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A modernização agrícola brasileira à luz da história ambiental

Arquimedes Fuga Vaismenos

“O homem perdeu a sua capacidade de prever e de prevenir. Ele acabará


destruindo a Terra”.
Albert Schweitzer, citado por Rachel Carson na epígrafe de “Primavera Silenciosa”.

INTRODUÇÃO

A mudança é a única coisa permanente neste mundo, apontava o filósofo grego


Heráclito: “um homem não se banha duas vezes no mesmo rio”... Essa é uma verdade
que já foi abordada por inúmeras tradições filosóficas e formas de pensamento em todo o
mundo, e aplica-se tanto à realidade “natural” (regida pelas leis da física, da biologia, da
química etc.) quanto à dimensão humana e social. A ciência ocidental, atualmente,
também trabalha com essa constatação: todas as coisas estão em constante
transformação, todos os átomos, todos os elementos, cada qual em seu tempo. Contudo,
podemos argumentar, os processos que envolvem a ação da humanidade, ou a ela estão
associados, conhecem uma ordem de transformação própria, uma vez que a dinâmica da
intervenção humana se altera em uma velocidade e intensidade muito diferentes daquelas
dos processos da natureza, porque os fatores humanos (psicológicos, culturais, sociais,
econômicos, políticos) não estão condicionados às mesmas causalidades ou a mesma
escala de tempo do restante – incluso o de todos os outros animais. Por esse motivo, a
História, sendo a “ciência dos homens no tempo” (nas palavras de Marc Bloch), lida
especificamente com esse ‘tempo dos homens’, em seus vários momentos, e se dedica à
questão de como e por que se dão as transformações nas sociedades humanas. Ainda,
em termos históricos, precisamos lidar com o conceito de ‘permanências’: embora todas
as formas sociais, todos os conteúdos culturais, todos os produtos tecnológicos, tendam a
se alterar, a assumir outras formas ou se deteriorar, muitas delas levam tempo demais
para mudar e prevalecem sobre outros elementos e fenômenos humanos mais efêmeros 1.

1 - Fernand Braudel, historiador francês pertencente à chamada Segunda Geração da Escola


1
O século XX é um período histórico especialmente notável quanto à velocidade e
profundidade das transformações que engendrou: a evolução dos processos industriais,
do conhecimento e das técnicas científicas, a criação e a grande disseminação de
tecnologias eletrônicas, o avanço da biotecnologia; ainda, as duas Guerras Mundiais, a
Grande Depressão, o Holocausto e outros massacres, o esgotamento de recursos
naturais e as mudanças climáticas, a extinção de espécies e ecossistemas pela ação
humana, entre outros eventos, são todos constituintes desse “breve século XX”, ou “A Era
dos Extremos”2, nas palavras do historiador Eric Hobsbawm. Foi na segunda metade
desse século que a consciência da degradação ambiental pela ação humana se expandiu,
e o tema ganhou uma ampla aceitação no mundo; não por acaso, no início da década de
1970, engendrados por essa consciência, diversos movimentos relacionados à crítica
ambientalista despertavam. A urgência de uma mudança nas políticas ambientais tornou-
se evidente demais para não ser colocada em pauta, e esse debate alcançou grande
relevância na agenda de países por todo o mundo naquele momento (McCormick, 1992).
No âmbito deste artigo, o interesse principal recai sobre as transformações
recentes na agricultura brasileira, no contexto da chamada modernização agrícola, entre
as décadas de 1960 a 1970, sob o prisma da história ambiental. Neste período ocorre no
Brasil e em diversos outros países ditos de Terceiro Mundo um fenômeno de grande
impacto social e ambiental, a Revolução Verde, que foi um movimento de intensificação
da mecanização e industrialização de setores e de processos ligados à agricultura e que
logrou consolidar-se como principal modelo agrícola praticado no Brasil; paralelamente,
nesse mesmo período, diversos modelos alternativos de cultivar a terra (agroecologia,
agrofloresta, agricultura orgânica, agricultura biodinâmica, agricultura natural etc.)
emergiram ou amadureceram-se, muitos no esteio da crítica ambientalista do modelo de
desenvolvimento capitalista que despontava em todo o mundo.
Ainda, considerando a impossibilidade de abarcar toda a grande complexidade de
tais mudanças em relação às dinâmicas sociais e culturais em curso no período,
concentramo-nos em um ponto em particular, qual seja, a explicitação das características
principais de dois modelos antagônicos de produção agrícola que se mostraram de
grande relevância no período estudado: o modelo tecnicista-industrial, consolidado com a

