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Professor EBTT - Educação Pedagogia

ALVES -MAZZOTTI, A. J.; GEWANDSZNAJDER, F. O método nas ciências naturais e sociais:


pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002 ................................... 1
ARROYO, M. J. Currículo, território em disputa. Petrópolis: Vozes, 2011 ............................................ 5
CUNHA, M. C. da. Índios no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2013 ................................................... 7
FRANCO, A. S.; PIMENTA, S. G. (Org.). Didática: embates contemporâneos. São Paulo:Edições
Loyola, 2010 ............................................................................................................................................. 8
GHEDIN, E.; FRANCO, M. A. S. Questões de método na construção da pesquisa em educação. São
Paulo: Cortez, 2008. .............................................................................................................................. 10
LA TAYLLE, Y. de, OLIVEIRA, M. K. de, DANTAS, H. Piaget, Vygotsky e Wallon: teoria psicogenéticas
em discussão. São Paulo: Summus, 1992 ............................................................................................. 11
LAKATOS, E. M. Fundamentos de metodologia científica. São Paulo: Atlas, 2007............................ 16
LIBÂNEO, J. C.; OLIVEIRA, J. F.; TOSHI, M. S. Educação escolar: políticas, estrutura e organização.
10. ed. São Paulo: Cortez, 2012. (Coleção Docência em Formação: Saberes Pedagógicos). ............... 18
LINS, B. A.; MACHADO, B. F.; ESCOURA, M. Diferentes, não desiguais: a questão de gênero na
escola. São Paulo, Revira Volta, 2016. .................................................................................................. 25
MACHADO, N. Epistemologia e Didática: as concepções de conhecimento e inteligência e a prática
docente. São Paulo: Cortez, 1995. ........................................................................................................ 26
MUNANGA, K. (Org.) Superando o Racismo na Escola. Brasília: MEC/SECAD, 2005. .................... 28
NOGUEIRA, M. A., CATANI, A. M. (Org.). Pierre Bourdieu: escritos de educação. Petrópolis: Vozes,
1998. ..................................................................................................................................................... 91
OLIVERIA, Z. R. Educação Infantil: fundamentos e métodos. 7. ed. São Paulo, Cortez, 2018. ........ 93
PIMENTA, S. G. Professor Reflexivo no Brasil. Gênese e crítica de um conceito. São Paulo: Cortez,
2015. ..................................................................................................................................................... 97
SAVIANI, D. Do senso comum à consciência filosófica. 18. ed. Campinas: Autores Associados, 2009.
(Coleção educação contemporânea). .................................................................................................... 99
______. História das ideias pedagógicas no Brasil. 2. ed. Campinas: Autores Associados, 2008. ... 102
SILVA, T. T. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias de currículo. 3. ed. Editora
Autêntica. ............................................................................................................................................ 107
SILVA JR., J.R.; SGUISSARDI, V. Novas Faces da educação superior no Brasil. São Paulo: Cortez;
Bragança Paulista: USF-IFAN, 2001. .................................................................................................. 109
TANAMACHI, E.R.; PROENÇA, M.; ROCHA, M. L. (Org.). Psicologia e Educação:desafios teórico-
práticos. 1.ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000. .......................................................................... 109
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos
superiores. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ..................................................................................... 110

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ALVES -MAZZOTTI, A. J.; GEWANDSZNAJDER, F. O método nas ciências
naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo: Pioneira
Thomson Learning, 2002.

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O MÉTODO NAS CIÊNCIAS NATURAIS E SOCIAIS 1

O livro é constituído de duas partes, cada uma delas sob a responsabilidade de um autor, traduzindo
sua experiência e fundamentação sobre o método científico, em abordagens que se complementam.
Na primeira parte, GEWANDSZNAJDER discute, em quatro capítulos, o método nas ciências naturais,
apresentando conceitos básicos como o da lei, teoria e teste controlado.
No capitulo inicial há uma visão geral do método nas ciências naturais e um alerta sobre a não
concordância completa entre filósofos da ciência sobre as características do método científico. Muitos
concordam que há um método para testar criticamente e selecionar as melhores hipóteses e teorias.
Neste sentido diz que há um método cientifico, em que a observação, a coleta dos dados e as
experiências são feitas conforme interesses, expectativas ou ideias preconcebidas, e não com
neutralidade. São formuladas teorias que devem ser encaradas como explicações parciais, hipotéticas e
provisórias da realidade.
O segundo capítulo trata dos pressupostos filosóficos do método científico, destacando as
características do positivismo lógico, segundo o qual o conhecimento factual ou empírico deve ser obtido
a partir da observação, pelo método indutivo, bem como as críticas aos positivistas, cujo objetivo central
era justificar ou legitimar o conhecimento científico, estabelecendo seus fundamentos lógicos e empíricos.
A partir das críticas à indução, o filósofo Karl Popper (1902- 1994) construiu o racionalismo crítico, sua
visão do método cientifico e do conhecimento em geral, dizendo que ambos progridem através de
conjecturas e refutações, sendo que a tentativa de refutação conta com o apoio da lógica dedutiva, que
passa a ser um instrumento de crítica.
Apoiados em sua visão da história da ciência, Thomas Kuhn ( 1922- 1996) , Lakatos e Feyerabend,
entre outros, criticam tanto Popper quanto os indutivistas, alegando que sempre é possível fazer
alterações nas hipóteses e teorias auxiliares quando uma previsão não se realiza.
Kuhn destaca o conceito de paradigma como uma espécie de “teoria ampliada”, formada por leis,
conceitos modelos, analogias, valores, regras para a avaliação de teorias e formulação de problemas,
princípios metafísicos e “exemplares”. Tais paradigmas orientam a pesquisa cientifica; sua força seria
tanta que determinaria até mesmo como um fenômeno é percebido pelos cientistas, o que explica por
que as revoluções cientificas são raras: em vez de abandonar teorias refutadas, os cientistas se ocupam
com a pesquisa cientifica orientada por um paradigma e baseada em um consenso entre especialistas.
Nos períodos chamados de “Revoluções Cientificas”, ocorre uma mudança de paradigma; novos
fenômenos são descobertos, conhecimentos antigos são abandonados e há uma mudança radical na
prática cientifica e na “visão de mundo” do cientista.
A partir do final dos anos sessenta, a Escola de Edimburgo, defende que a avaliação das teorias
cientificas e seu próprio conteúdo são determinados por fatores sociais. Assume as principais teses da
nova Filosofia da Ciência e conclui que o resultado da pesquisa seria menos uma descrição da natureza
do que uma construção social.
O terceiro capítulo busca estimular uma reflexão crítica sobre a natureza dos procedimentos utilizados
na pesquisa cientifica. Destaca que a percepção de um problema deflagra o raciocínio e a pesquisa,
levando-nos a formular hipóteses e a realizar observações.
Importantes descobertas não foram totalmente casuais, nem os cientistas realizavam observações
passivas, mas mobilizavam-se à procura de algo, criando hipóteses ousadas e pertinentes, o que
aproxima a atividade cientifica de uma obra de arte.
Visando apreender o real, selecionamos aspectos da realidade e construímos um modelo do objeto a
ser estudado. Mas isto não basta: há que se enunciar leis que descrevam seu comportamento. O conjunto
formado pela reunião do modelo com as leis e as hipóteses constitui a teoria cientifica.

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https://bit.ly/2Q9fyno

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A partir do modelo, que representa uma imagem simplificada dos fatos, pode-se corrigir uma lei,
enunciando outra mais geral, como ocorreu com Lavoisier, que estabeleceu os alicerces da química
moderna.
No quarto capitulo, GEWANDSZNAJDER conclui a primeira parte da obra, comparando a ciência a
outras formas de conhecimento, mostrando que tal distinção nem sempre é nítida e, que aquilo que
atualmente não pertence à ciência, poderá pertencer no futuro. Apresenta críticas a áreas cujos
conhecimentos não são aceitos por toda a comunidade cientifica, como: paranormalidade, ufologia,
criacionismo, homeopatia, astrologia.
Na maioria das vezes, o senso comum, formado pelo conjunto de crenças e opiniões, limita-se a tentar
resolver problemas de ordem prática.

Assim, enquanto determinado conhecimento funcionar bem, dentro das finalidades para as quais foi
criado, continuará sendo usado. Já o conhecimento cientifico procura sistematicamente criticar uma
hipótese, mesmo que ela resolva satisfatoriamente os problemas para os quais foi concebida. Em ciência
procura-se aplicar uma hipótese para resolver novos problemas, ampliando seu campo de ação para além
dos limites de objetivos práticos e problemas cotidianos.

Na segunda parte do livro, Alves-Mazzotti discute a questão do método nas ciências sociais, com
ênfase nas metodologias qualitativas, analisando seus fundamentos. Coloca que não há um modelo único
para se construir conhecimentos confiáveis, e sim modelos adequados ou inadequados ao que se
pretende investigar e que as ciências sociais vêm desenvolvendo modelos próprios de investigação, além
de propor critérios para orientar o desenvolvimento da pesquisa, avaliar o rigor dos procedimentos e a
confiabilidade das conclusões que não prescindem de evidências e argumentação sólida.
O capítulo cinco analisa as raízes da crise dos paradigmas, situando historicamente a discussão sobre
a cientificidade das ciências sociais. Enfatiza fatos que contribuíram para estremecer a crença na ciência,
como os questionamentos de Kuhn, nos anos sessenta, sobre a objetividade e a racionalidade da ciência
e a retomada das críticas da Escola de Frankfurt, referentes aos aspectos ideológicos da atitude cientifica
dominante.
Mostra que os argumentos de Kuhn, relativos à impossibilidade de avaliação objetiva de teorias
cientificas, provocaram reações opostas, a saber: tomados às últimas consequências, levaram ao
relativismo, representado pelo “vale tudo” de Feyerabend e pelo construtivismo social da Sociologia do
Conhecimento. De outro lado, tais argumentos foram criticados à exaustão, visando indicar seus exageros
e afirmando a possibilidade de uma ciência que procure a objetividade, sem confundi-la com certeza.
E ainda, diversos cientistas sociais, mobilizados pelas críticas à ciência tradicional feitas pela Escola
de Frankfurt, partindo de outra perspectiva, procuravam caminhos para a efetivação de uma ciência mais
compromissada com a transformação social.
Em tal contexto, adquirem destaque nas ciências sociais, os modelos alternativos ao positivismo, como
a teoria crítica, expondo o conflito entre o positivismo e a visão dialética. Esgotado o paradigma positivista,
adquire destaque, na década de setenta, o paradigma qualitativo, abrindo espaço para a invenção e o
estudo de problemas que não caberiam nos rígidos limites do paradigma anterior.
A discussão contemporânea propõe compromisso com princípios básicos do método cientifico, como
clareza, consenso, linguagem formalizada, capacidade de previsão, conjunto de conhecimentos que
sirvam de guia para a ação(modelos).
A análise das posições indica flexibilização dos critérios de cientificidade, preocupação com clareza
do discurso cientifico permitindo crítica fundamentada, explicação e não apenas descrição dos
fenômenos. O capítulo seis apresenta aspectos relativos ao debate sobre o paradigma qualitativo na
década de oitenta. Inicialmente, caracteriza a abordagem qualitativa por oposição ao positivismo, visto
muitas vezes de maneira ingênua.
Wolcott denuncia a confusão na área, Lincoln e Guba denominam o novo paradigma de construtivista
e Patton capta o que há de mais geral entre as modalidades incluídas nessa abordagem, indicando que
seguem a tradição compreensiva ou interpretativa.
Na Conferência dos Paradigmas Alternativos, em 1989, são apresentados como sucessores do
positivismo:

Construtivismo Social, influenciado pelo relativismo e pela fenomenologia, enfatizando a


intencionalidade dos atos humanos e privilegiando as percepções. Considera que a adoção de teorias a
priori na pesquisa turva a visão do observado.

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Pós – positivismo - Defende a adoção do método científico nas ciências sociais, preferindo modelos
experimentais com teste de hipóteses, tendo como objetivo último a formulação de teorias explicativas
de relações causais.
Teoria Crítica, onde o termo assume, pelo menos, dois sentidos distintos: (1) Análise rigorosa da
argumentação e do método; (2) Ênfase na análise das condições de regulação social, desigualdade e
poder.

Os teóricos – críticos enfatizam o papel da ciência na transformação da sociedade, embora a forma


de envolvimento do cientista nesse processo de transformação seja objeto de debate. Ao contrário dos
construtivistas e dos pós-positivistas, questionam a dicotomia objetivo/subjetivo, implicando oposições,
declarando que esta é uma simplificação que, em vez de esclarecer confunde. Para eles subjetividade
não é algo a ser expurgado da pesquisa, mas que precisa ser admitido e compreendido como parte da
construção dos significados inerente às relações sociais que se estabelecem no campo pesquisado. Tem
que ser entendida como sendo determinada por múltiplas relações de poder e interesses de classe, raça
gênero, idade e orientação sexual. Conceito que deve ser discutido em relação à consciência e às
relações de poder que envolvem tanto o pesquisador como os pesquisados.
Como organizador da citada conferência, Guba retratou as ambiguidades, confusões e discordâncias
existentes, visando estimular a continuação das discussões. A diferença entre as três posições reside na
ênfase atribuída e, especialmente, nas consequências derivadas dessas questões: o papel da teoria, dos
valores e a subdeterminarão da teoria.

Na prática, observa-se com frequência a coexistência de características atribuídas a diferentes


paradigmas.
No capítulo sete estuda-se o planejamento de pesquisas qualitativas, discutem-se alternativas e
sugestões, acompanhadas de exemplos que auxiliam o planejamento e desenvolvimento de pesquisas.
Ao contrário das quantitativas, as investigações qualitativas não admitem regras precisas, aplicáveis a
uma infinidade de casos, por sua diversidade e flexibilidade. Diferem também quanto aos aspectos que
podem ser definidos no projeto. Enquanto os pós-positivistas trabalham com projetos bem detalhados, os
construtivistas sociais defendem um mínimo de estruturação prévia, definindo os aspectos referentes à
pesquisa, no decorrer do processo de investigação.
Para a autora, um projeto de pesquisa consiste basicamente em um plano para uma investigação
sistemática que busca uma compreensão mais elaborada de determinado problema.
Seja qual for o paradigma em que está operando, o projeto deve indicar: o que se pretende investigar;
como se planejou conduzir a investigação; porque o estudo é relevante.
Encerrando a obra, o capítulo oito trata da revisão da bibliografia, destacando dois aspectos
pertinentes à pesquisa: (1) análise de pesquisas anteriores sobre o mesmo tema e ou sobre temas
correlatos; (2) discussão do referencial teórico.
Sendo a produção do conhecimento uma construção coletiva da comunidade científica, o pesquisador
formulará um problema, situando-se e analisando criticamente o estado atual do conhecimento em sua
área de interesse, comparando e criticando abordagens teórico-metodológicas e avaliando o peso e
confiabilidade de resultados de pesquisas, identificando pontos de consensos, controvérsias, regiões de
sombra e lacunas que merecem ser esclarecidas. Posicionar-se-á quanto ao referencial teórico a ser
utilizado e seguirá o plano estabelecido.

De um modo geral, os autores apoiam-se em diversos estudiosos para emitir suas conclusões. Numa
das poucas oportunidades em que declara suas próprias ideias, GEWANDSZNAJDER nos lembra que a
decisão de adotar uma postura crítica, de procurar a verdade e valorizar a objetividade é uma decisão
livre. Alerta-nos que determinadas escolhas geram consequências que poderão ser consideradas
indesejáveis pelo sujeito ou pela comunidade. Supondo, num exemplo extremo, que se decida “afrouxar”
os padrões da crítica a ponto de abandonar o uso de argumentos e a possibilidade de corrigir-se os
próprios erros com a experiência, não mais distinguiríamos uma opinião racional, consequência de
ponderações, críticas e discussões que consideram diferentes posições, de um simples preconceito, que
se utiliza de conceitos falsos para julgar pessoas pelo grupo a que pertencem, levando a discriminações.

Também aqui sua conclusão apoia-se em um autor: “Finalmente como diz Popper, se admitimos não
ser possível chegar a um consenso através de argumentos, só resta o convencimento pela autoridade.
Portanto, a falta de discussão crítica seria substituída por decisões autoritárias, soluções arbitrárias e
dogmáticas – e até violentas – para se decidir uma disputa” (pág 64).

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Com este discurso, incentiva-nos a reagir à acomodação e falsa neutralidade, mostrando nossa
responsabilidade em tudo que fazemos e criamos, pois a decisão final será sempre um ato de valor e
pode ser esclarecida pelo pensamento, através da análise das consequências posições de determinada
decisão.
Respaldando, ainda, suas opiniões em autores de peso, destaca que a história da ciência mostra que
nas revoluções científicas não há mudanças radicais no significado de todos os conceitos, sendo utilizada
uma linguagem capaz de ser compreendida por ambos os lados.
Enfatiza que a maioria dos problemas estudados pelos cientistas surge a partir de um conjunto de
teorias científicas que funciona como um conhecimento de base. E é este conhecimento de base que
procura nos fornecer, deixando claro que a formulação e resolução de problemas só podem ser feitas por
quem tem um bom conhecimento das teorias científicas de sua área. Completa dizendo que um bom
cientista não se limita a resolver problemas, mas também formula questões originais e descobre
problemas onde outros viam apenas fatos banais, pois “os ventos só ajudam aos navegadores que têm
um objetivo definido”.(pág. 66).
Alves – Mazzotti, esclarece que os teórico-críticos enfatizam o papel da ciência na transformação da
sociedade, apesar da forma de envolvimento do cientista nesse processo de transformação como objeto
de debate. Complementa coma posição de diferentes autores sobre cientistas sociais, parceiros na
formação de agendas sociais através de sua prática científica, sendo esse envolvimento e a militância
política questões distintas. Enfatiza que a diferença básica entre a teoria crítica e as demais abordagens
qualitativas está na motivação política dos pesquisadores e nas questões sobre desigualdade e
dominação que, em consequência, permeiam seus trabalhos.
Coerente com essas preocupações, a abordagem crítica é essencialmente relacional: busca investigar
o que ocorre nos grupos e instituições relacionando as ações humanas com a cultura e as estruturas
sociais e políticas, procurando entender de que forma as redes de poder são produzidas, mediadas e
transformadas. Parte do pressuposto de que nenhum processo social pode ser compreendido de forma
isolada, como instância neutra, acima dos conflitos ideológicos da sociedade. Ao contrário, estão sempre
profundamente ligados, vinculados, às desigualdades culturais, econômicas e políticas que dominam
nossa sociedade.
Os autores concluem que coexistem atualmente diferentes linhas filosóficas acerca da natureza do
método cientifico, o que também é válido em relação aos critérios para avaliação das teorias cientificas.
Concordam, também, que a pesquisa nas ciências sociais se caracteriza por uma multiplicidade de
abordagens, com pressupostos, metodologias e estilos diversos.
Finalmente, deixam claro que o uso do método científico não pode ser considerado de maneira
independente dos conceitos ou das bases teóricas, implícita ou explicitamente, envolvidos na pesquisa.

A obra fornece subsídios à nossa pesquisa científica, à medida que trata dos principais
autores/protagonistas da discussão/construção do método cientifico na história mais recente, reportando-
se a esclarecimentos mais distantes sempre que necessário.
Com sólidos conhecimentos acerca do desenrolar histórico, os autores empenham-se em apresentar
clara e detalhadamente as circunstâncias e características da pesquisa cientifica, levando-nos a
compreender as ideias básicas das várias linhas filosóficas contemporâneas, bem como a descobrir uma
nova maneira de ver o que já havia sido visto, estudado.
É uma leitura que exige conhecimentos prévios para ser entendida, além de diversas releituras e
pesquisas quanto a conceitos, autores e contextos apresentados, uma vez que as conclusões emergem
a partir de esclarecimentos e posições de diversos estudiosos da ciência e suas aplicações e posturas
quanto ao método científico.
Com estilo claro o objetivo, os autores dão esclarecimentos sobre o método cientifico nas ciências
naturais e sociais, exemplificando, impulsionando reflexão crítica e discussão teórica sobre fundamentos
filosóficos. Com isso auxiliam sobremaneira a elaboração do nosso plano de pesquisa.
Os exemplos citados amplamente nos auxiliam na compreensão da atividade científica e nos
possibilitam analisar e confrontar várias posições, a fim de chegarmos à nossa própria fundamentação
teórica, decidindo-nos por uma linha de pesquisa. Mostram-nos a imensa possibilidade de trabalhos que
existe no campo da ciência, além de nos encaminhar para exposições mais detalhadas a respeito de
determinados tópicos abordados, relacionando autores e bibliografia específicas.
Finalmente, com o estudo dessa obra, podemos amadurecer mas, inclusive para aceitar e até solicitar
crítica rigorosa, que em muito pode enriquecer nosso trabalho.

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ARROYO, M. J. Currículo, território em disputa. Petrópolis: Vozes, 2011.

O que há de novo nas disputas curriculares?2

A concepção de currículo como campo de disputa não é nova, pois veio à tona, internacionalmente,
nos anos de 1970 e, no Brasil, nos anos de 1980.
Revelou-se, desde então, um importante balizador para a análise das relações de poder que envolvem
os currículos. O próprio professor Miguel Arroyo contribuiu fortemente para o debate dessa época.
Se o referido tema não é novo, qual é o acréscimo que traz o último livro de Arroyo, Currículo, território
em disputa? O autor destaca que o currículo não é apenas território de disputas teóricas. Quem disputa
vez nos currículos são os sujeitos da ação educativa: os docentes-educadores e os alunos-educandos.
Os professores e alunos não se pensam apenas como ensinantes e aprendizes dos conhecimentos dos
currículos, mas exigem ser reconhecidos como sujeitos de experiências sociais e de saberes que
requerem ter vez no território dos currículos.
Arroyo aponta ainda duas novidades:
1) o currículo oficial está cada vez mais pressionado pelos coletivos populares, que exigem o direito
de ver suas narrativas também pronunciadas pela escola;
2) entretanto, esses coletivos, por sua vez, não lutam mais pela escolarização em si; aos poucos
passaram a entender que o processo de sua afirmação como sujeitos de direitos não se dá
exclusivamente pela escola (promessa apregoada por muito tempo). Agora, a luta é por pertencimento
social amplo, por acesso aos bens materiais e culturais, simbólicos e memoriais, na diversidade de
espaços sociais, onde o direito à escola adquire outra relevância. Assim, os coletivos populares,
embalados por um amplo movimento de afirmação, inverteram a antiga lógica: articulam o seu direito à
escola à conquista e ocupação de outros espaços e, com isso, pressionam o currículo oficial para
incorporar o resultado de suas lutas.

Isso não significa que o currículo oficial perdeu sua força controladora, mas sim que algo realmente
forte inaugurou-se: a possibilidade de que as histórias-memórias dos diversos sujeitos sejam contadas,
ainda que por meio de outras linguagens. Assim, não se trata de uma vitória final dos coletivos populares
sobre o Estado, mas de uma nova estratégia de luta que tem alterado o lugar da escolarização na visão
desses coletivos, e também na visão da academia, que vendia a ideia de que a escolarização retiraria os
brasileiros da subcidadania. Também não se trata de uma prática completamente difundida e consolidada
entre os professores, mas apenas de um desenho alternativo de currículo onde os saberes da docência
tenham vez.
Obviamente, a escola continua importante para esses sujeitos, mas os saberes, as conquistas, as
experiências e tudo mais que as novas lutas são capazes de produzir podem, estrategicamente, se
converter em prática curricular, em conteúdo político, em ato a ser valorizado dentro da escola. Tal
situação tem ameaçado fortemente o currículo oficial, uma vez que se vê brotar no seu interior algo maior
que ele mesmo: a inesperada ação dos movimentos sociais que adentra os processos de escolarização
por outra via: a do acesso pelo direito. Isso justifica a forte reação estatal: Parâmetros Curriculares
Nacionais, Provinha Brasil, Exame Nacional do Ensino Médio (Enem),
Diretrizes Curriculares Nacionais, Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), entre outros;
tudo com o intuito de reforçar o caráter conteudista e cognitivista da escolarização, bem como retirar o
poder da nova estratégia, essa que une saberes, direito e escolarização.

Para ilustrar as questões apresentadas até aqui, me remeto, parte a parte, ao livro de Arroyo.
Na primeira parte, intitulada “Os professores e seus direitos a ter vez nos currículos – autorias,
identidades profissionais”, Arroyo acredita que a atividade do professor não se reduz, de forma alguma,
a validar o controle das instâncias superiores sobre a escola. Entretanto, essas instâncias tiveram o poder
de bloquear a arte de educar dos professores, isto é, de governar o campo das possibilidades de se
ensinar de outras maneiras, com práticas inventadas, criadas e imaginadas pelos professores, ou seja,
bloquearam a autoria profissional do professor e seus saberes docentes. Para o autor, dois grandes
momentos históricos foram responsáveis, no Brasil, por esse bloqueio: a ditadura de 1964 e as atuais
políticas neoliberais; ambas produziram a secundarização da autoria docente, substituindo-a por controles
2
FAVACHO, A. P. Resenha do livro Currículo, território em disputa, de Miguel Arroyo (Petrópolis: vozes, 2011. 374p.). Educ. Soc., Campinas, v. 33, n. 120, p.
929-932, jul.-set. 2012. Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>

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de mercado e controles científicos, com o intuito de matematizar e estatistizar os resultados escolares
através de modelos de competências, reduzidos ao treinamento e fórmulas descontextualizadas de metas
avaliativas. Contudo, para Arroyo, a autoria docente não foi totalmente eliminada, uma vez que a arte de
educar não se separa do mundo da vida, das práticas reais das pessoas, de suas mazelas, de seus
desejos. Embora alguns queiram negar essa relação, não se pode desconsiderar que são os eventos
sociais, culturais e políticos que convocam à docência para a ação. E é isso que desbloqueia a arte de
educar ou a autoria docente.

A segunda parte do livro, “Os saberes do trabalho docente disputam lugar nos currículos”, denuncia
que, lamentavelmente, contra os avanços de se educar partindo das vivências humanas ou desumanas
dos sujeitos, vê-se nascer, nos dias de hoje, financiada pelas reformas educacionais, a função aulista do
professor. Tal fato substitui a necessária função educadora da docência – que é a própria arte de educar
– pelo frio cumprimento de metas do ensino por competência e de avaliação de resultados. Isso ocorre
porque as políticas públicas da educação entendem que os saberes daqueles que frequentam a escola
pública são desqualificados, sem crédito, sem valor; são saberes pobres, de pobres; pretendem educar
os alunos para a empregabilidade, para esse tipo de trabalho que mais desumaniza do que humaniza.
Para Arroyo, infelizmente, perdemos a possibilidade de substituir esse trabalho embrutecido e
embrutecedor por um trabalho cujo princípio é a transformação do homem para que ele se integre à vida,
ao mundo, enfim, às práticas sociais; perdemos a oportunidade de educar a partir do trabalho cujo
princípio é educativo. O trabalho como princípio educativo é, para Arroyo, o elo perdido dos saberes
docentes, mas também o elo a ser encontrado.

Na terceira parte do livro, Arroyo defende a tese de que “Os sujeitos sociais e suas experiências se
afirmam no território do conhecimento”, isto é, apesar de haver o impedimento às experiências sociais
para se integrarem ao conhecimento considerado legítimo, os coletivos sociais mostram que os saberes
têm, sim, sua origem na experiência social e não apenas na artificialidade das questões epistemológicas.
Se isso for negado ou ignorado, produziremos, além de injustiça social, uma injustiça cognitiva, diz Arroyo,
citando Zygmunt Baumn. Manter essa separação entre experiência social e conhecimento legítimo é
sustentar a brutal hierarquização dos saberes, é desperdiçar experiências sociais, é desconsiderar que
todo conhecimento tem sua origem na experiência social; é, enfim, empobrecer os currículos pela
negação das experiências sociais e da sua diversidade.

Na quarta parte do livro, “As crianças, os adolescentes e os jovens abrem espaços nos currículos”, o
autor apresenta duas questões potentes para esse debate. A primeira é que a pedagogia, a partir das
novas vivências das crianças e jovens, foi interrogada na sua visão messiânica, romântica de criança e
promotora de destinos, dando lugar a outra pedagogia capaz de (1) revelar às crianças-adolescentes
suas próprias configurações na realidade, uma vez que hoje se torna cada vez mais difícil separar infância
de adolescência, cabendo à pedagogia se interessar por esse “hífen” que não separa, mas une; (2)
traduzir o perverso e tenso real vivido por essas infâncias, posto que elas não mais acreditam nas antigas
ilusões que a pedagogia, por vezes, ainda tenta sustentar; (3) revelar às crianças-adolescentes seus
direitos negados.
A segunda questão reside no embate entre as concepções inovadoras e as concepções conservadoras
para a educação da infância e adolescência. Vê-se nascerem propostas cada vez mais propedêuticas,
sequenciais, lineares e etapistas, enfim, propostas pobres de experiências, competindo com propostas
ávidas por revelar o humano nomeado através da palavra, o que, em termos educacionais e
benjaminianos, poderia ajudar a criança a saber mais de si, nomear-se, revelar-se e revelar o outro. No
que concerne especificamente aos jovens, eles já sabem, e não se deixam mais enganar que serão
incluídos socialmente por meio da escolarização. Já sabem que, para que essa velha promessa possa
se efetivar, o lugar-escola, os tempos, os espaços, a organização e a estrutura escolar deveriam se alterar
e nada se alterou. Sabem que são vistos como Outros “in-incluíveis”, ou seja, aqueles que não sabem
reconhecer os esforços do poder público para a melhoria de sua educação. Mas, quais são mesmo os
esforços? Os jovens resistem a conviver em um sem-lugar, isto é, resistem a habitar em um espaço que,
em qualquer momento, foi para eles pensado.

Na quinta e última parte do livro, Arroyo se ocupa com “O direito a conhecimentos emergentes nos
currículos”. Indigna-se com o fato de que as crianças-adolescentes “passarão anos na educação
fundamental, complementarão a educação média e sairão sem saber nada ou pouco de si mesmos” (p.
262). Arroyo preconiza que saber de si é reconhecer-se vivo numa temporalidade, espacialidade e
memorialidade específicas. Pode ser, também, saber-se sem-lugar e reivindicar valorizado o que foi

. 6
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tomado como desvalor; não apenas para ter o reconhecimento do outro, mas para ter o direito de contar
a própria história, a exemplo dos coletivos afrodescendentes, indígenas e quilombolas. Pode ser, ainda,
a capacidade pedagógica dos docentes de escutarem esse saber de si, auxiliando esses coletivos com
novas propostas pedagógicas. Um exemplo: o tempo dos coletivos marginalizados não é o mesmo tempo
da escola; o tempo deles é o aqui e agora, enquanto o da escola é o futuro. Não seria o caso de a escola
praticar o tempo presente, que não é um nem outro tempo, mas o reconhecimento de como outras
identidades foram parar no esquecimento, propondo que esses coletivos libertem seus saberes da
condição folclórica a que foram submetidos? O que está em jogo na luta pelo saber de si mesmo é
(des)romantizar a pedagogia e, portanto, os sujeitos da pedagogia: professores e alunos; acordá-los
desse sono durante o qual se acredita, erroneamente, que cada um nasceu para o que é.

Para finalizar, é bom lembrar que o livro de Arroyo é rico em exemplos de didáticas de reconhecimento
de sujeitos, isto é, de didáticas mais radicais e mais significativas para a docência de hoje.
Desejo a todos uma ótima leitura e que cada um possa apreciar os escritos de Arroyo a sua maneira.

CUNHA, M. C. da. Índios no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2013.

