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A violência de gênero no âmbito

do transporte público brasileiro


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Publicado por Laura Vilaça

há 3 anos

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A violência motivada pelo gênero é tema impulsionador de


estudos e discussões que avançam para as mais diversas áreas
do conhecimento, englobando a história do comportamento do
homem enquanto ser social, passando pela psicologia,
perfilhando a sociologia, até mergulhar no campo jurídico com
o estudo da evolução legislativa no que tange à proteção do
gênero. Dado o seu índice alarmante de incidência e a forma
como é vista e legitimada por grande parte da sociedade, torna-
se cada vez mais pertinente a elaboração de leis sob uma
perspectiva de gênero, sem, contudo, ultrapassar o limiar da
busca pela igualdade.

Há diferentes formas de manifestação da violência de gênero, a


qual se encontra arraigada numa estrutura social que teve sua
base fortemente construída na noção de dominação de gênero.
A relação estabelecida de opressor e oprimido nos remete a
sociedades ainda pré-históricas, motivo pelo qual importante
se faz que a questão do gênero seja analisada sob uma
perspectiva global.

O espaço público como ambiente de interação social


desempenha papel fundamental na reprodução de conceitos e
concepções entranhados na cultura de cada sociedade. Neste
contexto o transporte público urbano, juntamente com as
crescentes taxas de urbanização e aglomeração humana, se
torna palco de inter-relações sociais que alimentam estre
processo de produção e reprodução do espaço.

É neste contexto que o presente artigo encaixa a violência


contra as mulheres no âmbito da utilização dos transportes
públicos coletivos e seu entorno. Esta violência se dá por meio
de práticas de assédio e abuso sexual exercidas mormente por
homens sobre mulheres e meninas, usuárias destes transportes
urbanos e de sua infraestrutura de acesso.

Temos no Brasil os ônibus e metrôs como a principal matriz de


transportes do país, e o nosso maior desafio é oferecer um
serviço que atenda as peculiaridades de seus usuários, sem que
desta forme acabemos por acentuar as desigualdades entre
eles.

Em Assembleia Geral das Nações Unidas, no ano de 1995,


sobre Eliminação da Violência contra as Mulheres, aprovada
em 1993, passou-se a utilizar o termo “Violência de Gênero ou
violência contra as mulheres” para se referir a todo e qualquer
ato de violência motivado no pertencimento ao sexo feminino,
que tenha ou possa vir a ter como resultado um dano ou
sofrimento, seja ele físico ou psicológico, para as mulheres.
Este conceito abrange inclusive os atos de coação ou privação
arbitrária da liberdade, tanto na vida pública como na privada.

A grande dificuldade reside no fato de que a violência contra a


mulher ainda é tida em nossa sociedade como uma das mais
"normais". Em pesquisa feita em 2014 pelo Sistema de
Indicadores de Percepção Social (SIPS) do Ipea, acerca da
tolerância à violência contra a mulher na sociedade brasileira,
dos 3.810 entrevistados, 58% concordam, total ou
parcialmente, que a quantidade de estupros é resultado do
comportamento “inadequado” das mulheres; 63%
concordaram, total ou parcialmente, que casos de violência
dentro de casa não devem receber interferência de terceiros, e
devem ser discutidos apenas entre os membros da família;
54,9% dos entrevistados concordaram, total ou parcialmente,
com a frase “tem mulher que é pra casar, tem mulher que é pra
cama”; por fim, quase 64% dos entrevistados concordam,
parcialmente ou totalmente, com a ideia de que “os homens
devem ser a cabeça do lar”.

Os dados acima demonstram que o Brasil ainda caminha a


passos lentos rumo à democratização social e ao alcance da
igualdade entre homens e mulheres prevista em
nossa Constituição Federal de 1988. Herança do pensamento
patriarcal, a sociedade brasileira se organiza com base na
dominação de homens sobre mulheres, que ainda são tratadas
como a classe oprimida e sujeita às autoridades, vontades e
poder masculinos. As mudanças, ainda que tímidas, acontecem
graças ao ativismo feminista que, desde os anos 70, luta pela
dissolução da figura do poder nas mãos do homem branco
heterossexual.
Quando a violência motivada pelo gênero é trazida para o
âmbito dos transportes públicos coletivos, temos inúmeros
relatos de usuárias de ônibus, metrôs e trens que sofrem
diariamente agressões de cunho sexual no interior de veículos
de transporte público e, também, fora deles, no deslocamento
da parada obrigatória do ônibus ou da estação do metrô até o
destino final. Os altos números de relatos de vítimas,
testemunhas e denúncias fazem com que essa importante
parcela de usuárias tenha de conviver com o medo e a
insegurança ao se deslocarem até o trabalho, ou até a escola,
etc.