dos Annales, elaborou uma distinção entre os diferentes tempos da história, classificando-os em curta duração (tempo
dos acontecimentos), média duração (ligada às conjunturas) e longa duração (ligada às estruturas sociais). Ver:
2 - “Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991”. Título do quarto livro das “eras” de Eric
Hobsbawm, que fazem um estudo sobre o mundo contemporâneo a partir das revoluções burguesas no final do século
XVIII.
2
Revolução Verde, e o modelo agroecológico, que surgia como um contraponto ao primeiro
modelo.

MEIO AMBIENTE, CRISE E HISTÓRIA

No campo da história, a preocupação ambiental começou a formar um novo


campo de pesquisa específico no início dos anos 1970. Nesse momento, movimentos
ambientais estavam se consolidando e definindo sua atuação em meio ao turbilhão de
transformações tecnológicas, da intensificação e massificação do consumo de bens e
produtos, e, principalmente, do acirramento da pressão sobre o meio ambiente em função
do desenvolvimento industrial em aceleração. Como resultado dos questionamentos
sobre as relações dialógicas entre a ação humana e o meio ambiente, nossa consciência
ecológica aflorou em escala planetária, funcionando como um elemento de coesão e
evidenciando a noção de que a espécie humana depende e faz parte de um mundo
natural que possui suas próprias leis; trouxe à tona, ainda, um conjunto de questões que
repentinamente passaram para o primeiro plano em debates mundiais sobre o futuro do
planeta e da humanidade. A definição da história ambiental se deu nesse contexto, e
nutriu-se dessa mesma consciência de pertencimento e de interdependência do homem
com relação ao mundo natural.
Um dos pioneiros da história ambiental e também um de seus principais
expoentes, o estadunidense Donald Worster, afirma em seu artigo “Para uma perspectiva
agroecológica da história”3 que este novo campo tem como interesse principal
compreender “o papel e o lugar da natureza na vida humana”. Nas palavras dele,

A história ambiental nasceu de uma forte preocupação moral, podendo


ainda ter alguns compromissos de reforma política, mas à medida que
amadurecia, tornava-se um empreendimento intelectual que não tem
qualquer agenda moral ou política simplista ou única para promover. Seu
objetivo é aprofundar nossa compreensão de como os humanos têm sido
afetados pelo seu ambiente natural através do tempo e, contrariamente e
talvez de modo mais importante, na visão da insustentável situação global
atual, como a ação humana afetou o ambiente e quais foram as
consequências. (WORSTER, 1990/2003. p.25, grifo nosso)

Com o agravamento da crise ambiental as ciências em geral passaram a


reconhecer tais preocupações. O sentimento de urgência de uma mudança de postura

3 - A publicação original do artigo, em inglês, foi no periódico Journal of American History, em


