougue casher, que segue as leis dietéticas
judaicas, sinagoga ou esnoga como denominavam os judeus lusitanos e com seu
Arrabi-Mór, o rabino chefe. A comunidade judaico-portuguesa era estimada em torno
de 100 mil pessoas para uma população geral de um milhão de habitantes, tendo sido
acrescida em 1492, quando da expulsão dos judeus da Espanha, de outros 100 mil.
Conforme estimativas da época, formavam um quinto da população portuguesa,
muitos deles ricos banqueiros ou mercadores, mas, em sua maioria artesãos, alfaiates,
sapateiros, armadores, boticários, médicos, ferreiros etc.

Os cristãos-novos viveram anos sem serem molestados, muitos deles praticando sua
religião em casa, até o surgimento do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição em
Portugal em 1536, instituição que já existia na Espanha e tomou os moldes desta. As
Inquisições surgiram com as heresias praticadas no Sul da França (Cátaros e
Albigenses) e mesmo na própria Roma. A heresia era tudo aquilo que contrariasse os
cânones católicos, um afastamento dos dogmas da Igreja Romana. Tendo sido sempre
reprimidas com força e violência pelas autoridades eclesiásticas. Morrer queimado na
fogueira era a pena maior, às vezes, queimados vivos, mas na maioria das vezes já

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garroteados. As penas eram muitas, entre elas passar o resto da vida vestindo os
Sambenitos, que eram roupões compridos com dizeres e desenhos de insígnias de fogo
e demônios. Depois da morte dos penitenciados, esses Sambenitos eram pendurados
nas Igrejas sempre identificados com o nome de quem os usou, para que seus
descendentes ficassem com fama de judeus para o resto de suas vidas. Eram
penitenciados também com a pena das galés, remando ou trabalhando nas naus, por
anos ou para sempre, isto é, até morrer. A melhor pena era o desterro para o Brasil ou
para as colônias portuguesas na África. Nesses territórios colonizados pelos lusitanos,
os cristãos-novos tinham mais liberdade, e não enfrentaram tribunais inquisitoriais,
tendo apenas recebido, como no Brasil, nas Ilhas Atlânticas (Arquipélago dos Açores,
Madeira, São Tomé e Príncipe) e Angola, Visitações, que consistiam em visitas de
bispos com poderes para receber denúncias de práticas das religiões: judaica,
maometana, protestante, e ainda, feitiçaria, bruxaria, blasfêmia, sodomia, solicitação,
e outros "delitos" menores. O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição só foi abolido em
Portugal em 1820.

II – OS CRISTÃOS-NOVOS NO BRASIL

Depois do descobrimento, quando Gaspar da Gama aqui desembarcou, os cristãos-


novos não pararam de chegar ao Brasil. Logo em 1502, o Brasil foi arrendado a um
consórcio de comerciantes cristãos-novos comandados por Fernando de Noronha,
descobridor da ilha que leva hoje seu nome. Eles exploraram, numa espécie de
contrato de risco, o comércio de pau-brasil por alguns anos até que a Coroa se
interessasse mais pelo novo território descoberto, uma vez que os olhos dos monarcas
lusitanos estavam voltados para o Oriente, especialmente a Índia, de onde vinham as
especiarias vendidas em toda a Europa. Em seguida, 1516, com a implantação das
feitorias na costa e os engenhos de açúcar, chegam mais imigrantes e degredados
portugueses, entre eles, muitos cristãos-novos. Os chamados degredados, em sua
maioria, eram penitenciados pela Inquisição cujo delito era ter atentado contra fé
católica e os costumes então vigentes e não a escória de Portugal como querem fazer
crer algumas pessoas. Esses cristãos-novos conheciam o trabalho da moagem de
açúcar, da Ilha da Madeira ou da Sicília, enriquecendo nesse trabalho como donos de
engenhos no Nordeste brasileiro. Esta riqueza talvez tenha sido o fato que despertou a
cobiça do tribunal inquisitorial que tentou, mas não conseguiu ser implantado no país.
O que de fato ocorreu foram as Visitações do Santo Ofício, sendo a primeira em 1591-
1595 na Bahia e em Pernambuco, chefiada por Heitor Furtado de Mendonça.
Seguiram-se outras em 1599 e 1610, em Olinda e Salvador, respectivamente, quando
foram denunciados e presos centenas de cristãos-novos. Durante esse período, em
1605, houve um grande perdão geral em Portugal aos cristãos-novos, permitindo,
inclusive, sua saída legal do país para as colônias. Em 1618, o bispo visitador D. Marcos
Teixeira, recebeu a denúncia de 134 pessoas, sendo 90 delas pela prática do Judaísmo.
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Entre eles estava Simão Nunes de Mattos, que além de judaizar, praticar a religião
judaica, possuía uma Sefer Torá, livro sagrado dos judeus. Foi denunciado também por
ter colocado uma moeda na boca do falecido costume esse adquirido dos gregos da
lenda da moeda de Caronte, Gaspar Dias de Moura, em seu velório num engenho de
açúcar.