ÍNDIOS NO BRASIL3

Comunidades indígenas são pois aquelas que, tendo uma continuidade histórica com sociedades pré-
colombianas, se consideram distintas da sociedade nacional. E índio é quem pertence a uma dessas
comunidades indígenas e é por ela reconhecido. A definição de índio ou silvícola, contida no artigo 3º da
Lei nº 6.001, de 19/12/1973, o chamado Estatuto do Índio, incorporou a mesma noção de que o
fundamental na definição do índio é considerar-se e ser considerado como tal.
A tutela passa a ser o instrumento da missão civilizadora, uma proteção concedida a essas “grandes
crianças” até que elas cresçam e venham a ser “como nós”. Ou seja, respeita-se o índio como homem,
mas exige-se que se despoje de sua condição étnica e específica.
Quanto à antiguidade do povoamento das Américas, as estimativas tradicionais falam de 12mil anos,
mas muitos arqueólogos afirmam a existência de sítios arqueológicos anteriores a essa data. A Amazônia
foi povoada durante longo tempo por populosas sociedades, sedentárias e possivelmente estratificadas,
e essas sociedades são autóctones.
Povos e povos indígenas desapareceram da face da terra como consequência do que hoje se chama
o encontro” de sociedades do Antigo e do Novo Mundo. No Brasil conseguiram reduzir a população que
estava na casa dos milhões em 1500 aos pouco mais de 800 mil índios do século XXI (garantia de terras,
apoio sanitário, apoio legal têm profundo impacto na retomada demográfica dos índios). Particularmente
nefasta foi a política de concentração da população praticada por missionários e pelos órgãos oficiais,
pois a alta densidade dos aldeamentos favoreceu as epidemias, sem no entanto garantir o
aprovisionamento. Aldear os índios, ou seja, reuni-los e sedentariza-los sob governo missionário ou leigo,
era prática antiga, iniciada em meados do século XVI.
O exacerbamento das guerras indígenas, as guerras de conquista e de apresamento em que os índios
de aldeias eram alistados contra os índios ditos hostis, as grandes fomes que tradicionalmente
acompanhavam as guerras, a desestruturação social, a fuga para novas regiões das quais se
desconheciam os recursos ou se tinha de enfrentar os habitantes, a exploração do trabalho indígena, tudo
isso pesou decisivamente na dizimação dos índios.
Durante o primeiro meio século, os índios foram sobretudo parceiros comerciais dos europeus,
trocando por foices, machados e facas o pau-brasil para tintura de tecidos e curiosidades exóticas como
papagaios e macacos, em feitorias costeiras. Com o primeiro governo geral do Brasil, a Colônia se
instalou como tal e as relações alteraram-se, não eram mais parceiros para escambo que desejavam os
colonos, mas mão de obra para as empresas coloniais que incluíam a própria reprodução da mão de
obra, na forma de canoeiros e soldados para apresamento de mais índios.
Pelo fim do século, estão consolidadas, na realidade, duas imagens de índios, uma imagem de
viajante, outra de colono: os franceses, que não conseguiram se firmar na terra viram “selvagens”.
A escravidão dos índios foi abolida várias vezes em particular no século XVII e no século XVIII. Durante
um breve período de dois anos (7 de junho de 1755 a 3 de maio de 1757), o marquês de Pombal concede

3
FOGO, E. L. - https://bit.ly/2FAXoGY

. 7
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aos índios autonomia total, no que ele entende como sua emancipação dos jesuítas. Desde Pombal, uma
retórica mais secular de “civilização” vinha se agregando à da catequização. E “civilizar” era submeter às
leis e obrigar ao trabalho. Ora, dizia-se que os índios eram recalcitrantes ao trabalho, que fugiam com
facilidade das aldeias e se refugiavam nas matas. Tomar-lhes as terras seria então uma maneira de
cortar-lhes a retirada.
D. João VI, recém-chegado ao Brasil, desencadeou uma guerra ofensiva contra os genericamente
chamados Botocudos, para liberar para a colonização o vale do rio Doce (ES) e os campos de
Guarapuava (PR). Inaugurou também uma inédita franqueza no combate aos índios. Antes dele, ao longo
de três séculos de colônia, a guerra aos índios fora sempre oficialmente dada como defensiva, sua
sujeição como benéfica aos que se sujeitavam e as leis como interessadas no seu bem-estar geral, seu
acesso à sociedade civil e ao cristianismo.
Com José Bonifácio, a questão indígena torna a ser pensada dentro de um projeto político mais amplo.
Trata-se de chamar os índios à sociedade civil, amalgamá-los assim à população livre e incorporá-los a
um povo que se deseja criar.
A partir de meados do século XIX a cobiça se desloca do trabalho para as terras indígenas. Um século
mais tarde, irá se deslocar novamente: do solo, passará para o subsolo indígena. No final do século XX,
as terras indígenas e o usufruto exclusivo de seus recursos pelos índios gozavam de proteção
constitucional. Para levantar o embargo legal sobre as terras indígenas, imaginou-se um expediente: era
só emancipar os índios ditos aculturados. Na realidade, o que se tentava emancipar eram as terras, que
seriam postas no mercado.
A Constituição de 1988, que abandona as metas e o jargão assimilacionistas e reconhece os direitos
originários dos índios à posse da terra de que foram os primeiros senhores.
No século XVI, os índios eram ou bons selvagens para uso na filosofia moral européia, ou abomináveis
antropófagos para uso na colônia. No século XIX, eram, quando extintos, os símbolos nobres do Brasil
independente e, quando de carne e osso, os ferozes obstáculos à penetração que convinha precisamente
extinguir. Hoje, eles são ora os puros paladinos da natureza ora os inimigos internos, instrumentos da
cobiça internacional sobre a Amazônia.
Na verdade, o que deveria estar claro é que a posição especial dos índios na sociedade brasileira lhes
advém de seus direitos históricos nesta terra: direitos constantemente desrespeitados mas essenciais
para sua defesa e para que tenham acesso verdadeiro a uma cidadania da qual não são os únicos
excluídos.
Querer a integração não é querer assimilar-se: é querer ser ouvido, ter canais reconhecidos de
participação no processo político do país, fazendo valer seus direitos específicos.

FRANCO, A. S.; PIMENTA, S. G. (Org.). Didática: embates contemporâneos.


São Paulo:Edições Loyola, 2010.

DIDÁTICA: EMBATES CONTEMPORÂNEOS

Qual é a responsabilidade da Didática, como campo de estudos e pesquisas, na possibilidade de


ressignificar o papel do ensino, da aprendizagem, da escola e dos professores diante das demandas do
mundo contemporâneo? Essa pergunta, indicada na apresentação da obra, tem a intenção de remeter o
leitor à compreensão sobre Didática e sua relação com os desafios da contemporaneidade, sobremaneira,
àqueles que se revelam nas condições desfavoráveis em que a escola se encontra4.
A legitimidade do conteúdo desse livro, organizado por Maria Amélia Santoro Franco e Selma Garrido
Pimenta, se insere no fato de que seus autores, pesquisadores especializados em questões referentes à
Didática e à Pedagogia, reúnem diversos estudos, pesquisas e publicações que abordam estas temáticas.
Trata-se, portanto, de uma coletânea constituída de cinco artigos que retratam inquietações de
educadores/formadores que há muitos anos vem contribuindo com o debate em torno da Didática e sua
relevância para o campo da Educação, principalmente porque comprometidos com a construção de uma
escola que rompa com a lógica da produção da “negação da aprendizagem” (PIMENTA, p.21).
Três desses artigos são textos que tiveram sua origem nos Encontros Nacionais de Didática e Prática
de Ensino – ENDIPE, locus privilegiado para o debate sobre a área, que nasceu no bojo de uma época
em que, como afirmam Franco e Fusari (p.11) “a Didática, como um campo de conhecimento em
construção, assumiu as questões pedagógicas como base para a sua produção e inseriu a questão

4
Silvestre, M A; - https://bit.ly/2DBXyuW

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política como determinante das questões pedagógicas”. É com essa perspectiva que as organizadoras
da obra convidam seus leitores a refletirem sobre a inegável contribuição da Didática ao campo da
educação, tendo como base os “embates contemporâneos” que a colocam novamente em questão.
Dessa forma, no primeiro artigo Epistemologia da Prática Ressignificando a Didática, sua autora,
Selma Garrido Pimenta, identifica temas abordados em pesquisas e produções teóricas desenvolvidas
ao longo de mais de uma década na busca de elementos que possam contribuir com o enfrentamento da
questão epistemológica no campo da Educação e da Didática. Assinala, portanto, que “as novas
possibilidades da Didática estão emergindo das investigações sobre o ensino como prática social viva”
(p.15). Nessa perspectiva, discute exaustivamente como o conceito de epistemologia da prática por ela
defendido, deve se distanciar da ideia de “praticismo” e ganhar contornos que reafirmem o ensino como
foco principal da Didática e o professor como sujeito fundamental nesse processo, aquele capaz de
“compreender o funcionamento do real e articular sua visão crítica dessa realidade com suas pretensões
educativas, as quais define e reformula em função de contextos específicos” (p.28). Após uma análise
aprofundada sobre a possibilidade de uma epistemologia a partir da prática, a autora indica a
pesquisadores e professores a necessidade de um esforço coletivo em realizar análises e investigações
integradas e finaliza o texto propondo uma agenda “epistemológica da Didática” com um elenco de temas
a serem aprofundados.
No segundo artigo, O Campo Teórico e Profissional da Didática hoje: entre Ítaca e o canto das sereias,
o autor, José Carlos Libâneo, provoca o leitor, desde o título, a refletir sobre os caminhos de “sedução”
indicados por outros campos do conhecimento, que têm levado pesquisadores e professores de Didática
a apostarem na crença da fragilidade do seu objeto de estudo e no esgotamento do seu papel na formação
de professores.
O objetivo do autor é, precisamente, levantar os dilemas da Didática e, assim, argumentar a favor de
sua inegável contribuição na formação de professores. Para tanto, explica que os conflitos teóricos e
ideológicos que descaracterizam o foco epistemológico da Didática são reflexos dos “impasses,
incertezas e indefinições” (p. 51) vividos historicamente pelo campo teórico e prático da educação. Em
seguida, apresenta algumas hipóteses sobre as razões que podem ter levado a Didática a se distanciar
de seu objeto: a sociologização do pensamento pedagógico; o enfraquecimento do campo teórico e
investigativo da Pedagogia; o pensamento pós-estruturalista; as orientações políticas neoliberais e os
fatores externos ao campo científico e investigativo da educação.
Para que os pesquisadores e professores do campo da Didática não se deixem seduzir pelo “canto
das sereias” e retomem a especificidade do objeto da Didática, assumindo-a como um campo
investigativo com características próprias, Libâneo propõe cinco tarefas pontuais e finaliza o texto,
convocando-os a participarem desse embate teórico, com competência científica, reivindicando o que é
próprio da investigação pedagógica-didática, sem perder de vista a contribuição das ciências da
educação.
No terceiro artigo, Didática e Pedagogia: da teoria de ensino à teoria da formação, Maria Amélia
Santoro Franco discute as relações conceituais que aproximam e distanciam a Didática da Pedagogia. A
autora reporta-se às ideias de Houssaye e Saviani para provocar o leitor a pensar sobre como os desafios
educativos do século XXI podem demandar a necessidade de se organizar um estatuto de cientificidade
da Didática.
Para defender seu ponto de vista sobre as confluências necessárias entre Didática e Pedagogia a
autora, de uma forma didática e esclarecedora, estabelece um paralelo entre autores franceses e
brasileiros que tratam sobre as especificidades desses dois campos. Conclui que na realidade francesa
as divergências entre Didática e Pedagogia são maiores e esta última, por ser “secundarizada” em relação
à primeira, demarca uma sensível separação entre processos de formação e de ensino. De outra forma,
constata que na realidade brasileira há uma aproximação conceitual maior entre o campo da Didática e
da Pedagogia e destaca que os autores escolhidos para seu estudo consideram o ensino como prática
social demarcada historicamente o que impõe condições críticas de análise das práticas educativas.
Tendo por base essas constatações, Maria Amélia argumenta que “a necessária indissociabilidade
entre Didática e Pedagogia” (p. 88) se constrói na medida em que a Pedagogia for concebida como
“ciência da e para a práxis educativa” e a Didática como uma “teoria da formação”. Finaliza o texto,
indicando suas preocupações sobre os rumos que têm tomado os cursos de formação e a situação em
que se encontram as escolas apostando que a transformação dessa situação poderá acontecer, inclusive,
quando Pedagogia e Didática, de forma conjunta, integrarem o educativo com o pedagógico e
“construírem espaços de significação para as práticas docentes” (p.94) para que, assim, o professor
possa “construir, compreender e transformar saberes pedagógicos” (p. 92).
Terezinha Azerêdo Rios, no quarto artigo Ampliar o Diálogo de Saberes para a Docência, ao retomar
conceitos apresentados em sua tese de doutorado, aprofunda suas reflexões sobre a articulação entre a

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Filosofia da Educação e a Didática que, como campos articulados, se revela na formação e na prática
pedagógica do professor. Explica a autora que o gesto filosófico possui como característica “saber o que
não se sabe e, portanto, lançar-se na aventura de procurar saber, enfrentando os riscos que tal aventura
implica” (p. 107) e que, portanto, o gesto educativo, movimento “construtor, transformador e socializador
da cultura”, para ser efetivamente “construtor de humanidade”, não pode prescindir do gesto filosófico
(p.107). Percorrendo a lógica do título da obra, a autora afirma que a Filosofia da Educação e a Didática,
por serem produções humanas situadas historicamente, estão sujeitas a determinações do próprio
contexto em que são produzidas. Dessa forma, elenca algumas demandas a serem enfrentadas por
pesquisadores e professores formadores: a fragmentação do conhecimento; o fenômeno da globalização;
a construção de projetos por meio de um trabalho organicamente elaborado e o enfrentamento ao debate
entre uma razão instrumental e um irracionalismo. Reforça, ainda, a necessidade da ampliação do diálogo
entre esses dois campos para que a Didática estenda o seu espaço de reflexão teórica, negando o
pragmatismo. Para tanto, defende a pesquisa como favorecedora desse diálogo e a literatura como
interlocutora dessa relação porque como dimensão estética pode provocar o “alargamento do olhar” (p.
122) sobre o fenômeno educativo.
No último capítulo Processos Didáticos Cotidianos e modelos políticoideológicos de base: uma
discussão, a autora Inês Barbosa de Oliveira pretende desvelar a coerência existente entre propostas e
práticas pedagógicas, o projeto político educativo que as orienta e seus fundamentos político-ideológicos.
É o conceito de “triângulo pedagógico” proposto por Jean Houssaye que fundamenta a sua análise. Tendo
por base a identificação do par de elementos privilegiado na ação pedagógica entre os três que a compõe
– saber, professor e aluno – a autora apresenta as principais características e objetivos dos modelos
pedagógicos tradicionais e progressistas. Seus estudos a levaram a concluir que existem seis modelos
pedagógicos associados a seis projetos sócio-políticos-ideológicos distintos.
Entre as semelhanças e diferenças desses seis modelos, constata que quatro são de inspiração
autoritária e dois de inspiração democrática, todavia, nenhum deles se estrutura de tal forma a
desencadear “propostas pedagógicas comprometidas com a democratização da escola e da sociedade e
com a formação global do sujeito social” (p. 134). Diante dessa constatação, Inês Barbosa explicita bases
e princípios políticos e pedagógicos como referência para a construção de propostas pedagógicas que
desencadeiem ações pedagógicas mais apropriadas e adequadas à construção de uma sociedade justa
e democrática.
A forma como os artigos foram organizados confere ao livro sua inegável contribuição ao campo da
Didática e da Pedagogia. E, pode-se afirmar que seu objetivo vai além da proposta anunciada em sua
apresentação: “suscitar novas reflexões sobre os problemas que há décadas vêm solicitando, da Didática,
respostas cada vez mais pertinentes” (p.8). Para aqueles que fizerem uma leitura mais atenta será
possível identificar o anúncio de um caminho que confirma que a ressignificação da Didática é possível,
por isso urgente.

GHEDIN, E.; FRANCO, M. A. S. Questões de método na construção da


pesquisa em educação. São Paulo: Cortez, 2008.

Questões de método na construção da pesquisa em educação

Neste livro de pesquisa e reflexão, as questões de método surgem como condição de retomada dos
processos investigativos que tornam possíveis e cientificamente válidos os conhecimentos produzidos na
área educacional. Refletir sobre essas questões significa retomar o pensamento sobre o modo de operar
do conhecimento. É importante examiná-las à medida que o método constitui um pretexto para repensar
as teorias educacionais que orientam o processo metodológico do conhecimento em educação5.

5
https://bit.ly/2OYKRwr

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1546093 E-book gerado especialmente para DALIANE DO NASCIMENTO DOS SANTOS
LA TAYLLE, Y. de, OLIVEIRA, M. K. de, DANTAS, H. Piaget, Vygotsky e Wallon:
teoria psicogenéticas em discussão. São Paulo: Summus, 1992

PARTE I – FATORES BIOLÓGICOS E SOCIAIS


O lugar da interação na concepção de Jean Piaget
Yves de La Taille

La Taille considera que nada há de mais injusto que a crítica feita a Piaget de desprezar o papel dos
fatores sociais no desenvolvimento humano. O máximo que se pode dizer é que Piaget não se deteve
sobre a questão, mas, o pouco que levantou é de suma importância.

Para o autor, o postulado de Wallon de que o homem é “geneticamente social” (impossível de ser
pensado fora do contexto da sociedade) também vale para a teoria de Piaget, pois são suas palavras:
“desde o nascimento, o desenvolvimento intelectual é, simultaneamente, obra da sociedade e do
indivíduo” (p.12).
Para Piaget, o homem não é social da mesma maneira aos seis meses ou aos vinte anos. A
socialização da inteligência só começa a partir da aquisição da linguagem. Assim, no estágio sensório-
motor a inteligência é essencialmente individual, não há socialização. No estágio pré-operatório, as trocas
intelectuais equilibradas ainda são limitadas pelo pensamento egocêntrico (centrado no eu): as crianças
não conseguem seguir uma referência única (falam uma coisa agora e o contrário daí a pouco), colocar-
se no ponto de vista do outro e não são autônomas no agir e no pensar. No estágio operatório-concreto,
começam a se efetuar as trocas intelectuais e a criança alcança o que Piaget chama de personalidade –
o indivíduo se submetendo voluntariamente às normas de reciprocidade e universalidade. A
personalidade é o ponto mais refinado da socialização: o eu renuncia a si mesmo para inserir seu ponto
de vista entre os outros, em oposição ao egocentrismo, em que a criança elege o próprio pensamento
como absoluto. O ser social de mais alto nível é aquele que consegue relacionar-se com seus
semelhantes realizando trocas em cooperação, o que só é possível quando atingido o estágio das
operações formais (adolescência).

O processo de socialização
A socialização vai do grau zero (recém-nascido) ao grau máximo (personalidade). O indivíduo mais
evoluído pode usufruir tanto de sua autonomia quanto das contribuições dos outros. Para Piaget,
“autonomia significa ser capaz de se situar consciente e competentemente na rede dos diversos pontos
de vista e conflitos presentes numa sociedade” (p.17). Há uma “marcha para o equilíbrio”, com bases
biológicas, que começa no período sensório-motor, com a construção de esquemas de ação, e chega às
ações interiorizadas, isto é, efetuadas mentalmente.
Embora tudo pareça resumir-se à relação sujeito-objeto, para La Taille, as operações mentais
permitem o conhecimento objetivo da natureza e da cultura e são, portanto, necessidades decorrentes da
vida social. Para ele, Piaget não compartilha do “otimismo social” de que todas as relações sociais
favorecem o desenvolvimento. Para La Taille, a peculiaridade da teoria piagetiana é pensar a interação
pela perspectiva da ética (igualdade, respeito mútuo, liberdade, direitos humanos). Ser coercitivo ou
cooperativo depende de uma atitude moral, sendo que a democracia é condição para o desenvolvimento
da personalidade. Diz ele: “A teoria de Piaget é uma grande defesa do ideal democrático” (p. 21).

Vygotsky e o processo de formação de conceitos


Marta Kohl de Oliveira

Substratos biológicos e construção cultural no desenvolvimento humano


A perspectiva de Vygotsky é sempre a da dimensão social do desenvolvimento. Para ele, o ser humano
constitui-se como tal na sua relação com o outro social; a cultura torna-se parte da natureza humana num
processo histórico que molda o funcionamento psicológico do homem ao longo do desenvolvimento da
espécie (filogenética) e do indivíduo (ontogenética). O ser humano tem, assim, uma dupla natureza:
membro de uma espécie biológica que só se desenvolve no interior de um grupo cultural.
Vygotsky rejeitou a idéia de funções fundamentais fixas e imutáveis, “trabalhando com a noção do
cérebro como um sistema aberto, de grande plasticidade, cuja estrutura e modos de funcionamento são
moldados ao longo da história da espécie e do desenvolvimento individual” (p. 24). Para ele, o cérebro é
formado por sistemas funcionais complexos, isto é, as funções não se localizam em pontos específicos,

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mas se organizam a partir da ação de diversos elementos que atuam de forma articulada. O cérebro tem
uma estrutura básica, resultante da evolução da espécie, que cada membro traz consigo ao nascer. Essa
estrutura pode ser articulada de diferentes formas pelo sujeito, isto é, um mesmo problema pode ser
solucionado de diferentes formas e mobilizar diferentes partes do cérebro.
Há uma forte ligação entre os processos psicológicos e a inserção do indivíduo num contexto sócio-
histórico específico. Instrumentos e símbolos construídos socialmente é que definem quais possibilidades
de funcionamento cerebral serão concretizadas. Vygotsky apresenta a ideia de mediação: a relação do
homem com os objetos é mediada pelos sistemas simbólicos (representações dos objetos e situações do
mundo real no universo psicológico do indivíduo), que lhe possibilita planejar o futuro, imaginar coisas,
etc.
Em resumo: operar com sistemas simbólicos permite o desenvolvimento da abstração e da
generalização e define o salto para os processos psicológicos superiores, tipicamente humanos. Estes
têm origem social, isto é, é a cultura que fornece ao indivíduo o universo de significados (representações)
da realidade. As funções mentais superiores baseiam-se na operação com sistemas simbólicos e são
construídas de fora para dentro num processo de internalização.

O processo de formação de conceitos


A linguagem é o sistema simbólico fundamental na mediação entre sujeito e objeto do conhecimento
e tem duas funções básicas: interação social (comunicação entre indivíduos) e pensamento generalizante
(significado compartilhado pelos usuários). Nomear um objeto significa colocá-lo numa categoria de
objetos com atributos comuns. Palavras são signos mediadores na relação do homem com o mundo.
O desenvolvimento do pensamento conceitual segue um percurso genético que parte da formação de
conjuntos sincréticos (baseados em nexos vagos e subjetivos), passa pelo pensamento por complexos
(baseado em ligações concretas e factuais) e chega à formação de conceitos (baseados em ligações
abstratas e lógicas).
Esse percurso não é linear e refere-se à formação de conceitos cotidianos ou espontâneos, isto é,
desenvolvidos no decorrer da atividade prática da criança em suas interações sociais imediatas e são,
portanto, impregnados de experiências. Já os conceitos científicos são os transmitidos em situações
formais de ensino-aprendizagem e geralmente começam por sua definição verbal e vão sendo
expandidos no decorrer das leituras e dos trabalhos escolares. Assim, o desenvolvimento dos conceitos
espontâneos é ascendente (da experiência para a abstração) e o de conceitos científicos é descendente
(da definição para um nível mais elementar e concreto).
A partir do exposto, duas conclusões são fundamentais:
1ª - diferentes culturas produzem modos diversos de funcionamento psicológico;
2ª - a instrução escolar é de enorme importância nas sociedades letradas.

Do ato motor ao ato mental: a gênese da inteligência segundo Wallon


Heloysa Dantas

Wallon tem uma preocupação permanente com a infra-estrutura orgânica de todas as funções
psíquicas. Seus estudos partem de pessoas com problemas mentais, portanto, seu ponto de partida é o
patológico, isto é, utiliza a doença para entender a normalidade. Para Wallon, o ser humano é
organicamente social, isto é, sua estrutura orgânica supõe a intervenção da cultura. A metodologia do
seu trabalho ancora-se no materialismo dialético, concebendo a vida dos organismos como uma pulsação
permanente, uma alternância de opostos, um ir e vir permanente, com avanços e recuos.

A motricidade: do ato motor ao ato mental.


A questão da motricidade é o grande eixo do trabalho de Wallon. Para ele, o ato mental se desenvolve
a partir do ato motor. Ao longo do desenvolvimento mental, a motricidade cinética (de movimento) tende
a se reduzir, dando lugar ao ato mental. Assim, mesmo imobilizada no esforço mental, a musculatura
permanece em atividade tônica (músculo parado, atitude). A tipologia de movimento que Wallon adota
parte de atos reflexos, passa pelos movimentos involuntários e chega aos voluntários ou praxias, só
possíveis graças à influência ambiental aliada ao amadurecimento cerebral.
Ao nascer, é pela expressividade ou mímica que o ser humano atua sobre o outro. A motricidade
disponível consiste em reflexos e movimentos impulsivos, incoordenados. A exploração da realidade
exterior só é possível quando surgem as capacidades de fixar o olhar e pegar. A competência no uso das
mãos só se completa ao final do primeiro ano de vida, quando elas chegam a uma ação complementar
(mão dominante e auxiliar). A etapa dominantemente práxica da motricidade ocorre paralelamente ao
surgimento dos movimentos simbólicos ou ideativos1. O movimento, a princípio, desencadeia o

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pensamento. Por exemplo, uma criança de dois anos, que fala e gesticula, tem seu fluxo mental atrofiado
se imobilizada. O controle do gesto pela ideia inverte-se ao longo do desenvolvimento. Há uma transição
do ato motor para o mental.

As fases da inteligência – as etapas de construção do eu


No processo de desenvolvimento da inteligência há preponderância (a cada período mais marcado
pelo afetivo segue-se outro mais marcado pelo cognitivo) e alternância de funções (a criança ora está
mais voltada para a realidade das coisas/conhecimento do mundo – fases centrípetas, ora mais voltada
para a edificação da pessoa/conhecimento de si – fases centrífugas).
1ª fase: impulsivo-emocional (de zero a um ano). Voltada para o desenvolvimento motor e para a
construção do eu. No recém-nascido, os movimentos impulsivos que exprimem desconforto ou bem estar
são interpretados pelos adultos e se transformam em movimentos comunicativos através da mediação
social; até o final do primeiro ano a relação com o ambiente é de natureza afetiva e a criança estabelece
com a mãe um “diálogo tônico” (toques, voz, contatos visuais).
2ª fase: sensório-motor e projetivo (de um a três anos). Aprendendo a andar a criança ganha mais
autonomia e volta-se para o conhecimento do mundo. Surge uma nova fase de orientação diversa, voltada
para a exploração da realidade externa. Com a linguagem, inicia-se o domínio do simbólico.
3ª fase: personalismo (três a seis anos). Novamente voltada para dentro de si, a preocupação é agora
construir-se como ser distinto dos demais (individualidade diferenciada). Com o aperfeiçoamento da
linguagem, desenvolve-se o pensamento
1 Ideomovimento é expressão peculiar de Wallon e indica o movimento que contém ideias discursivo.
Sucedem-se uma etapa de rejeição (atitudes de oposição), outra de sedução do outro e conciliação (idade
da graça) e outra de imitação (toma o outro como modelo).
4ª fase: categorial (seis a onze anos). Voltada para o cognitivo, é a fase escolar. Ao seu final, há a
superação do sincretismo do pensamento em direção à maior objetividade e abstração. A criança torna-
se capaz de diferenciações intelectuais (pensamento por categorias) e volta-se para o conhecimento do
mundo.
5ª fase: puberdade e adolescência (a partir dos onze anos). Nesta fase, caracterizada pela
autoafirmação e pela ambivalência de atitudes e sentimentos, a criança volta-se novamente para a
construção da pessoa. Há uma reconstrução do esquema corporal e o jovem tem a tarefa de manter um
eu diferenciado (dos outros) e, ao mesmo tempo, integrado (ao mundo), o que não é fácil.

PARTE II – AFETIVIDADE E COGNIÇÃO


Desenvolvimento do juízo moral e afetividade na teoria de Jean Piaget
Yves de La Taille

A obra “O julgamento moral da criança”(1932) traz implícita a relação que existe entre afetividade e
cognição para Piaget, bem como a importância que ele atribui à autonomia moral.

a) As regras do jogo
Segundo Piaget, toda moral consiste num sistema de regras, sendo que a essência da moralidade
deve ser procurada no respeito que o indivíduo tem por elas. Piaget utilizou o jogo coletivo de regras
como campo de pesquisa por considerá-lo paradigmático para a moralidade humana porque: é atividade
interindividual regulada por normas que podem ser modificadas e que proveem de acordos mútuos entre
os jogadores, sendo que o respeito às normas tem um caráter moral (justiça, honestidade..).
Piaget dividiu em três etapas a evolução da prática e da consciência de regras:
1ª - anomia (até 5/6 anos): as crianças não seguem atividades com regras coletivas;
2ª - heteronomia (até 9/10 anos): as crianças vêm as regras como algo de origem imutável e não como
contrato firmado entre os jogadores; ao mesmo tempo, quando em jogo, introduzem mudanças nas regras
sem prévia consulta aos demais; as regras não são elaboradas pela consciência e não são entendidas a
partir de sua função social;
3ª - autonomia: é a concepção adulta de jogo; o respeito às regras é visto como acordo mútuo em que
cada jogador vê-se como possível “legislador”.

b) O dever moral
O ingresso da criança no universo moral se dá pela aprendizagem dos deveres a ela impostos pelos
pais e demais adultos, o que acontece na fase de heteronomia e se traduz pelo “realismo moral” que tem
as seguintes características:
- a criança considera que todo ato de obediência às regras impostas é bom;

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- as regras são interpretadas ao pé da letra e não segundo seu espírito;
- há uma concepção objetiva de responsabilidade: o julgamento é feito pela consequência do ato e
pela intencionalidade.

c) A justiça
A noção de justiça engloba todas as outras noções morais e envolve ideias matemáticas (proporção,
peso, igualdade). Quanto menor a criança mais forte a noção de justiça imanente (todo crime será
castigado, mesmo que seja por força da natureza), mais ela opta por sanções expiatórias (o castigo tem
uma qualidade estranha ao delito) e mais severa ela é (acha que quanto mais duro o castigo, mais justo
ele é). A partir dos 8/9 anos a desobediência já é vista como ato legítimo quando há flagrante injustiça.

As duas morais da criança e os tipos de relações sociais


Mesmo concordando que a moral é um ato social, para Piaget o sujeito participa ativamente de seu
desenvolvimento intelectual e moral e detém uma autonomia possível perante os ditames da sociedade.
As relações interindividuais são divididas em duas categorias:
- coação: derivada da heteronomia, é uma relação assimétrica, em que um dos polos impõe suas
verdades, sendo contraditória com o desenvolvimento intelectual;
- cooperação: é uma relação simétrica constituída por iguais, regida pela reciprocidade; envolve
acordos e exige que o sujeito se descentre para compreender o ponto de vista alheio; com ela o
desenvolvimento moral e intelectual ocorre, pois ele pressupõe autonomia e superação do realismo moral.
Em resumo: para Piaget, a coerção é inevitável no início da educação, mas não pode permanecer
exclusiva para não encurralar a criança na heteronomia. Assim, para favorecer a conquista da autonomia,
a escola precisa respeitar e aproveitar as relações de cooperação que espontaneamente, nascem das
relações entre as crianças.

Afetividade e inteligência na teoria piagetiana do desenvolvimento do juízo moral


Para La Taille, o notável na teoria piagetiana é que nela “não assistimos a uma luta entre afetividade
e moral”(p.70). Afeto e moral se conjugam em harmonia: o sujeito autônomo não é reprimido mas um
homem livre, convencido de que o respeito mútuo é bom e legítimo. A afetividade adere espontaneamente
aos ditames da razão. Ele considera que na obra “O juízo moral na criança” intui-se um Piaget movido
por alguma “emoção”, que sustenta um grande otimismo em relação ao ser humano. No entanto, para
ele, o estudo sobre o juízo moral poderia ter sido completado por outros que se detivessem mais nos
aspectos afetivos do problema.