1990. A edição que aqui citamos foi publicada em português na revista Ambiente & Sociedade em 2003, com tradução
de Maria Clara Abalo Ferraz de Andrade (ver referência completa ao final).
3
tornou-se comum, e muitos campos científicos procuraram responder a esta demanda.
Vários setores da sociedade a incorporaram também essas questões, embora de maneira
bastante diferenciada quanto à sua responsabilização perante os problemas ambientais
em evidência, ou os esforços empreendidos para superá-los.
Entre as perguntas centrais que a humanidade começava a se fazer, estavam:
“quantos seres humanos a biosfera pode suportar sem entrar em colapso sob o impacto
da poluição e do consumismo?” (WORSTER, 1990/2003, p. 24.) Quais doenças poderão
surgir ou se difundir em razão das transformações ecológicas? Quais desastres
ambientais podem ocorrer? “Está a tecnologia tornando a vida mais perigosa, ao invés de
mais segura?” (WORSTER, 1990/2003, p. 25). Estas e muitas outras foram reflexões de
grande importância que se impuseram para todas as nações naquele momento.
No campo da filosofia moral, passamos a nos questionar qual seria a nossa
obrigação para com a preservação do planeta, e se este existia apenas para nossa
satisfação, seja ela qual fosse, ou se deveríamos nos preocupar em preservá-lo, tanto
pela nossa própria sobrevivência quanto pela do planeta em si e dos demais seres que
nele habitam. A Bioética é um ramo da filosofia que buscou contribuir para esta busca,
estabelecendo princípios e atualizando métodos de pesquisa que pudessem analisar mais
adequadamente diversas situações que surgiam e que colocavam em xeque concepções
consolidadas no senso comum ou mesmo em meios científicos. Para ficar em um
exemplo mais próximo ao tema central deste artigo, pensemos no avanço da
biotecnologia sobre a reprodução da vida: as sementes modificadas geneticamente, que
passaram a ser comercializadas e utilizadas em todo o planeta. Não obstante a falta de
pesquisas conclusivas, empresas operantes em âmbito mundial conseguiram aprovação
dos governos para inserir suas sementes no mercado, sob o pretexto de serem mais
produtivas e portanto mais capazes de solucionar o grande problema da fome no mundo.
Não entraremos a fundo no debate sobre a real eficácia de tais produtos tecnológicos,
embora seja necessário demarcar que, num sentido prático, a fome não foi solucionada. A
produção agrícola aumentou bastante em escala, mas em questão de qualidade e de
diversidade, não se pode dizer o mesmo.

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HISTÓRIA AMBIENTAL E MODELOS DE AGRICULTURA

Segundo Donald Worster, “há três níveis em que a nova história [ambiental]
opera, cada um dos quais retirando de uma variedade de outras disciplinas e requerendo
métodos especiais de análise”. O primeiro nível se volta a conhecer a própria natureza,
envolvendo “a descoberta da estrutura e distribuição dos ambientes naturais do passado”.
O segundo, “se concentra na tecnologia produtiva, na medida em que esta interage com o
meio ambiente.”

Aqui, o foco está na compreensão de como a tecnologia reestruturou as


relações ecológicas humanas, isto é, na análise sobre as várias formas
com as quais as pessoas tentaram transformar a natureza num sistema
que produz recursos para o consumo. (Worster, p. 26)

O terceiro nível de análise incide nas representações sociais relativa à natureza, nas
formas mentais, nas “percepções, ideologias, ética, leis e mitos [que] tornaram-se parte
de um diálogo de indivíduos e grupos com a natureza”. O grande desafio da história
ambiental está em saber identificar e correlacionar tais níveis de análise, inclusive no que
tange às possibilidades de explicação dos acontecimentos em função de um ou outro
conjunto de fatores pertencentes a cada um destes níveis.
Para proceder à nossa argumentação, considerando o recorte estabelecido para
este trabalho, as transformações na agricultura no Brasil nas décadas de 1960 a 1970,
pensamos que importa pensar principalmente nos dois últimos níveis apontados por
Worster: o segundo, que trata da interação entre tecnologia produtiva e meio ambiente, e
o terceiro, que aborda as ideias e representações a respeito do homem em sua interface
com o meio ambiente.
O principal modelo de cultivo de gêneros agrícolas no país, atualmente, é o
chamado agronegócio, e teve seu início no período histórico em questão. Ele é hoje
responsável pela grande maior parte dos recursos financeiros mobilizados, das terras
cultivadas, do volume de produção, do número de exportações, da arrecadação; é
também o grande responsável pelo aumento da derrubada de áreas de floresta, pela
diminuição da biodiversidade entre espécies vegetais e animais, pela erosão genética,
pelo esgotamento e intoxicação de solos devido à monocultura intensiva, pela grande
utilização de insumos químicos na agricultura e a consequente dependência dos
agricultores, pela enorme quantidade de venenos (inseticidas, herbicidas, fungicidas…)