No período holandês em Pernambuco, quando havia liberdade de culto, floresceu uma


comunidade judaica portuguesa em Recife, com duas sinagogas a Zur Kadosh Israel, a
primeira das três Américas comandada pelo famoso rabino Isaac Aboab da Fonseca,
natural de Castro D'Aire, Portugal, que escreveu o primeiro poema em hebraico nas
Américas era um dos inúmeros exilados em Amsterdã, como outros judeus
portugueses e espanhóis que lá encontraram grande liberdade e prosperidade. Existe
ainda hoje em perfeitas condições a Grande sinagoga de Amsterdã, conhecida como a
Esnoga da Portugees Israelitisch Gemeente (Comunidade Israelita Portuguesa, em
Neerlandês). A outra sinagoga de Recife, em Mauricia, era a Maguen Abraham dirigida
pelo rabino Moses Raphael de Aguilar. Calcula-se que havia nas duas comunidades
recifenses 600 pessoas que professavam a religião judaica. Embora existissem muitos
cristãos-novos no Nordeste brasileiro, poucos retornaram a fé de seus ancestrais, a
maioria ficou com o temor de os portugueses expulsarem os holandeses, fato que
terminou ocorrendo, para não serem novamente perseguidos. Com a expulsão dos
batavos, muitos judeus retornaram a Holanda, se internaram nos sertões nordestinos
ou se dirigiram para suas colônias americanas, como Suriname, Curaçao, e outras ilhas
do Caribe além de Nova Amsterdã, a atual Nova York. Teriam sido 23 judeus saídos de
Recife os fundadores da primeira comunidade judaica dos Estados Unidos existente
ainda hoje, a Shearith Israel. Como prova, existe uma lousa no cemitério comunal onde
se lê o nome de Benjamin Bueno de Mesquita, um dos ex-moradores do Recife
holandês. Proveniente de Amsterdã, Manuel Viegas vivia no Espírito Santo onde
cuidava dos negócios de seu pai Antonio Martins Viegas residente na capital
holandesa. Viegas Júnior, como era conhecido, foi solicitado, em 19 de abril de 1627,
pelo comerciante holandês Leonard De Beer, a ajudar seu compatriota Dirck Pietersz
que estava no Brasil para carregar um navio com madeira, conforme nos relatam os
arquivos notariais de Amsterdã.

Passado o ciclo holandês, as perseguições aos cristãos-novos no Brasil recrudesceram,


quando muitos foram levados presos para a Metrópole, e depois uma parte deles foi
"relaxada ao braço secular", isto é, condenados à morte na fogueira depois dos Autos-
de-Fé. Estas cerimônias eram procissões de condenados trajando os sambenitos e
chapéus cônicos (as carochas), com uma vela numa das mãos, transformadas em
espetáculos populares assistidos inclusive pela realeza, nobreza e autoridades
eclesiásticas. Era o espetáculo dos horrores de uma época de intolerância religiosa e
de pensamento que avassalava a nação lusitana. As fogueiras ardendo na Ribeira,

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geralmente nas madrugadas, tiraram a vida de pessoas que queriam somente ter a
liberdade de consciência. O mais famoso condenado brasileiro foi o advogado, poeta e
dramaturgo Antonio José da Silva, de alcunha "O Judeu", nascido no Rio de Janeiro em
1705, de família cristã-nova da classe média e pertencente à comunidade judaizante
do Rio de Janeiro, com centenas de integrantes da qual faziam parte muitos senhores
de engenho, mercadores e autoridades. Toda sua família foi presa e levada para
Lisboa, onde depois de o terem prendido pela segunda vez, foi condenado à morte na
fogueira aos 34 anos de idade. Ele chegou a estudar Direito em Coimbra, porém ficou
famoso por suas obras no teatro de fantoches do Bairro Alto de Lisboa, sendo
considerado, hoje, um clássico da literatura portuguesa. Foi garroteado e queimado na
Ribeira, em Lisboa, aos 18 de outubro de 1739, mais de dois anos após a fundação do
Rio Grande de São Pedro, feita em 19 de fevereiro de 1737, pelo brigadeiro José da
Silva Pais. Isto prova que enquanto o Rio Grande do Sul estava nascendo e povoado, as
fogueiras da Inquisição ainda crepitavam...

Além dos Estados do Nordeste brasileiro, havia cristãos-novos em todo o Brasil, ou


como dizem alguns historiadores em todos os poros da colonização portuguesa, mas
digo ainda mais, eles estiveram e alguns descendentes ainda estão, em todas as partes
do mundo. Foram estudadas até agora as comunidades do Rio de Janeiro, Espírito
Santo, São Paulo e Minas Gerais, principalmente durante o Ciclo do Ouro e do
Diamante. A região Sul, como sendo mais recente na formação brasileira, ficou meio
esquecida de nossas universidades e seus pesquisadores. Eu sei que é árdua a missão,
entretanto depois de trinta anos de pesquisa sobre esse tema posso dizer que vejo
uma luz no fim do túnel. Os cristãos-novos vieram para o Sul com os bandeirantes,
pela imigração de Portugal e principalmente pela imigração proveniente dos
Arquipélagos dos Açores e da Madeira. Nos estudos do Prof. José Gonçalves Salvador,
catedrático da USP-Universidade de São Paulo, estão desvendadas muitas atitudes de
bandeirantes e mesmo confissões de fé judaica. O professor demonstra com clareza,
quer através de genealogias, de costumes praticados, de documentação inédita por ele
compulsada nos Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, que os cristãos-
novos, judaizantes ou não, influenciaram muito a formação de nosso país. Ao
bandeirante Raposo Tavares, cuja mãe Maria Pinheiro da Costa era uma cristã-nova da
cidade de Beja no Alentejo, foi-lhe perguntado pelo padre espanhol Cristóbal de
Mendoza, em Jesus-Maria, povoação arrasada por ele no território do atual Estado do
Rio Grande do Sul, "acerca do título que se estribara para lhes mover guerra, declarou
que 'pelo título que Deus lhe dava pelos livros de Moisés". Outros bandeirantes citados
por Salvador como de etnia hebraica: André Fernandes, João e Manuel Preto filhos de
Amador Bueno (dos judeus Boino da Espanha); Belchior Dias Carneiro, Manuel Pires e
Jerônimo Pedroso de Barros. Fernão Dias Paes Leme não era dessa etnia, mas era
casado com uma cristã-nova. Todos com passagem pelo território gaúcho.