O problema da afetividade em Vygotsky


Marta Kohl de Oliveira

Vygotsky pode ser considerado um cognitivista (investigou processos internos relacionados ao


conhecimento e sua dimensão simbólica), embora nunca tenha usado o termo cognição, mas função
mental e consciência. Para ele há uma distinção básica entre funções mentais elementares (atenção
involuntária) e superiores (atenção voluntária, memória lógica). É difícil compreender cada função mental
isoladamente, pois sua essência é ser inter-relacionada com outras funções. Sua abordagem é
globalizante. Ele utiliza o termo consciência para explicar a relação dinâmica (interfuncionalidade) entre
afeto e intelecto e, portanto, questiona a divisão entre as dimensões cognitiva e afetiva do funcionamento
psicológico. Para ele, não dá para dissociar interesses e inclinações pessoais (aspectos afetivo-volitivos)
do ser que pensa (aspectos intelectuais).

Consciência
Vygotsky concebe a consciência como “organização objetivamente observável do comportamento, que
é imposta aos seres humanos através da participação em práticas sócio-culturais”(p.78). É evidente a
fundamentação em postulados marxistas: a dimensão individual é considerada secundária e derivada da
dimensão social, que é a essencial. Carrega ainda um fundamento sócio-histórico, isto é, a consciência
humana, resultado de uma atividade complexa, formou-se ao longo da história social do homem durante
a qual a atividade manipuladora e a linguagem se desenvolveram.
As impressões que chegam ao homem, vindas do mundo exterior são analisadas de acordo com
categorias que ele adquiriu na interação social. A consciência seria a própria essência da psique humana,
o componente mais elevado das funções psicológicas humanas e envolve a inter-relação dinâmica e em
transformação entre: intelecto e afeto, atividade e representação simbólica, subjetividade e interação
social.

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Subjetividade e intersubjetividade
As funções psicológicas superiores, tipicamente humanas, referem-se a processos voluntários, ações
conscientemente controladas, mecanismos intencionais.
Apresentam alto grau de autonomia em relação a fatores biológicos, sendo, portanto, o resultado da
inserção do homem em determinado contexto sócio-histórico.
O processo de internalização de formas culturais de comportamento, que corresponde à própria
formação da consciência, é um processo de constituição da subjetividade a partir de situações de
intersubjetividade. Assim, a passagem do nível interpsicológico para o intrapsicológico envolve relações
interpessoais e a construção de sujeitos únicos, com trajetórias pessoais singulares e experiências
particulares em sua relação com o mundo e, fundamentalmente, com as outras pessoas.

Sentido e significado
Para Vygotsky, os processos mentais superiores são mediados por sistemas simbólicos, sendo a
linguagem o sistema simbólico básico de todos os grupos humanos. O significado é componente
essencial da palavra, o filtro através do qual o indivíduo compreende o mundo e age sobre ele. Nele se
dá a unidade de duas funções básicas da linguagem: a interação social e o pensamento generalizante.
Na concepção sobre o significado há uma conexão entre os aspectos cognitivos e afetivos: significado é
núcleo estável de compreensão e sentido é o significado da palavra para cada indivíduo, no seu as
contexto de uso e relacionado às suas vivências afetivas.
A linguagem é, assim, polissêmica: requer interpretação com base em fatores linguísticos e
extralinguísticos. Para entender o que o outro diz, não basta entender suas palavras, mas também seu
pensamento e suas motivações.

O discurso interior
O discurso interior corresponde à internalização da linguagem. Ao longo de seu desenvolvimento, a
pessoa passa de uma fala socializada (comunicação e contato social) a uma fala internalizada
(instrumento de pensamento, sem vocalização), correspondente a um diálogo consigo mesma.

A afetividade e a construção do sujeito na psicogenética de Wallon


Heloysa Dantas

A teoria da emoção
Para Wallon a dimensão afetiva ocupa lugar central, tanto do ponto de vista da construção da pessoa
quanto do conhecimento. A emoção é instrumento de sobrevivência típico da espécie humana. O bebê
humano, frágil como é, pereceria não fosse sua capacidade de mobilizar poderosamente o ambiente para
atender suas necessidades. A função biológica do choro, por exemplo, é atuar fortemente sobre a mãe,
fornecendo o primeiro e mais forte vínculo entre os humanos. Assim, a emoção tem raízes na vida
orgânica e também a influência. Um estado emocional intenso, por exemplo, provoca perda de lucidez.
Segundo Wallon, a atividade emocional é simultaneamente social e biológica. Através da mediação
cultural (social), realiza a transição do estado orgânico para a etapa cognitiva e racional. A consciência
afetiva cria no ser humano um vínculo com o ambiente social e garante o acesso ao universo simbólico
da cultura – base para a atividade cognitiva – elaborado e acumulado pelos homens ao longo de sua
história. Dessa forma, para Wallon, o psiquismo é uma síntese entre o orgânico e o social. Daí sua
natureza contraditória de participar de dois mundos.
A opção metodológica adotada por Wallon é o materialismo dialético. Isso quer dizer que não dá para
pensar o desenvolvimento como um processo linear, continuísta, que só caminha para a frente. Pelo
contrário, é um processo com idas e vindas, contraditório, paradoxal. Assim, sua teoria da emoção é
genética (para acompanhar as mudanças funcionais) e dialética.
A origem da conduta emocional depende de centros subcorticais (de expressão involuntária e
incontrolável) e torna-se susceptível de controle voluntário com a maturação cortical. Para Wallon, as
emoções podem ser de natureza hipotônica ou redutora do tônus (como o susto e a depressão) e
hipertônica ou estimuladora do tônus (como a cólera e a ansiedade).

Características do comportamento emocional


A longa fase emocional da infância tem correspondência na história da espécie humana: é a emoção
que garante a solidariedade afetiva e a sobrevivência do indivíduo.
Da função social da emoção resultam seu caráter contagioso (a ansiedade infantil pode provocar
irritação ou angústia no adulto, por exemplo) e a tendência para nutrir-se com a presença do outro (uma
plateia alimenta uma chama emocional entre os participantes, por exemplo). Devido a seus efeitos

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desorganizadores, anárquicos e explosivos, a emoção pode reduzir o funcionamento cognitivo, se a
capacidade cortical da ação mental ou motora para retomar o controle da situação for baixa. Se a
capacidade cortical for alta, soluções inteligentes poderão ser encontradas.
Para Wallon não existe estado não emocional. Até a serenidade exprime emoção. Assim, a educação
da emoção deveria ser incluída entre os propósitos da ação pedagógica para evitar a formação do “circuito
perverso de emoção”: a emoção surge num momento de incompetência do sujeito e, não conseguindo
transformar-se em atividade racional, provoca mais incompetência. O efeito desorganizador da emoção
concentra a sensibilidade no próprio corpo e diminui a percepção do exterior.

Afetividade e inteligência
O ser humano é afetivo por excelência. É da afetividade que se diferencia a vida racional. No início da
vida, afetividade e inteligência estão sincreticamente misturadas. Ao longo do desenvolvimento, a
reciprocidade se mantém de tal forma que as aquisições de uma repercute sobre a outra. A pessoa se
constitui por uma sucessão de fases com predomínio, ora do afetivo, ora do cognitivo. Cada fase incorpora
as aquisições do nível anterior. Para evoluir, a afetividade depende da inteligência e vice-versa. Dessa
forma, não é só a inteligência que evolui, mas também a emoção. Com o desenvolvimento, a afetividade
incorpora as conquistas da inteligência e tende a se racionalizar. Por isso, as formas adultas de
afetividade são diferentes das infantis. No início a afetividade é somática, tônica, pura emoção. Alarga
seu raio de ação com o surgimento da função simbólica. Na adolescência, exigências racionais são
colocadas: respeito recíproco, justiça, igualdade de direitos.

Inteligência e pessoa
O processo que começa com a simbiose fetal tem por horizonte a individualização. Para Wallon, não
há nada mais social do que o processo pelo qual o indivíduo se singulariza, em que o eu se constrói
alimentando-se da cultura, sendo que o destino humano, tanto no plano individual quanto no social, é
uma obra sempre inacabada.

LAKATOS, E. M. Fundamentos de metodologia científica. São Paulo: Atlas,


2007.

FUNDAMENTOS DE METODOLOGIA CIENTÍFICA

A obra “Fundamentos de metodologia científica” de Marina de Andrade Marconi e Eva Maria Lakatos,
cuja primeira edição foi lançada em 1985, busca suprir a necessidade de um trabalho que apresente de
forma ordenada e lógica os fundamentos para trabalhos científicos e procedimentos didáticos,
sistematizando os conhecimentos relacionados à metodologia científica e sintetizando seus aspectos
essenciais para guiar iniciantes. A obra é bastante extensa, cobrindo diversos tópicos de maneira sucinta,
e seu formato de organização permite que o leitor interessado em alguma questão específica ‐ como a
classificação das perguntas em um questionário ou diretrizes de uma entrevista ‐ encontre facilmente o
assunto sem a necessidade de percorrer um longo capítulo sobre um tema mais geral6.
O trabalho se inicia com uma discussão sobre a importância da leitura, suas diferentes etapas, e
orientações para uma leitura proveitosa ‐ que deve incluir atenção, intenção, reflexão, espírito crítico,
análise e síntese ‐, seguindo para análise de textos e seminários.
No segundo capítulo, as autoras se voltam para pesquisas bibliográficas, detalhando cada uma de
suas etapas: a) escolha do tema a ser desenvolvido; b) elaboração do plano de trabalho, que inclui a
formulação do problema; c) identificação; d) localização; e) compilação do material escolhido; f)
fichamento, que permite a ordenação do assunto em um espaço reduzido; g) análise e interpretação e h)
redação. Ao final do capítulo há uma seção com exemplos de resumos descritivos, analíticos e críticos.
O capítulo seguinte trata da diferença entre o conhecimento popular e científico. De acordo com as
autoras, a diferenciação se dá não pela natureza do objeto ou pela veracidade do conhecimento, mas
pelo método utilizado para se conhecer, ou seja, pelo “processo de apreensão da realidade do objeto”.
O conhecimento popular seria adquirido através do contato direto com os objetos, fenômenos ou pessoas
e caracterizara-se pela falta de sistematização e pela subjetividade, já que é o próprio sujeito que organiza
suas experiências, sem uma preocupação em validá‐las. O conhecimento científico, por sua vez, por se
fundamentar na “sistematização de enunciados fundamentados e passíveis de verificação”, permite

6
FERNANDEZ, C. - https://bit.ly/2TD0LA3

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1546093 E-book gerado especialmente para DALIANE DO NASCIMENTO DOS SANTOS
formular hipóteses sobre fenômenos e objetos que vão além da nossa percepção sensorial e “submetê‐
los à verificação planejada e interpretada com o auxílio de teorias”.
A discussão leva à definição do conceito de ciência, adotando a definição de Trujillo Ferrari de que “a
ciência é todo um conjunto de atitudes e atividades racionais, dirigidas ao sistemático conhecimento com
objeto limitado, capaz de ser submetido à verificação”.
O texto segue, postulando que não há ciência sem o emprego do método científico, sendo este
definido como um “conjunto de atividades sistemáticas e racionais que, com maior segurança e
economia, permite alcançar o objetivo – conhecimentos válidos e verdadeiros ‐, traçando o caminho a
ser seguido, detectando erros e auxiliando as decisões do cientista”. Os autores partem da concepção
de Mário Bunge de que o método científico é a “teoria da investigação”, e que, para alcançar seus
objetivos, deve cumprir as seguintes etapas:
‐ descobrimento do problema e sua colocação precisa;
‐ identificação de instrumentos ou conhecimentos relevantes ao problema;
‐ tentativa de solução do problema utilizando os meios identificados;
‐ invenção de novas ideias (hipóteses, teorias ou técnicas) ou produção de novos dados empíricos
‐ obtenção de uma solução do problema;
‐ investigação das consequências desta solução, que leva a:
‐ comprovação da solução, ou
‐ correção das ideias, procedimentos ou dados utilizados para se obter a solução incorreta.

No capítulo cinco, há a diferenciação de leis, teorias e fatos. Enquanto o fato ou fenômeno refere‐se
a uma observação empiricamente verificada, a teoria corresponde a relações entre fatos e sua ordenação
em conceitos, classificações, princípios, etc. No entanto, teorias e fatos não estão dissociados, e o
desenvolvimento da ciência se dá exatamente por meio da inter‐relação constante entre os dois. As leis,
por sua vez, seriam uma etapa intermediária entre teoria e fatos, sendo suas principais funções resumir
uma grande quantidade de fatos e prever tanto novos fatos quanto seus comportamentos.

À medida que o livro segue, as autoras partem para um conhecimento mais prático sobre o
desenvolvimento de projetos de pesquisa, enunciando que estes devem compreender os seguintes
passos: seleção e definição do problema, levantamento de hipóteses, coleta, análise e interpretação dos
dados e por fim elaboração do relatório com os resultados da pesquisa. Na etapa de formulação do
problema, deve‐se ter em mente que uma caracterização clara do problema é importante para facilitar a
construção das hipóteses, e que um problema muito abrangente pode tornar a pesquisa bastante
complexa. A hipótese, por sua vez, deve partir de um embasamento teórico e ser formulada de forma a
guiar o processo de investigação. Assim, a apresentação do projeto de pesquisa deve apresentar de
forma clara o tema, objetivos, metodologia utilizada, métodos de coleta, análise e interpretação dos
dados, que nortearão a pesquisa a ser desenvolvida, além de conter itens como bibliografia e
cronograma.
Por fim, concordando com Ângelo Salvador, as autoras apontam que os trabalhos científicos devem
permitir a qualquer pesquisador reproduzir as experiências e obter os mesmos resultados dentro da
margem de erro, repetir as observações e julgar as conclusões às quais o trabalho chega, verificando a
exatidão das deduções e análises que levam a estas conclusões.
A obra, por se propor a tratar de muitos pontos, acaba cobrindo alguns deles de forma superficial. A
maneira sucinta, porém, de abordagem de cada um dos assuntos, permite que o leitor entre em contato
com aspectos diversos e amplos relacionados à metodologia de pesquisa científica e adquira um
conhecimento básico sobre cada assunto, o que torna o livro útil como ponto de partida para uma
pesquisa mais aprofundada sobre itens específicos que sejam de interesse do leitor. Ao final de cada
capítulo consta uma seção com bibliografia básica, complementar e leitura recomendada, que podem ser
úteis neste aprofundamento.

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1546093 E-book gerado especialmente para DALIANE DO NASCIMENTO DOS SANTOS
LIBÂNEO, J. C.; OLIVEIRA, J. F.; TOSHI, M. S. Educação escolar: políticas,
estrutura e organização. 10. ed. São Paulo: Cortez, 2012. (Coleção Docência
em Formação: Saberes Pedagógicos).

A HISTÓRIA DA ESTRUTURA E DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA DE ENSINO NO BRASIL 7

A história da estrutura e da organização do ensino no Brasil reflete as condições socioeconômicas do


país, mas revela, sobretudo, o panorama político de deter- minados períodos históricos.
A partir da década de 1980, por exemplo, o pano- rama socioeconômico brasileiro indicava uma
tendência neoconservadora para a minimização do Estado, que se afastava de seu papel de provedor
dos serviços públicos, como saúde e educação. Na década de 1990, esse modelo instalou-se e, no
primeiro decênio do século XXI, ainda não foi superado. Paradoxalmente, as alterações da organização
do trabalho, resultantes, em grande parte, dos avanços tecnológicos, solicitam da escola um trabalhador
mais qualificado para as novas funções no processo de produção e de serviços. Ausentando-se o Estado
de suas responsabilidades com educação pública, como e onde formar, então, o trabalhador? As
constantes críticas ao desempenho do poder público remetem ao setor privado, apontado como o mais
competente para essa tarefa. Apresenta- -se uma questão crucial para o entendimento do papel social da
escola: é sua função formar especificamente para o trabalho ou ela constitui espaço de formação do
cidadão participe da vida social?
O teórico Hayek (1990), considerado o pai do neoliberalismo, contrapõe-se à ingerência estatal na
educação. Sua referência, porém, são os países em que a educação básica já foi universalizada e as
condições sociais são mais favoráveis, em razão de anterior consolidação do Estado de bem-estar social.
Mas como pensar a atuação do Estado no Brasil, país considerado periférico, com grandes desigualdades
sociais, perversa concentração de renda, baixo índice de escolaridade, escola básica não universalizada?
Certamente, para países com estas condições socioeconômicas, a receita deveria ser outra.
Organismos financiadores dos países terceiro-mundistas, como o Banco Internacional de
Reconstrução e Desenvolvimento, também chamado Banco Mundial (BM), sugerem a garantia de
educação básica mantida pelo Estado, isto é, gratuita, o que não significa, todavia, que ela seja ministrada
em escolas públicas. Os neoliberais criticam o fato de a escola pública manter o monopólio do ensino
gratuito. Sugerem que o Esta- do dê aos pais vales-escolas ou cheques com o valor necessário para
manter o estudo dos filhos, cabendo ao mercado de escolas públicas e particulares disputar esses
subsídios. Assim, as escolas públicas não recebe- riam recursos do Estado, mas manter-se-iam com o
recebimento desses valores em condições iguais às das particulares, alterando-se, assim, o conceito de
instituição "pública". Trata-se da implementação da política de livre escolha, uma das propostas mais
caras ao ideário neoliberal.
Os defensores de posições neoconservadoras alegam que países mais pobres, como o Brasil, devem
dar primazia à educação básica (leia-se ensino fundamental), o que significa menor aporte de recursos
para a educação infantil e para o ensino médio e superior. Também, no caso do ensino superior, o Estado
financiaria o aluno que não pudesse pagar seus estudos, e este devolveria os valores do empréstimo
depois de formado.
O estudo Primary Education, de 1996, patrocinado pelo BM, diz que a educação escolar básica "é o
pilar do crescimento econômico e do desenvolvimento social e o principal meio de promover o bem-estar
das pessoas" (Nerz, 1996, p. 41-2). A média de escolaridade dos trabalhadores no Brasil é de
aproximadamente 4 anos, contra 7,5 anos no Chile, 8,7 anos na Argentina e 11 anos na França. Há a
preocupação dos empresários brasileiros em ampliar essa média, não só para "promover o bem-estar
das pessoas", como diz o documento do BM, mas também para oferecer ao mercado uma mão de obra
mais qualificada. Um fabricante de armas gaúcho declarou que "os processos de produção estão cada
vez mais sofisticados. (...) Não podemos deixar equipamentos de 500 mil, 1 milhão de dólares, nas mãos
de operários sem qualificação" (Netz, 1996, p. 44).
Como se pode observar, não é possível discutir educação e ensino sem fazer referência a questões
econômicas, políticas e sociais. Daí a escolha da década de 1930, começo do processo de
industrialização do país, para iniciarmos o estudo sobre o processo de organização do ensino no Brasil.
Os acontecimentos políticos, econômicos e sociais da década de 1930 imprimiram novo perfil à
sociedade brasileira. A quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, mergulhou o Brasil na crise do café,
mas em contrapartida encaminhou o país para o desenvolvi- mento industrial, por meio da adoção do

7
LIBÂNEO, José Carlos, OLIVEIRA, João Ferreira e TOSCHI, Mirza Seabra. Educação Escolar: políticas, estrutura e organização. 10ª. Ed., São Paulo: Cortez, 2012.

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1546093 E-book gerado especialmente para DALIANE DO NASCIMENTO DOS SANTOS
modelo econômico de substituição das importações, alterando assim o comando da nação, que passou
da elite agrária aos novos industriais.
De 1930 a 1937, motivada pela industrialização emergente e pelo fortalecimento do Estado-nação, a
educação ganhou importância e foram efetuadas ações governamentais com a perspectiva de organizar,
em plano nacional, a educação escolar. A intensificação do capitalismo industrial alterou as aspirações
sociais em relação à educação, uma vez que nele eram exigidas condições mínimas para concorrer no
mercado, diferentemente da estrutura oligárquica rural, na qual a necessidade de instrução não era
sentida nem pela população nem pelos poderes constituídos (Romanelli, 1987).
A complexidade do período histórico que abrange desde a década de 1930 até o momento atual e sua
repercussão na evolução da educação escolar no país requerem, para apropriada compreensão, a
utilização de outras categorias além das econômicas e políticas. Vamos, pois, a partir de agora, analisar
a história da estrutura e da organização da educação brasileira com base em pares conceituais que
acompanharam historicamente o debate da democratização do ensino no Brasil, permeando os diferentes
períodos e alternando-se em importância, de acordo com o momento histórico.

Centralização/descentralização na organização da educação brasileira


A Revolução de 1930 representou a consolidação do capitalismo industrial no Brasil e foi determinante
para o consequente aparecimento de novas exigências educacionais. Nos dez primeiros anos que se
seguiram, houve um desenvolvimento do ensino jamais registrado no país. Em vinte anos, o número de
escolas primárias dobrou e o de secundárias quase quadruplicou.
As escolas técnicas multiplicaram-se de 1933 a 1945, passaram de 133 para l.368, e o número de
matrículas, de 15 mil para 65 mil (Aranha, 1989).
Em 1930 foi criado o Ministério da Educação e Saúde Pública (Mesp). A reforma elaborada por Fran-
cisco Campos, ministro da Educação, atingiu a estrutura do ensino, levando o Estado nacional a exercer
ação mais objetiva sobre a educação mediante o oferecimento de uma estrutura mais orgânica aos
ensinos secundário, comercial e superior.
De 1937 a 1945 vigorou o Estado Novo, período da ditadura de Getúlio Vargas, em que a questão do
poder se tornou central. Aliás, o poder é categoria essencial para compreender o processo de
centralização ou descentralização na problemática da organização do ensino. O chileno Juan Casassus,
ao escrever sobre o processo de descentralização em países da América Latina (incluindo o Brasil),
observa que a base de todos os enfoques da descentralização ou da centralização se encontra na questão
do poder na sociedade. Diz ele: “(IA centralização ou descentralização tratam da forma pela qual se
encontra organizada a sociedade, como se assegura a coesão social e como se dá o fluxo de poder na
sociedade civil, na sociedade militar e no Estado, explorando aspectos como os partidos políticos e a
administração". Por tratar-se de um processo de distribuição, redistribuição ou reordenamento do poder
na sociedade, no qual uns diminuem o poder em benefício de outros, a questão reflete o tipo de diálogo
social que prevalece e o tipo de negociação que se faz para assegurar a estabilidade e a coesão social -
daí sua relação com o processo conflituoso de democratização da educação nacional.
Os anos 1930 a 1945 no Brasil são identificados como um período centralizador da organização da
educação. Com a Reforma Francisco Campos, iniciada em 1931, o Estado organizou a educação escolar
no plano nacional, especialmente nos níveis secundário e universitário e na modalidade do ensino
comercial, deixando em segundo plano o ensino primário e a formação dos professores. Esta atitude, à
primeira vista voltada para a descentralização - como definia a Constituição de 1891, ao instituir a União
como responsável pela educação superior e secundária e repassar aos estados a responsabilidade da
educação elementar e profissional-, na realidade revelava o desapreço pela educação elementar.
Nesse período, educadores católicos e liberais passaram a envolver-se na elaboração da proposta
educacional da primeira fase do governo Vargas, sob a alegação de que o governo não possuía uma
proposta educacional. Tão logo, porém, Francisco Campos tomou posse no recém-criado Ministério da
Educação e Saúde Pública, impôs a todo o país as diretrizes traçadas pelo Mesp.
Já na Constituição Federal de 1934, em meio a disputas ideológicas entre católicos e liberais, foi incluí-
da boa parte da proposta educacional destes inscrita no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova
(1932) por uma escola pública única, laica, obrigatória e gratuita, fortalecendo a mobilização e as
iniciativas da sociedade civil em torno da questão da educação. Com a Constituição de 1937, que
consolidou a ditadura de Getúlio Vargas, o debate sobre pedagogia e política educacional passou a ser
restrito à sociedade política, em clara demonstração de que a questão do poder estava mesmo presente
no processo de centralização ou descentralização.
O escolanovista Anísio Teixeira foi ardoroso defensor da descentralização por meio do mecanismo de
municipalização. A seu ver, a descentralização educacional contribuiria para a democracia e para a
sociedade industrial, moderna e plenamente desenvolvida. Assim, a municipalização do ensino primário

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constituiria uma reforma política, e não mera reforma administrativa ou pedagógica. Enquanto os liberais,
grupo em que se incluíam as escola novistas, desejavam mudanças qualitativas e quantitativas na rede
pública de ensino, católicos e integralistas desaprovavam alterações qualitativas modernizantes e
democráticas. Essa situação conferia um caráter contraditório à educação escolar. Tinha início, então,
um sistema que - embora sofresse pressão social por um ensino mais democrático numérica e
qualitativamente falando - estava sob o controle das elites no poder, as quais buscavam deter a pressão
popular e manter a educação escolar em seu formato elitista e conservador. O resultado foi um sistema
de ensino que se expandia, mas controlado pelas elites, com o Estado agindo mais pelas pressões do
momento e de maneira improvisada do que buscando delinear uma política nacional de educação, em
que o objetivo fosse tornar uni- versal e gratuita a escola elementar (Romanelli, 1987).
Os católicos conservadores opunham-se à política de laicização da escola pública, conseguindo
acrescentar à Constituição Federal de 1934 o ensino religioso. Por força dessa mesma Constituição, o
Estado passou a fiscalizar e regulamentar as instituições de ensino público e particular.
As leis orgânicas editadas entre 1942 e 1946 - a chamada Reforma Capanema, que recebeu o nome
do então ministro da Educação - reafirmaram a centralização da década de 1930, com o Estado
desobrigando-se de manter e expandir o ensino público, ao mesmo tempo, porém, que decretava as
reformas de ensino industrial, comercial e secundário e criava, em 1942, o Serviço Nacional de
Aprendizagem Industrial (Senai).
A lei orgânica do ensino primário e as do ensino normal e agrícola foram promulgadas em 1946, assim
como a criação do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac). A partir de então, as esquerdas
e os partidos progressistas retomaram o debate pedagógico a fim de democratizar e melhorar o ensino,
apesar da centralização federal do sistema educacional não só na administração, mas também no
aspecto pedagógico, ao fixar currículos, programas e metodologias de ensino (Lardim, 1988).
O debate realizado durante a votação da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB), exigência da Constituição Federal de 1946, envolveu a sociedade civil, e a lei resultante, nº 4.024,
de 20 de dezembro de 1961, instituiu a descentralização, ao determinar que cada estado organizasse seu
sistema de ensino. Porém, o momento democrático que o país vivia não combinava com o centralismo
das ditaduras e durou pouco. Em 1964, o golpe dos militares provocou novamente o fortalecimento do
Executivo e a centralização das decisões no âmbito das políticas educacionais.
Embora a Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971 (Brasil, 1971), prescrevesse a transferência gradativa
do ensino de 1º grau (ensino fundamental) para os municípios, a concentração dos recursos no âmbito
federal assim como as medidas administrativas centralizadoras tornaram estados e municípios
extremamente dependentes das decisões da União. A fragilidade do Legislativo, nesse período, impedia
mais ainda a participação da sociedade, uma vez que esse poder era o mais próximo da sociedade civil
Conforme Casassus (995), o processo de descentralização coincidiu com a universalização da
cobertura escolar, isto é, iniciou-se quando se passou da preocupação quantitativa para a busca da
qualidade na educação. Paradoxalmente, a descentralização adveio quando o Estado se esquivou
de sua responsabilidade com o ensino, fato que, segundo esse autor, foi perceptível na América
Latina a partir do fim dos anos 1970. Há ainda, na atualidade, um discurso corrente nos meios oficiais
de que a questão quantitativa está resolvida, escondendo o fato de que os dados estatísticos são
frequentemente maquiados, as salas de aula estão superlotadas e a qualidade das aprendizagens deixa
a desejar. Em contrapartida, a centralização mantém-se no que o autor chama de alma do processo
educativo - quer dizer, a centralização, especialmente a dos currículos, tem lógica diferente da
administrativa. Com aquela se pretende garantir a integridade social almejada, o que facilitará a
mobilidade dos indivíduos, tanto no território nacional como na escala social.
No fim da década de 1970 e início da de 1980, esgotava-se a ditadura militar e iniciava-se um processo
de retomada da democracia e reconquista dos espaços políticos que a sociedade civil brasileira havia
perdido. A reorganização e o fortalecimento da sociedade civil, aliados à proposta dos partidos políticos
progressistas de pedagogias e políticas educacionais cada vez mais sistematizadas e claras, fizeram com
que o Estado brasileiro reconhecesse a falência da política educacional, especialmente a
profissionalizante, como evidencia a promulgação da Lei nº 7.044/1982, que acabou com a
profissionalização compulsória em nível de 2º grau (ensino médio).
O debate acerca da qualidade, no Brasil, iniciou-se após a ampliação da cobertura do atendimento
escolar. Reconhece-se que, durante o período militar, particularmente com o prolongamento da duração
da escolaridade obrigatória, se estendeu o atendimento ao ensino de 1º grau (ensino fundamental),
embora muito da qualidade do ensino ministrado tenha sido perdido.
Segundo Cunha (1995), a contenção do setor educacional público constituiu condição de sucesso do
setor privado. Apesar disso, foi possível a criação de uma rede de escolas públicas que atendia, com
qualidade variável, parte da sociedade, o que levou as famílias de classe média a optar pela escola

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particular, mesmo com sacrifícios financeiros, como forma de garantir educação de melhor qualidade aos
filhos.
O descontentamento com a deterioração da gestão das redes públicas, o rebaixamento salarial dos
professores, a elevação das despesas escolares pela ampliação da escolaridade sem aumento dos
recursos, os inúmeros casos de desvio de recursos, além de abrirem portas à iniciativa privada, levaram
a sociedade civil a propor soluções que se tornaram ações políticas concretas por ocasião das eleições
de 1982. Foi nesse contexto que intelectuais de esquerda passaram a ocupar cargos na administração
pública, em vários estados brasileiros, em virtude da vitória do Partido do Movimento Democrático
Brasileiro (PMDB), o principal partido de oposição aos militares. Embora a transição democrática tenha
tido início nos municípios em 1977, neles não se observaram as mudanças ocorridas nos estados. Esse
fato leva Cunha a afirmar que a precedência política da democratização da educação se localiza nos
níveis mais elevados do Estado. Assim, as mudanças democráticas, para serem efetivas, devem ocorrer
dos níveis federal e estadual para o municipal.
As principais alterações realizadas pelos novos administradores oposicionistas tiveram como meta a
descentralização da administração, com formas de gestão democrática da escola, com participação de
professores, funcionários, alunos e seus pais e também com eleição direta de diretores. Outro ponto foi
a suspensão de taxas escolares, a criação de escolas de tempo integral, a organização sindical dos
professores.
A retomada da discussão sobre a municipalização do ensino com o apoio dos privatistas, aliada à
busca da escola privada por pais (em boa parte, para evitar as greves nas escolas públicas), reforçou a
tese da privatização do ensino e diminuiu o suporte popular à escola pública.
A modernização educativa e a qualidade do ensino, nos anos 1990, assumiram conotação distinta ao
se vincularem à proposta neoconservadora que inclui a qualidade da formação do trabalhador como
exigência do mercado competitivo em época de globalização econômica. O novo discurso da
modernização e da qualidade, de certa forma, impõe limites ao discurso da universalização, da ampliação
quantitativa do ensino, pois traz ao debate o tema da eficiência, excluindo os ineficientes, e adota o critério
da competência.
A política educacional adotada com a eleição de Fernando Henrique Cardoso para a Presidência da
República, concebida de acordo com a proposta do neoliberalismo, assumiu dimensões tanto
centralizadoras como descentralizadoras. A descentralização, nesse caso, não apareceu como resultado
de maior participação da sociedade, uma vez que as ações realizadas não foram fruto de consultas aos
diversos setores sociais, tais como pesquisadores, professores de ensino superior e da educação básica,
sindicatos, associações e outros, mas surgiram das propostas preparadas para campanha eleitoral.
No primeiro ano de governo (1995), assumiu-se o ensino fundamental como prioridade e foram defini-
dos cinco pontos para as ações: currículo nacional, livros didáticos melhores e distribuídos mais cedo,
aparte de kits eletrônicos para as escolas, avaliação externa, recursos financeiros enviados diretamente
às instituições escolares. Em 1996, considerado o Ano da Educação, a política incluiu a instauração da
TV Escola, cursos para os professores de Ciências, formação para os trabalhadores, reformas no ensino
profissionalizante e a convocação da sociedade para contribuir com a educação no país. Dessas ações,
a única orientada para a descentralização foi a destinação dos recursos financeiros diretamente para as
escolas - ressaltando-se que, no primeiro ano, a merenda escolar foi garantida com eles e, em seguida,
os reparos nas instalações físicas das instituições, com recursos do Fundo Nacional do Desenvolvimento
da Educação (FNDE), advindos do salário-educação. As demais ações caracterizaram-se por certo tipo
de centralismo entendido até como antidemocrático, uma vez que não ocorreram discussões com a
sociedade - como as relativas à avaliação da educação básica e da superior, à instauração da TV Escola
e aos kits eletrônicos nas escolas - e se procurou estabelecer mecanismos de controle do trabalho do
professor. A política de escolha e de distribuição do livro didático poderia ter recebido preciosa
colaboração de professores, especialistas e pesquisadores da área.
O centralismo apresentou-se mais nitidamente na formação dos parâmetros curriculares nacionais
(PCN), os quais, embora tenham contado com a participação da sociedade civil em um dos momentos de
sua discussão, pecaram por ignorar a universidade e as pesquisas sobre currículo e não contemplaram,
desde o início de sua elaboração, o debate com a sociedade educacional. A ampla utilização da mídia no
processo de adoção dos PCN trouxe aprovação para o governo, apesar da manutenção de uma política
mais centralizadora, especialmente na alma do processo educativo.
Paiva (1986) observa que a questão centralização/ descentralização deve ser remetida à história da
própria formação social brasileira e às tendências econômico-sociais presentes em cada período
histórico. Assim, descentralização e democratização da educação escolar no Brasil não podem ser
discutidas independentemente do modo pelo qual é concebido o exercício do poder político no país.