Segundo pesquisa Datafolha realizada em outubro de 2015 na


capital paulista, o transporte público é o local onde mais
ocorrem casos de assédio sexual, e as maiores vítimas são as
mulheres. Segundo levantamento, 74% dos 1.092 entrevistados
que declararam já ter sofrido algum tipo de assédio sexual no
interior de transportes coletivos urbanos pertencem ao sexo
feminino. Dentre os entrevistados, 35% disseram já terem sido
vítimas de algum tipo de assédio nestes ambientes. 22% delas
alegam ter sido alvo de assédio físico, 8% sofreram assédio
verbal, e 4% foram vítimas de ambos.
As mulheres são a parcela da população que mais sofre com o
medo do roubo, do ataque e do assédio no transporte público, o
que acaba por restringir seu uso e sua mobilidade, por serem
mais vulneráveis a ataques e assédios do que os homens. Isto
reflete num menor número de viagens realizadas por mulheres
em horários mais avançados da noite, por considerarem os
espaços de transporte público, tais como pontos de ônibus,
estações de metrô, terminais e interior dos veículos, como os
mais perigosos para uma mulher. Como os abusos não se
restringem ao interior dos veículos, muitas das vítimas optam
pelo silêncio, por temerem sofrer algum tipo de violência ou
perseguição no trajeto que têm de percorrer a pé para
chegarem ao destino desejado, e acabam por sequer denunciar
os atos dos abusadores.

Segundo estatísticas do Distrito Federal, 90% das mulheres


que sofrem abusos nos metrôs e ônibus urbanos não
denunciam, justamente pelo medo da violência que podem vir
a sofrer ao deixarem o veículo, mas também por vergonha e
constrangimento pelo assédio, e muitas vezes até mesmo por
não encontrarem amparo ou orientação por parte dos
funcionários das empresas em situações como estas.

É neste contexto que entram as iniciativas populares de


conscientização da população, os protestos e manifestações da
sociedade civil, bem como as leis e as políticas públicas
implantadas pelos Poderes Públicos. Não basta, todavia, que as
iniciativas beneficiem o segmento feminino da população.
Necessário se faz que estas ações integrem uma perspectiva de
gênero, de forma a alcançar a redução das desigualdades entre
homens e mulheres. Busca-se, assim, esta integração da
perspectiva de gênero por toda política pública, de forma que
as questões envolvendo as mulheres sejam contempladas
sempre que se formular e implementar alguma política pública.

Para tanto, é necessário agir com cautela e estudos


aprofundados das questões atinentes ao gênero e à violência, a
fim de que o "tiro não saia pela culatra" e as iniciativas acabem
por acentuar as desigualdades entre homens e mulheres.
Infelizmente, há políticas e iniciativas que, ainda que tenham
as mulheres como foco ou que a elas dirijam ações específicas,
acabam por reafirmar as desigualdades de gênero, reiterando
uma posição tutelada e de sujeição da mulher ao homem, tanto
na esfera pública, como na privada.

A política de transporte urbano deveria ser exercida de forma a


melhorar a inclusão social, visando o aumento da qualidade e
da eficiência do serviço prestado pelos transportes coletivos,
sem deixar de atender as necessidades mais peculiares de seus
usuários. Acredito que a elaboração de leis e de políticas
públicas calcadas na perspectiva de gênero é o meio mais
próximo de alcançar essa tão sonhada igualdade.

Laura Vilaça
Laura Aquino Vilaça, potiguar de nascimento, paulista de criação, mineira de coração. Formada em
Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto/UFOP desde dez. de 2015, Direito Administrativo e
Trabalhista fazem meu coração bater mais forte. Apaixonada por leitura, me interessa debater e
discutir questões atinentes aos direitos humanos e às minorias. Buscando sempre aprendizado nos
livros e com meus colegas de profissão, quero utilizar o poder transformador do Direito para exercer
uma advocacia mais humanitária e acessível a todos. Sintam-se à vontade para perguntar e também
compartilhar saberes.
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8 Comentários
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Ítalo Rosendo
2 anos atrás

Excelente artigo, é de suma importância a permanência constante


desse tema em pauta, com o protagonismo feminino para que
possamos caminhar a construção de uma sociedade em que as
mulheres tenham sua liberdade plena, sem nenhum tipo de restrição,
cujo natureza reside na cultura patriarcal.

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Sérgio Diniz Silva


2 anos atrás

O feminismo fortalece o machismo!


São as duas faces da mesma moeda!