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Cristãos-Novos açorianos e madeirenses no Brasil

Eram numerosos os cristãos-novos portugueses que se movimentavam da Metrópole


para as colônias, mercadejando ou simplesmente imigrando para lugares mais seguros
para as suas famílias, e as ilhas atlânticas não foram exceções. Os judeus portugueses
estiveram, como já disseram alguns historiadores, em todos os poros da colonização
portuguesa. Eu diria que eles trilharam por todos os cantos do planeta, e ainda hoje
são encontrados seus vestígios nos mais distantes ou diferentes países. Sem contar as
colônias do Caribe, as Índias de Castela, a América do Norte e as colônias africanas. Os
próprios judeus açorianos estão presentes em todo lado. Vem para o Brasil no final do
século XVII o cristão-novo Pedro Fernandes de Mello, comerciante da Ilha de São
Miguel. Com o perdão de 1605, muitos se aproveitam para saírem de Portugal, indo
muitos para a Holanda. Entretanto em 16l8, chega à Ilha Terceira um barco com 40
judeus portugueses provenientes da Holanda, entre eles Antonio Rodrigues Pardo. De
São Miguel, chega ao Rio de Janeiro o mercador judeu Manuel Homem de Carvalho, da
família Homem de Almeida que teve como mártir em Coimbra o Dr. Antonio Homem,
líder religioso dos judaizantes. Manuel confessou ter retornado ao Judaísmo na
Holanda onde havia estado. Um pouco antes de 1600, vêm para a Bahia os cristãos-
novos terceirenses Antonio Rodrigues Pardo e Pero Garcia. Em 1592, o Pe. Jerônimo
Teixeira Cabral, comissário da Inquisição nos Açores, denuncia a infiltração de cristãos-
novos na Igreja como clérigos. Muitos partidários de D. Antonio Prior do Crato,
pretendente ao trono português, e de etnia hebraica, são expulsos da Ilha por Felipe II
da Espanha, então detentor das duas coroas Ibéricas, que fugiram para os Países
Baixos e para o Brasil. Entre eles, Manuel Serrão Botelho, que chega ao Brasil logo
após 1582. Um contratador dos Açores foi o cristão-novo Miguel Gomes Bravo, natural
do Porto que nomeou como arrendatário o cristão-novo Francisco Bocarro. Miguel
veio para o Brasil em 1585, e em 16l0 vai morar no Rio de Janeiro. Era casado com
Isabel Pedrosa de Gouveia, tendo grande descendência. Álvaro Fernandes Teixeira,
natural da Ilha Terceira, cristão-novo casado com Maria de Azevedo, filha do cristão-
novo Diogo Cristóvão, do Porto, e seus parentes vieram residir no Rio de Janeiro no
século XVII. Da ilha de São Miguel, vem residir na mesma cidade o cristão-novo Pedro
Fernandes de Mello, casado com a congênere Ana Garcia de origem espanhola. Diogo
Teixeira de Azevedo, cristão-novo nascido no Rio de Janeiro e filho do casal da Ilha
Terceira, Álvaro Fernandes Teixeira e Maria de Azevedo, foi preso pela Inquisição e
saiu em Auto-de-Fé em Lisboa em 5 de abril de 1620, condenado a hábito penitencial e
cárcere a arbítrio terminou solto em junho daquele mesmo ano .

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III – CRISTÃOS-NOVOS NOS AÇORES

Nos primórdios da colonização

O Arquipélago dos Açores formado pelas nove ilhas, São Miguel, Terceira, Faial, São
Jorge, Santa Maria, Pico, Flores, Graciosa e Corvo, descoberto pelo navegador Diogo de
Silves em 1427, e depois povoado pelo frei Gonçalo Velho Cabral com portugueses do
continente, seguidos por famílias flamengas (belgas e holandesas), francesas, inglesas
e de outras minorias étnicas, foi abrigo, também, dos cristãos-novos fugitivos da
Inquisição. A presença judaica nos Açores é anotada pelo grande historiador, de
origem judaica, Alexandre Herculano, em sua monumental obra "História da Origem e
Estabelecimento da Inquisição em Portugal" à página 80 do volume I, como fato
ocorrido em 1501: "uma caravela lotada de cristãos-novos, que saíra de Portugal para
a África, batida pelos temporais arribou aos Açores, e os infelizes passageiros, presos aí
e condenados depois a serem escravos, foram dados de presente por El Rey a
Vasqueanes Corte-Real". O historiador Alfredo da Silva Sampaio também cita o mesmo
naufrágio na Ilha Terceira, diz ele: "em 1501 aportaram a Ilha Terceira náufragos
hebraicos fugindo à perseguição". Em Angra do Heroísmo, na Ilha Terceira, há uma
freguesia denominada Porto Judeu, cujo nome é explicado pelos moradores que, em
épocas passadas, o mar estava bravio e então, passaram a chamar o lugar de "judeu".
Mas esta explicação e este significado, embora usado por pescadores de origem
açoriana em Santa Catarina, não convence. Aquela localidade pode ter sido o local
onde tantos cristãos-novos desembarcaram como náufragos ou não. O navio citado
por Herculano e Sampaio não é o único citado em documentação. Outro barco é
mencionado na "Carta de Gaspar Dias de Landim, a El Rey, sobre a prisão de indivíduos
que fugiam à Inquisição, de 19 de novembro de 1548", onde descreve: "Senhor – Eu
tenho escrito a V.A. como há muitos dias estou neste porto esperando Pero Vaz de
Siqueira, pêra me pasar aos luguares a fazer os paguamentos, como me V.A. mamda,"
e em seguida cita "...a dez de novembro tomou a justiça desta vila ( Santa Maria) na
barra embarcados em hua nao, dezanove omens em que yão molheres e moços, os
quais yãm na via de Veneza; acharão-lhe pouquo dinheiro, comtia de dozentos
cruzados e algum fato (roupa);são de Lixboa, çapateiros, e tudo um casal de filhos e
gemros, ficam presos por parte da santa Imquisição. O Senhor Deos acrecente a vida e
real estado de V.A.; do porto de Santa Maria ( Açores) a XIX ( 19) de novembro de 548
(1548) – Gaspar Dias de Landim – sobre scripto – A elrey nosso senhor". (Arquivo
Nacional da Torre do Tombo, Corpo Cronológico, Parte 1ª, maço 81 n° 85).