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Uma das formas de descentralização política é a municipalização, que consiste em atribuir aos
municípios a responsabilidade de oferecimento da educação elementar. Conforme já mencionado, a
municipalização foi proposta por Anísio Teixeira, na década de 1930, para o estabelecimento do ensino
primário de quatro anos de duração, não como reforma administrativa, mas com o caráter de reforma
política, uma vez que isso significaria reconhecer a maioridade dos municípios e discutir a necessidade
de democratização e de descentralização do exercício do poder político no país.
A Lei nº 5.692/1971, editada durante a ditadura militar, repassou arbitrariamente a tarefa da gestão do
ensino de 1 º grau (ensino fundamental) aos governos municipais, sem oferecer ao menos as condições
financeiras e técnicas para tal e em uma situação constitucional que nem sequer reconhecia a existência
administrativa dos municípios. Somente com a Constituição Federal de 1988 o município se legitimou
como instância administrativa e a responsabilidade do ensino fundamental lhe foi repassada
prioritariamente. A Constituição ou uma lei, porém, não conseguem sozinhas e rapidamente
descentralizar o ensino e fortalecer o município. Essa é tarefa política de longo prazo, associada às formas
de fazer política no país e às questões de concepção do poder. Descentralização faz-se com espírito de
colaboração, e a tradição política brasileira é de competição, de medição de forças. As categorias
centralização/descentralização estão vinculadas à questão do exercício do poder político, mesmo porque,
desde o final do século XX, a descentralização vem atrelada aos interesses neoliberais de diminuir gastos
sociais do Estado. Isso ficou evidente após a promulgação da Lei nº 9.394/1996 - Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB) -, que centraliza no âmbito federal as decisões sobre currículo e
avaliação e atribui à sociedade responsabilidades que deveriam ser do Estado, tal como ocorreu, por
exemplo, com o trabalho voluntário na escola. Os Projetos Família na Escola e Amigos da Escola e a
descentralização de responsabilidades do ensino fundamental em direção aos municípios são outros
exemplos concretos de uma política que centraliza o poder e descentraliza as responsabilidades.

O debate qualidade/quantidade na educação brasileira

O debate qualidade/quantidade na educação brasileira começou muito cedo. Ainda no século XIX, na
transição do Império para a República, apareceram dois movimentos sociais os quais Nagle (1974)
denominou Entusiasmo pela Educação e Otimismo Pedagógico. O movimento Entusiasmo pela Educação
revelava preocupação de caráter quantitativo, ao propor a expansão da rede escolar e a alfabetização da
população que vivia um processo de urbanização decorrente do crescimento econômico. A adoção do
trabalho assalariado, aliada a outras questões de modernização do país, fez com que a escolarização
aparecesse como fator promotor da ascensão social. Já o Otimismo Pedagógico caracterizou-se pela
ênfase nos aspectos qualitativos da educação nacional, pregando a melhoria das condições didáticas e
pedagógicas das escolas. Este movimento surgiu nos anos 1920 e alcançou o apogeu nos anos 30 do
século XX.

Entre 1930 e 1937, o debate político incorporava diferentes projetos educacionais. Os liberais, que
preconizavam o desenvolvimento urbano-industrial em bases democráticas, desejavam mudanças
qualitativas e quantitativas na rede de ensino público, ao pro- porem a escola única fundamentada nos
princípios de laicidade, gratuidade, obrigatoriedade e coeducação. Alegando que os liberais destruíam os
princípios da liberdade de ensino e retiravam das famílias a educação dos filhos, os católicos
aproximaram-se das teses dos integralistas, defensores do nazismo e do fascismo europeus, e com estes
desaprovavam as alterações qualitativas modernizantes e democráticas objetivadas pelos primeiros,
além de acusá-los de defender propostas comunistas
Durante o Estado Novo, regime ditatorial de Vargas que durou de 1937 a 1945, oficializou-se o
dualismo educacional: ensino secundário para as elites e ensino profissionalizante para as classes
populares. As leis orgânicas ditadas nesse período, por meio de exames rígidos e seletivos, tornavam o
ensino antidemocrático, ao dificultarem ou impedirem o acesso das classes populares não só ao ensino
propedêutico, de nível médio, como também ao ensino superior. O processo de democratização do país
foi retomado com a deposição de Vargas em 1945. A industrialização crescente, especialmente nos anos
1950 e 1960, levou à adoção da política de educação para o desenvolvimento, com claro incentivo ao
ensino técnico-profissional. O golpe de 1964 atrelou a educação ao mercado de trabalho, incentivando a
profissionalização na escola média a fim de conter as aspirações ao ensino superior. A Lei n- 5.692, de
11 de agosto de 1971, ampliou a escolaridade mínima para oito anos (ensino de 1º grau) e tornou
profissionalizante, obrigatoriamente, o ensino de 2º grau. A evolução quantitativa do 1º grau - 100 na
primeira fase do 1º grau (1ª a 4ª séries) e 700 em suas últimas séries em apenas dez anos - não foi
acompanhada de melhora qualitativa. Ao contrário, a expansão da oferta de vagas, nos diversos níveis

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de ensino, teve como consequência o comprometimento da qualidade dos serviços prestados, em razão
da crescente degradação das condições de exercício do magistério e da desvalorização do professor.
A expansão das oportunidades, nos vinte anos de dita- dura militar, foi feita através de um padrão
perverso", sublinha Azevedo 0994, p. 461). A ampliação das vagas deu-se pela redução da jornada
escolar, pelo aumento do número de turnos, pela multiplicação de classes multisseriadas e uni docentes,
pelo achatamento dos salários dos professores e pela absorção de professores leigos. O trabalho precoce
e o empobrecimento da população, aliados às condições precárias de ofereci- mento do ensino, levaram
à baixa qualidade do processo, com altos índices de reprovação.
Atualmente, o país está sendo vítima dessa política. O atraso técnico-científico e cultural brasileiro
impede sua inserção no novo reordenamento mundial. A escolaridade básica e a qualidade do ensino são
necessidades da produção flexível, e a educação básica falha constitui fator que tolhe a competitividade
internacional do Brasil.
Para Azevedo (1994), o problema é que as propostas neoliberais e os conteúdos da ideia de qualidade
esvaziam-se de condicionamentos políticos e tornam-se questão técnica, restringindo o conceito de
qualidade à eternização do desempenho do sistema e às parcerias com o setor privado no que tange às
estratégias da política educacional. A qualidade do ensino consiste em desenvolver o espírito de iniciativa,
a autonomia para tomar decisões, a capacidade de resolver problemas com criatividade e competência
crítica - visando, porém, atender aos interesses dos grandes blocos econômicos internacionais. A questão
é, antes, ético-política, uma vez que se processa na discussão dos direitos de cidadania para os
excluídos. Por isso, ensino de qualidade para todos constitui, mais do que nunca, dever do Estado em
uma sociedade que se quer mais justa e democrática.
Na reflexão e no debate sobre a qualidade da educação e do ensino, os educadores têm caracterizado
o termo "qualidade" com os adjetivos social e cidadã - isto é, qualidade social, qualidade cidadã -, para
diferenciar o sentido que as políticas oficiais dão ao termo. Qualidade social da educação significa não
apenas diminuição da evasão e da repetência, como entendem os neoliberais, mas refere-se à condição
de exercício da cidadania que a escola deve promover. Ser cidadão significa ser partícipe da vida social
e política do país, e a escola constitui espaço privilegiado para esse aprendizado, e não apenas para
ensinar a ler, escrever e contar, habilidades importantes, mas insuficientes para a promoção da cidadania.
Além disso, a qualidade social da educação precisa considerar tanto os fatores externos (sociais,
econômicos, culturais, institucionais, legais) quanto os fatores interescolares, que afetam o processo de
ensino-aprendizagem, articulados em função da universalização de uma educação básica de qualidade
para todos.

O embate entre defensores da escola pública e privatistas na educação brasileira


Compreender a educação pública no Brasil supõe conhecer como se deram, historicamente, os
embates entre os defensores da escola pública e as forças privatistas, presentes ao longo da história
educacional brasileira.
A gênese da educação brasileira ocorreu com a vinda dos jesuítas, que iniciaram a instauração, no
ideário educacional, dos princípios da doutrina religiosa católica, a educação diferenciada pelos sexos e
a responsabilidade da família com a educação. Esses princípios, a partir da década de 1920, chocavam-
se com os princípios liberais dos escola novistas que publicaram, em 1932, o Manifesto dos Pioneiros da
Educação Nova, propondo novas bases pedagógicas e a reformulação da política educacional.
A Constituição de 1934 absorveu apenas parte dessas propostas, atribuindo papel relevante ao Estado
no controle e na promoção da educação pública. Essa Constituição instituiu o ensino primário obrigatório
e gratuito, criou o concurso público para o magistério, conferiu ao Estado o poder fiscalizador e regulador
de instituições de ensino públicas e particulares e fixou percentuais mínimos para a educação.
Os católicos, porém, não foram totalmente tirados de cena. A educação religiosa tornou-se obrigatória
na escola pública, contrariando o princípio liberal da laicidade, os estabelecimentos privados foram
reconheci- dos e legitimou-se o papel educativo da família e a liberdade de os pais escolherem a melhor
escola para seus filhos, o que mais tarde foi usado como argumento a favor da destinação de recursos
financeiros públicos também para as escolas privadas.
Imposta pelo Estado Novo, a Carta Constitucional de 1937 atenuou o dever do Estado como educador,
instituindo-o como subsidiário, para preencher lacunas ou deficiências da educação particular. Em vez de
consolidar o ensino público e gratuito como tarefa do Estado, a Carta de 1937 reforçou o dualismo
educacional que provê os ricos com escolas particulares e públicas de ensino propedêutico e confere aos
pobres a condição de usufruir da escola pública mediante a opção pelo ensino profissionalizante.
Com a promulgação das leis orgânicas - a chamada Reforma Capanema - entre 1942 e 1946, foram
desenvolvidos empreendimentos particulares no ensino profissionalizante, com o objetivo de preparar
melhor a mão de obra em uma fase de expansão da indústria, por causa das restrições às importações

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no período da Segunda Guerra Mundial. O Senai foi organizado e dirigido pelos industriais, e o Senac,
pelos comerciantes. Atualmente, essas duas instituições têm peso significativo no ensino profissional
oferecido no país, embora em ritmo decrescente a partir do final dos anos 1980, diante do crescimento
do atendimento público gratuito. Nos primeiros anos do século XXI passaram a atuar, também, em cursos
tecnológicos de nível superior e em programas de educação a distância.
Quando o anteprojeto da primeira LDB iniciou sua tramitação em 1948, a maioria das escolas
particulares de nível secundário estava nas mãos dos católicos, atendendo à classe privilegiada.
Alegando que o projeto determinava o monopólio estatal da educação, os católicos defendiam a liberdade
do ensino e o direito da família de escolher o tipo de educação a ser oferecida aos filhos. Na verdade,
essa questão impedia a democratização da educação pública, ao incorporar no texto legal a cooperação
financeira para as escolas privadas em uma sociedade em que mais da metade da população não tinha
acesso à escolarização.
Opondo-se a essa postura elitista, os liberais, apoiados por intelectuais, estudantes e sindicalistas,
iniciaram campanha em defesa da escola pública que culminou, em 1959, com o Manifesto dos
Educadores. Este propunha o uso dos recursos públicos unicamente nas escolas públicas e a fiscalização
estatal para as escolas privadas.
A expansão da escola privada foi mais intensa após o golpe militar de 1964, que instaurou a ditadura
militar e beneficiou grandemente a iniciativa privada, especialmente no ensino superior.
Durante o processo de elaboração da Constituição de 1988, verificou-se novamente o confronto entre
publicitas e privatistas. No entanto, os privatistas apresentavam novas feições, uma vez que passaram a
ser compostos não apenas de grupos religiosos católicos, mas também de protestantes e empresários
do ensino. Ideologicamente, atacavam o ensino público, caracterizado como ineficiente e fracassado,
contrastando-o com a suposta excelência da iniciativa privada, mas ocultando os mecanismos de apoio
governamental à rede privada, tais como imunidade fiscal sobre bens, serviços e rendas, garantia de
pagamento das mensalidades escolares e bolsas de estudo. Esses mecanismos mantiveram-se mesmo
após a promulgação da Constituição Federal de 1988.
Como que reforçando as disparidades entre uma e outra rede, o descompromisso estatal com a
educação pública deteriorou os salários dos professores e as condições de trabalho, o que gerou greves
e mobilizações. A preferência pela escola particular ampliou-se por sua aparência de melhor organização
e eficácia. Muitas famílias fizeram sacrifícios em muitos gastos para propiciar um ensino supostamente
de melhor qualidade em uma escola particular.
A análise de que a escola privada é superior à pública não se sustenta, em geral, por não haver
homogeneidade em nenhuma das redes - há boas e más escolas em ambas -, como demonstram as
análises do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). Além disso, é nas escolas públicas que
se encontram os segmentos economicamente menos favorecidos da sociedade. Conforme o Censo
Escolar da Educação Básica de 2010:
Nos 194.939 estabelecimentos-de educação básica do país estão matriculados 51.549.889 alunos,
sendo que 43.989.507 (85,4) estão em escolas públicas e 7.560.382 (14,6) em escolas da rede privada.
As redes municipais são responsáveis por quase metade das matrículas - 46,0 -, o equivalente a
23.722.411 alunos, seguida pela rede estadual, que atende a 38,9 do total, o equivalente a 20.031.988.
A rede federal, com 235.108 matrículas, participa com 0,5 do total (Brasil. MEC/lnep, 2010, p. 3-4).
Por esses dados, fica clara a importância da educação pública no país e para a democratização da
sociedade, uma vez que ela desempenha papel significativo no processo de inclusão social.
Tabela 1- Número de matrículas na Educação Básica por Dependência Administrativa - Brasil 2002-2010

Fonte: MEC/Inep/DEED
Notas:
1) Não inclui matrículas em turmas de atendimento complementar.
2) O mesmo aluno pode ter mais de uma matrícula.

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A partir de meados da década de 1980, com a crise econômica internacional e o desemprego estrutural
que levaram ao arrocho salarial, a classe média, pressionada pelo custo de vida, buscou retirar do
orçamento familiar o gasto com mensalidades escolares e foi à procura da escola pública. A
inadimplência cresceu nas escolas particulares e nova ofensiva apresentou-se: a ideia do público não
estatal. Público passou a ser entendido como tudo o que se faz na sociedade e nela interfere. Nessa
perspectiva, haveria o público estatal e o público privado, definindo a gratuidade do ensino apenas em
estabelecimentos oficiais, como assegura o art. 206 da Constituição Federal de 1988.
Essa concepção deve-se à política neoliberal, que prega o Estado mínimo, incluindo até mesmo a
privatização ou a minimização da oferta de serviços sociais. Na educação básica, orientado até mesmo
por organismos internacionais como o Banco Mundial, o Estado deveria atender o ensino público, uma
vez que esse nível de educação é considerado imprescindível na organização do trabalho. Tal
atendimento, no entanto, deveria ser conduzido por parâmetros de gestão da iniciativa privada e do
mercado, tais como diversificação, competitividade, seletividade, eficiência e qualidade. Essa orientação
aponta, mais uma vez, o beneficiamento das forças privatistas na educação.
Verifica-se, no entanto, considerável esforço de segmentos sociais no âmbito oficial e em associações
e movimentos de educadores, sobretudo a partir da segunda metade da década de 2000, em favor da
retomada do protagonizo-o do Estado na área educacional. Nesse sentido, cumpre destacar a criação do
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da
Educação (Fundeb), em 2007; a Emenda Constitucional nº 59, que torna obrigatório o ensino de 4 a 17
anos; as iniciativas que visam ao aumento dos investimentos públicos na educação; a expansão da oferta
de educação superior por meio das universidades federais; a ampliação da educação profissional e
tecnológica mediante a criação de institutos federais de educação, ciência e tecnologia.

LINS, B. A.; MACHADO, B. F.; ESCOURA, M. Diferentes, não desiguais: a


questão de gênero na escola. São Paulo, Revira Volta, 2016.

DIFERENTES, NÃO DESIGUAIS: A QUESTÃO DE GÊNERO NA ESCOLA

O título contrapõe conceitos caros no presente: diferença e desigualdade. De fato, somos todos
diferentes. Olha ao teu redor e me diz quem é igual a ti? Se não tiveres um irmão gêmeo univitelino, a
resposta será, ninguém. Algumas diferenças, contudo, são tomadas como relevantes e um mote para
discriminar quem porta tais marcas: ser mulher, ser negro, ser homossexual, ser travesti. Isto é, diferenças
acarretam desigualdades. E ter mais de uma dessas marcas agrava a desigualdade. A igualdade da qual
tanto se fala no presente é não apenas a igualdade perante a lei, assegurada pela Constituição Federal
de 1988, como também a de tratamento pelos demais membros da sociedade. Nem legalmente, nem
socialmente poderíamos ser discriminados, quando tal discriminação significar uma diminuição
do status dos indivíduos. A discriminação positiva muito em voga atualmente visa elevar o status de
indivíduos que, em decorrência de diversas formas de preconceito, têm oportunidades de acesso a
direitos e bem limitadas8.
A escola é a instituição que faz a passagem da vida familiar, privada, para a vida pública. E,
lamentavelmente, ela própria produz e reproduz muitas das violências que aqueles tomados como
diferentes viverão ao longo da vida. Ela deveria ser, antes de tudo, o ambiente onde pessoas serão
educadas, não apenas do ponto de vista dos conteúdos tomados como eminentemente acadêmicos, tais
como português, matemática, biologia, geografia, física, química, história e literatura, como também do
ponto de vista da formação de cidadãos que, esperamos, sejam responsáveis e solidários. O livro nos
indicada alguns caminhos que podem ser seguidos para que mudanças ocorram e o respeito se torne a
regra.
Os autores do livro são doutorandos de duas das mais conceituadas universidades do País, USP e
Unicamp. Ao escreverem sobre si mesmos, dão ênfase não ao trabalho teórico que desenvolvem nos
seus respectivos programas de pós-graduação em antropologia e em ciências sociais, mas às suas
atividades práticas como educadores preocupados com a formação das novas gerações e de como isso
afeta suas práticas ao desenvolverem trabalhos em comunidades carentes.
O subtítulo do livro nos coloca no ambiente que deveria ser privilegiado para a discussão sobre o
respeito às diferenças e que, muitas vezes, ensina, ele próprio a desigualdade. Todas as crianças e
adolescentes de 7 a 14 anos, por força de lei, devem, obrigatoriamente, estar matriculados e freqüentar,
8
https://bit.ly/2FEhW19

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assiduamente, uma escola. Todas! Portanto, a variedade com que corpos humanos se apresentam ao
mundo deve ser acolhida na escola. Mas o que deveria ser um local de acolhimento e de ensino sobre a
diversidade, se tornou um ambiente violento para professores e alunos. Estamos desperdiçando a
oportunidade de aprender a conviver com o diferente ao excluí-lo. Tal exclusão não se dá mais de modo
legal, como já ocorreu. Mulheres e negros não são mais, legalmente, proibidos de estudar. A violência do
ambiente escolar, entretanto, é excludente. O que fazer para mudar tal realidade?
Para compreender é preciso nomear. Esta é a ideia com que concluem o livro. Foi isso o que fizeram
ao longo dele. Conceitos que, em geral, algumas pessoas usam e muitas não entendem são explicados.
Exemplos são dados. Identidade de gênero, heteronormatividade, orientação sexual (e não opção
sexual), cisgênero, marcadores sociais de diferença, são alguns deles. Ao final do livro, há um glossário.
Ao longo dele, histórias são contadas, tais conceitos são usados e contextualizados. Nomear, contudo,
tampouco basta. E os autores vão além. Discutem situações concretas, dão sugestões. Mostram aos
leitores dados que expressam como as coisas são. E apresentam caminhos para mostrar que poderiam
ser diferentes.
O livro não foi escrito para teóricos, mas para qualquer um que sofra por ser discriminado ou que se
angustie com o sofrimento alheio e que deseje fazer algo a respeito. Crianças e adolescentes deveriam
estar protegidos na escola. Não estão! Como poderiam estar? Como deveríamos agir para que
estivessem? Mesmo que a escola seja o local ideal para reflexão, não estar mais nela não nos impede
de promover a igualdade e o respeito às diferenças. Crianças e adolescentes conversam em casa sobre
o que aprenderam na escola. Provocar a discussão na escola, provoca a discussão no País. Talvez por
isso muitos queiram proibir que se discuta sobre questões de gênero na escola. Mas isso já é tema para
outros livros e outras resenhas.

MACHADO, N. Epistemologia e Didática: as concepções de conhecimento e


inteligência e a prática docente. São Paulo: Cortez, 1995.

EPISTEMOLOGIA E DIDÁTICA: AS CONCEPÇÕES DE CONHECIMENTO E INTELIGÊNCIA E A


PRÁTICA DOCENTE

"Contribuir para a elaboração da concepção de inteligência coma um espectro de competências e de


conhecimento coma uma rode de significados" a "examinar criticamente, a partir dos resultados obtidos,
a forma de organização do trabalho escolar, pensando alternativas de articulação entre as concepções e
as áreas docentes" são as principais objetivos propostos pelo autor deste trabalho.
Para compor suas ideias, MACHADO divide a apresentação de seu Iivro em duas partes, trazendo
uma continua indagação, remetendo-nos a reflexão sabre as diferentes armadilhas a que estamos
expostos quando lidamos com "concepções de natureza epistemológica e Wes de natureza didática".
Na Parte I, MACHADO sistematiza suas ideias, revelando o caminho de suas opções até que pudesse
escolher a via da "Epistemologia e Didática". Diante dessa perspectiva, múltiplas questões se fizeram
presentes, sobressaindo pelo menos duas: "a caracterização da inteligência coma um espectro de
competências, e do conhecimento como uma rede de significações" e "a explicitação do papel das
metáforas, das alegorias com um recurso pedagógico, especialmente importante no âmbito da concepção
do conhecimento como rede" (p.15).
Decorrentes dessas questões, a autor procura estabelecer pontes entre as concepções a as nãos
docentes, definindo as contornos que estruturam seu trabalho. Contornos que inspiram uma forma diversa
de "enredar" a conhecimento, a que pode causal-, coma nos diz MACHADO, um texto que se estrutura
de modo diverso, produzindo uma "sensação de estranhamento, coma se permanecesse inacabado"(p.
21).
Contornos que nos fazem vivenciar a "ideia de rode" propagada pelo autor, conduzindo-nos a "uma
permanente abertura nas significações, a uma continua mudança na configuração dos nós e das relações,
a um acentrismo - ou a uma coexistência de múltiplos contras de interesse"(p. 21).
Ainda na Parte I, MACHADO anuncia os nave artigos a serem trabalhados na Parte revelando que
eles podem ser lidos de modo independentes, mas que se apoiam mutuamente. Insiste para o fato de
que não há conclusões no final do trabalho, além das quais foram introduzidas nos artigos. E aponta,
também, para alguns "prosseguimentos possíveis", de acordo com as investigações realizadas,
sintetizando-os coma: 1. "a noção de conhecimento como rede conduz a um redimensionamento no papal
das disciplines" (p. 23); 2. "a aprofundamento no estudo da alegoria como objeto matemático"(p.24): 3. "a

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articulação entre as ideias de rede e de arvore, entre a não-linearidade, a acentrismo, a as necessidades
práticas de hierarquias e procedimentos algorítmicos também parece especialmente fecundo" (p. 24).
A Parte II da vida as ideias semeadas anteriormente. Os nave artigos componentes "localizam",
"vivificam", d'ao "sentido" ao trabalho empreendido pelo autor.
Em relação a forma, os artigos possuem um resumo das ideias centrais e são acompanhados par
palavras-chave que iluminam os diferentes "nos", desamarrando-os elou provocando outros, a partir de
nossa leitura. Estabelecendo, coma quer MACHADO, as possíveis "interconexões".
Quanta ao conteúdo, a perspectiva do autor tem coma pano de fundo articular quest5es
epistemológicas mais gerais, apresentando concepções emergentes para a representação do
conhecimento e da inteligência, a especificidade das áreas docentes, especialmente aquelas que
organizam o trabalho escolar, tais como: disciplines, interdisciplinaridade, currículos, planejamento,
ressaltando, de maneira especial, a concepção de avaliação educacional a papel das tecnologias
informáticas conduzindo ou construindo a processo educacional.
Dentro dessa perspectiva é instigante a reflexão a respeito da ideia de conhecimento que se tornou
senso comum em nosso tempo: a "construção". Para além da ideia de "construção" (entendendo que "em
termos epistemológicos, quase não existem mais n5°-construtivistas", p. 31), MACHADO concebe o
conhecimento "coma uma rede de significados em um espaço de representações, uma teia de relações
cuja construção não se inicia na escola. e que se agrega, possivelmente, a uma proto-rede inata" (p. 31).
As ressonâncias, as desdobramentos dessa ideia fazem parte do primeiro artigo da Parte II -
"Conhecimento e ação docente: considerações sabre o processo cognitivo", mas estão presentes em
toda a obra.
Situar a rede como "metáfora, imagem ou paradigma" na concepção do conhecimento, assim come a
metáfora como "instrumento fundamental do próprio processo de construção das redes de significado"
(p,117), "sugerindo, instaurando ou desenvolvendo significações" (p. 147), é outro momenta fundamental
de contribuição a pratica docente, na medida em que possibilita repensar alternativas para a organização
do trabalho escolar. (Vale a pena conferir o artigo intitulado "Conhecimento come rede: a metáfora coma
paradigma e como processo", p. 117-176).
Ao lado da concepção de conhecimento, apresentando as metáforas e as alegorias_ come
instrumentos básicos para a transferência de um feixe de significados conhecido pata outro em
construção, trabalha com a concepção de inteligência, analisando-a como um espectro de competências,
identificando corno ser inteligente aquele que tem "capacidade de mobilizar-se tendo em vista a realização
de seus projetos" (p.83). Esta temática vai sendo desenvolvida com muita propriedade, a partir de
comentários dos trabalhos realizados per ARBIB (1989), LEVY (1993) e GARDNER (1993), no artigo
"inteligência múltipla: a língua e a matemática no espectro de competências" (p. 80-116).
Ao mesmo tempo que tece considerações teóricas, fortalecendo os "nós" de sua "rede de
significações" (com "pontos/nós e segmentos e conexas", p. 144), vai "capturando o mundo", delineando
a importância de "conhecer o conhecer" (p. 170).
Construindo essa imagem, outros assuntos vão sendo examinados. Ha mementos em que estabelece
uma discussão com questões mais especificas de natureza matemática ou linguística, come é o caso dos
artigos: "Dos Conjuntos as Alegorias: os objetos matemáticos e a representação do conhecimento" (p.
197-212) e linguística e Matemática: das Categorias Gramaticais as Categorias Algébricas" (p. 213-230).
E há outros em que introduz artigos mais gerais que possibilitam um encontro com temas que, apesar de
divulgados, necessitam de uma maior reflexão, para que novos projetos e valores possam ser articulados
par nossa sociedade. Dentro dessa perspectiva, podemos citar os artigos que se seguem:
"interdisciplinaridade e Matemática" (p. 177-196); "informática na escola: significado do computador no
processo educacional" (p. 231-257); "Avaliação educacional: das técnicas aos valores" (p. 258-283) e
"Educação: crise, avaliação, valores" (p. 284-307).
Nós, leitores, somos enredados pelo autor, na medida em que ele vai atravessando os terrenos da
Epistemologia e da Didática, fazendo-nos repensar questões teóricas e ações docentes, envolvendo-nos
em múltiplas relações, compreendendo e construindo o significado de nossa pratica.
Ao recomendar a leitura do livro de MACHADO, reconheço-a como contribuição valiosa no avanço da
luta pela Educação. Educação que valoriza a importância da pratica docente e privilegia a Escola, não só
como lugar de construção de novas concepções de conhecimento e de inteligência, mas,
fundamentalmente, coma terreno capaz de articular projetos e semear valores, enredando caminhos mais
conscientes para a nossa sociedade.

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1546093 E-book gerado especialmente para DALIANE DO NASCIMENTO DOS SANTOS
MUNANGA, K. (Org.) Superando o Racismo na Escola. Brasília: MEC/SECAD,
2005.

SUPERANDO O RACISMO
NA ESCOLA9

Apresentação
Alguns dentre nós não receberam na sua educação e formação de cidadãos, de professores e
educadores o necessário preparo para lidar com o desafio que a problemática da convivência com a
diversidade e as manifestações de discriminação dela resultadas colocam quotidianamente na nossa vida
profissional. Essa falta de preparo, que devemos considerar como reflexo do nosso mito de democracia
racial, compromete, sem dúvida, o objetivo fundamental da nossa missão no processo de formação dos
futuros cidadãos responsáveis de amanhã. Com efeito, sem assumir nenhum complexo de culpa, não
podemos esquecer que somos produtos de uma educação eurocêntrica e que podemos, em função desta,
reproduzir consciente ou inconscientemente os preconceitos que permeiam nossa sociedade.
Partindo da tomada de consciência dessa realidade, sabemos que nossos instrumentos de trabalho
na escola e na sala de aula, isto é, os livros e outros materiais didáticos visuais e audiovisuais carregam
os mesmo conteúdos viciados, depreciativos e preconceituoso em relação aos povos e culturas não
oriundos do mundo ocidental. Os mesmos preconceitos permeiam também o cotidiano das relações
sociais de alunos entre si e de alunos com professores no espaço escolar. No entanto, alguns professores,
por falta de preparo ou por preconceitos neles introjetados, não sabem lançar mão das situações
flagrantes de discriminação no espaço escolar e na sala como momento pedagógico privilegiado para
discutir a diversidade e conscientizar seus alunos sobre a importância e a riqueza que ela traz à nossa
cultura e à nossa identidade nacional. Na maioria dos casos, praticam a política de avestruz ou sentem
pena dos “coitadinhos”, em vez de uma atitude responsável que consistiria, por um lado, em mostrar que
a diversidade não constitui um fator de superioridade e inferioridade entre os grupos humanos, mas sim,
ao contrário, um fator de complementaridade e de enriquecimento da humanidade em geral; e por outro
lado, em ajudar o aluno discriminado para que ele possa assumir com orgulho e dignidade os atributos
de sua diferença, sobretudo quando esta foi negativamente introjetada em detrimento de sua própria
natureza humana.
Não precisamos ser profetas para compreender que o preconceito incutido na cabeça do professor e
sua incapacidade em lidar profissionalmente com a diversidade, somando-se ao conteúdo preconceituoso
dos livros e materiais didáticos e às relações preconceituosas entre alunos de diferentes ascendências
étnico-raciais, sociais e outras, desestimulam o aluno negro e prejudicam seu aprendizado. O que explica
o coeficiente de repetência e evasão escolar altamente elevado do alunado negro, comparativamente ao
do alunado branco.