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despejados nas lavouras e por conseguinte nos solos de todo o país. As consequências
desse modelo de cultivo são enormes, e imensamente preocupantes para toda a
humanidade.
Não se trata aqui, entretanto, de condenar a viabilidade desse modelo agrícola,
que passou a ser o “modelo convencional” de cultivo no país, pois sua sustentação,
prejuízos e benefícios ainda hoje são objeto de acalorados debates, e este julgamento
extrapola os limites e objetivos deste estudo. Muitas críticas a seus pressupostos e seus
efeitos estão colocadas, mas o intuito principal é traçar o percurso de sua consolidação
como modelo hegemônico de agricultura, tendo em vista a conjuntura histórica específica
do Brasil.
Os anos anos 1960 assistiram a uma séria inflexão no campo da política em
nosso país. No início da década, durante o governo de João Goulart, houve uma
ascensão de um sentimento de possibilidade de mudanças em determinadas estruturas
sociais que há tempos condicionavam o país, e essa possibilidade era dada por força de
movimentos em ebulição e pressões de camadas populares, bem como de grupos
específicos da sociedade interessados em tais mudanças. Entre as transformações mais
radicais e mais importantes que o Brasil poderia cogitar estava a reforma na estrutura
fundiária, possibilitando o acesso às terras agricultáveis para quem desejasse nelas
trabalhar. Ocorre que as oligarquias rurais, que tradicionalmente acumulavam terras e
poder econômico, não estavam dispostas a dispor de tal privilégio, e funcionaram como
uma grande força contrária à efetivação da Reforma Agrária no país.
Em 1964 efetivou-se um golpe de estado no Brasil que alterou o governo político
em favor de um regime militar ditatorial que permaneceria por um período de 21 anos no
poder. Nesse mesmo período o país viveria uma intensa euforia econômica, no que ficou
conhecido como “Milagre Brasileiro”, resultado do investimento do Estado na promoção
da indústria de insumos primários, buscando aproveitar um momento propício no cenário
mundial. O crescimento econômico desse momento, entretanto, não foi distribuído de
maneira igualitária, mantendo-se ou agravando-se ainda mais a desigualdade entre as
classes operárias e assalariadas frente às elites burguesas e grandes proprietários de
terras.
Nesse período, o termo desenvolvimento cumpria uma função extremamente
mobilizadora. O país desejava promover uma modernização a qualquer custo em suas
estruturas, e esta promessa era antiga no imaginário nacional. O governo de JK havia
sido bastante direcionado a este fim, e efetivamente implementou muitas mudanças no

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sentido de impulsionar a industrialização do Brasil. Contudo, a aceleração da economia
no período, associada à enorme busca por capitais estrangeiros que pudessem financiar
o investimento na modernização da indústria, culminaram em um aumento da inflação em
termos extremamente difíceis para a sociedade brasileira. Mesmo assim, durante o
período militar, havia uma demanda pelo desenvolvimento, pois uma grande parcela da
população, dos setores intelectuais e dos administradores públicos, acreditavam que o
desenvolver a economia nacional poderia libertar o Brasil das amarras coloniais, que
mesmo com o advento da República ainda se faziam presentes em nossa realidade e
punham empecilhos para nossa realização civilizacional.
A chamada modernização da agricultura em curso no período ficou conhecida
pela expressão Revolução Verde. Este processo de inovação tecnológica encontra raízes
nos esforços de desenvolvimento empreendidos nas duas grandes Guerras Mundiais,
especialmente a Segunda Guerra (PEREIRA, In: CALDART, 2012, p.685). Muitos dos
insumos químicos e das tecnologias mecânicas utilizadas foram adequadas ao meio
agrícola posteriormente, pois se originaram no contexto do conflito armado, e tinham
intenções diferentes das que assumiram quando foram aplicadas ao cultivo da terra. A
Revolução Verde foi concebida, pois,