O mesmo Sampaio, já mencionado, diz que, em 1558, a comunidade cristã-nova dos


Açores pagou 150.000 cruzeiros exigido pela rainha regente Dona Catarina para prover
as armadas da Índia. Em troca, D. Catarina prorrogou a pena de confisco de bens aos
cristãos-novos por dez anos.
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A ação inquisitorial nos Açores

Em 1592, o Inquisidor nos Açores Pe. Jerônimo Teixeira Cabral, denuncia a infiltração
de cristãos-novos na Igreja como clérigos. A primeira ação inquisitorial nos Açores foi
em 1555, quando o bispo de Angra, D. Frei Jorge de Santiago mandou verificar vários
casos de Judaísmo, mandando prender alguns homens e enviá-los para Lisboa. Dois
anos após foram enviadas para Lisboa 22 pessoas acusadas de práticas judaicas. São
elas: Ana Lopes; André Moniz; Antonio Fernandes; Branca Dias, Cecília Rodrigues,
Diogo Lopes; Fernão Lobo; Francisco Lopes; Mestre Gabriel; Gabriel de Andrade;
Henrique Ribeiro; Inês Dias; Isabel Mendes; Isabel Moniz; Isabel Pinta; João Tomás;
Jorge Álvares; Manuel Álvares; Rui Dias; Rui Fernandes e Violante Henriques. Logo
seguiram para a capital da Metrópole: Pero Galvão; Antonio Carvalhais; Jácome
Gonçalves e Maria Dias. Já em 1608 começava a ser montada a rede de funcionários
inquisitoriais. Iniciando pelos Comissários do Santo Ofício, e logo em 1612 a dos
Familiares (os esbirros mais infames). Entretanto, desde 1597, já atuava como
Comissário da Inquisição em Ponta Delgada o pe. Luís Pinheiro, reitor da residência da
Companhia de Jesus e, como primeiro Familiar, o tanoeiro Pero Fernandes, residente
em Ponta Delgada. E, em Angra, atuava como Comissário o Pe. Francisco Valente,
reitor do Colégio Jesuíta. Para a Ilha do Faial, somente em 1749 foi nomeado
Comissário o frei José de Santo Antonio de Pádua. Existiram comissários do Santo
Ofício no arquipélago açoriano até 1806 quando, então, perseguiam os franco-maçons.
Outros burocratas da Inquisição eram os Notários, os Qualificadores e os Visitadores
das Naus. Havia também o trabalho de redução de estrangeiros, que procuravam
converter para o catolicismo como foi o caso da família inglesa Fisher, residente no
arquipélago. A primeira Visitação ao arquipélago foi a de D. Marcos Teixeira entre
1575-1576, o mesmo que esteve no Nordeste do Brasil. Ele visitou as ilhas de São
Miguel, Terceira e Faial. A segunda foi em 1592, feita por D. Jerônimo Teixeira Cabral,
tendo visitado as ilhas Terceira e São Miguel. Já a terceira e derradeira visita, foi
realizada entre 1619-1620, por D. Francisco Cardoso do Torneio, que esteve nas ilhas
de São Miguel e Terceira. Do total de 354 pessoas denunciadas, 172 foram por
Judaísmo que, somadas às 27 prisões de 1555-1557, totalizam 199 cristãos-novos
denunciados nos Açores. Foram gerados 114 processos entre 1557 e 1802, envolvendo
112 pessoas, sendo apenas 26 pela "heresia judaica". E, destes, somente 10 foram
enviados a Lisboa, e apenas três condenados à morte na fogueira. Os condenados à
pena capital foram: Leonor Marques, em 1584; Antonio Borges, em 1559 e Maria
Lopes, em 1576.

A produção maior do arquipélago açoriano nessa época era o trigo, o linho, o vinho a
urzela, uma tintura de cor castanha e o pastel, tintura em tom de azul, largamente
utilizadas nas indústrias têxteis de Flandres para onde eram exportadas. Este comércio
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chamava a atenção de cristãos-novos como Duarte da Silva, rico comerciante de
Lisboa. Ele mantinha nos Açores os agentes: Simão Lopes, na ilha do Faial, João de
Afonseca Chacon e ilha Terceira Pero Martins Negrão, todos da grei judaica. O
comércio do ouro, da prata das Índias de Castela e o açúcar da Madeira despertam o
interesse dos judeus portugueses de Amsterdã, Londres, Bordéus, Hamburgo e
também seus parentes residentes em Portugal colônias. Era o começo do século XVII e
os mercadores Belchior Gomes de Leão e Diogo Lopes de Andrade agem neste
contexto principalmente na Madeira. De Rouen, França, o judeu Simão Lopes Maciel,
de família cristã-nova fugitiva da Inquisição portuguesa, desenvolveu uma rede de
comércio internacional colocando na Madeira como representantes seus os
congêneres Bento de Matos Coutinho e Diogo Fernandes Branco. Na Ilha Terceira
mantinha os cristãos-novos Antonio Dias Homem e Bento Fernandes Homem. Para o
Brasil designou o correligionário Belchior Rodrigues Ribeiro. Viviam como judeus em
Amsterdã os madeirenses Jerônimo de Andrade e Manuel Cardoso ambos com suas
famílias. Outro comerciante judeu português que comerciava com os Açores a partir
de Amsterdã foi Jerônimo Doria de Andrade conforme registros no Arquivo Municipal
daquela capital holandesa em 18 de março de 1627. Em Cabo Verde era fornecedor de
"peças", isto é escravos negros africanos, o cristão-novo Manuel Caldeira juntamente
com seu congênere Luiz de Carvalhal que atuava também em todo Golfo e rios da
Guiné. Negociavam, juntamente com João Soeiro da Madeira, escravos para as
Antilhas e outros países. Com negócios de ouro e prata e dono do navio "São Mateus"
passa pelo Rio de Janeiro e vai ao Prata, o mercador judeu português Bartolomeu
Rodrigues, em 1609. Em Buenos Aires desde o início da colonização, mas
principalmente em 1618, quando chega ali chega uma embarcação lotada de cristãos-
novos proveniente da Bahia, a população local é considerada de maioria portuguesa e
judaica. Fato que alarmou os clérigos da cidade que solicitaram providências às
autoridades da Inquisição espanhola. A explicação para a fuga de cristãos-novos
brasileiros para o Prata era a de que se alarmaram com a notícia vinda de Lisboa
dizendo que nova Visitação do Santo Ofício estava programada para o Brasil naquela
época. Com a quantidade de judeus portugueses em Buenos Aires o termo português
tornou-se sinônimo de judeu em toda a América espanhola.