Sem minimizar o impacto da situação socioeconômica dos pais dos alunos no processo de
aprendizagem, deveríamos aceitar que a questão da memória coletiva, da história, da cultura e da
identidade dos alunos afrodescendentes, apagadas no sistema educativo baseado no modelo
eurocêntrico, oferece parcialmente a explicação desse elevado índice de repetência e evasão escolares.
Todos, ou pelo menos os educadores conscientes, sabem que a história da população negra quando é
contada no livro didático é apresentada apenas do ponto de vista do “Outro” e seguindo uma ótica
humilhante e pouco humana. Como escreveu o historiador Joseph Kizerbo, um povo sem história é como
um indivíduo sem memória, um eterno errante. Como poderia ele então aprender com facilidade? As
consequências de tudo isso na estrutura psíquica dos indivíduos negros são incomensuráveis por falta
de ferramentas apropriadas. Mas elas existem certamente e devem, como mostra bem Franz Fanon no
seu livro Pele Negra, Máscaras Brancas, prejudicar o sucesso escolar do aluno negro e de outros
submetidos ao mesmo tratamento.
O resgate da memória coletiva e da história da comunidade negra não interessa apenas aos alunos
de ascendência negra. Interessa também aos alunos de outras ascendências étnicas, principalmente
branca, pois ao receber uma educação envenenada pelos preconceitos, eles também tiveram suas
estruturas psíquicas afetadas. Além disso, essa memória não pertence somente aos negros. Ela pertence
a todos, tendo em vista que a cultura da qual nos alimentamos quotidianamente é fruto de todos os

9
Superando o Racismo na escola. 2ª edição revisada / Kabengele Munanga, organizador. – [Brasília]: Ministério da Educação, Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.

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segmentos étnicos que, apesar das condições desiguais nas quais se desenvolvem, contribuíram cada
um de seu modo na formação da riqueza econômica e social e da identidade nacional.
Como, então, reverter esse quadro preconceituoso que prejudica a formação do verdadeiro cidadão e
a educação de todos os alunos, em especial os membros dos grupos étnicos, vítimas do preconceito e
da discriminação racial? Não existem leis no mundo que sejam capazes de erradicar as atitudes
preconceituosas existentes nas cabeças das pessoas, atitudes essas provenientes dos sistemas culturais
de todas as sociedades humanas. No entanto, cremos que a educação é capaz de oferecer tanto aos
jovens como aos adultos a possibilidade de questionar e desconstruir os mitos de superioridade e
inferioridade entre grupos humanos que foram introjetados neles pela cultura racista na qual foram
socializados. Apesar da complexidade da luta contra o racismo, que consequentemente exige várias
frentes de batalhas, não temos dúvida de que a transformação de nossas cabeças de professores é uma
tarefa preliminar importantíssima. Essa transformação fará de nós os verdadeiros educadores, capazes
de contribuir no processo de construção da democracia brasileira, que não poderá ser plenamente
cumprida enquanto perdurar a destruição das individualidades históricas e culturais das populações que
formaram a matriz plural do povo e da sociedade brasileira.

Por isso, o objetivo dos textos que compõem o presente manual, longe de resolver sozinho o longo e
demorado processo de transformação de nossas estruturas mentais herdadas do mito de democracia
racial e, consequentemente, dos mecanismos racistas que, sutil, consciente ou inconscientemente,
marcaram a nossa própria educação e formação, é oferecer e discutir alguns subsídios que possam ajudar
no desenvolvimento do processo de transformação de nossas cabeças. Embora possamos contar com o
diálogo, a troca de experiências e de ideias resultada de discussão e de debate entre todos os educadores
do país e do mundo preocupados e comprometidos com a questão, cremos que o esforço interno e o
engajamento de cada um de nós individualmente são necessários para a realização dessa tarefa imensa.
Em outras palavras, a finalidade deste livro consiste, por um lado, em mostrar o racismo como um dos
graves problemas de nossa sociedade e, por outro lado, em mobilizar todas as forças vivas da sociedade
para combatê-lo. Entre essas forças, a educação escolar, embora não possa resolver tudo sozinha, ocupa
um espaço de destaque. Se nossa sociedade é plural, étnica e culturalmente, desde os primórdios de sua
invenção pela força colonial, só podemos construí-la democraticamente respeitando a diversidade do
nosso povo, ou seja, as matrizes étnico-raciais que deram ao Brasil atual sua feição multicolor composta
de índios, negros, orientais, brancos e mestiços.
Embora concordemos que a educação tanto familiar como escolar possa fortemente contribuir nesse
combate, devemos aceitar que ninguém dispõe de fórmulas educativas prontas a aplicar na busca das
soluções eficazes e duradouras contra os males causados pelo racismo na nossa sociedade. A primeira
atitude corajosa que devemos tomar é a confissão de que nossa sociedade, a despeito das diferenças
com outras sociedades ideologicamente apontadas como as mais racistas (por exemplo, Estados Unidos
e África do Sul), é também racista. Ou seja, despojarmo-nos do medo de sermos preconceituosos e
racistas. Uma vez cumprida esta condição primordial, que no fundo exige uma transformação radical de
nossa estrutura mental herdada do mito de democracia racial, mito segundo o qual no Brasil não existe
preconceito étnico-racial e, consequentemente, não existem barreiras sociais baseadas na existência da
nossa diversidade étnica e racial, podemos então enfrentar o segundo desafio de como inventar as
estratégias educativas e pedagógicas de combate ao racismo.
Quantas vezes ouvimos pronunciar, até por pessoas supostamente sensatas, a frase segundo a qual
as atitudes preconceituosas só existem na cabeça das pessoas ignorantes, como se bastasse frequentar
a universidade para ser completamente curado dessa doença que só afeta os ignorantes? Esquecem-se
que o preconceito é produto das culturas humanas que, em algumas sociedades, transformou-se em
arma ideológica para legitimar e justificar a dominação de uns sobre os outros. Esta maneira de relacionar
o preconceito com a ignorância das pessoas põe o peso mais nos ombros dos indivíduos do que nos da
sociedade. Além disso, projeta a sua superação apenas no domínio da razão, o que deixaria pensar, ao
extremo, que nos países onde a educação é mais desenvolvida o racismo se tornaria um fenômeno raro.
Aqui está o grande desafio da educação como estratégia na luta contra o racismo, pois não basta a
lógica da razão científica que diz que biologicamente não existem raças superiores e inferiores, como não
basta a moral cristã que diz que perante Deus somos todos iguais, para que as cabeças de nossos alunos
possam automaticamente deixar de ser preconceituosas. Como educadores, devemos saber que apesar
da lógica da razão ser importante nos processos formativos e informativos, ela não modifica por si o
imaginário e as representações coletivas negativas que se tem do negro e do índio na nossa sociedade.
Considerando que esse imaginário e essas representações, em parte situados no inconsciente coletivo,
possuem uma dimensão afetiva e emocional, dimensão onde brotam e são cultivadas as crenças, os
estereótipos e os valores que codificam as atitudes, é preciso descobrir e inventar técnicas e linguagens

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capazes de superar os limites da pura razão e de tocar no imaginário e nas representações. Enfim,
capazes de deixar aflorar os preconceitos escondidos na estrutura profunda do nosso psiquismo.
Por isso, apesar da disparidade aparente dos textos que compõem este livro, a sua coerência está
justamente na busca de um leque de exemplos e de informações que possam lidar tanto com a razão
quanto com a afetividade e a emocionalidade presentes no preconceito e na discriminação antinegros. A
preocupação fundamental dos autores desses textos não é fornecer aos professores e educadores as
fórmulas e as receitas antirracistas prontas, pois elas não existem. Mas, sim, de estimular e levar sua
imaginação criativa a inventá-la. Visto deste ângulo, os diversos textos arrolados no livro vão servir
apenas como exemplos e como modelos limitados, para que cada um, de acordo com as peculiaridades
de sua região, de sua cidade, de sua escola, de sua classe, etc., possa descobrir caminhos apropriados,
caminhos esses que podem ser encontrados em outros livros e outros textos, nos mapas geográficos e
Atlas, revistas e jornais, nos museus, nas praças das cidades, nas igrejas e outros monumentos públicos.
Lembrem-se que um professor ou um educador numa classe é como um ator único num cenário único.
Apesar de o conteúdo da mensagem ser o mesmo para todas as classes, ele precisa adaptar sua
encenação ao espírito de cada classe, senão será prejudicada a comunicação e a mensagem não será
igualmente transmitida e entendida por todos.
O Ministério da Educação e do Desporto, ao instituir os Parâmetros Curriculares Nacionais,
introduzindo neles o que chamou de Temas
Transversais, busca caminhos apropriados e eficazes para lutar contra os diversos tipos de
preconceitos e de comportamentos discriminatórios que prejudicam a construção de uma sociedade
plural, democrática e igualitária. Mas deixou aos próprios educadores a liberdade de incrementar o
conteúdo desses temas transversais, baseando-se na sua experiência profissional e nas peculiaridades
de seus meios. O presente livro vem somar-se à contribuição de cada um de nós. Seus esforços são
dirigidos à luta contra os preconceitos e a discriminação, que atingem cerca de 50% da população
brasileira composta de negros. Outros especialistas com conhecimento da realidade das sociedades
indígenas, das relações de gêneros, dos homossexuais, dos portadores de deficiência e outras vítimas
da sociedade devem fazer o mesmo esforço. Os caminhos não são separados nem solitários, mas a
especificidade exige abordagens diversas sem perder o rumo do diálogo e da troca de experiência.

A DESCONSTRUÇÃO DA DISCRIMINAÇÃO NO LIVRO DIDÁTICO

Ana Célia da Silva


Professora Assistente do Departamento de
Educação da Universidade do Estado da Bahia –
UNEB. Doutoranda em Educação da Universidade
Federal da Bahia – UFBA.

Introdução
Conhecer para entender, respeitar e integrar, aceitando as contribuições das diversas culturas,
oriundas das várias matrizes culturais presentes na sociedade brasileira, deve ser o objetivo específico
da introdução nos currículos do tema transversal Pluralidade Cultural e Educação, que considero
universal, pela sua abrangência e importância social.
Contudo, torna-se necessário refletir até que ponto as culturas oriundas dos grupos subordinados na
sociedade, cujas contribuições não são consideradas como tradição e passado significativo e, por isso,
são invisibilizadas e minimizadas nos currículos, poderão vir a ser objeto de investigação e constituir-se
na prática educativa dos professores.
Por outro lado, os sujeitos dessas culturas são representados, em grande parte, nos meios de
comunicação e materiais pedagógicos, sob forma estereotipada e caricatural, despossuídos de
humanidade e cidadania.
No livro didático a humanidade e a cidadania, na maioria das vezes, são representadas pelo homem
branco e de classe média. A mulher, o negro, os povos indígenas, entre outros, são descritos pela cor da
pele ou pelo gênero, para registrar sua existência.
Rosemberg corrobora essa afirmativa quando diz que “o homem branco adulto proveniente dos
estratos médios e superiores da população é o representante da espécie mais frequente nas estórias,
aquele que recebe um nome próprio, aquele que se reveste da condição de normal”.
A invisibilidade e o recalque dos valores históricos e culturais de um povo, bem como a inferiorização
dos seus atributos adscritivos, através de estereótipos, conduz esse povo, na maioria das vezes, a
desenvolver comportamentos de auto-rejeição, resultando em rejeição e negação dos seus valores

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culturais e em preferência pela estética e valores culturais dos grupos sociais valorizados nas
representações.
Por outro lado, os mecanismos de invisibilização e de recalque das diferenças adscritivos e culturais
dos segmentos sociais subordinados, uma vez saturados através da sua frequência nos veículos de
reprodução ideológica e tornados hegemônicos, passam a ser o senso comum de todos, indiferente de
raça/etnia e classe social.
Observando-se de uma forma determinista o problema, que é em grande parte relativizado pela ação
humana, como veremos a seguir, os professores, a quem é atribuída a ação de contemplar as diferenças
culturais na sua prática pedagógica, poderiam ter internalizado o senso comum da desigualdade das
diferenças culturais e não evidenciar na sua prática pedagógica essa ação.
Nesse sentido, afirmo que cabe uma formação específica para o professor de Ensino Fundamental,
com o objetivo de fundamentá-lo para uma prática pedagógica, com as condições necessárias para
identificar e corrigir os estereótipos e a invisibilidade constatados nos materiais pedagógicos,
especificamente nos textos e ilustrações dos livros didáticos.
Acredito que desmontar os estereótipos possa vir a ser um dos objetivos específicos dos cursos de
formação de professores, especialmente para os das séries iniciais, como uma das formas de visibilizar
as diferentes práticas cotidianas, experiências e processos culturais, sem o estigma da desigualdade,
colocando todos eles como parte do passado significativo, da tradição e do conhecimento universal.

O livro didático, a ideologia e as formas de sua reversão


O livro didático ainda é, nos dias atuais, um dos materiais pedagógicos mais utilizados pelos
professores, principalmente nas escolas públicas, onde, na maioria das vezes, esse livro constitui-se na
única fonte de leitura para os alunos oriundos das classes populares.
Para as crianças empobrecidas, esse livro ainda é, talvez, o único recurso de leitura na sua casa, onde
não se compram jornais e revistas.
Também para o professor dessas escolas, onde os materiais pedagógicos são escassos e as salas de
aula repletas de alunos, o livro didático talvez seja um material que supra as suas dificuldades
pedagógicas.
Por outro lado, em virtude da importância que lhe é atribuída e do caráter de verdade que lhe é
conferido, o livro didático pode ser um veículo de expansão de estereótipos não percebidos pelo
professor.
O livro didático, de um modo geral, omite ou apresenta de uma na simplificada e falsificada o cotidiano,
as experiências e o processo histórico-cultural de diversos segmentos sociais, tais como a mulher, o
branco, o negro, os indígenas e os trabalhadores, entre outros.
Em relação à população negra, sua presença nesses livros foi marcada pela estereotipia e caricatura,
identificadas pelas pesquisas realizadas nas duas últimas décadas.
A criança negra era ilustrada e descrita através de estereótipos inferiorizantes e excluída do processo
de comunicação, uma vez que o autor se dirigia apenas ao público majoritário nele representado,
constituído por crianças brancas e de classe média.
Ao veicular estereótipos que expandem uma representação negativa do negro e uma representação
positiva do branco, o livro didático está expandindo a ideologia do branqueamento, que se alimenta das
ideologias, das teorias e estereótipos de inferioridade/superioridade raciais, que se conjugam com a não
legitimação pelo Estado, dos processos civilizatórios indígena e africano, entre outros, constituintes da
identidade cultural da nação.
A ideologia do branqueamento se efetiva no momento em que, internalizando uma imagem negativa
de si próprio e uma imagem positiva do outro, o indivíduo estigmatizado tende a se rejeitar, a não se
estimar e a procurar aproximar-se em tudo do indivíduo estereotipado positivamente e dos seus valores,
tidos como bons e perfeitos.
A ideologia vista como um sistema de representações dotado de uma existência e de um papel
histórico no seio de uma sociedade dada e “como um sistema de símbolos que agem entre si e fornecem
as formas básicas de tornar portadoras de sentido situações que de outro modo seriam incompreensíveis”
cumpre, em parte, o seu papel de representar parcialmente a realidade.
Os estereótipos, por sua vez, têm uma função importante nesse processo, uma vez que é através
deles, em grande parte, que as ideologias são veiculadas nos materiais pedagógicos.

Visto como uma visão simplificada e conveniente de um indivíduo ou de um grupo, o estereótipo


constrói uma ideia negativa a respeito do outro, nascida da necessidade de promover e justificar a
agressão.

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Para Jones (1973), os estereótipos representam uma atitude negativa com relação a um grupo ou a
uma pessoa, baseando-se num processo de comparação em que o grupo do indivíduo é considerado
como o ponto positivo de referência.
Os estereótipos geram os preconceitos, que se constituem em um juízo prévio a uma ausência de real
conhecimento do outro.
A presença dos estereótipos nos materiais pedagógicos e especificamente nos livros didáticos, pode
promover a exclusão, a cristalização do outro em funções e papéis estigmatizados pela sociedade, a auto
rejeição e a baixa autoestima, que dificultam a organização política do grupo estigmatizado.
O professor pode vir a ser um mediador inconsciente dos estereótipos se for formado com uma visão
acrítica das instituições e por uma ciência tecnicista e positivista, que não contempla outras formas de
ação e reflexão.
Segundo Cardoso, “a questão racial brasileira pode, quem sabe, levá-los a desenvolver uma postura
crítica diante de instrumentos pedagógicos a que vêm recorrendo tão passivamente” (1992, p. 59).
Porém, esse processo não se efetiva de uma forma linear e determinista, uma vez que a mediação da
ação humana, realizada através das experiências do cotidiano, das práticas culturais dos grupos
subordinados, possibilita a apreensão da contradição, a reelaboração e a resistência às ideologias do
recalque das diferenças.
Nesse sentido, Luz (1990), na sua investigação, identificou a resistência e a insurgência da criança
negra ao recalque nas escolas baianas. Machado (1989) identificou as religiões africanas como uma das
primeiras áreas dessa resistência, formadoras que são de uma identidade sedimentada a partir dos
ancestrais divinizados e seus arquétipos. Giroux (1983) entende que há áreas dentro e fora da escola
que são reapropriadas e reinventadas por grupos subordinados.

A visibilidade da diversidade de papéis e funções


A invisibilidade da diversidade dos papéis e funções exercidos pelos homens e mulheres negros, entre
outros, nas ilustrações dos livros didáticos pode ser corrigida, solicitando-se à criança que descreva
outras atividades exercidas pelas mulheres e homens negros que constituem sua família, que moram na
sua rua, que frequentam seu local de encontros religiosos e de lazer, etc. Nessa oportunidade, convém
fazer a criança identificar a importância das profissões estigmatizadas, mostrando a sua utilidade para a
sociedade.
Não ser visível nas ilustrações do livro didático e, por outro lado, aparecer desempenhando papéis
subalternos, pode contribuir para a criança que pertence ao grupo étnico/racial invisibilizado e
estigmatizado desenvolver um processo de auto rejeição e de rejeição ao seu grupo étnico/racial.
A presença do negro nos livros, frequentemente como escravo, sem referência ao seu passado de
homem livre antes da escravidão e às lutas de libertação que desenvolveu no período da escravidão e
desenvolve hoje por direitos de cidadania, pode ser corrigida se o professor contar a história de Zumbi
dos Palmares, dos quilombos, das revoltas e insurreições ocorridas durante a escravidão; contar algo do
que foi a organização sócio-político econômica e cultural na África pré-colonial; e também sobre a luta
das organizações negras, hoje, no Brasil e nas Américas.

A desconstrução do estereótipo de incompetência


Existe por parte de muitos professores uma baixa expectativa em relação à capacidade dos alunos
negros e pertencentes às classes populares.
As origens dessa baixa expectativa podem estar na internalização da representação do negro como
pouco inteligente, “burro”, nos meios de comunicação e materiais pedagógicos, um estereótipo criado
para justificar a exclusão no processo produtivo pós-escravidão e ainda na atualidade.
A visão dessa representação pode desenvolver também nos alunos não negros preconceitos quanto
à capacidade intelectual da população negra, e, nas crianças negras, um sentimento de incapacidade
que pode conduzi-las ao desinteresse, à repetência e à evasão escolar.
A correção dessa representação nos textos e ilustrações pode constituir-se em uma atividade escolar
gratificante e criativa, a partir da sua identificação e desconstrução pelo aluno, orientado pelo professor.
No livro Ciranda do Saber, 2ª série, existe uma caricatura de uma menina com uma cabeça enorme,
sem cabelos, sentada à escrivaninha, com um livro nas mãos. O texto, abaixo da ilustração, põe em
dúvida seu interesse pelos estudos, através das seguintes frases:

– A menina da gravura parece gostar de estudar.


– Será que ela gosta de estudar?

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O professor pode iniciar uma conversação a respeito das razões por que uma criança não gosta de
estudar. Eis uma boa oportunidade de ouvir dos alunos uma avaliação dos currículos e da sua prática
pedagógica. Em seguida, pode pedir a eles que corrijam as frases e indiquem colegas que vão bem nos
estudos. Entre os indicados pode estar um aluno negro. Então, o real vai sobrepor-se à representação
não concreta.
Outra sugestão é mostrar e solicitar que indiquem obras de artistas, escritores, poetas, jogadores e
pessoas da comunidade negros e negras, como meio de visibilizar o positivo, contrapondo-se ao
estereótipo.
Cabe ao professor, munido dessas e outras informações, demonstrar aos seus alunos que não existe
correlação entre capacidade intelectual e cor da pele. E formar neles atitudes favoráveis às diferenças
étnicas e raciais das pessoas com as quais convivem na sociedade.
Considerar na sala de aula os conhecimentos produzidos pelos grupos oprimidos, reafirmar a sua
capacidade intelectual, uma vez que a desconsideração desses conhecimentos é uma forma de fazer-
lhes crer na sua falta de capacidade intelectual e assumir a postura de consciências dependentes, que
embora cause muitos danos, não os mantêm indefinidamente subordinados ao opressor.
Quanto mais as crianças tiverem conhecimento de que os argumentos usados para provar a
inferioridade de outras raças foram desmentidos, mais fortemente hábitos e atitudes de aceitação e
integração do diferente irão desenvolver.

Desconstruindo os estereótipos de feio, sujo e mau


A cor negra aparece com muita frequência associada a personagens maus: “O negro associado à
sujeira, à tragédia, à maldade, como cor simbólica, impregna o texto com bastante frequência”.
A criança que internaliza essa representação negativa tende a não gostar de si própria e dos outros
que se lhe assemelham.
Atividades que evidenciem a cor negra associada a algo positivo, como ébano, ônix, jabuticaba, café,
petróleo, azeviche, etc., concorrem para justapor à representação negativa uma outra positiva.
Refazer as frases com conotação negativa é outra atividade criativa e útil.

No livro Caminho Certo, 3ª série, aparece a seguinte frase no texto:

– “...querem ver que o demônio do negrinho tornou a cair...?”


A frase, corrigida por professores, ficou assim:
– “...querem ver que o garoto traquinas tornou a cair...?”

A quadrinha popular “boi da cara preta, pega o menino que tem medo de careta” foi corrigida assim:
o boi da cara preta tem uma cara bonita, não é uma careta; o boi da cara preta é irmão do boi da cara
branca, do boi da cara malhada. O boi da cara preta tem a cor do rosto da mamãe, o rosto que você,
criança, se alegra quando olha....
Os cabelos crespos das crianças afrodescendentes são identificados como cabelo “ruim”, primeiro
pelas mães, que internalizaram o estereótipo; e, na escola, pelos coleguinhas, que põem os mais variados
apelidos nas tracinhas e nos cabelos crespos ao natural.
Trabalhar a razão de ser dos diferentes tipos de cabelo, ensinar como tratá-los, realizar concursos de
penteados afros, trazer trançadeiras para trançar na sala de aula, são algumas atividades que podem
desconstruir a negatividade atribuída à textura dos cabelos crespos.

Barbosa descontrói o estereótipo através da poesia:


Crespo cabelo trançado com a mais pura graça (...)
Apenas poesia e imaginação dos desenhos transborda
Criando os mais belos caminhos na carapinha
Sedutoramente tecida na raça das tranças

Trent notou que as crianças negras que expressavam sentimentos positivos sobre si mesmas,
manifestavam também mais sentimentos positivos em relação aos outros negros e aos brancos do que
as crianças que eram menos positivas nas suas atitudes em face de si próprias.

Ressignificando as religiões afro-brasileiras


Nas escolas, as crianças que têm valores culturais diferentes recebem como educação religiosa, na
maioria das vezes, valores que não contemplam a diversidade religiosa e a riqueza das diferenças
culturais.

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A predominância de uma única matriz religiosa em educação nas escolas, ensinada sob forma de
catequese e não de apreciação histórica e cultural das diversas religiões, tem contribuído para uma
fragmentação da fé que a criança traz do seu grupo familiar e cultural, tornando-a confusa, muitas vezes
internalizando a imagem idealizada negativa que a escola expande da sua religião de origem.
Religião/religare é religo, ou seja, uma forma de comunicação com o Criador e/ou seus
intercessores/intermediários, em algumas religiões, como a católica, as afro-brasileiras e as indígenas,
entre outras. Religião é assunto de foro íntimo, familiar e cultural.
A imposição de uma só matriz religiosa constitui-se em violência simbólica contra os grupos
subordinados, que não têm poder para colocar seus conteúdos e significados culturais nos currículos de
ensino das nossas escolas.

Requalificando o conceito de pobreza


De um modo geral, o negro é representado nas ilustrações e descrito como pobre. Porém, a
representação do pobre corresponde à do miserável, uma vez que é descrito e ilustrado como
esfarrapado, morador de casebres, pedinte ou marginal.
Por outro lado, o livro responsabiliza o indivíduo por seu estado de pobreza quando apenas o descreve
e o ilustra como pobre, sem propor uma discussão sobre as causas da pobreza.
A resistência a ser qualificado de pobre, provém, em grande parte, dessa representação.
Diferenciar entre o pobre e o miserável, analogia que os filhos das classes trabalhadoras fazem a partir
do estereótipo, que os leva a ter vergonha da pobreza e a ocultar a sua situação socioeconômica, e
esclarecer as razões individuais e sociais da existência da pobreza e da miséria são algumas atividades
de reelaboração do estigma.
Redesenhar as ilustrações onde o pobre aparece como miserável a partir da vivência do aluno pobre,
que tem casa, pais trabalhando, estuda, tem roupas e acessórios e está presente na sala de aula é
contrapor-se à representação, contrastando-a com a realidade concreta.

Reconstruindo o conceito de minoria negra


A invisibilidade e a reduzida representação do negro no livro didático constroem a ilusão da não
existência e da condição de minoria do segmento negro, mesmo nas regiões onde ele constitui maioria.
Nas ilustrações de grupos e multidões o elemento negro é minoritário.
A condição de representante da espécie do branco também aparece na ilustração, através da
composição de grupos e multidões, que são majoritária ou exclusivamente brancos, segundo Rosemberg.
O professor pode estabelecer a comparação entre a ilustração e a realidade do aluno, solicitando que
este redesenhe a ilustração de acordo com a realidade da sala de aula, do pátio da escola, do bairro, da
rua onde mora, etc.
Nos estados onde o negro é minoria, apresentar os estados e regiões onde ele é maioria; discutir por
que está concentrado nesses estados e regiões, e qual a sua contribuição socioeconômica nesses locais.

Corrigindo a auto rejeição


Os estereótipos, a representação parcial e minimizada da realidade, conduzem o estereotipado e
representado, em grande parte, à auto rejeição, à construção de uma baixa autoestima, à rejeição ao seu
assemelhado, conduzindo-o à procura dos valores representados como universais, na ilusão de tornar-
se aquele outro e de libertar-se da dominação e inferiorização.
Os sinais da auto rejeição são visíveis nos descendentes de africanos, bem como nos descendentes
de indígenas aculturados na América Latina.
Fanon (1984) relata, em sua obra, a recusa dos martinicanos à sua cor, uma vez que internalizaram
os valores franceses, assim como a ilusão de serem também brancos e franceses.
As mil formas de fazer o negro odiar a sua cor são veiculadas habilmente, dissimuladamente.
O produto da internalização dos estereótipos recalcadores da identidade étnico-racial, a auto rejeição
e a rejeição ao outro seu igual, são apontados pela sociedade como “racismo do negro”.
A vítima do racismo torna-se o réu, o executor; e o autor da trama sai isento e acusador.
Todas as aparições do negro nos livros aqui citadas podem conduzi-lo a auto rejeitar-se, bem como
ao outro seu assemelhado.
As denominações e associações negativas em relação à cor preta podem levar as crianças negras,
por associação, a sentirem horror à sua pele negra, procurando várias formas de literalmente se verem
livres dela, procurando a “salvação “no branqueamento.
Guimarães (1988, p. 71), numa narrativa biográfica, ilustra uma dessas tentativas:

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A ideia me surgiu quando minha mãe pegou o preparado e com ele se pôs a tirar da panela o carvão
grudado no fundo. (...) eu juntei o pó restante e com ele esfreguei a barriga da perna. Esfreguei, esfreguei
e vi que, diante de tanta dor; era impossível tirar todo o negro da pele.
Identificar e corrigir a ideologia, ensinar que a diferença pode ser bela, que a diversidade é
enriquecedora e não é sinônimo de desigualdade, é um dos passos para a reconstrução da autoestima,
do autoconceito, da cidadania e da abertura para o acolhimento dos valores das diversas culturas
presentes na sociedade.
A título de exemplo, apresento um trabalho de reconstrução realizado em pesquisa anteriormente
citada, que se revelou bela e criativa no desfazer o recalque da cor.

Texto original:

A Borboleta
De manhã bem cedo
Uma borboleta
Saiu do casulo Era parda e preta.
Foi beber no açude
Viu-se dentro da água E se achou tão feia
Que morreu de mágoa.
Ela não sabia – boba! – que Deus deu para cada bicho a cor que escolheu.
Um anjo a levou,
Deus ralhou com ela, Mas deu roupa nova Azul e amarela.

(Odilo Costa Filho, In: CEGALLA, 1980, p. 12)

O texto corrigido ficou assim:

Foi beber no açude


Viu-se dentro da água
Sentiu-se ônix, e ébano, Azeviche e jabuticaba.
Aí entendeu, Tão linda que era, por que as crianças, queriam pegá-Ia, pra brincar com ela.

Na relação entre professor, conhecimento e aluno, existe a possibilidade de apreensão da dissonância


causada pelo estereótipo e de sua correção, através de atividades crítico-criativas.
Temos a certeza de que os professores, devidamente orientados nessa direção, caminharão no rumo
certo do resgate da identidade, autoestima, cidadania e integração das diferenças.

Considerações finais
Acredito que é possível formar o professor de Ensino Fundamental, no sentido de utilizar de forma
crítica o livro didático, transformando esse livro em um instrumento gerador de consciência crítica. A
desconstrução da ideologia que desumaniza e desqualifica pode contribuir para o processo de
reconstrução da identidade étnico/racial e autoestima dos afrodescendentes, passo fundamental para a
aquisição dos direitos de cidadania.
A desconstrução da ideologia abre a possibilidade do reconhecimento e aceitação dos valores culturais
próprios, bem como a sua aceitação por indivíduos e grupos sociais pertencentes a outras raças/ etnias,
facilitando as trocas interculturais na escola e na sociedade.
Corrigir o estigma da desigualdade atribuído às diferenças constitui-se em tarefa de todos e já são
numerosos os que contribuem para atingir esse objetivo.
A presença do Movimento Negro, nessa tarefa, recontando a história do negro na África e no Brasil,
desde a formação de grupos organizados há séculos, reivindicando educação para os negros por meio
de manifestos, teatro, música e ação sistemática junto aos órgãos de ensino, não pode ser esquecida.
A aproximação das escolas com o Movimento Negro, que já possui uma larga experiência nesse
trabalho de reconstrução e reposição do processo histórico-cultural dos afrodescendentes na educação,
possibilitou a inserção, nos currículos de muitas escolas brasileiras, da tradição cultural e histórica desse
povo. E torna-se mais necessária agora, que o tema transversal Plural idade Cultural é introduzido nos
currículos para professores que, em sua maioria, não receberam uma formação adequada para
desenvolvê-lo.

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Com a certeza de que, por sua importância, esse tema, bem como os demais temas transversais,
tornar-se-ão constituintes dos currículos e possibilitarão em breve a participação de todos na tarefa de
promover o amor a si e ao próximo, estamos dando e apontando os primeiros passos.
Como escreveu Steve Biko, “o primeiro passo é fazer com que o negro se encontre a si mesmo, insuflar
novamente a vida em sua casca vazia, infundindo nele o orgulho e a dignidade”.

HISTÓRIA E CONCEITOS BÁSICOS SOBRE


O RACISMO E SEUS DERIVADOS

Antônio Olímpio de SantÊ Ana


Especialista em Educação. Mestre em Teologia pela
Universidade da Rainha – Kingston, Ontário/Canadá.