como um pacote tecnológico – insumos químicos, sementes de laboratório,


irrigação, mecanização, grandes extensões de terra – conjugado ao
difusionismo tecnológico, bem como a uma base ideológica de valorização
do progresso. Esse processo vinha sendo gestado desde o século XIX, e,
no século XX, passou a se caracterizar como uma ruptura com a história
da agricultura. (PEREIRA. In: CALDART, 2012, p. 685)

Ainda de acordo com a autora Mônica Cox Britto Pereira, “o modelo da Revolução Verde
pode ser caracterizado como um sistema insustentável sob o aspecto social e ecológico”
(PEREIRA, idem.).
A crítica ambientalista tomou forma e conquistou a proeminência nos debates
mundiais a partir da década de 1970. Nesse momento, a sociedade civil passou a
organizar diversos grupos em torno dessa questão, configurando o que podemos chamar
de Movimento Ambientalista. As formas de atuação desse movimento incluíram a
contestação em forma de passeatas, campanhas de conscientização para consumo ou
boicote, esforços por mudanças na legislação, até mesmo ações organizadas com a
proposta de interagir e transformar realidades específicas, como é o caso das várias
vertentes de técnicas de produção agrícola mais conscientes sobre os riscos e problemas
ambientais e mais consistentes com os conhecimentos produzidos nas áreas da ecologia,

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da biologia e da própria sociologia. O resultado foi uma busca por modelos
ecologicamente mais saudáveis e mais responsáveis, atentos às questões de ordem
sociocultural e ecológicas que estavam sendo colocadas.
A chamada Agroecologia foi um desses modelos que emergiram nesse momento.
A opção por colocá-la, neste estudo, como um exemplo de contraponto ao modelo
convencional de agricultura, repousa na importância simbólica que o modelo
agroecológico assumiu4, mas, ainda mais importante, na consistência científica que
adquiriu ao longo do tempo.
Miguel Altieri, um importante pesquisador no campo da agroecologia, afirma que
este modelo

fornece as bases científicas, metodológicas e técnicas para uma nova


revolução agrária não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Os sistemas de
produção fundados em princípios agroecológicos são biodiversos,
resilientes, eficientes do ponto de vista energético, socialmente justos e
constituem os pilares de uma estratégia energética e produtiva fortemente
vinculada à noção de soberania alimentar. (ALTIERI, 2012, p. 15)5

A Agroecologia mobiliza conhecimentos de diversas áreas, como a ecologia, as


ciências agronômicas, a geografia, a sociologia, a história, e ainda incorpora “princípios
ecológicos e valores culturais (…) [que] foram desecologizadas e deculturalizadas pela
capitalização e tecnificação da agricultura” (LEFF, 2002, p. 42). Segundo a definição de
Altieri, esta nova ciência “emerge de uma busca por superar o conhecimento
fragmentário, compartimentalizado, cartesiano, em favor de uma abordagem integrada”
(GUHUR e TONÁ, In: CALDART et al., 2012, p. 60), e “fornece os princípios ecológicos
básicos para estudar, desenhar e manejar agroecossistemas produtivos e conservadores
dos recursos naturais, apropriados culturalmente, socialmente justos e economicamente
viáveis” (ALTIERI, 1999, apud CALDART et al., 2012, p. 60).
Verifica-se, por esta rápida definição do termo, que esta disciplina que se
configurava já na década de 1970 encontrava ressonância em um movimento mais amplo
das culturas humanas em escala global. Fritjof Capra, físico nuclear de formação que se
dedicou a estudar a mudança dos paradigmas científicos em curso naquele momento,
fornece-nos uma visão interessante sobre a situação das ciências em geral no período.
Paradigma científico, aqui, segue a definição de Thomas S. Kuhn, em sua obra clássica A