Costumes, hábitos e crenças judaicas

Os cristãos-novos encontraram nas Ilhas Atlânticas um local privilegiado para seu


estabelecimento, uma vez que, ali, podiam praticar mais ou menos, livremente, seus
rituais cripto-judaicos, pelo menos, longe da Inquisição, que só esteve em três das
nove ilhas, como vimos. Essas crenças e costumes, resumidamente, eram os seguintes:
dizer que a Lei de Moisés é mais suave e mais delgada que a de Cristo; invocar o Deus
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de Israel; a guarda do sábado, o Shabat, não trabalhando nesse dia; limpar candeeiros
e neles colocar azeite limpo e torcidas novas às sextas-feiras, vestindo camisas lavadas
e lançando lençóis limpos na cama, além de casarem nesse dia da semana; dizer
orações em língua hebraica; a recusa em comer carne de porco, lebre, coelho, aves
asfixiadas ou afogadas e peixe sem escama; tirar a gordura e o sangue da carne;
refogar os alimentos com azeite; degolar animais cortando-o de alto a baixo com uma
faca afiada e rezando uma oração e deitando fora o sangue do animal; fazer
cerimônias judaicas como o jejum da Rainha Ester ou do Purim; o jejum de Yom
Kippur, jejum Maior ou do Perdão, em setembro; a Páscoa do pão ázimo, o Pesah ou
do cordeiro, em março; usar alguidar ou louças e utensílios novos nesses dias de festa.
Além desses costumes, eram praticados os seguintes: carpir meneando o corpo e
amortalhar os defuntos colocando-lhe uma moeda na mão; despejar toda a água
existente na casa quando falecia alguém por acreditar que o anjo da morte lavasse a
espada com que matara o falecido; lançar uma moeda ou peça de ouro na água do
banho dos recém nascidos; olhar para o oriente meneando o corpo; a benção judaica e
a circuncisão. E, também, o conhecimento de lendas e histórias judaicas. Toda essa
tradição era transmitida à família pela via feminina. A condenada à morte na fogueira
Maria Lopes, denunciada pelo filho Fernão Lopes, de praticar ritos judaicos tinha, entre
seus pertences, rezas escritas em hebraico que, traduzidas, se verificou tratar, dentre
outras, do Shemá Israel (Ouve ó Israel), um trecho: "Ouve ó Israel. Adonai é nosso
Deus. Adonai é uno. Bendito é o nome para a eternidade e perfeição". Nem os nobres
escaparam da perseguição da Inquisição nos Açores. D. Rodrigo da Câmara, Conde da
Vila Franca, preso em 1650, em São Miguel, foi condenado à prisão perpétua com a
perda de honras e títulos. D. José, seu filho, conseguiu herdar o título mudado para
Conde da Ribeira Grande. É sabido que os Câmaras descendem todos de João
Gonçalves Zarco, natural de Matosinhos, Portugal, que adotou o sobrenome Câmara
de Lobos e depois somente Câmara, referindo-se a uma gruta na Ilha da Madeira que
era refúgio dos leões marinhos, descobridor da Ilha da Madeira e Porto Santo. Os
Zarcos descendem de família judaica espanhola, provavelmente fugida dos massacres
de Sevilha de 1391. Em Portugal, convertidos ao cristianismo, logo se tornaram
fidalgos e obtiveram mercês reais ao entrarem para a Ordem de Cristo, a antiga Ordem
dos Templários, sediada no castelo de Tomar. Exatamente nessa cidade existe, ainda
hoje, uma das duas sinagogas reconhecidas oficialmente como representantes dos
antigos templos das comunidades hebraicas. A outra, é a sinagoga de Castelo de Vide,
ambas transformadas em museus judaico-portugueses. O grande Fernando Pessoa,
descendente de Martinho da Cunha Pessoa de Oliveira, pertencente a uma numerosa
família de cristãos-novos judaizantes do Fundão, tinha conhecimento de sua origem,
daí a explicação para seus heterônimos. Pessoa dedicou um poema ao Infante D.
Henrique a cuja Casa pertencia João Gonçalves Zarco, navegador descobridor da ilha
de Porto Santo com Tristão Vaz Teixeira (1418) e da ilha da Madeira com Bartolomeu
Perestrello, navegador italiano (1419). Eis o poema que publicou em Mensagem:

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O Infante

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. Deus quis que a terra fosse toda uma, Que o
mar unisse, já não separasse. Sagrou-te, e foste desvendando a espuma, E a orla
branca foi de ilha em continente, Clareou, correndo, até ao fim do mundo, E, viu-se a
terra inteira, de repente, Surgir, redonda, do azul profundo. Quem te sagrou criou-te
português. Do mar e nós em ti nos deu sinal. Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!