Introdução
Prezado(a) professor(a), as relações raciais são um dos temas mais complexos dos dias atuais, e o
racismo, como ele se apresenta hoje, é um fenômeno relativamente novo. É bom lembrar que nos tempos
primitivos, até por volta da Idade Média, a discriminação baseava-se em fatores religiosos, políticos,
nacionalidade e na linguagem, e não em diferenças biológicas ou raciais como acontece hoje. Era o “fiel”
contra o “pagão”, o “cristão” contra o “muçulmano” ou mesmo contra o “judeu”. Observe, portanto, que o
motivo era religioso, de nacionalidade, etc., mas nunca racial.

Analisar o passado para entender o presente


Antes de retomar ao passado distante para localizar a origem do racismo, hoje tão forte em nosso
meio, vamos a uma pergunta bem pessoal: você, professor(a), já foi alguma vez discriminado(a) por ser
negro(a) ou devido à sua origem étnica ou religiosa? Ou por ser mulher, deficiente, gordo(a)? Como se
sentiu? Dá para você imaginar o que acontece em sua sala de aula no que se refere à discriminação e
ao preconceito? Pense um pouco...
Vamos pensar nas pessoas negras, as maiores vítimas do racismo em nossa sociedade (que inclui a
sua sala de aula, não se esqueça). Você já pensou quantos(as) de seus(uas) alunos(as) negros(as)
passam por essa dolorosa experiência diariamente? Você tem uma ideia das consequências dessa
desagradável experiência para os seus alunos discriminados? E você, já imaginou o quão importante é
você se colocar como parte da solução, fortalecendo o diálogo franco e esclarecedor entre os seus(suas)
alunos(as), objetivando diminuir e/ou acabar com a prática do racismo, reforçando a autoestima dos (as)
mesmos(as) em sua sala, em sua escola, na sua comunidade?
Todos nós sabemos que o racismo é muito forte nos dias atuais, mas também cresce o nível de
consciência de que o racismo é maléfico e precisa ser combatido, denunciado e eliminado. E a sua
postura crítica como professor diante desta luta e denúncia é de fundamental importância. A mídia está
anunciando a prisão desse(a) ou daquele(a) cidadão(ã) que discrimina o (a) outro(a). Mas a impunidade
neste país é tão grande que muitas pessoas ainda não perceberam que existe uma lei severa (se
cumprida), que protege a todo(a) e qualquer cidadão(ã) vítima da discriminação racial ou étnica ou de
qualquer tipo de preconceito.
Quando um(a) aluno(a), professor ou professora, ou mesmo a administração, dentro ou fora da escola,
da sala de aula, inadvertida ou propositadamente discrimina alguém, ele ou ela participa de uma prática
que nasceu na Europa no século XV. E, desde então, tem gerado dor, tristeza, sofrimento e morte para
milhões de seres humanos por causa da cor de sua pele ou devido à sua origem étnica.
No momento de diálogo específico com a sua classe, ou informalmente, com toda certeza, alguns de
seus alunos mais curiosos poderão perguntar: qual é a origem do racismo e de suas manifestações diretas
como a discriminação, o preconceito, a segregação, os estereótipos, hoje tão arraigados no
comportamento diário de milhões de brasileiros? E o aluno negro poderá perguntar: por que os racistas
vivem pegando no pé de todos nós que somos negros? Por quê?
Não dá para fugir da curiosidade dos alunos e nem é aconselhável camuflar as respostas. O jeito é
enfrentar a questão de frente.
A seguir, nós aportaremos algumas informações básicas que objetivam facilitar a sua tarefa no diálogo
com os(as) seus (uas) alunos(as) sobre racismo, preconceito e discriminação.
Quando qualquer pessoa no Brasil fala em racismo, qual é imagem humana que geralmente lhe vem
logo de cara à mente? Acertou: é a do negro. Por que isso acontece? Por que o negro é a vítima maior
do racismo praticado neste imenso país? Existe alguma relação entre a escravidão imposta ao negro e o
racismo sofrido por ele?

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Um grande estudioso deste assunto chamado Ben Marais, em sua obra Racismo e Sociedade, declara
que há uma relação muito próxima entre o escravidão a que foram submetidos os negros e a recusa às
pessoas de cor negra... ‘O estigma em relação aos negros tem sido reforçado pelos interesses
econômicos e sociais que levaram os povos negros à escravidão’. Daí o negro ter se convertido em
símbolo de sujeição e de inferioridade. E este conceito negativo sobre o negro foi forjado.
De acordo com Marais,

Quando os primeiros europeus desembarcaram na costa africana em meados do século XV, a


organização política dos Estados Africanos já tinha atingido um nível de aperfeiçoamento muito alto. As
monarquias eram constituídas por um conselho popular no qual as diferentes camadas sociais eram
representadas. A ordem social e moral equivalia à política. Em contrapartida, o desenvolvimento técnico,
incluída a tecnologia de guerra, era menos acentuado. Isto pode ser explicado pelas condições
ecológicas, socioeconômicas e históricas da África daquela época, e não biologicamente, como queriam
os falsos cientistas (Munanga, 1986).

Essa visão errônea e interpretação falsa, produzida para favorecer os colonialistas brancos europeus,
será analisada rapidamente a seguir.

Racismo no passado
O racismo é a pior forma de discriminação porque o discriminado não pode mudar as características
raciais que a natureza lhe deu. E a discriminação racial como ela se apresenta hoje é relativamente
recente. Não havia preconceito racial antes do século XV e o grande líder africano Leopold Senghor
afirma que “o racismo etnocentrismo carregado de diferenças raciais, reais ou imaginárias não tem
mais de quatro séculos”. De acordo com essa linha de raciocínio:
O racismo, como ideologia elaborada, é fruto da ciência europeia a serviço da dominação sobre a
América, Ásia e África. A ideologia racista se manifesta a partir do tráfico escravo, mas adquire o status
de teoria após a revolução industrial europeia. Aimé Césaire, em seu Discurso sobre o Colonianismo,
escrito no imediato do pós-guerra, salienta que Cortez e Pizarro pilhavam e matavam na conquista da
América, mas que nunca afirmaram “ser mandatários de uma ordem superior” ... os hipócritas só vieram
mais tarde.
E estes hipócritas são todos aqueles que propuseram a iníqua equação aceita na época:
cristianismo=civilização e paganismo=selvageria. Esta desonesta conjugação gerou dramáticas
consequências coloniais e racistas, provocando saques às propriedades, estupros, assassinatos em
massa, muita dor e sofrimento em milhões de pessoas nas Américas, na Ásia e, principalmente, na África.
Desde o século XV, milhões de páginas em tratados, ensaios, monografias, teses, etc., foram escritas
para sustentar o insustentável: o racismo como uma prática necessária e justificável.

O racismo no passado e alguns de seus mais importantes antecedentes


O racismo não surgiu de uma hora para outra. Ele é fruto de um longo processo de amadurecimento,
objetivando usar a mão-de-obra barata através da exploração dos povos colonizados. Exploração que
gerava riqueza e poder, sem nenhum custo-extra para o branco colonizador e opressor.
O racismo entre os seres humanos foi surgindo e se consolidando aos poucos. Vamos compartilhar, a
partir de agora, alguns dados interessantes que nos ajudarão a entender a prática do racismo nos dias
atuais. É bom lembrar sempre que a cultura popular sobrevive aos tempos porque ela é transmitida
através das gerações. E sendo o racismo um fenômeno ideológico, ele se consolida através dos
preconceitos, discriminações e estereótipos. Dá para entender agora por que o racismo tem sobrevivido
e foi se fortalecendo através das épocas, alcançando, inclusive a sua comunidade, a sua escola, a sua
sala de aula? E, se de tudo você achar que em sua sala de aula não existe qualquer tipo de discriminação
ou preconceito, leia as informações preparadas especialmente para a sua consulta; dê um tempo, observe
o comportamento de seus alunos a esse respeito e depois reavalie a sua opinião.
Vamos compartilhar alguns dados interessantes:
Na Grécia antiga tinha-se como certo e definido que todos aqueles que não pertencessem à sua raça
eram classificados como bárbaros. E é de Heródoto a afirmação que os persas consideravam-se a si
mesmos superiores ao resto da humanidade.

Aristóteles dizia que uma parte dos homens nasceu forte e, resistente, destinada expressamente pela
natureza para o trabalho duro e forçado. A outra parte – os senhores, nasceu fisicamente débil; contudo,
possuidora de dotes artísticos, capacitada, assim, para fazer grandes progressos nas ciências filosóficas
e outras.

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Essa hipótese foi usada no século XV; como veremos adiante, para justificar a escravidãos dos
indígenas e dos negros.

Cícero, contradizendo Aristóteles, dizia que “os homens diferem em conhecimento, mas são todos
iguais na capacidade de aprender; não há nenhuma raça que, guiada pela razão, não possa chegar à
excelência”.

Fundamentos “doutrinários” e “científicos” do racismo – Foi na Idade Média que se deu uma forte
discussão a partir do intelectuais ligados à Igreja Católica Romana a respeito da superioridade, de uma
raça sobre a outra, lançando as fortes bases do racismo moderno.

Muitas pessoas, hoje, devido ao equívoco doutrinário e teológico cometido por ideólogos e religiosos
do passado, inadvertidamente, afirmam que há racismo na Bíblia. Outro equívoco: o que houve e continua
existindo são as interpretações falsas e equivocadas sobre os textos bíblicos. A seguir, veremos como os
ideólogos e religiosos, a serviço de interesses econômico e colonialistas da Idade Média, adequaram as
afirmações bíblicas aos seu interesses, tanto assim que estas interpretações não resistiram ao tempo
mas as sequelas resultantes, estas sim, continuam fortes até os dias atuais
Se você perguntar se havia escravidão na época de Jesus, a resposta é sim. Inclusive, em alguns dos
seus conselhos ele usava a imagem do escravo e do senhor, mas isto não significava apoio à escravidão
como tal. A mensagem bíblica é radicalmente contra a escravidão e contra o racismo
Para você entender por que o racismo é hoje muito forte, acompanhe este breve relato da evolução
das discussões, debates, produção de ensaios, tratados, monografias, teses, etc., produzidos desde o
século XV, tentando provar a inferioridade do negro e do índio diante do branco, supostamente a raça
superior. Toda esta produção perdeu a sua validade “doutrinária” e “científica”, mas as sequelas
permanecem, daí entender porque persiste ainda hoje a prática do racismo, da discriminação, dos
preconceitos. Essas informações poderão ser usadas à medida de sua necessidade ou conveniência.
Não é nossa função discutir o conteúdo desta produção racista, apenas mencioná-Ia.

Em 1510, o dominicano escocês John Major, segundo nos informa Juan Comas, declarou que “a
própria ordem da natureza explica o fato de que alguns homens sejam livres e outros escravos. Esta
distinção deveria existir no interesse mesmo daqueles que estão destinados originalmente a comandar
ou a obedecer”.

Em 1520, o teólogo para Celso nega que os ameríndios fossem descendentes de Adão e Eva, dando
lugar a um intenso debate sobre a humanidade dos nossos irmãos indígenas. A questão chegou a um tal
grau de confusão que o Vaticano emitiu em 1537 a Bula Papal Sublimus Deus, na qual reconhecia o
caráter humano dos ameríndios e pedia que a sua liberdade e seus bens fossem respeitados:

Os índios e todos os outros povos, caso sejam descobertos no futuro por cristãos, não podem ser
privados de sua liberdade e seus bens, apesar das afirmações em contrário, mesmo não sendo cristãos;
além disso é preciso que seja respeitada a sua liberdade e propriedade.

É sabido que os conquistadores ignoraram a recomendação do Papa Paulo III e continuaram a


considerar os ameríndios como escravos naturais, a partir da hipótese defendida por Aristóteles (384-322
a.C.), conforme vimos no item (p.3, releia, por favor).

Entre 1550 e 1551, ressurge o debate através do confronto entre dois padres. De um lado, Frei Juan
Ginés de Sepúlveda que, representando a ideologia colonialista, dizia que os indígenas tinham uma
natureza inferior, sendo viciosa, irracional. Sepúlveda dizia que a relação que existia entre um espanhol
e um índio era a mesma que existia entre um homem e um macaco. Em outras palavras, ele comparava
o índio ao macaco, a um animal irracional. Com isso, ele queria dizer que os nossos irmãos indígenas do
passado tinham que ser conquistados, “protegidos” e “tutelados”. De outro lado, estava o Frei Bartolomeu
de Las Casas que, demonstrando mais simpatia pelos indígenas, propôs a substituição destes pelos
negros, afirmando serem estes mais fortes e adaptáveis ao trabalho duro. E a sugestão de Las Casas foi
fielmente seguida pelos conquistadores, incentivados e reforçados pela teoria de Aristóteles, que afirmava
que algumas pessoas nasceram naturalmente para serem escravas e outras para serem livres:

Esta discussão teológica foi-se estendendo a toda a humanidade, à medida que as nações europeias
iam ampliando o seu domínio territorial até novas regiões. Já não bastava desumanizar e negar a

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humanidade aos indígenas para justificar a conquista e a fortíssima e deplorável exploração dos mesmos.
Havia, agora, de justificar o novo sistema escravista no qual envolveram os negros africanos, e mais
tarde, os asiáticos.

Não se esqueça que estamos compartilhando dados históricos referentes ao século XV, reconhecido
como o ponto de partida da discriminação racial, tendo os não brancos como alvo, sendo o negro e o
indígena as duas grandes vítimas preferenciais dos colonizadores europeus racistas que, julgando-se
superiores àqueles, os dominaram, destruindo as suas culturas e economia:
A ignorância em relação à história antiga dos negros, as diferenças culturais, os preconceitos étnicos
entre duas raças que se confrontam pela primeira vez, tudo isso, mais as necessidades econômicas de
exploração, predispuseram o espírito europeu a desfigurar completamente a personalidade moral do
negro e suas aptidões intelectuais. O negro torna-se, então, sinônimo de ser primitivo, inferior, dotado de
uma mentalidade pré-lógica.

V. de Lapouge, um dos expoentes teóricos dos racistas franceses, apresentava a história da


humanidade como uma luta entre as raças, na qual ficava evidente a superioridade da “raça branca” sobre
a “raça negra” e a “raça indígena”.

Por ocasião da invasão e conquista da Indochina, o primeiro ministro Francês Jules Ferry afirmava
descaradamente que as raças superiores tinham certos direitos frente às raças inferiores e era dever
destas raças superiores civilizar as raças inferiores. E quem era a raça superior? A branca,
evidentemente. E quem era a raça inferior? As não brancas, neste caso específico, a asiática. E o que
significava civilizar as raças inferiores?

Significava invadir, dominar, impor os costumes do invasor, promovendo uma cultura de submissão
local para facilitar a dominação militar e política, contrabandear as riquezas dos dominados para a sede
do império conquistador.

Já outro historiador francês, C. Seignobos, difundiu a ideia de que os negros eram inferiores e
precisavam de tutela e a orientação dos povos brancos, exatamente como as crianças precisavam dos
adultos.

Fortalecimento do colonialismo racista


O século XIX foi o da consolidação das doutrinas racistas. Em 1815, as nações colonialistas –
Inglaterra, França e Alemanha – reuniram-se em Viena para repartir o mundo conhecido da época. Neste
encontro nada se falou sobre o tráfico de escravos. O representante do Papa, presente ao encontro,
calou-se para não prejudicar os países majoritariamente católicos e praticantes da escravidão negra.
Em 1839, após ser pressionado, o Papa Gregório XV condena o tráfico de escravos, mas não a
escravidão. Para ele a escravidão não era um mal, desde que o senhor de escravo fosse bom. Imagine!
Em 1835, Arthur de Gobineau produziu um conhecido tratado denominado Ensaio sobre a
Desigualdade das Raças Humanas: Raças Branca, Amarela e Negra. O que caracterizava o seu Ensaio
era a divisão que fazia da raça branca. Esta, segundo Gobineau, tinha três subgrupos: os arianos, que
são os verdadeiros brancos e criadores da civilização; os albinos de origem mongólica; e os
mediterrâneos, de origem africana. Sustentava que se o poder permanecesse nas mãos dos albinos e
mediterrâneos, a humanidade voltaria à barbárie. Gobineau desejava provar com o seu Ensaio que a
nobreza europeia era ariana, descendente dos nórdicos. Ele via diferenças qualitativas entre os brancos,
que justificavam o domínio da nobreza ariana sobre os demais brancos, que ele julgava pertencerem a
setores inferiores. Portanto, racismo de classe, que justifica a posição de privilégio de uns sobre outros.

Católicos romanos e protestantes mesma atitude diante do racismo


Na realidade não há diferenças substantivas entre a conduta de ideólogos e religiosos católicos e
protestantes na defesa de conceitos que fortalecessem o racismo no passado, propiciando a sua
presença hoje, ainda forte, no imaginário popular.
Em meados do século XVIII, os sinos das igrejas de Bristol, na Inglaterra Anglicana, repicaram
festivamente quando o parlamentar Wilbeforce não conseguiu aprovar uma lei que proibia o tráfico de
escravos, e eles tinham uma boa razão para isso, já que metodistas, batistas, moravos e anglicanos
tinham escravos e eram defensores da escravidão.
Já a Sociedade para a Propagação do Evangelho na Inglaterra proibiu a cristianização de seus próprios
escravos em Barbados, Caribe, por julgá-los inferiores.

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O Rev.Thomas Thompson publicou em 1772 uma monografia onde procurou demonstrar a
inferioridade do negro diante do branco, intitulada: O Comércio dos Escravos Negros na Costa da África
de acordo com os Princípios Humanos e com as Leis Religiosas Reveladas.
Em 1852, o Rev. J. Priest, conhecido etnógrafo e fundador da Sociedade Antropológica de Londres,
publicou um tratado denominado A Bíblia defende a escravidão, onde é a favor desta, usando uma
suposta argumentação bíblica favorável. Na realidade, falsa.
Em 1900, C. Carrol, em sua obra Provas Bíblicas e Científicas de que o Negro não é Membro da Raça
Humana, afirma que “todas as pesquisas científicas confirmam sua natureza caracteristicamente símia”.
Observa-se pelos tratados, ensaios, teses, etc., todos voltados para justificar a escravidão, que
dificilmente o negro deixaria de ser alvo do racismo nos dias atuais. Alguns desses trabalhos tiveram
grande aceitação nos meios interessados em justificar a escravidão do negro e do índio, mas também
nas camadas populares, que de uma maneira ou de outra se beneficiavam com a suposta inferioridade
do negro e do índio, transformados em escravos.
Cremos que os dados históricos até aqui resumidos já permitem compreender um pouco mais o motivo
da existência de uma prática racista, tão difundida nas nossas relações interpessoais, com um destaque
especial para a situação do negro, vítima maior do racismo praticado no Brasil.
Resumindo este bloco de informações, poderíamos dizer que não há dúvida de que a produção de
tantos ensaios, tratados e teses para justificar a escravidão deixou as suas maléficas consequências,
principalmente para os negros, que foram e são as vítimas maiores de uma conspiração histórica que
ainda perdura em nosso dia-a-dia.
Tem-se a impressão de que o negro e o índio foram vítimas de uma conspiração bem planejada
durantes todos esses séculos, onde foram elaboradas doutrinas com falsa base bíblica e filosófica, bem
como tentativas de comprovação de teorias com uma falsa base científica, que não resistiram ao tempo.
Mas as marcas do racismo e suas maléficas consequências permaneceram, já que estes preconceitos
sobrevivem às gerações. A discriminação e o preconceito foram se fortalecendo no dia-a-dia, criando
fortíssimas raízes no imaginário popular, chegando ao ponto no qual nos encontramos hoje. O racismo
tomou-se uma ideologia bem elaborada, sendo fruto’ da ciência europeia a serviço da dominação sobre
a América, Ásia e África. E esta ideologia racista ganha força a partir da escravidão negra, adquirindo
estatuto de teoria após a revolução industrial europeia.

Pesquisas revelam o tipo de discriminação na escola


A estas alturas, você já se deve ter perguntado a si mesmo(a): será que na minha sala de aula pratica-
se a discriminação racial e étnica? Esta é uma resposta que somente você pode dar.
O racismo é uma prática diária e difundida. Ele é onipresente e forte. Como este racismo se manifesta
em nossas escolas? Antes de conceituar as palavras-chave que revelam e/ou descrevem
comportamentos classificados como discriminatórios, preconceituosos, vamos resumir os resultados de
duas diferentes pesquisas feitas em nossas escolas e em livros didáticos.
Quando falamos em discriminação étnico-racial nas escolas, certamente estamos falando de práticas
discriminatórias, preconceituosas, que envolvem um universo composto de relações raciais pessoais
entre os estudantes, professores, direção da escola, mas também o forte racismo repassado através dos
livros didáticos. Não nos esquecendo, ainda, do racismo institucional, refletido através de políticas
educacionais que afetam negativamente o negro.
Pesquisas feitas nos últimos 10 anos mostram com muita objetividade, por onde passa esta
discriminação étnico-racial nas nossas escolas. Aportaremos, a seguir, resumidamente, o resultado de
pesquisas, feitas em três diferentes áreas, por duas diferentes pesquisadoras que, usando métodos
diversos, chegaram praticamente ao mesmo resultado. O repasse destes resultados objetiva municiar os
professores com dados retirados da realidade vivida pelos alunos negros e de outras etnias, espalhados
pelas escolas públicas e/ou particulares deste imenso país.
As pesquisas compartilhadas a seguir revelam o racismo antinegros que está presente em todo o país.
O racismo antinegros está intimamente relacionado à cor de sua pele. Mas o negro não é a única vítima
do racismo neste imenso Brasil. O nosso país tem a honra de receber muitos imigrantes, provenientes de
diversas partes do mundo, inclusive algumas onde as várias etnias locais têm, historicamente, travado
violentos choques entre si. Se você é professor em regiões onde estas etnias se concentraram,
possivelmente há tensões raciais herdadas por seus descendentes. Observe.

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Vamos às pesquisas.

PRIMEIRA PESQUISA: Estereótipos e Preconceitos em Relação ao Negro no Livro de


Comunicação e Expressão de 1º grau, nível 1 (1ª à 4ª séries)

Pesquisadora responsável: Professora Ana Célia da Silva, da Universidade Federal da Bahia.

A pesquisa tinha como objetivo investigar a existência de estereótipos e preconceitos em relação ao


negro no livro didático e a percepção do professor quanto à sua existência e o seu papel de mediador dos
mesmos.
Universo investigado: 82 livros didáticos utilizados em 22 escolas do bairro da Liberdade, Salvador,
Bahia.
Questionários foram aplicados aos professores destas 22 escolas para obtenção do universo
pesquisado: 82 livros utilizados. Deste, extraiu-se uma amostra de 16 livros que se destacaram pela
incidência significativa de estereótipos e preconceitos. Uma segunda amostra foi constituída pelos
professores que utilizaram os livros da 1ª amostra nos anos de 1984, 1985 e 1986. Estes livros foram
analisados quantitativa e qualitativamente através de técnicas de análise de conteúdo, bem como de
dados obtidos de entrevistas com os professores constituintes da 2ª amostra.
Algumas conclusões significativas da pesquisa
Constatou-se a existência de uma ideologia da inferiorização do negro que é fortalecida na escola
através do livro didático e do professor, sob a forma de estereótipos e preconceitos.
Constatou-se, também, que o professor, figura importantíssima na educação do aluno,
lamentavelmente, não percebeu a presença destes estereótipos e preconceitos, bem como o
importantíssimo papel que exerce como o grande mediador no processo ideológico, reforçando a
transmissão destes estereótipos e preconceitos.

SEGUNDA PESQUISA: Preconceito Racial na Escola/ 1988.

Pesquisadora responsável: Vera Moreira Figueira, pesquisadora do Arquivo Nacional, Rio.

Esta pesquisa teve como objetivo demonstrar a existência do preconceito racial na escola,
correlacionado-o com outros dois agentes internos atuantes na instituição: o professor e o livro didático,
comprovando, assim, a existência de um “ciclo” capaz de embutir e reproduzir o preconceito racial junto
ao alunado (FIGUEIRA, 1990, p. 63-73).

Pesquisa de campo com três etapas:

- Primeira etapa: Verificação da intensidade da ocorrência da prática do preconceito racial junto aos
alunos das escolas públicas do Rio de Janeiro
- Segunda etapa: Verificação do comportamento dos professores, suas concepções sobre a raça
negra, seu conhecimento histórico a respeito da contribuição do negro à sociedade brasileira, suas
opiniões sobre as atitudes dos demais professores frente aos negros.
- Terceira etapa: Análise de uma série de pesquisas relacionadas aos conteúdos dos livros didáticos,
tendo como meta extrair uma síntese de conclusões em torno de vários autores.
- População atingida: 442 alunos da rede de ensino público, sendo 238 estudantes brancos, 121 pardos
e 83 negros.

A metodologia consistiu em entrevistas individuais, nas quais eram mostradas várias fotografias a cada
estudante, algumas pessoas negras (pretas, não pardas), outras brancas. Ao entrevistado era dito que
aquelas pessoas mostradas nas fotos faziam parte do seu cotidiano, no caso, a sala de aula. Em seguida,
pedia-se ao entrevistado que escolhesse entre estes colegas fictícios, qual gostaria que fosse seu melhor
amigo, qual a mais simpática, a mais feia, a mais inteligente, etc. Em seguida, foram introduzidas fotos
de homens e mulheres adultos, brancos e negros, pedindo ao entrevistado que se situasse neste mundo
de adultos.

As respostas foram agrupadas em dois blocos: aquelas que exprimem qualidades socialmente
positivas e as que exprimem qualidades socialmente negativas. Constatou-se que as qualidades
socialmente positivas são atribuídas aos brancos: amigo, simpático, estudioso, inteligente, bonito, rico,
sempre acima de 75% das indicações, exceto a qualidade „simpático‰, que teve como índice, 50%. Por

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complementaridade, as qualidades negativas são francamente atribuídas aos negros, com percentagens
muito elevadas: burro, feio, porco, grande ladrão, pequeno ladrão. Esta seleção espontânea é um forte
indicador da existência de uma opinião generalizada, afirma a pesquisadora, sobre a „inferioridade‰ do
negro e a „superioridade‰ do branco. Para a maioria dos entrevistados, preferencialmente os brancos
detêm qualidades bem aceitas socialmente e os negros concentram aquelas socialmente marginalizadas
pela sociedade.

TABELA 1
QUALIDADES POSITIVAS
(PREFERÊNCIA POR BRANCOS)

Amigo 76 ,2%
Simpático 50 %
Estudioso 75 ,3%
Inteligente 81 ,4%
Bonito 95 %
Rico 94 ,6%

TABELA 2
QUALIDADES NEGATIVAS
(PREFERÊNCIA POR NEGROS)

Burro 82 ,1%

Feio 90 ,3%

Porco 84 ,4%

Grande ladrão 79 ,6%

Por outro lado, segundo os dados coletados pela pesquisa, no que se refere “às possibilidades de
mobilidade ocupacional para brancos e negros, os entrevistados mostraram-se pouco receptivos ao
negro”. A entrevistadora solicitou ao estudante que indicasse quem escolheria para ocupar as profissões
sugeridas a partir das fotos que tinha em mão. O entrevistado agiria como se fosse um dono de fábrica,
tendo, portanto, o poder final para decidir sobre este ou aquele. O resultado indicou que “as profissões
de status ocupacional alto são consideradas próprias aos brancos e as de status ocupacional baixo aos
negros”.

TABELA 3
POSSIBILIDADE DE MOBILIDADE OCUPACIONAL
Preferência por brancos Preferência por negros

Engenheiro 85,4% 14 ,5%

Médico 92,2% 7 ,8%

Faxineiro 15,5% 84 ,4%

Cozinheira 15,5% 84 ,4%

A pesquisa constatou que em outro tipo de relacionamento os entrevistados mostraram-se


tendenciosos no que se refere à possibilidade da miscigenação racial. De posse de fotos de brancos e
negros, pediu-se lhes que escolhessem duas pessoas para formar um casal. Abaixo temos o resultado
indicando o padrão de preferência.

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TABELA 4
RECEPTIVIDADE À MISCIGENAÇÃO RACIAL
(PREFERÊNCIA POR TIPOS DE CASAMENTO)

Homem branco/mulher branca 73 ,7 %

Homem negro/mulher negra 19 ,2 %

Casais mistos 9 ,0 %

A pesquisadora Vera Moreira Figueira chama a atenção para uma segunda interpretação acima, já
que a primeira diz respeito à receptividade com relação à miscigenação racial muito baixa, pois apenas
9% dos entrevistados optam por casais mistos, ou seja, homem e mulher de cores diferentes. Uma
segunda interpretação vem à tona quando comparados os resultados atinentes aos casamentos entre
brancos e entre negros, separadamente. Constata-se que a instituição casamento é nitidamente atribuída
a pessoas de cor branca, pois somente 19,2% dos casamentos são realizados entre negros. Tal dado
sugere que os entrevistados pensam a família negra como menos estruturada do que a família branca.
Em termos gerais, e sintetizando as tabelas apresentadas, todos os dados acima mencionados deixam
claro que a intensidade do preconceito racial é bastante alta, uma vez que os percentuais alcançados
pelo negro nas qualidades negativas, nas profissões de baixo status ocupacional ou na pouca integração
às relações matrimoniais são sempre altos e recorrentes.

A visão do professor
Vera Moreira Figueiras analisa também a postura do professor por ser ele aquele que transmite, a
partir de sua condição de autoridade central na sala de aula, conceitos que serão absorvidos pelos alunos
como conhecimento científico, conhecimento verdadeiro. Por tal motivo, estudar a formação do professor,
no que toca a sua visão sobre o negro, é crucial para se perceber em que medida a escola está preparada
para lidar com a questão racial.
Foram entrevistados 16 professores, envolvendo diversas especialidades (matemática, história,
português, etc.), atuando em séries e graus de escolaridade distintos, objetivando avaliar o grau de
conhecimento e opiniões a respeito do negro.
As perguntas dirigiram-se a três áreas:
1) Identificação do preconceito na escola;
2) Atuação do professor frente ao negro e à questão racial;
3) Seus conhecimentos históricos com relação à contribuição social do negro no Brasil.

Feitas as entrevistas, que tiveram a duração média de 60 minutos, eis o resultado obtido:
1) O professor reconhece a existência do preconceito racial na escola, seja entre alunos, de
professores em relação aos alunos, ou do corpo administrativo para com os alunos. O preconceito
manifesta-se em brincadeiras ou apelidos alusivos à cor, na seleção racial do colega de estudo ou do
banco escolar e na própria expectativa do professor quanto ao rendimento do aluno negro quando
comparado ao branco. Além disso, embora todos os professores tenham se declarado destituídos de
preconceitos, o conteúdo de seu discurso muitas vezes demonstrou o contrário.
2) Todos os professores declararam não ter recebido qualquer tipo de orientação pedagógica sobre
a questão racial no Brasil por ocasião dos seus cursos de formação profissional ou nas escolas onde
lecionam ou lecionaram. Ou seja, os cursos de complementação pedagógica (nos casos de professores
com nível de escolaridade superior) ou os cursos de formação de professores (equivalente ao segundo
grau) não dedicam qualquer ênfase, ou melhor ainda, desconhecem a especificidade da questão racial
brasileira. Dessa maneira, os professores assumem a direção de uma sala de aula sem ter noção dos
problemas que irão enfrentar; na maioria das vezes as soluções para os conflitos emergentes são
buscadas no bom senso, na prática cotidiana, independentemente de qualquer lastro pedagógico.
3) A realidade acima descrita permitiu aos professores, por unanimidade, declarar que o
professorado não está capacitado para lidar com a questão racial.
4) Quanto a programas de valorização do negro, verificou-se que a maioria das escolas pesquisadas
não conduz qualquer trabalho com tal linha de ação. As iniciativas que ocorrem partem isoladamente e
são bastante raras. Quando há envolvimento da escola, o enfoque torna-se mais comemorativo do que
questionador. Neste caso, são preparadas comemorações relativas ao dia da Abolição da Escravatura e,

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menos frequentemente, ao Dia Nacional da Consciência Negra, marcado pela data de morte de Zumbi
dos Palmares.
Conclui-se, portanto, no que se refere à postura do professor diante da questão racial em sala de aula,
que o mesmo “atua como mantenedor difusor do preconceito racial entre os alunos, seja por omissão,
seja por efetivas declarações racistas, seja pelo simples fato de desconsiderar a questão, por tratá-la
como um problema menor ou inexistente”.