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Edson Carli
2 anos atrás

Com base em que estudo você diz isso? Nos estudos da Judith Butler,
"Feminism in Any Other Name" e Messer-Davidow "Disciplining
feminism: from social activism to academic discourse " contesta o que
você afirmou. Nos lugares que o feminismo surgiu a diferença por
gênero torou-se evidente e a sociedade precisou mudar para que as
diferenças sexistas diminuíssem.

Antonio de Carvalho
2 anos atrás

Por tudo isso e muito mais o Congresso deve, urgentemente, aprovar


o Projeto de Lei n. 5398/13, do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), que
estabelece a castração química como condição para o condenado por
estupro voltar à vida em sociedade, além de prever aumento das
penas para estupradores maiores de 14 e menores de 18 anos.
Medidas drásticas é verdade, mas, diante da impunidade que reina
neste país, já servem de algum consolo às vítimas, vez que são
relegadas ao esquecimento pelos 'direitusdusmanu" que parece existir
tão somente a defender a parte opressora do crime.

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Laura Vilaça
2 anos atrás

Ora, discordo. Nosso Código Penal já prevê prisão que pode variar de
6 a 30 anos para aquele condenado por estupro, ocorre que a
penalização por si só é e sempre será ineficaz na função de inibir o
criminoso. Temos um árduo caminho percorrido pela mulher vitima
de estupro até que se chegue à abertura da ação penal e,
posteriormente, à condenação do indivíduo. Inicialmente, vale
lembrar que a vitima de estupro, antes mesmo de chegar às
autoridades, ainda enfrenta forte culpabilizaçao. Antes de se buscar
apurar os fatos e quem o cometeu, a sociedade primeiramente realiza
um julgamento moral da vitima, questionando suas roupas, suas
palavras, os lugares que ela frequenta. Parece ainda difícil entender
que a culpa não é da vítima, mas de quem comete o crime. Pois bem, a
mulher que bravamente consegue vencer tamanha exposiçao, já com o
psicológico completamente abalado, chega às autoridades e não
encontra o amparo legal e social que lhe encoragem a sequer dar
início à denúncia. Nos casos de estupro que acompanhei, as vítimas
desistiram da denuncia antes mesmo de faze-la. O depoimento inicial
da vitima vem sempre acompanhado de comentários do tipo "tem
certeza que você não consentiu?", "mas você tinha até bebido", e de
todos o que mais ouvi foi "porque você sabe que vai acabar com a vida
do cara né, então pensa bem". O fato é que não temos profissionais
preparados para atender as vítimas de crimes sexuais sob um enfoque
do gênero, não há delegacias da Mulher em todas as cidades e as
poucas que existem são falhas e passam longe de cumprir o propósito
para o qual foram criadas. Repito: não carecemos de penalidades,
carecemos de amparo à vitima para que ela chegue às autoridades,
denuncie, leve o caso a julgamento, e este receba uma pena justa. Me
parece que o problema passa longe de ser o grau da pena aplicada ao
criminoso, inclusive este tipo de projeto de lei, vindo de um
parlamentar que não mede palavras para incitar o ódio, a violência e o
estupro contra a mulher - e que com esse discurso demagogo anda a
conquistar uma legião de fãs - , é para mim de uma mediocridade
alarmante. Não me dei e não me darei ao trabalho de ler este projeto
de lei, mas seria interessante saber se ele prevê castração química
também a quem incita e incentiva a cultura do estupro ao proferir em
rede nacional disparates contra as parlamentares do sexo feminino.
Creio que não. Trata-se de só mais um projeticulo de lei de origem e
intenções duvidosas onde sobra demagogia, hipocrisia e
mediocridade, e falta inteligência.

Edson Carli
2 anos atrás

A questão não é castrar o estuprador, é ensinar a respeitar as


mulheres. Não adianta ter uma sociedade de castrados e elas ainda
receberem menos, não terem respeito. O problema é como
enxergamos as mulheres.

Decio Gomes
2 anos atrás

São as duas faces da mesma moeda!

Projeto de Lei n. 5398/13, do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), que


estabelece a castração química como condição para o condenado por
estupro voltar à vida em sociedade, além de prever aumento das
penas para estupradores maiores de 14 e menores de 18 anos.

Nosso Código Penal já prevê prisão que pode variar de 6 a 30 anos


para aquele condenado por estupro, ocorre que a penalização por si só
é e sempre será ineficaz na função de inibir o criminoso. Temos um
árduo caminho percorrido pela mulher vitima de estupro até que se
chegue à abertura da ação penal e, posteriormente, à condenação do
indivíduo.

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