Vestígios atuais da presença judaica nos Açores

No início do século XIX, vieram para a Ilha Terceira, imigrantes judeus marroquinos,
muitos deles descendentes de judeus fugitivos de Portugal. Já em 1835, constroem
sinagoga e cemitério naquela ilha. A família de maior destaque é a Bensaúde, que teve
e continua tendo grande influência nos Açores e Portugal até os dias atuais. Empresas
de transporte, inclusive aéreo, entre as ilhas e o continente, são desta família. O
presidente português Jorge Sampaio é Bensaúde por parte materna, entretanto, em
sua maioria, se tornaram cristãos-novos. Nos Açores que se tenha conhecimento,
existe apenas um judeu da família Waldemar, do ramo Sefaradita (ibérico), e uma
senhora judia norte-americana aposentada, do ramo Asquenazita (germânico). A
sinagoga está semi-destruida, bem como os três cemitérios. A família Azulay, residente
no Rio de Janeiro, descende de judeus açorianos de origem marroquina.

Em 1976, o capitão-aviador norte-americano Marvin Feldman, de fé judaica e sediado


na base aérea de Lajes, na Ilha Terceira, relatou na revista Herança Judaica número 26
de 1976 ao articulista Aaron Zeff ter comprado uma Torá, rolo contendo o Pentateuco
hebraico, numa taberna por apenas cinco dólares, mas teve que entregá-la para as
autoridades ao sair do Arquipélago. Encontrou também, um cemitério com inscrições
em hebraico, mas isto se explica por ter havido nos Açores uma comunidade judaico-
marroquina. Contou ter encontrado uma comunidade marrana, cripto-judaica ativa,
porém clandestina. Diziam praticar o Judaísmo secretamente com medo da repressão
da ditadura de Salazar. Mal sabiam eles que Salazar era descendente direto de judeus.
Sua sétima avó, Catarina Salazar, cristã-nova de Coimbra residia na rua Corpo de Deus,
freguesia de São Tiago. De seu lado paterno por parte dos Andrades de Trancoso, é
suspeito de descender de judeus e era também cristão-novo por parte de uma avó
paterna da família Gaspar, da localidade de Tábua. Recentemente, a canadense Maria
Pimentel, residente em Toronto e filha de açorianos, relatou que num jornal ilhéu
daquela cidade, foi publicada uma notícia do achado de uma Sefer Torá (o Pentateuco,
rolos escritos em hebraico antigo em pele de carneiro), numa gruta da localidade de
Rabo de Peixe, na Ilha de São Miguel. Segundo e-mail por ela enviado em 11 de
novembro de 2002, a Torá teria sido levada à Europa para ser autenticada e lá teria
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sido datada como sendo do século XVI. Entretanto, os pesquisadores açorianos por ela
contatados em sua visita ao Arquipélago, não sabiam dar maiores informações desse
achado de grande importância para história judaico-portuguesa-açoriana.

IV - Cristãos-novos na Ilha da Madeira

E, em 1638, chegam à Madeira judeus portugueses provenientes de Rouen, França, na


maioria da família Cáceres. Pero ficou na Madeira, Jerônimo foi para o Rio de Janeiro,
enquanto Antonio ficou em Rouen. Estava assim formado um perfeito triangulo para
negócios entre parentes da mesma religião. Era a globalização mercantilista em
andamento e a todo vapor entre continentes e ilhas. O contrato do açúcar na Madeira
está nas mãos do cristão-novo Miguel Gomes Bravo, sob fiança do correligionário
Francisco Bocarro. Em 1617 numa Visitação da Inquisição à Madeira, foram
denunciados os judeus: Manuel Álvares Fausto, ouvidor de Funchal; Faustino Dias,
boticário; Diogo Barbosa, ourives; Bento de Matos Coutinho, licenciado; Manuel
Tomás, mercador e Rabino da comunidade judaica secreta da Madeira; Luis Fernandes
de Oliveira, contratador da Fazenda e Simão Roiz Rodrigues Vila Real, sogro de Luís e
que teve uma irmã queimada pela Inquisição. Esses judeus madeirenses eram ativos
no comércio com seus congêneres da França, Inglaterra e Holanda. Desse último país
há o registro no Arquivo Notarial de Amsterdã, do contrato de três de maio de 1627,
feito pelos judeus portugueses, lá refugiados, Francisco da Costa d'Elvas e Matias
Rodrigues Cardoso, de fretamento do barco De Liffde pertencente ao holandês Pieter
Franssen, para o transporte de mercadorias de e para a Ilha da Madeira. As Ilhas
serviam de trampolim para o Caribe, o Brasil e o Rio da Prata. Talvez o judeu mais
famoso nascido na Madeira tenha sido Manuel Soeiro, de família abastada de
mercadores locais, que após ter passado pela França, chegou a Amsterdã, onde
estudou para tornar-se o famoso Rabino Menasseh Ben Israel. Na vida laica era editor
e impressor, tendo produzido grandes publicações de autores judeus portugueses e
espanhóis da comunidade holandesa e alemã sefaradita. Seu Parente João Soeiro
chega ao Brasil como contratador de escravos e comércio com embarcações próprias.
Outro madeirense da etnia judaica foi Paulo Cardoso de Vargas que casou na Bahia
com Margarida Diniz filha dos cristãos-novos Diniz Bravo e Beatriz Nunes Diniz, em
1663.