4 - Em 2012, por exemplo, o Brasil instituiu a Política Nacional de Agroecologia e Produção


Orgânica, o que mostra a importância que a agroecologia adquiriu no debate público acerca da produção agrícola de
viés ecológico e responsável. Ver: Decreto nº 7.794, de 20 de agosto de 2012, em http://www.planalto.gov.br.
5 - A edição referida aqui é de 2012, mas faz-se necessário esclarecer que a primeira edição
do livro data de 1989, embora parte do atual volume tenha sido incluída após a primeira edição.
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Estrutura das Revoluções Científicas, e que, nas palavras de Jalcione de Almeida,

é uma “constelação de realizações”, incorporando conceitos, valores e


técnicas, que são partilhados por uma determinada comunidade científica
e utilizados para definir problemas e soluções. O que, portanto, sustenta
uma teoria científica é um arcabouço teórico (de conceitos, valores,
técnicas), em cujo âmbito a ciência se desenvolve. Fazer ciência
significa, então, sustentar um determinado paradigma, ao mesmo
tempo em que este legitima a própria ciência. (ALMEIDA, J., 1998, p.
117, grifo nosso)

No livro O Ponto de Mutação, publicado inicialmente em 1982, Fritjof Capra afirma


que nossa civilização passava por uma grande crise de percepção:

Tal como a crise da física na década de 20, ela deriva do fato de estarmos
tentando aplicar os conceitos de uma visão de mundo obsoleta — a visão
de mundo mecanicista da ciência cartesiana-newtoniana — a uma
realidade que já não pode ser entendida em função desses conceitos.
Vivemos hoje num mundo globalmente interligado, no qual os fenômenos
biológicos, psicológicos, sociais e ambientais são todos interdependentes.
Para descrever esse mundo apropriadamente, necessitamos de uma
perspectiva ecológica que a visão de mundo cartesiana não nos oferece.
(CAPRA, 1982/2006, p. 13-14)

Comparando as demais ciências com a sua própria área de formação, Capra


afirma que a partir da década de 1960 instalou-se ou tornou-se clara uma grande crise de
valores e de representações, que guiavam as disciplinas para uma grande incerteza. Ao
mesmo tempo, a sociedade engendrou uma visão de mundo “holística” (do grego “holos”,
“totalidade”), que forneceria um novo paradigma capaz de responder à crise que se
instalava. Entretanto, o próprio autor deixa claro que esta visão integradora que emergia
como novo paradigma, mais adequado às questões sociais e ecológicas de então, não se
tornou hegemônica nas ciências. “Até agora, a maioria desses movimentos ainda opera
separadamente, eles ainda não reconheceram que suas intenções se inter-relacionam.”
(CAPRA, 1982/2006, p. 13-14).
A agroecologia pode ser vista, argumentamos, como uma proposta em que se
manifesta o referido conflito de paradigmas, pois se estabelece, ao longo da década de
1970, e amadurece, na década seguinte, como uma ciência integradora e transdisciplinar,
articulando diversos elementos numa perspectiva sistêmica que oferecia resposta aos
problemas sociais, culturais e ambientais por que passava a humanidade naquele
momento. Entretanto, como vimos, o modelo de agricultura que predominou foi o
tecnicista, que, nos termos dos paradigmas aqui abordados, se filia a uma perspectiva
cartesiana, que fragmenta seus elementos constituintes e sustenta em seu bojo uma

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noção de causalidades simplistas e lineares. Este paradigma dominante foi acusado de
não compreender a necessidade de uma visão mais complexa e sistêmica para a qual as
ciências haviam despertado, e essa restrição da perspectiva propiciava uma atuação
incrivelmente devastadora no mundo. Exemplificando essa questão, e aproximando-a do
nosso interesse principal neste artigo, no caso da agricultura o modelo de agricultura
convencional, devedor das transformações ocorridas no esteio da Revolução Verde,
corresponde a um paradigma clássico das ciências, dito cartesiano-newtoniano (CAPRA,
1982/2006, p. 14) em que o mundo é visto e estudado em função de suas partes, sendo o
todo apenas a união de todas elas. O modelo agroecológico, por sua vez, corresponde a
uma visão sistêmica e indica a emergência de um novo paradigma científico, em resposta
às transformações ocorridas no mundo a partir da segunda metade do século XX
decorrentes principalmente do agravamento de crises ambientais em escala planetária
nunca antes percebidas.