Livro Didático
Analisados os dados levantados por vários pesquisadores sobre o racismo nos livros didáticos, foram
detectados os seguintes dados interpretados como preconceituosos:
1) Nas ilustrações e textos os negros pouco aparecem e, quando isso acontece, estão sempre
representados em situação social inferior à do branco, estereotipados em seus traços físicos ou
animalizados.
2) Não existem ilustrações relativas à família negra; é como se o negro não tivesse família.
3) Os textos induzem a criança a pensar que a raça branca é mais bonita e a mais inteligente.
4) Nos textos sobre a formação étnica do Brasil são destacados o índio e o negro; o branco não é
mencionado (em alguns casos): já é pressuposto.
5) Índios e negros são mencionados no passado, como se já não existissem.
6) Os textos de história e estudos sociais limitam-se a referências sobre as contribuições tradicionais
dos povos africanos.

Os autores da pesquisa nos livros didáticos listaram os estereótipos e preconceitos encontrados e um


dos mais evidentes é aquele que eles denominam de a animalização do negro, que é exposta de várias
maneiras, sendo a mais comum a associação da cor preta a animais (o porco preto, a cabra preta, o
macaco preto) ou a seres sobrenaturais animalizados (mula-sem-cabeça, lobisomem, saci-pererê). É
evidente que “há uma insistência nítida em retirar do negro a condição humana...” ou, então, em reservar-
lhe um papel subalterno na hierarquia social:
A mulher negra é com frequência apresentada de avental e lenço na cabeça; de outras vezes, aparece
empunhando trouxas de roupa suja. Mas a mulher branca é apresentada com vestidos, saias e bolsas;
enfim, roupas de passeio e de trabalho. Aos homens negros é reservado o lugar de trabalhador rural,
lixeiro, operário da construção civil, etc.
Vimos até agora como surgiu o racismo, como o mesmo fortaleceu-se a partir da Idade Média, através
da produção de justificativas que tomaram a forma de tratados, ensaios, teses, etc., procurando justificar
a superioridade da raça branca sobre as não brancas. Verificamos como “o racismo está depositado no
mais fundo da cabeça dos homens” e este torna-se mais perigoso na medida em que ele separa as
pessoas pertencentes a um mesmo grupo social. Tendem, os de pretensa raça superior, reduzir os de
pretensa raça inferior a zero, a nada. Reduzem, na prática, a sua humanidade. Segundo Juan Comas,
A pigmentação relativamente escura é uma marca de diferenciação que condena numerosos grupos
ao desprezo, ao ostracismo e a uma posição social humilhante. O preconceito de cor é tão acentuado em
certas pessoas que dá origem a fobias quase patológicas, estas não são inatas, mas refletem, de uma
forma exagerada, os preconceitos do meio social. Afirmar que um homem é um ser humano inferior ao
outro porque é negro é tão ridículo como sustentar que um cavalo branco será necessariamente mais
ligeiro que um cavalo negro.
Não se pode negar, contudo, que as consequências desta atitude racista, irracional, têm provocado
gravíssimas sequelas em milhões de crianças que povoam as salas de aula do nosso Brasil. E a nossa
luta, agora reforçada com medidas oficiais, deve centralizar-se nas causas provocadoras e fortalecedoras
destas sequelas que mantêm o racismo, os preconceitos e as discriminações em evidência. Joel Rufino
afirma que:

Mera característica externa, transmissível por hereditariedade, o conjunto de genes responsável por
ela é parte da reserva genética comum a toda a raça humana – as diferenças de cor entre os homens se
devendo, por um lado, à diversidade de combinações que os grupos humanos sacam da reserva comum;
e, por outro, às condições ecológicas que foram encontrando sua difusão pelo globo. A cor escura, por
exemplo, não é privativa do negro africano, mas marca também dos hindus, e diversos povos ameríndios,
sendo, de qualquer jeito, uma variação demasiado insignificante do tipo médio humano.

Essa insignificância, do ponto de vista biológico, não é levada em consideração nos relacionamentos
do dia-a-dia dos racialmente oprimidos devido à cor negra de sua pele. O racismo que o negro sofre
passa pela cor de sua pele. Este racismo tem um conteúdo cultural muito forte. Os mitos da sociedade

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ocidental em relação às diferenças entre os homens e mulheres surgem dentro de uma realidade inegável:
a supremacia da raça branca. Por isso mesmo pode-se entender o fortíssimo mito em torno da cor do
negro. Há uma violenta carga emocional em torno de sua cor. O negro vive em um mundo branco, criado
à imagem do branco e basicamente dominado pelo branco.
Para a maioria de nós a ideia de raça passa por este caráter emocional que a cor negra tem. Na história
do homem ele desenvolveu vários mitos: sobre nobres e plebeus, inferiores e superiores, sangue nobre,
sangue bom, raça pura, mas nenhum supera o caráter emocional da cor negra. É a cor negra que define
a visão cultural de raça. Não há dúvida, é a partir da cor da pele – que é o sinal mais visível – que aquele
ou aquela que discrimina identifica a sua vítima. Exatamente por causa do tremendo incômodo que muitos
negros e negras sentem por causa da cor de sua pele é que se desenvolveu no interior de muitos negros
e negras a branquitude, revelada nas pesquisas feitas e resumidas neste trabalho, cujos resultados
devem ajudar o(a) professor(a) a compreender a importância de sua participação consciente na luta e
combate ao racismo, preconceitos e discriminações em sua esfera de atuação.

Algumas definições (conceituações básicas sobre o racismo e seus derivados)

Racismo
“Racismo é uma ideologia que postula a existência de hierarquia entre os grupos humanos” (Programa
Nacional de Direitos Humanos, 1998, p. 12).

Pode ser definido também como a teoria ou ideia de que existe uma relação de causa e efeito entre
as características físicas herdadas por uma pessoa e certos traços de sua personalidade, inteligência ou
cultura. E, somados a isso, a noção de que certas raças são naturalmente inferiores ou superiores a
outras.
Já o professor Joel Rufino assim o conceitua: Racismo é a suposição de que há raças e, em seguida,
a caracterização biogenética de fenômenos puramente sociais e culturais. E também uma modalidade de
dominação ou, antes, uma maneira de justificar a dominação de um grupo sobre outro, inspirada nas
diferenças fenotípicas da nossa espécie. Ignorância e interesses combinados, como se vê.

Origem da palavra racismo


Paulette Marquer, em seu livro As Raças Humanas, diz que a palavra raça vem do italiano razza, que
significa família, ou grupo de pessoas. Por outro lado, continua Marquer, a palavra razza vem do árabe
ras, que quer dizer origem ou descendência.
Racismo, preconceito e discriminações são temas de veiculação crescente em nossa imprensa. Com
isso, aumentam-se os debates, incentivando a discussão destes temas dentro e fora da escola.
Já foi o tempo em que a militância tinha que responder à seguinte pergunta: há racismo no Brasil? A
hipocrisia nacional respondia com um sonoro NÃO. A militância negra e de outras etnias solidárias diziam
SIM. Mas, não bastava dizer SIM, era necessário provar, mostrar evidências. Uma das áreas mais
afetadas pela prática do racismo foi a do trabalho e graças ao esforço de alguns pesquisadores de nossas
universidades, brancos e negros, levantamentos estatísticos foram feitos, comprovando o alto grau de
racismo praticado na área econômica contra negro.

Quando é que o racismo pode ser interpretado como discriminação, preconceito, segregação,
estereótipo?
Ocorre que a definição e compreensão de cada um desses termos é essencial para que saibamos
identificar e combater as variadas formas de manifestação de ideologias que defendem a ideia de
hierarquia entre pessoas (Programa Nacional de Direitos Humanos.
Tendo como referencial todas as informações contidas neste trabalho, apresentaremos, agora,
algumas definições (na realidade, conceituações) sobre algumas palavras e expressões-chave para
podermos, em melhores condições, identificar, combater e eliminar o racismo e todas as formas de
preconceitos e discriminações.

Preconceito
Preconceito é uma opinião preestabelecida, que é imposta pelo meio, época e educação. Ele regula
as relações de uma pessoa com a sociedade. Ao regular, ele permeia toda a sociedade, tornando-se uma
espécie de mediador de todas as relações humanas. Ele pode ser definido, também, como uma
indisposição, um julgamento prévio, negativo, que se faz de pessoas estigmatizadas por estereótipos.
Aqui está uma lista de alguns preconceitos clássicos, que estão bem inculcados em nosso cotidiano:

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“Toda sogra é chata”
“Todos os homens são fortes”
“Toda mulher é frágil”
“Todos os políticos são corruptos”
“Toda criança negra vai mal na escola”
“O negro é burro”
“Mulher bonita é burra”

Com base em estereótipos, as pessoas julgam as outras. Por isso o preconceito é um fenômeno
psicológico. Ele reside apenas na esfera da consciência e/ou afetividade dos indivíduos e por si só não
fere direitos. Ninguém é obrigado a gostar de alguém, mas é obrigado a respeitar os seus direitos:
Quando uma pessoa está tão convencida de que os membros de determinado grupo são todos
violentos e atrasados (ou, ao contrário, decentes, brilhantes e criativos), a ponto de não conseguir vê-los
como indivíduos, e se nega a tomar conhecimento de evidências que refutam essa sua convicção, então,
estamos diante de uma pessoa preconceituosa.
Estes preconceitos, aos poucos, vão se transformando em posições diante da vida, ao se espalharem
nas relações interpessoais, carregando consigo outros ‘subprodutos’ do modelo social vigente nas
diferentes sociedades: os estereótipos, a discriminação, o racismo, o sexismo, etc.

Discriminação
É o nome que se dá para a conduta (ação ou omissão) que viola direitos das pessoas com base em
critérios injustificados e injustos, tais como a raça, o sexo, a idade, a opção religiosa e outros. A
discriminação é algo assim como a tradução prática, a exteriorização, a manifestação, a materialização
do racismo, do preconceito e do estereótipo. Como o próprio nome diz, é uma ação (no sentido de fazer
deixar fazer algo) que resulta em violação dos direitos.

Discriminação racial
Discriminação racial, segundo conceito estabelecido pelas Nações Unidas (Convenção da ONU/1966,
sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial), significa qualquer distinção, exclusão,
restrição ou preferências baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica, que tenha
como objeto ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, o gozo ou exercício, em condições de
igualdade, os direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político, social ou cultural, ou em
qualquer outro domínio da vida pública (Idem, ibidem).

Gênero
As mulheres, juntamente com os negros, são as maiores vítimas preconceito. Há teorias raciais
espalhadas pelo mundo, com seguidores no Brasil, que procuram justificar um tratamento discriminatório
e desumano de exclusão e de marginalização reservados para povos e pessoas diferentes, que os
preconceituosos julgam diferentes. Muitas das atitudes discriminatórias que acontecem em sala aula são
dirigidas às alunas, e quando a aluna é negra, torna-se mais grave este preconceito, esta discriminação.
Por isso, é interessante ter uma ideia do significado da palavra gênero, desconhecida da maioria das
mulheres, especialmente das estudantes, racialmente oprimidas, em particular:
Gênero é um conceito que se refere ao conjunto de atributos negativos ou positivos que se aplicam
diferencialmente a homens e mulheres, inclusive desde o momento do nascimento, e determinam as
funções, papéis, ocupações e as relações que homens e mulheres desempenham na sociedade e entre
eles mesmos. Esses papéis e relações não são determinados pela biologia, mas sim, pelo contexto social,
cultural e político, religioso e econômico de cada organização humana, e são passados de uma geração
a outra.
Ou, na definição do Conselho Estadual da Condição Feminina de S.Paulo, “gênero é definido como
sexo socialmente construído...”. Ao nascer somos machos ou fêmeas, isto é, nascemos com aparelhos
biológicos sexuais diferentes.
Contudo, a sociedade, através de seus poderosos mecanismos de socialização – linguagem, família
(onde são introjetados os primeiros e fortes conteúdos culturais), escola, religião, meios de comunicação
– e finalmente, o Estado, através de leis, vão formando homens e mulheres com comportamentos
masculinos e femininos bem definidos. A ambos têm sido destinados papéis sociais rígidos. Aos homens,
em geral, cabem as tarefas de prestígio, autoridade e criatividade: economistas, cientistas, políticos,
médicos, etc. Às mulheres, tarefas pouco reconhecidas socialmente como donas-de-casa, mãe e esposa.
Até bem pouco tempo, quando executavam tarefas fora do âmbito do lar, exerciam, em geral, atividades
que são uma extensão de suas atividades domésticas: professora, enfermeira, secretária, etc.”.

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Estereótipos
Estereótipo é um conceito muito próximo do de preconceito e pode ser definido, conforme Shestakov,
como “uma tendência à padronização, com a eliminação das qualidades individuais e das diferenças, com
a ausência total do espírito crítico nas opiniões sustentadas”. Segundo Lise Dunningan, o “estereótipo é
um modelo rígido e anônimo, a partir do qual são produzidos, de maneira automática, imagens ou
comportamentos”.
O estereótipo é a prática do preconceito. É a sua manifestação comportamental. O estereótipo objetiva
(1) justificar uma suposta inferioridade; (2) justificar a manutenção do status quo; e (3) legitimar, aceitar e
justificar: a dependência, a subordinação e a desigualdade.

O DIREITO À DIFERENÇA

Glória Moura
Professora do Departamento de Artes Cênicas e Coordenadora do Núcleo
de Estudos
Afro-Brasileiros da Universidade de Brasília

Este artigo tem como objetivo repensar o papel da escola como fonte de afirmação de identidades, à
luz da experiência dos quilombos contemporâneos. Considero um desafio desenvolver, na escola, novos
espaços pedagógicos que propiciem a valorização das múltiplas identidades que integram a identidade
do povo brasileiro, por meio de um currículo que leve o aluno a conhecer suas origens e a se reconhecer
como brasileiro.
Pensar em tantos brasileiros que negam sua identidade, inclusive porque a escola não lhes permitiu
conhecer sua história e saber quem são, foi um dos motivos para escrever este artigo. Além disso, a
observação da realidade social e educacional brasileira também pesou na escolha do tema. Constatar
que, pelos dados do último censo realizado pelo IBGE (Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística), 45% da população deste nosso país é mestiça e que, integrando a maioria do povo
trabalhador, está na classe dos menos favorecidos, apesar da sua contribuição histórica para o
desenvolvimento econômico do país, e perceber, ademais, que a escola não reconhece a diversidade da
formação de seus alunos, não levando em conta a experiência fora dela, instigou-me nessa tentativa de
desvendar um aspecto da história de nossos antepassados.

Assim, com base em material recolhido nas comunidades de Santa Rosa dos Pretos, situada no
município de Itapecurumirim, Maranhão; de Mato do Tição, em Jaboticatubas, Minas Gerais; e de Aguapé,
no município de Osório, Rio Grande do Sul, procurei recuperar e desvelar o universo dos usos e costumes
ali presentes, a dinâmica de criação e recriação da cultura afro-brasileira, refletindo sobre o papel das
festas e comemorações religiosas nessas comunidades negras rurais como formadoras de identidade.
Nas comunidades pesquisadas, a vivência da identidade contrastiva (que se baseia na “cultura do
contraste”), elaborada e apreendida mediante a cultura da festa, faz com que os quilombolas afirmem
vigorosamente sua diferença e a reivindiquem enquanto direito, vivendo de seu trabalho, quase sempre
no campo e, concomitantemente, cantando, dançando, praticando suas devoções, vivenciando sua fé.
Em síntese, plantando seu alimento e redistribuindo-o simbolicamente, junte com a alegria e a fé, em
suas festas.
O presente estudo procurou compreender a contribuição das festas dos quilombos contemporâneos
como fator formador e recriador de identidade, analisando-as como veículo de transmissão e
internalização de valores que possibilitam a afirmação e a expressão da diferença/alteridade e, ao mesmo
tempo, a negociação dos termos de inserção das comunidades rurais negras na sociedade como um
todo.
As crianças estão presentes em todas as tarefas comunitárias, do planejamento à execução e
avaliação das atividades, sempre ao redor dos adultos, de ouvidos e olhos abertos, atentas, de uma
maneira natural e descontraída. A documentação fotográfica que acompanha este estudo nos permite
constatar a presença das crianças por toda a parte, participando da preparação das festas ou, no contexto
cotidiano, atuando ou observando. Esse veículo de treinamento informal constrói um saber que vai sendo
transmitido e assimilado pouco a pouco, ao mesmo tempo em que proporciona oportunidade de reflexão
sobre a necessidade de mudança, sempre que as circunstâncias o exigirem, para que a comunidade
possa adequar-se às novas condições do momento. Nas festas, os valores que a comunidade reputa
essenciais e que condensam esse saber são constantemente reafirmados e renegociados, constituindo,
assim, um currículo invisível por meio do qual são transmitidas as normas do convívio comunitário. Sem
uma intenção explícita, esse currículo invisível vai sendo desenvolvido, dando às crianças o necessário

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conhecimento de suas origens e do valor de seus antepassados, mostrando quem é quem no presente e
apontando para as perspectivas futuras.
Percebe-se, desse modo, a seriedade dos quilombolas na realização de suas festas. Eles lutam para
viver o momento presente, sem esquecer o passado e com alegria. Não uma alegria descompromissada,
descontextualizada, mas uma alegria definitiva, duramente conquistada, buscada no mais recôndito do
ser. Porque as dificuldades estão presentes, não há que ir procurá-las em outro lugar, mas as formas de
ultrapassá-las é que estão sendo perseguidas.

Acredito que a maneira de manterem acesa a chama da vida passa pela experiência de buscar a
transcendência, o lado de lá da vida, para continuarem lutando, do lado de cá, pela terra, pela comida,
pela escola, pela moradia. Passar a noite toda rezando, cantando e dançando é investir na vida, é se
embrenhar em uma outra dimensão que poderá e deverá ser a força que nutre a vida mesma.
Os moradores das comunidades têm princípios morais e normas de conduta aceitos pela maioria e
todos pretendem passar esse código aos mais jovens. A importância dos rituais de devoção, o respeito à
natureza, o dever de trabalhar, o respeito à família, a beleza da negritude, a busca de um casamento
dentro do círculo comunitário, são valores que fazem parte de padrões sociais que marcam as histórias
de vida dos atuais moradores, bem como dos seus antepassados, e perpassam as letras de músicas
cantadas nas festas e as estórias de santos e de bichos contadas exaustivamente.
Não se pretende discutir aqui a natureza desses valores transmitidos pelas festas, mas a sua
importância para a comunidade. Há uma significação positiva na contínua reafirmação desses valores e
é a festa que potencializa o seu significado, enquanto expressão de uma forma de pertencimento. Assim,
quando se fala na transmissão de valores que ocorre através das festas, não se está pondo em questão
o repertório valorativo dessas comunidades, mas, antes, apontando para um modo de educação não
formal que é utilizada entre os moradores dos quilombos.
A compreensão do sentido didático da realização das festas foi fundamental para a abordagem
educacional a que me propus, pois sabe-se da importância da formação das identidades no processo de
ensino/aprendizagem, sabendo-se também, por outro lado, que isto raramente ocorre na escola
tradicional. A constatação de que o desenvolvimento do currículo invisível durante as festas, realizado de
uma maneira informal, marca indelevelmente a formação da identidade dos moradores dos quilombos
contemporâneos, ensejou a reflexão sobre o aproveitamento dessa experiência na escola formal, levando
os alunos a conhecerem a história do país, que é sua história e a se reconhecerem em sua formação
étnica.

A grande diferença que se deve destacar entre a transmissão do saber nas comunidades negras rurais
e nas escolas é que, no primeiro caso, o processo, fruto da socialização, desenvolve-se de forma natural
e informal e, no segundo, o saber não está referenciado na experiência do aluno. Isso ocorre, sobretudo,
pelo fato de que a experiência educativa das comunidades leva em conta os valores de sua própria
história, enquanto na escola os valores da cultura dominante, ou seja, o saber sistematizado, são
impostos como únicos, sem qualquer referência às historicidades vividas e aprendidas pelos alunos em
seu contexto de origem. Assim, a educação formal desagrega e dificulta a construção de um sentimento
de identificação, ao criar um sentido de exclusão para o aluno, que não consegue ver qualquer relação
entre os conteúdos ensinados e sua própria experiência durante o desenvolvimento do currículo,
enquanto nas festas quilombolas as crianças se identificam positivamente com tudo que está
acontecendo a sua volta, como condição de um saber que os forma para a vida.
A pedagogia nos anos 70/80 já chamava a atenção dos educadores para a experiência pedagógica
que o aluno trazia de sua vivência fora da escola e que não era por esta reconhecida, o saber que lhe foi
transmitido por seus pais e avós, pela comunidade onde mora, pela religião que seus pais adotam, pelas
leituras orientadas pela família, pela sua origem étnica. O currículo escolar geralmente não leva em conta
essa experiência do aluno e, ao impor-se como única forma legítima de saber no interior do processo
formal de educação, acaba por esconder sob sua aparência de universalidade um outro currículo, que
Apple, estudioso da ideologia que atravessa o currículo escolar, chama de currículo oculto: são as
cadernetas de frequência, os sinais de entrada e saída que devem ser obedecidos, a disciplina imposta
na sala de aula, o sistema de recompensas e castigos, etc., que não são admitidos como parte do
currículo, embora toda a experiência escolar dos alunos, seja regida pelos verdadeiros rituais que se
organizam em torno destas formas de controle.
É necessário deixar clara a diferença entre currículo invisível e currículo oculto, conceito pedagógico
sistematizado. O que chamamos de currículo invisível é a transmissão dos valores, dos princípios de
conduta e das normas de convívio, ou, numa palavra, dos padrões socioculturais inerentes à vida
comunitária, de maneira informal e não explícita, permitindo uma afirmação positiva da identidade dos

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membros de um grupo social. Essa transmissão internalizada, que se desenvolve sob formas diversas,
proporciona um sentimento de pertencimento, ampliando-se gradualmente à medida que se alarga a
experiência do educando. Jovens e crianças reproduzem/recriam, em sua experiência cotidiana, na vida
familiar e nas celebrações grupais, esses valores que são passados de geração a geração.
Nos quilombos contemporâneos, a cultura da festa, que perpassa o seu modo de vida, comanda o
desenvolvimento lento do currículo invisível, por meio do qual se dá a transmissão das tradições do grupo,
constantemente recriadas, reinventadas, ressemantizadas. Apreender a importância do período de
preparação e realização das festas permite desvendar a lógica desse modo de vida quilombola e
perceber, na indiferenciação lúdico-sagrada do tempo da festa, as teias de significados que compõem um
tecido cultural tramado sobre essa urdidura bem firme. Desse modo, as festas permitem adequar o
passado ao presente, ao reelaborar a herança cultural dos ancestrais, possibilitando, além disso, manter
um diálogo com a sociedade envolvente, através da negociação e renegociação constante dos
referenciais simbólicos, dos quais essas comunidades se apropriam para constantemente ressignificá-
los.

Nas comunidades rurais negras é na festa que os valores vão sendo transmitidos, no desenvolvimento
deste currículo invisível que ninguém descreveria em detalhes, mas cujas marcas é possível detectar nas
formas de participação das crianças e dos jovens. Ninguém parou para lhes dar aulas sobre o ritual
envolvido em determinada celebração ou sobre os papéis a serem nele desempenhados, mas todos
sabem muito bem o que têm de fazer, a hora em que têm de fazer e como devem fazê-lo. Os papéis, bem
como os valores e as tradições que por meio deles se encarnam, vão sendo definidos com o passar dos
anos, e por isso a aprendizagem é constante. Levantar às 5 horas da manhã para participar da alvorada
da Santa Cruz, na comunidade de Mato do Tição, quando se reza diante da cruz enfeitada colocada em
frente a cada uma das casas da comunidade, é algo que não precisa ser ensinado. A distribuição, nessas
ocasiões, de pelo menos um cafezinho e, às vezes, de bolinhos fritos na hora, expressa o valor de uma
tradição poderosa, a exigir, em contrapartida, a troca na reciprocidade.
A construção desse currículo invisível constitui assim um processo histórico no qual a linguagem e, em
especial, as linguagens musicais e corporais, desempenham um papel essencial, remetendo a uma
história de longa duração. Por isso, são as festas que potencializam, dão movimento e vida a esses
valores transmitidos ao longo do tempo e recriados face às exigências do presente.
É na cultura da festa que, pela exposição condensada e reiterada desses valores, se explicita o
currículo invisível que essas comunidades constroem para si mesmas, e que vai despertando nas
crianças e nos jovens a vontade de continuar a manter a identidade que lhes confere sua cultura e, ao
mesmo tempo, nela desenvolver novos aspectos. No Rio Grande do Sul, os jovens consideram muito
importante participar do maçambique (auto popular que encena a história da Rainha Jinga de Angola),
conhecer todas as letras das músicas, mas também lutam para fazer incorporar à tradição as músicas
por eles mesmos criadas. É a nova geração buscando a sua participação efetiva sem, contudo,
desrespeitar a ancestralidade.
Por outro lado, esse currículo invisível, no qual a história oral tem um papel preponderante,
impregnando a experiência de vida dos membros da comunidade, se projeta também para fora dela.
Assim, Elizângela Conceição de Siqueira, neta de D. Divina, líder da comunidade de Mato do Tição,
descreve a história de seu bairro, cumprindo uma tarefa exigida pela professora do Grupo Escolar:

“Fundador do bairro: Benjamin José de Siqueira.

- Origem do nome: Porque antigamente não tinha luz elétrica. Quem tinha que andar à noite tinha que
acender um pau de lenha, para sair sacudindo ele para clarear o caminho para passar. Por isso se deu o
nome de Mato do Tição.
- O bairro recebeu esse nome no dia: Não sei responder porque quando minha avó nasceu, segundo
ela já existia este nome. Isso se deu a origem no tempo da escravidão”.
Em outra ocasião, em carta dirigida à pesquisadora, a mesma Elizângela falaria sobre a comunidade
em que vive e sobre suas aspirações atuais:
“É um momento de alegria quando eu entendia conhecer esse cantinho amado.
- Cheio de esperança: esperando tudo de bom que podemos. Encontrar dentro do meu coração:
charmosa tenho a minha vovozinha para me orientar. Tem meu avô Joãozinho para me abençoar. Meu
pai e minha mãezinha com todo o povo do meu coração vivo feliz aqui em Mato do Tição: terra cativante.
- Vivo nela constante. Aqui neste Brasil. Esperando de encontrar um dia uma linha de ônibus, para ser
nossa alegria.

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Um beijinho, um beijão do povo de Mato do Tição que eu quero cantar e quero dançar que uma escola
para mim estudar.
- D. Gloria foi um prazer conhecer a senhora e suas amigas. Um beijo de sua amiga Elizângela
Conceição de Siqueira”.

Esta carta mostra bem como são passados os valores de respeito à liderança da avó e aos mais
velhos, bem como o amor à terra em que vivem, mas também deixa entrever as angústias e os desejos
que impulsionam os mais jovens, evidenciando as relações da comunidade com a sociedade abrangente.
E, nesta, a escola tem um papel fundamental: Elizângela quer ônibus para ir para à escola – a atual dista
quatro quilômetros de Mato do Tição – mas quer sobretudo uma escola sua, da comunidade, onde suas
diferenças sejam respeitadas. Como pode a escola enfrentar o desafio de atender à reivindicação tão
justa e claramente formulada por esta criança? No desenvolvimento do currículo escolar, não é o caso,
evidentemente, de se incorporar de forma imediata e sem crítica todo e qualquer conteúdo disciplinar ou
universo de valores que o aluno já carrega através desse outro currículo em que foi formado por sua
socialização. Nem se trata de deixar o aluno à mercê do que deseja fazer, de forma espontaneísta,
permitindo-lhe permanecer encerrado no seu próprio universo, restrito de socialização, pois a escola,
enquanto instituição socializadora, tem também o dever de propiciar uma ampliação de seu horizonte de
experiência, com base em valores hoje inquestionáveis como o respeito aos direitos humanos e aos ideais
republicanos e democráticos, que orientam – ou devem orientar – o desenvolvimento da sociedade
brasileira. E a escola tem ainda a função a partir dos valores especificamente pedagógicos que orientam
sua prática, de ampliar e aprofundar no aluno o seu processo de aquisição de conhecimentos, como
espaço de escolarização que é.
O que se propõe, em contrapartida, é o respeito às matrizes culturais a partir das quais se constrói a
identidade dos alunos, com, atenção voltada para tudo aquilo que vá resgatar suas origens e sua história
(o que também significa respeitar os direitos humanos!), como condição de afirmação de sua dignidade
enquanto pessoa, e da especificidade da herança cultural que ele carrega, como parte da infinita
diversidade que constitui a riqueza do ser humano. Este é um valor que se revela essencial numa
sociedade marcada simultaneamente por uma formação pluriétnica e pelo peso da herança escravocrata.
Não se está advogando, portanto, o desprezo da cultura universal, patrimônio comum de toda a
humanidade, mas sugerindo seguir o exemplo do que ocorre nas comunidades negras estudadas, isto é,
levar em conta o contexto cultural onde a escola está inserida e, a partir daí, possibilitar que se amplie
paulatinamente o universo da experiência e a visão de mundo dos alunos, para que possam ter acesso à
universalização do saber. Considerando-se que os estudiosos da formação histórica da sociedade
brasileira insistem em destacar a contribuição dos grupos étnicos distintos que nela tomaram parte – em
especial as “três raças formadoras” – essa realidade deveria inquestionavelmente ser levada em
consideração nos currículos escolares.

Como a democracia é, ao mesmo tempo, fundamento e finalidade do exercício da cidadania, a


educação deve proporcionar a formação de cidadãos que respeitem a diferença e que, sem perder de
vista o caráter universal do saber e a dimensão nacional de sua identidade, tenham garantido o direito à
memória e ao conhecimento de sua história.
Esta educação, profundamente vinculada às matrizes culturais diversificadas que fazem parte da
formação da nossa identidade nacional, deve permitir aos alunos respeitar os valores positivos que
emergem do confronto dessas diferenças, possibilitando-lhes ao mesmo tempo desativar a carga negativa
e eivada de preconceitos que marca a visão discriminatória de grupos sociais, com base em sua origem
étnica, suas crenças religiosas ou suas práticas culturais. Só assim a escola poderá, levando em
consideração as diferenças étnicas de seus alunos, reconhecer de forma integral os valores culturais que
carregam consigo para integrá-los à sua educação formal. Isto é essencial no caso de grupos que, por
força da inércia da herança histórica ou pela pura força do preconceito, são quase sempre considerados
“inferiores”, ou “naturalmente” subalternos.
No caso das populações afro-brasileiras, esta é uma tarefa urgente. Em certa ocasião, quando
trabalhava para a Secretaria da Cultura do Ministério da Educação, vivi uma experiência significativa
numa sala de aula de uma escola municipal de Itabuna, no estado da Bahia: embora ali todos os alunos
fossem negros, à pergunta sobre quem era negro naquela sala, ninguém se identificou como tal,
evidenciando-se o afastamento existente entre o que cada um é aos olhos dos outros e as representações
que cada um tem sobre si mesmo. Isto mostra também como esta forma de identificação – ser negro –
não é afirmada positivamente. Em outra ocasião, quando estive na escola de Jaboticatubas, frequentada
pelas crianças da comunidade de Mato do Tição, soube de outro caso exemplar, quando uma professora
passou um exercício em que cada aluno devia se identificar como negro ou branco. Frente à tarefa, uma

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menina negra de Mato do Tição se identificou como branca e foi “denunciada” pelo colega do lado, o que
fez com que ela caísse em pranto convulsivo.
Assim, enquanto em sua própria comunidade o ser negro é um valor positivo, celebrado em todas as
festas quilombolas e passado através das gerações às crianças e aos jovens, no ambiente escolar esta
criança se sentiu intimidada o suficiente para negar o que, em outras circunstâncias, poderia ter orgulho
de afirmar, evidenciando o quanto a carga negativa do preconceito que perpassa a educação formal pode
ter um efeito desagregador da identidade mesmo para crianças que, como as de Mato do Tição, têm, por
outro lado, nas práticas comunitárias, um enorme reforço identitário positivo.
Nessa escola de Jaboticatubas – a mesma frequentada por Elizângela – os professores seguem a
orientação da Secretaria de Educação do Estado de Minas Gerais quanto ao trabalho com Conteúdos
Básicos do Ciclo Básico de Alfabetização à Quarta Série do Ensino Fundamental, e recebem treinamento
para aplicar suas diretrizes. Participei de uma parte desse treinamento de professores e senti a dificuldade
que demonstravam em assimilar ideias que não constavam do programa curricular, ou seja, qualquer
ideia nova que possa trazer o risco de abalar, ainda que minimamente, o sólido edifício da educação
formal e oficial.