V - A Imigração Açoriana e Madeirense para o Rio Grande do Sul e


Santa Catarina: segredos que começam a ser desvendados

Os segredos e mistérios acerca de serem ou não descendentes de cristãos-novos, pelo


menos uma parte dos imigrantes ilhéus para o sul do Brasil, no final de século XVIII,
começam a ser desvendados. A própria Enciclopédia Britânica cita uma informação,
não se sabendo de onde retirada, que os casais açorianos que povoaram Porto Alegre
seriam cristãos-novos, isto é, judeus portugueses. Na verdade, nada ficou provado até

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o momento, mas como vimos anteriormente sobre a presença judaica nas Ilhas
Atlânticas, é fácil deduzir que alguns casais ou cônjuges certamente eram de
descendência judaica, e que trouxeram em sua bagagem uma parcela da herança
judaica que conseguiram manter secretamente em seus lares. E, esse é o nosso
objetivo o de levantar o véu que encobre os segredos desse passado tenebroso e que
algumas pessoas gostariam que ficassem enterrados para sempre. Os reflexos tanto no
Rio Grande do Sul como em Santa Catarina com certeza foram de grande efeito
embora não tenham ainda sido dimensionados. Algo da cultura judaica está
classificada nos estudos de folclore e considerado como tal sem conhecerem os
estudiosos os traços judaicos que permaneceram vivos depois da grande devastação
causada pela "Santa Inquisição". O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição pouco fez
contra a grande quantidade de refugiados nas ilhas, e poucos foram os denunciados e
sentenciados. Nos Açores, apenas três ilhas foram visitadas pelos esbirros
inquisitoriais: São Miguel, Terceira e Faial. Os cristãos-novos que viviam nas outras
ilhas nem foram molestados. Na Madeira e Porto Santo, muito poucos foram presos e
condenados, e é sabido que lá existia uma grande comunidade secreta de cristãos-
novos portugueses, da qual fazia parte o comerciante Domingos Mendes de Cea,
notório judaizante que lá residia no final do século XIV. Como saber se haviam cristãos-
novos entre os chamados "casais de número"? Os documentos existentes da época
não esclarecem nada porque ninguém declarava suas crenças secretas, eis que
sabedores da perseguição religiosa ainda em vigor quando da chegada ao extremo sul
brasileiro. Na documentação, podemos ver apenas sutilezas e um ou outro detalhe,
certamente judaico, principalmente nos inventários. Como, por exemplo, as esmolas
depois da morte de pessoa da família lembrando a "Sedacá", a caridade judaica ainda
hoje praticada pelos judeus de todos os ritos. É apenas um dos fatos mencionados no
livro "A Vila da Serra" de Clóvis Stenzel Filho, juntamente com outros costumes
judaicos existentes entre descendentes de açorianos no município de Osório no final
do século XIX, quando era chamada de Conceição do Arroio.

É justamente aí, nos costumes e crenças que poderemos descobrir as origens judaicas
de muitos açorianos gaúchos e catarinenses. Em Florianópolis algumas famílias de
origem açoriana sabedoras de suas origens, freqüentam às vezes a sinagoga local fato
que ocorre em diversos pontos do Brasil. É naquela capital, também, comum a
fabricação do pão torcido, conhecido pelos judeus como "chalá". O nome Raquel é
muito usado entre as filhas de descendentes de ilhéus. No Rio Grande do Sul, já temos
catalogado diversos costumes judaicos praticados tanto pelas populações de
descendentes de açorianos, como de luso-brasileiros provenientes de São Paulo. Só
para citar alguns: o "sinu saimão" ou "sin salamão", a estrela de Salomão de cinco
pontas, símbolo mágico de origem judaica e conhecido desde o Brasil colonial, é
largamente usado como proteção de barcos, portais de casas e janelas, lembrando
uma "mezuzá" ( caixinha contendo orações e salmos usada pelos judeus para proteção

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de seus lares) além de roupas de crianças recém nascidas ou como amuleto no
pescoço. O bebê não pode antes de ser batizado ficar sem iluminação no quarto
porque os espíritos maus podem atacá-lo. Isto é, simplesmente, a lembrança da deusa-
demoníaca Lilith, que roubava e matava criancinhas, lenda do imaginário judaico
levado para Portugal. Derramar a águas de todos os cântaros, após o falecimento de
uma pessoa em casa, era praticado até poucos anos atrás quando não existiam
torneiras no interior gaúcho. Este costume é o mais representativo da cultura religiosa
judaica do rito sefaradita, constante inclusive de um Siddur (livro de orações), do qual
não pode haver contestações, porque o ritual é o mesmo. O folclorista Câmara
Cascudo menciona a larga prática deste costume no Nordeste além de outros
tipicamente judaicos, também encontrados no Rio Grande do Sul. A coletânea destes
costumes e sua prática ainda em nossos dias serão divulgadas juntamente com
entrevistas e relatos contando fatos inéditos, como o Romance medieval português,
Dona Silvana ou Silvaninha, preferido de judeus portugueses que se espalharam pelo
mundo e o cantaram até na Bósnia-Herzegovina. Em nossos próximos trabalhos serão
relatados mais detalhes desses costumes reprimidos pelo medo da Santa Inquisição e
pelas repressões ditatoriais. São fatos que desagradam muita gente que preferem não
lembrá-los devido ao horror desses tribunais que grassaram em diversos países da
Europa, consumindo pela labareda das fogueiras a vida de milhares de pessoas
inocentes, pelo simples fato de quererem ter outro credo, discordar dos dogmas
cristãos vigentes ou simplesmente desejarem liberdade de consciência.