CONCLUSÃO

A modernização da agricultura brasileira, levada a cabo nas décadas de 1960 e


1970, que ficou conhecida como Revolução Verde, pode ser situada num contexto
histórico mais amplo de transformações ocorridas no período posterior à Segunda Guerra
Mundial. Os avanços tecnológicos, aliados ao discurso de desenvolvimento e
modernização pela via científica, levou à implementação de um modelo de agricultura em
escala nacional (este processo ocorreu também em diversos outros países do chamado
Terceiro Mundo) baseado em uma intensificação tecnológica e na substituição de fatores
biológicos por processos industriais. Este viés de desenvolvimento estava vinculado a um
paradigma científico associado ao pensamento newtoniano-cartesiano, nas palavras de
Fritjof Capra, pois compreende a realidade de maneira fragmentária, a partir de uma
simples interação de cada uma das partes que a constituem. Esta visão, segundo muitos
autores que analisaram os impactos da agricultura moderna do período, significou a
sustentação de valores e de uma forma de pensamento que falham ao não considerar a
realidade em sua complexidade, deixando escapar algumas questões centrais colocadas
à humanidade pelo próprio desenvolvimento científico a que havia chegado no final do
século XX.
Nesse sentido, a agroecologia surge no esteio de uma série de debates que

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envolviam a necessidade de se promover uma postura científica que pudesse integrar o
homem ao seu meio. Assim também foi o nascimento do campo da história ambiental,
que se preocupou mais especificamente com as relações de interdependência e
interdeterminações entre o mundo natural e humano. No momento abordado, ou seja, as
duas décadas entre 1960 e o fim de 1970, os debates públicos e científicos no mundo
ocidental engendraram uma visão de mundo coerente com o paradigma sistêmico
apontado por Capra. Contudo, as opções pelo modelo de desenvolvimento não se
guiaram pelos modelos emergentes e sistêmicos, sustentando, ao contrário, uma forma
de intervenção tecnológica há muito gestada pelo pensamento racionalista e que naquele
momento era levada a extremos ainda não conhecidos pela humanidade.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Jalcione. Tecnologias agrícolas “alternativas”: nascimento de um novo


paradigma? Ensaios FEE, Porto Alegre,v.19, n.2, p.116-131, 1998.
ALTIERI, Miguel. Agroecologia: bases científicas para uma agricultura sustentável. São
Paulo, Rio de Janeiro: Expressão Popular, AS-PTA, 2012.
CAPRA, Fritjof. O ponto de Mutação. São Paulo: Ed. Círculo do Livro, 1982.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914 – 1991). São Paulo: Cia
das Letras, 1995.
LEFF, Enrique. Agroecologia e saber ambiental. Agroecologia e Desenvolvimento
Rural Sustentável, Porto Alegre, v.3, n.1, p.36-51, jan./mar. 2002.
GUHUR, Dominique M. P.; TONÁ, Nilciney. ‘Agroecologia’. In: CALDART et al (orgs.).
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Venâncio, Expressão Popular, 2012, p. 57-64.
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McCORMICK, John. Rumo ao paraíso: a história do movimento ambientalista. Rio de
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PEREIRA, Mônica Cox de Britto. ‘Revolução Verde’. In: CALDART et al (orgs.).
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Venâncio, Expressão Popular, 2012, p. 685-689.
WORSTER, Donald. Transformações da Terra: para uma perspectiva agroecológica na

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história. Ambiente & Sociedade, Campinas, v.6, n.1, p.23-44, jan./jul. 2003.

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