Na História do surgimento do Estado do Rio Grande do Sul, tem a mão firme de muitos
cristãos-novos que podem não ter sido judaizantes, mas tinham a amizade destes no
Brasil colonial. Todo o empreendimento da fundação da Colônia do Santíssimo
Sacramento às margens do Rio da Prata, em 1680 teve o concurso de diversos cristãos-
novos, incluindo entre eles o próprio governador D. Manuel Lobo com origens cristãs-
novas bem como seus principais auxiliares. Essa praça portuguesa plantada defronte a
Buenos Aires que serviu mais ao contrabando da prata de Potosí e mais tarde trocada
pelos Sete Povos das Missões teve papel fundamental na colonização do Rio Grande
do Sul. O próprio madeirense Jerônimo de Ornellas Menezes e Vasconcelos, primeiro
povoador de Porto Alegre, onde recebeu sesmaria em 1740, que era de família fidalga
da ilha da Madeira e descendente de príncipes e reis de toda a Europa, tem em sua
ascendência descendentes de judeus como João Gonçalves Zarco, que se tornou
Câmara, dando início a essa linhagem que hoje existe em diversos países, e os De La
Rua, espanhóis cujo nome denuncia a origem cristão-nova, porque essa Rua era
exatamente o "Kahal" dos Judeus, "La Calle" ou "La Juderia", como diziam os
espanhóis. A infiltração de cristãos-novos na nobreza européia é por demais sabido, eis
que até a Casa de Bragança tem uma cristã-nova em sua origem. Daí, talvez, o
interesse de D. Pedro II em aprender o hebraico, corresponder-se com rabinos
franceses e adquirir uma Sefer Torah, (rolos do Pentateuco em hebraico) iemenita de

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cerca de 800 anos, uma das relíquias deixadas por ele para o Brasil está sob a guarda
da BIBLIOTECA Nacional, no Rio de Janeiro.

V – Considerações finais

Creio que ficou claro que nas Ilhas Atlânticas e Brasil colonial houve grande atividade
dos judeus portugueses transformados em cristãos-novos, em sua maioria à força, pela
água benta que lhes jogaram compulsoriamente. Pretendo, num próximo trabalho,
comprovar melhor a influência dos cristãos-novos na economia, cultura e no caráter
do Brasil. O caráter foi construído com muitos traços judaicos a começar pelo jeitinho
brasileiro. Nos Açores, ainda falta estudar e descobrir muito mais sobre as atividades e
costumes dos cristãos-novos, bem como na Madeira. Sabe-se, através de
documentação ainda existente, que os cristãos-novos açorianos exerciam as mais
diversas profissões como cirurgiões, advogados, boticários, licenciados, mercadores,
ourives, confeiteiros, sombreireiros (que fabricavam chapéus) e uma série de outras
atividades ligadas ao artesanato. Mas poucos eram ricos daí, talvez, a falta de interesse
da Inquisição em processá-los já que os confiscos não valeriam a pena. A lista parcial
de sobrenomes a seguir pertence ao periodo de 1604 a 1623, encontrados em algumas
Fintas de cobrança de impostos exclusivos dos cristãos-novos, das Ilhas de São Miguel,
Terceira, Graciosa e Pico, faltando aqui das outras ilhas e de outros períodos da
História. Vejamos, então, os sobrenomes: Andrade, Azevedo, Álvares, Alemão, Braga,
Borges, Barcelos, Câmara, Cunha, Carvalhais, Cerqueira, Carlos, Carvalho, Costa, Dias,
Delgado, Duarte, Eça, Fernandes, Fontes, Gralia, Geralda, Gonçalves, Henriques,
Heitor, Jacinto, Lopes, Mendes, Medeiros, Morais, Manuel, Pereira, Preto, Piseiro,
Rodrigues, Ruivo, Santiago, Soares, Tomás, Vaz e Vieira. Existem outros nomes e
sobrenomes mencionados no texto daqueles que foram presos e penitenciados pelo
Tribunal do Santo Ofício. Paradoxalmente, graças aos arquivos inquisitoriais existentes
em Portugal, podemos estudar melhor e sabermos os nomes e o modus vivendi desses
judeus portugueses que estiveram nas Ilhas Atlânticas e que fizeram nova diáspora
para o Brasil, para as Índias de Castela, Caribe inglês e holandês além da América do
Norte e outros países da África e Oriente.

Referências Bibliográficas

- BRAGA, Paulo Drumond – A Inquisição nos Açores - Tese de Doutoramento em


História dos Descobrimentos e da Expansão, defendida pelo autor na Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa em 4 de abril de 1997.
Publicação do Instituto Cultural de Ponta Delgada, Ilha de São Miguel, Região
Autônoma dos Açores, Portugal, dezembro de 1997. - AZEVEDO, J. Lúcio de – História
dos Cristãos-Novos Portugueses – Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1975. - SARAIVA,

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Antonio José – A Inquisição Portuguesa - Lisboa, Coleção Saber, Publicações Europa-
América Ltda., 3ª edição, dezembro de 1964. - HERCULANO, Alexandre - História da
Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal – Vol. I, Lisboa, Edições Europa-
América Ltda., 1984. - DORIA, Antonio Álvaro – Damião de Góis - Lisboa, Clássicos
Portugueses, Livraria Clássica Editora, 1944. - SALVADOR, José Gonçalves – Os Cristãos-
Novos e o Comércio no Atlântico Meridional – São Paulo, Livraria e Editora
Pioneira/MEC, 1978. - STENZEL F°, Antonio - A Vila da Serra – Caxias do Sul, UCS, Escola
Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1980.

Outras fontes

- STUDIA ROSENTHALIANA – Volume 34, número 1, Notarial Records Relating to the


Portuguese Jews in Amsterdam before 1639. Amsterdã, 2000. - ZEFF, Aaron - "Os
Judeus Secretos dos Açores" – São Paulo Revista Herança Judaica n° 26 – Vol. 12,
Editora B'nai Brith - 1976, páginas 36 a 38.

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