Na verdade, o Brasil nos oferece a estranha imagem de um país de identidade inconclusa, já que, ao
longo da história de nossa formação, continuamos a nos perguntar a todo momento sobre quem somos
e, assim, o brasileiro, por falta de conhecer melhor a sua história, acaba por não ter condições de se
identificar consigo mesmo. Na verdade, na escola é negado ao estudante o conhecimento de uma história
que efetivamente incorporasse a contribuição dos diferentes estoques étnicos à formação de nossa
identidade, com o agravante de que a história parcial ali apresentada como exclusiva é aquela dos
vencedores, dos colonizadores ou, para precisar a afirmativa, história celebratória das classes econômica
e politicamente mais bem sucedidas. Isto porque – e este é outro aspecto a ser considerado – a história
transmitida na escola privilegia apenas o registro escrito, quando se sabe que a história dos grupos
indígenas ou das comunidades negras rurais, como aliás também toda e qualquer história local, é sempre
um relato oral, que só pode ser transmitido pelos mais velhos aos mais novos, através das gerações.
O estudo das festas nas comunidades negras rurais evidencia a importância da cultura de que elas
são depositárias na formação do ethos do brasileiro. Haveria assim que se buscar meios através dos
quais fosse possível conhecer essa realidade histórica, social e cultural dos afrodescendentes, ensejando
que alunos e professores da rede oficial e particular de ensino, frente ao conhecimento dessa outra
história, pudessem enfim se identificar consigo mesmos, contribuindo, dessa forma, para a abertura de
novas perspectivas no campo educacional.

Compreender e respeitar o saber que se condensa nas culturas populares revelaria, então, sua
extrema importância como instrumentos de decifração dos pilares em que se assenta nossa formação. A
cultura, enquanto universo simbólico através do qual se atribui significado à experiência de vida, orienta
todos os processos de criação do homem, não só no domínio das artes, mas também no que o homem
aprende ao longo de sua existência, acrescentando-se ao que já sabe por herança dos antepassados,
como sua visão de mundo. Nas comunidades rurais negras, o uso das ervas medicinais, o modo de
trabalhar a terra, de tirar dela seu sustento, as linguagens gestuais, a música, as festas, o modo de se
divertir e o de morrer, cantar, dançar e rezar constituem o contexto onde se tecem as teias de significados
que recriam incessantemente sua cultura e sua identidade contrastiva. Nas práticas dos moradores das
comunidades, há um forte apelo ao reconhecimento dessa identidade como parte do grande mosaico
através do qual se constrói a identidade nacional.
Nestas considerações finais, quero enfatizar o descaso da escola pelo reconhecimento das múltiplas
“identidades” e pelas diferentes culturas dos diversos segmentos que historicamente integraram a
formação de nosso país, como tarefa indispensável de formação para o exercício da cidadania. Essa
multiplicidade de raízes da nossa formação cultural não pode ser desconsiderada, sob pena de se
priorizar apenas a visão de mundo de um daqueles segmentos, à exclusão de todos os outros. Pretendo,
com este trabalho, chamar a atenção para a importância da diversidade e a necessidade do respeito às
diferentes vertentes sócio-histórico e culturais que confluem na construção deste nosso país, como base
para uma revisão em profundidade das práticas pedagógicas escolares, onde política, educação e cultura
já não possam mais ser separadas.
A escola não leva em conta o saber diferenciado que o aluno pode trazer da vivência no seio de sua
família, aprendido com seus pais e avós ou no seu meio social de origem. Assim, ela desconhece a origem
étnica dos alunos e a formação cultural de sua clientela. Mais ainda, a hegemonia desse modelo exclusivo
tem consequências que se estendem por todo o sistema educacional. A escola não prepara para a vida,

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na medida em que não proporciona uma formação profissional diversificada, mas faz com que todos
queiram ser doutores, herança portuguesa do Brasil-colônia, quando o bacharel tinha regalias na Corte.
Implantar um currículo capaz de responder às especificidades que apontamos e, ao mesmo tempo,
escapar das armadilhas que nelas se encerram, exigiria que os futuros professores recebessem uma
formação que os capacitasse a lidar com as questões educacionais. Só a partir da formação de
professores capacitados a criar, levantar possibilidades, inventar novas situações de aprendizagem em
sala de aula, frente à especificidade do contexto em que conduz o processo de ensino-aprendizagem,
imbuídos do sentido de sua profissão e de sua responsabilidade na sociedade, poder-se-á desenvolver
um processo escolar de educação consoante à realidade sociocultural brasileira.
Em suas múltiplas variedades, o saber que se condensa nas culturas populares é um importante fator
de afirmação da identidade do homem brasileiro, porque carrega consigo a memória de uma parte
significativa da história deste país. No entanto, reduzido à condição de folclore (com toda a carga
pejorativa que o termo traz em si), torna-se praticamente impossível levá-lo em conta, perdendo-se
grande oportunidade de aproximação da realidade do país com o que se ensina na escola.

Os produtos resultantes de trabalhos de pesquisa (vídeos, publicações, audiovisuais, etc.), assim como
inúmeros outros materiais existentes e pouco divulgados – a exemplo dos trabalhos da FUNARTE
(Fundação Nacional de Arte do Ministério da Cultura) – poderiam ser utilizados com proveito nas escolas,
com o objetivo de levar os professores a ter uma visão mais abrangente da sociedade e da cultura
brasileira e, portanto, uma visão crítica da escola atual. Instigar e informar os mestres quanto à sua história
e à sua identidade é um começo de caminho para se mudar o panorama educacional. Os professores
precisariam se reconhecer no que ensinam, conscientizando-se da formação pluriétnica do povo brasileiro
e aceitando suas próprias origens, para que pudessem ensejar um processo educativo na escola mais
adaptado à realidade nacional, levando os alunos a também desenvolver uma atitude afirmativa com
relação à sua própria identidade.
Deste modo, se quisermos aproveitar a experiência de transmissão de valores observada no currículo
invisível das festas nas comunidades negras rurais para a reformulação do currículo escolar e a
renovação do processo de ensino-aprendizagem nas escolas, seria necessário trabalhar em três
diferentes níveis, que assim ficam registrados como sugestões de intervenção possível para os
educadores deste imenso país:

- Mudar a perspectiva ideológica da formulação de currículos – necessariamente sempre no plural –


levando em conta os valores culturais dos alunos e da comunidade onde a escola está inserida;
- Cultivar uma postura de abertura ao novo para ser capaz de absorver mudanças e reconhecer a
importância da afirmação da identidade, levando em conta os valores culturais dos aluno e respeitando a
história de seu grupo étnico/social;
- Utilizar os resultados e produtos de pesquisas realizadas na Universidades, para ampliar a própria
formação e, ao mesmo tempo, ter acesso a um material didático que se aproxime da realidade
diversificada da experiência dos alunos.

Há necessidade imperativa de se tornar a escola mais próxima da realidade sociocultural de seus


alunos, levando em conta os valores culturais locais numa perspectiva universal, se se quiser formar
cidadãos capazes de construir a sua própria história, num Brasil plural e verdadeiramente democrático.
Viver a aventura dessa pesquisa nos quilombos contemporâneos foi uma oportunidade de aprender
uma outra dimensão da experiência humana até então para mim desconhecida. Aprender que é
necessário tão pouco materialmente para viver uma vida espiritual tão rica, me levou a repensar os valores
da sociedade em que vivemos. Mas o aspecto mais importante da vivência com os moradores das
comunidades rurais negras foi aprender a importância e o significado da identidade afirmativa que eles
conquistaram e de que não abrem mão. Eles sabem quem são e sabem o que querem. Viver sua cultura,
manter sua integridade de seres humanos e de cidadãos capazes de lutar com todas as forças para
dignificar sua vida, recriando sua cultura, seja lutando para manter sua terra, seja tocando seus tambores,
respeitando a tradição de seus antepassados, dançando e cantando, e fazendo da festa negra a alegria
de festejar a vida. Aprendi com os quilombolas que festejar é preciso, que rezar é preciso, que lutar pelas
coisas consideradas importantes para manter seus valores é preciso. Quanto esse aprendizado me fez
recuperar o sentido de minhas origens e retomar as possibilidades de continuar a viver de forma a afirmar
uma identidade positiva, para mim e todos os meus! Que o sonho dos professores mestiços desses brasis
longínquos possa se realizar na conquista de uma escola onde os alunos sejam valorizados e respeitados,
apesar das suas diferenças de origem e cultura - ou antes, por causa delas.

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BUSCANDO CAMINHOS NAS TRADIÇÕES

Helena Theodoro
Mestre em Educação da Faculdade de Educação da
UFRJ.
Doutora em Filosofia, pela Universidade Gama Filho.

Muitos são os caminhos que permitem a realização de sonhos sonhados! Lidar com a plural idade
cultural brasileira é realizar um deles já que aproxima educadores e alunos, possibilitando o diálogo
construindo a ponte escola–vida comunitária!
A pluralidade faz surgir um país feito a muitas mãos, onde todos juntos, vindos de tradições diversas,
com distintas formas de arrumar o mundo, com inúmeras concepções do belo, conseguem criar uma
comunidade plena da consciência da importância da participação de cada um na construção do bem
comum. Todos podem ser diferentes mas são absolutamente necessários. Só com esta união na
diversidade se constrói um mundo novo, onde se respeita a maneira de cada um falar com Deus, de
invocá-lo por nomes e ritos adotados segundo a tradição de seu grupo, mas que determina toda a
organização e valores da comunidade.
A população afrodescendente no Brasil tem características culturais muito marcantes, que precisam
ser mais estudadas e entendidas já que a contribuição dos inúmeros países africanos é muito significativa
para todos os setores da vida brasileira, quer se relacione à linguagem, à vida familiar, ao sistema
simbólico, à comunidade religiosa, à produção do saber (Ciência) ou à transmissão do saber (Educação).

Linguagem e vida

As etnias trazidas para o Brasil, provenientes de diferentes regiões de África, com diversas línguas e
culturas, são:

- Os nagôs – provenientes da Nigéria, do Benin e do Togo, de língua iorubá


- Os fons ou minas – provenientes do antigo Daomé, atual Benin, de língua jeje
- Os bantos – provenientes de vários países – Angola, Congo, Moçambique, Zimbábue, etc. – de língua
banta.

O português falado no Brasil conta com a contribuição das culturas bantas, principalmente de suas
línguas, entre elas o Quicongo, o Umbundo e o Quimbundo. Os termos de origem nagô estão mais
restritos às práticas e utensílios ligados à tradição dos orixás, como a música, a descrição dos trajes e a
culinária afro-baiana.

Segundo Nei Lopes, no seu Dicionário Banto do Brasil (l996), para se constatar palavras de origem
banta em nossa língua, basta buscar as seguintes características:

1) Presença de sílabas iniciais como Ba, Ca, Cu, Fu, Ma, Mo, Um, Qui, etc.
Exemplos: caçula - candango- cachimbo curinga - cuca fubá - fuleiro - fulo macumba - maxixe - magé
- mala - mafuá quitanda - quizila - quitute - quilombo – quiabo

2) Presença, no interior dos vocábulos, dos grupos consonantais Mb, Nd, Ng, etc.
Exemplos: banda - samba - mambo – lambada - umbanda - dendê - macumba - quengo camundongo
- ginga - tanga - sunga

3) Presença de terminações como Aça, Ila, Ita, Ixe, Ute, Uca, etc.
Exemplos: macaca - quizila - catita - maxixe bazuca - muvuca.

Procure localizar num mapa da África, de onde vieram as línguas bantas e onde viveram os jejes e os
nagôs, bem como localize no dicionário as palavras que tenham indicação de Bras. – abreviatura de
brasileirismo, que são, em sua maioria, de origem banta.
Em muitas partes da África, a Arte é inseparável da vida por sua associação com o sagrado. Os mitos
da criação contam que um criador criou as pessoas e depois colocou alma nelas, o que se revela pela
palavra. Desta forma, a palavra negro-africana tem um sentido abrangente: faz história, sendo elemento
constitutivo da identidade profunda da comunidade, sendo uma arte.

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A literatura oral
Muniz Sodré, prefaciando Contos Crioulos da Bahia, de Mestre Didi, afirma: “os mitos, as lendas, os
contos populares, sempre foram vias de acesso ao inconsciente de um povo. Os contos de Didi
constituem excelente fonte de estudos, porque apontam diretamente para o universo mítico da cultura
afro-brasileira. Didi escreve como fala”.
O conto de Mestre Didi intitulado “A Fuga de Tio Ajayí” situa bem as regras de coesão social da
comunidade negra e a preocupação com a estrutura da personalidade de seus integrantes. Nesse conto,
um escravo foge da fazenda com outros escravos para poder fazer suas obrigações religiosas.
Perseguido pelos soldados, sobe morros e anda em becos com o seu grupo, sempre cantando, dançando
e fazendo de cada acontecimento do cotidiano uma forma de contar a vida do grupo e de criar arte. No
final, após muita perseguição, consegue chegar com o seu pessoal num espaço de liberdade, onde os
soldados não poderiam mais alcançá-los, fazendo ali a sua comunidade, segundo as normas e tradições
de seu povo. O conto mostra bem a divisão morro-asfalto e conta da resistência dos escravos ao processo
escravista.
Procure contos africanos, lendas e mitos que demonstrem a luta social e a consciência cultural da
problemática brasileira, já que temos a ordem cultural branca de um lado e a ordem cultural negra de
outro.

Literatura e linguagem musical


A literatura atua em nossas vidas para unir os mitos fundamentais da comunidade, de seu imaginário
ou de sua ideologia. Na literatura brasileira, no entanto, o negro é a palavra excluída, ocultada com
frequência, ou uma representação inventada pelo outro, sendo sempre o elemento marginal.
A representação do povo brasileiro afrodescendente vai ser encontrada na obra dos compositores
populares, que fazem uma literatura plena de ethos, de identidade, criando poesia, provando que a
reflexão sobre a realidade não é privativa dos letrados ilustres, mas também daqueles capazes de
transformar a natureza a partir da prática adquirida por seu trabalho. Esta capacidade de criar e falar do
país, de sua gente, de seus costumes, de sua fé, do cotidiano, é a invenção da arte negra, que flui tal e
qual magia ritual, transformando o que não se consegue por meio de formas técnicas. As ideias contidas
nesta arte reformularam a prática, levando a um pensar e refletir sobre o cotidiano, fazendo com que os
compositores sejam os verdadeiros pensadores e criadores da sociedade autenticamente brasileira e
pluricultural.

A Vila de Noel e Martinho


Noel de Medeiros Rosa nasceu a 11 de dezembro de 1910, em Vila Isabel, na Rua Teodoro da Silva,
Rio de Janeiro. Aprendeu a ler e escrever com sua mãe, estudou nos Colégios Maisonette e São Bento,
mas, boêmio de carteirinha, juntamente com Almirante e João de Barro, colegas de bairro, cria o Bando
dos Tangarás em 1929, começando, então, a compor, a frequentar a Lapa e viver no meio do samba.
Noel Rosa retrata em sua poesia, a vida carioca, com seus hábitos, suas histórias e seu ritmo negro. Em
Conversa de Botequim, feita em parceria com Vadico, ele retrata de forma musical e poética, a
malandragem carioca. Em João Ninguém já situa o desprezo da classe média pelo povão, expressando
os privilégios desta sociedade, caracterizando o cidadão de segunda categoria, que é a representação
do negro brasileiro, que apesar de despossuído é feliz segundo sua própria forma de lidar com o real.
Onde está a honestidade? revela sua crítica à sociedade desigual e repressora de sua época. Finalmente,
em Com que roupa? ele faz uma crítica de todo o processo econômico do governo da época que pode
ser utilizada tranquilamente em nossos dias. Feitiço da Vila, feita com Vadico, anunciava o que seria a
Vila Isabel de hoje, provando a magia da poesia, seu mistério profundo.

A poesia e a música de Noel fizeram da Vila um lugar mágico, onde músicos, poetas, seresteiros,
intérpretes e artistas em geral se encontram. Um dos mais famosos poetas da Vila é, sem dúvida,
Martinho José Ferreira, que, apesar de ser oriundo de Duas Barras, e ter crescido curtindo as mortes nos
divertidos gurufins da Serra dos Pretos Forros na Boca do Mato, fincou suas bases na Escola azul e
branco de Vila Isabel, tornando-se o Martinho da Vila.
Viver de festa é seu lema, já que considera que a melhor maneira de não se estressar com o trabalho
é se divertir com ele. Situa que nem sempre as diversões têm que ser descontraídas, podendo ser uma
coisa forte, com lágrimas, com EMOÇÃO! Martinho é do signo de Aquário, sendo filho de Xapanã e Oxum.
Nasceu num chuvoso carnaval de fevereiro, sob a benção dos Orixás, que lavaram nas águas da chuva
seus pecados, traçando seu destino iluminado, tocha capaz de liderar sua gente no encontro de seus
valores e ideais, através do canto, da dança, do ritual, da música, da POESIA.

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Seus ideais de liberdade e em defesa dos direitos de todos os homens negros, brancos e amarelos o
fazem um ZUMBI DO TERCEIRO MILÊNIO. Sua poesia é como ele: firme, simples, sincera, pregando
igualdade, incutindo confiança, abrindo caminhos, discutindo ideias, descortinando horizontes, situando
regras de uma nova forma de viver, de amar, de ser.
Juntamente com Paulinho da Viola, Elton Medeiros e Candeia fundou o Grêmio Recreativo de Arte
Negra Quilombo, além de durante anos organizar, em novembro, mês da consciência negra, a Kizomba,
festa de integração entre afrodescendentes e africanos, utilizando grupos musicais negros tradicionais do
Brasil, de Angola, da África do Sul, do Senegal, do Congo e dos Estados Unidos.
Com Rosinha de Valença fez Benzedeiras Guardiãs, homenagem expressiva e singela às mães, à
Nanã, grande mãe-terra. Sua ligação com a poética de Noel se revela em Alô, Noel, feita em parceria
com Cláudio Jorge. Nos sambas de enredo pontifica, tendo vários incluídos dentre os melhores de todos
os tempos, como Gbala viagem ao templo da criação e o antológico Sonho de um sonho, além do Para
tudo se acabar na Quarta-feira.

A poesia negra se manifesta com pujança nos sambas de enredo, onde a arte se sobrepõe aos fatos,
já que o compositor precisa trabalhar segundo um tema criado ou pesquisado pelo carnavalesco e contar
cantando poeticamente uma história. A Vila Isabel tem no samba de Luis Carlos da Vila, Rodolfo e Jonas
um dos mais belos poemas épicos que já produzimos: Kizomba, festa da Raça.
O GRES Em Cima da Hora tem no samba de Edeor de Paula “Os Sertões de EucIides da Cunha um
dos perfeitos poemas de todos os tempos, bem como a Imperatriz Leopoldinense com Liberdade,
Liberdade, Abra As Asas Sobre Nós, de Niltinho Tristeza, Preto Joia, Vicentinho e Jurandir; e o
Império Serrano com o Bumbum paticumbum prugurundum, de Beto-sem Braço e Aluísio Machado,
sem falar no legendário Cinco Bailes da História do Rio, de Silas de Oliveira, Dona Ivone Lara e Mano
Décio que deslumbrou o país em 1965.
Ao analisar as letras desses sambas de enredo passamos a conhecer um pouco mais da vida e da
cultura brasileiras.
Falando musicalmente com as crianças Martinho da Vila, ao fazer o CD Você Não me Pega, buscou
fazer educação para as crianças de todo o país. Afirma ele que aproveitou para “falar das afirmações
todas da cultura brasileira e de nossos valores. O disco tem samba, xaxado, baião, coco e umas canções
que hoje ficam difíceis de se definir”.
O CD é dedicado ao Preto, filho do casamento de Martinho com Cléo, sendo que Preto Ferreira é o
nome da primeira faixa, interpretada por Martinho, com o choro do Preto e a participação de filhos e netos.
A letra é um verdadeiro primor, citando uma tradição africana de apresentar a criança à lua para que
ela ajude a criar, com sua força, com sua energia cósmica:

Preto Ferreira
(Martinho da Vila)

Luar, luar
Pega a criança e ajuda a criar
Meu compadre
O pretinho tá nadando
Na barriga da comadre
Quando a bolsa se romper Vai sair esperneando
Chorando, fazendo careta
Mas seu choro é pra dizer
Que a gente tem que comer
E o seu primeiro prazer
Mamar na teta

Quando o Preto crescer
Que será que ele vai ser
Será que ele vai ser ator ou atleta?
Depois de aprender a andar
Vai ter muito que estudar e o nosso Preto menino
É quem vai saber fazer e escolher
Seu destino, sua via
É, lua cheia
É, estrela guia

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Poderá ser professor
Maestro, compositor
Diplomata, senador obstetra, sacerdote jornalista, dentista talvez psicanalista
ou um belo ritmista É o que me prenuncia sua estrela alvissareira
Foi gerado com amor
Tem no nome a bela cor BIS
Preto Liscano Ferreira

Segundo Martinho, o Rildo Hora trazia as músicas inteiras, ou o embrião, e ele completava. Num dado
momento, porém, pediu para fazer o inverso: entregar a letra para ser musicada, pois havia pensado no
problema dos filhos de pais separados e na dificuldade de eles entenderem as novas relações. Daí surgiu
Materno e paterno amor, que o Rildo musicou magnificamente e que serve como excelente base para
discussão em escolas e lares, sobre esta situação tão delicada e tão presente na vida de inúmeras
famílias brasileiras:

Materno e Paterno Amor


(Martinho e Rildo)

Gosto do papai
Gosto da mamãe
Separadamente
Não estão mais juntos
Mas são bons amigos e muito me amam
Tenho namorado e a mamãe também
Meu pai casou de novo
E a mamãe talvez
Padrasto e madrasta vão fazer felizes Mamãe e papai
Quando eu crescer
Quero me casar
Mas tem que ser pra sempre
Quero que meus filhos
Tenham pai e mãe
Permanentemente
Se assim não for
Terei feito tudo
Para que eles soubessem
Que o amor paterno E o materno amor
Sempre permanecem

Você Não me Pega situa toda a necessidade de guardarmos a criança que existe dentro de nós, bem
como nossas recordações de infância, nossa vida em família e nossos valores culturais. Através das
letras de Martinho e das melodias de Rildo Hora, percorremos um Brasil real, falamos de coisas sérias e
conversamos com as crianças sobre tudo, desde sua concepção e nascimento, até suas preocupações
com a família brasileira, como constatamos em músicas como Menino perguntador; Anda, Sai Dessa
Cama; Tá Com Medo: Chama o Pai; Menina de Rua e muitas outras. Destaca-se em Menina de Rua a
interpretação magnífica de Martinália e a excelência da letra de Martinho, que permite reflexões sobre a
vida familiar, sua relevância e os problemas dos que não possuem um lar:

Menina de Rua
(Martinho e Rildo)

Diz menina, o que aconteceu


O meu pai se mandou de casa e a mãe desapareceu
Vendo bala, pipoca e amendoim pra sobreviver pra viver
As marquises são o meu teto E as ruas a minha escola
Os adultos maltratam a gente e tudo é tão ruim tão ruim
Diz menina, quem é você?
Sou criança mas tenho sonhos lindos e vou crescer
quando grande eu vou querer cuidar dos iguais a mim

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Diz menina, o que já sofreu
Passei fome e também fui agredida
Mas eu não tenho medo de falecer
Pois sonhei que no céu tem uma cidade só pra crianças como eu
Lá a gente almoça, janta e dorme de cobertor
Professores nos dão amor
Não se teme o anoitecer tem duendes pra proteger
anjos bons chegam de manhã
Diz menina como acordou Acordei querendo morrer

A música que dá título ao disco, Você não me Pega, é interpretada por Bia Bedran e revive todo um
cenário das brincadeiras de roda tipicamente brasileiras, que estão se perdendo no atual dia-a-dia, que
limita as crianças a uma telinha de televisão e/ou aos vídeo-games:

Você não me Pega


(Rildo e Martinho)

Ontem eu sonhei
Que éramos crianças
E a gente brincava muito
A gente sorria
A gente corria
Na brincadeira de pique
Você não me pega Feridor sou rei
Gude no triângulo ou no Zepelin
Búlica no chão
Jogo de botão
Bafo-bafo, figurinha
Chicote queimado
Mandraque parado
Pulos amarelinha
Você não me pega
Feridor sou rei
Pulando carniça ou no garrafão
Eu queria era soltar pipa
E também rodar o meu pião
Mas a gente não tem mais espaço
Play não dá pra jogar bola
Prá brincar de polícia e bandido
Peço por favor que não me chame
Cabra cega é quebra-cabeça
Ao montar nosso autorama
Bom seria é ler historinhas
Mas você não larga o vídeo-game

Conversar com as crianças sobre as brincadeiras que desconhecem e praticá-las na escola é uma boa
forma de manter as tradições e mergulhar na cultura do povo brasileiro.

A linguagem do corpo
Através das danças rituais as mulheres incorporam a força cósmica, criando possibilidades de
realização e mudança, fazendo de seu corpo um território livre, próprio do ritmo, liberto de correntes.
Roger Caillois e Michel Maffesoli estudaram a categoria do sagrado e do profano e suas implicações
com o imaginário social do povo. Algumas considerações sobre o assunto aparecem no livro Mito e
Espiritualidade: Mulheres Negras, de Helena Theodoro (1996), que trata exatamente da especificidade
do ser humano ao fazer as coisas diferentes de cultura para cultura, e de crença para crença. Isto é muito
complexo, já que é uma outra tradição e nós podemos encontrar uma mesma raiz para tradução, tradição
e traição.
Sendo assim, a tradição de cada povo, como a língua de cada povo, está diretamente ligada ao seu
real, está ligada àquela possibilidade que cada um tem de ver o mundo, de lidar com o cotidiano, de sentir

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emoção, e que tem uma maneira muito própria de ser, já que nos faz ser igual a todo mundo e ser, ao
mesmo tempo, diferente.
Na tradição nagô a relação dos orixás Odudua/Obatalá não é simplesmente uma relação de
acasalamento. Eles representam a Igbadu (a cabaça da existência), que seria a forma de se viver no
grupo. Esta relação, então, vai muito mais longe. Há um princípio de completude do outro, de que a vida
se constrói de mãos dadas (princípio feminino + princípio masculino) e cada um de nós, à medida que
estabelece esta relação, estabelece um elo mais completo com as coisas que estão à volta. Significa todo
um processo de equilíbrio e de harmonia, determinado por Deus (Olorum).
Para se entender bem esta relação, quero situar as mulheres do ritual gélèdès, que representam o
culto às Iyá-mi, as grandes mães ancestrais.
Odudua simboliza a grande representante do princípio feminino, sendo o elemento responsável por
todo o poder criador, pelo poder das mulheres, liderando o movimento das Iyá-mi, segundo os mitos, o
movimento das grandes mães ancestrais. Obatalá representa o poder masculino, o poder de dinastia, de
realeza, de manutenção dos valores da sociedade.
Na Sociedade Gélèdès da Nigéria, temos um ritual de mulheres vestindo panos coloridos, sendo que
os diferentes panos mostram as diferentes procedências, as diferentes raízes que as pessoas podem ter
na maternidade. A máscara Gélèdès, que cobre a cabeça da mulher, vai representar o que o Roger
Caillois chama de mistério, de maravilhoso, dentro da cultura negra, simbolizando a grande mãe natureza.
O corpo de uma mulher sentada ou de pernas dobradas simboliza proteção e espiritualidade da história
de um povo: é a identidade da mulher que guarda o presente e o futuro. A mulher é a política, por
conseguir resolver os problemas sem violência, e a mulher é o cotidiano, por manter as rotinas e os rituais
familiares.
Em todos os lugares a mulher está presente. As máscaras têm grande importância na vida religiosa,
social e política da comunidade, mostrando diferentes categorias de mulher:
- Mulher secreta – ligada ao divino, serve como passagem e receptáculo do sagrado no mundo dos
vivos, por gerar frutos.
- Mulher símbolo político – não usa violência para resolver as questões, aglutinando as pessoas,
vivendo o cotidiano.
- Mulher sagrada – símbolo de todos os tempos, pois está voltada para o futuro, sempre vulnerável e
frágil, mas é aquela que abre o céu (orum) e deixa lugar para a mudança, para a transformação, o futuro.

As mulheres cantam, rezam e dançam, mostrando sua integração com o cosmos, já que a terra está
em movimento, o universo está em movimento e eu só conseguirei estar em sintonia com o universo
através do movimento.

Considerações finais
A pedagogia de base africana é iniciática, o que implica participação efetiva, plena de emoção, onde
há espaço para cantar, dançar, comer e partilhar. Reverenciam-se os mais velhos, que têm mais axé
(força de vida), o que se traduz como mais sabedoria. Nas culturas negras os mais velhos são sempre os
esteios da comunidade, tendo um papel fundamental para as decisões e desenvolvimento do grupo. Da
mesma forma, crianças e jovens têm suas obrigações, já que se encara a vida como um jogo simbólico,
onde o crescimento só se dá na dimensão de luta, de desafio ou de enfrentamento das dificuldades que
sempre aparecem e continuarão aparecendo ao longo da vida. Buscar celebrar a vida em toda a sua
plenitude é uma ideologia, uma maneira de ver o mundo como transformação constante e como fonte
inesgotável de prazer e criatividade, deixando de ser apenas a relação capital/trabalho, que gera dinheiro.
Nesta cultura se busca acumular pessoas, criar laços e alicerçar amizades!
Os mitos sobre os orixás, as histórias sobre valores da comunidade, envolvendo animais, crianças e
adultos, bem como os toques de atabaques, baterias de escolas de samba, o bumba-meu-boi , os blocos
afros, o frevo, a congada e muitas outras formas de festejos e danças, revelam força de vida, contam
como são os orixás – nossa essência mais profunda – falando dos heróis da comunidade, ensinando
amizade, perdão, responsabilidade e dando identidade cultural a todo um grupo de brasileiros, que só
aprendeu a ter vergonha de suas raízes. Só através de uma releitura dos elementos que compõem as
culturas negras no Brasil é que poderemos tentar um meio, um aprofundamento pedagógico, que nos
encaminhe para uma pedagogia genuinamente brasileira, capaz de resgatar para todos os brasileiros
uma cultura nossa, considerada até agora marginal, mas que responde pela identidade cultural do país,
estando presente em todos os setores da sociedade. Repensar o Brasil é mergulhar em suas raízes e
buscar os valores e fundamentos de uma cultura milenar, que se preocupa com a realização e felicidade
das pessoas.

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PERSONAGENS NEGROS:
UM BREVE PERFIL NA LITERATURA INFANTO- JUVENIL

Heloisa Pires Lima


Bacharel em Psicologia pela PUC.
Mestrado em Antropologia Social pela USP.

A Literatura infanto-juvenil apresenta-se como filão de uma linguagem a ser conhecida, pois nela
reconhecemos um lugar favorável ao desenvolvimento do conhecimento social e à construção de
conceitos. A psicanálise folheou as ingênuas obras e nos contou uma história de profundos conflitos
psíquicos, relacionando personagens a chaves emocionais, como abandono, perda, competitividade,
autonomia, etc., que auxiliariam na ordenação da caótica vida interna da criança em formação. Para além
de uma função, a terapêutica, as narrativas voltadas para um leitor jovem apresentam o dinamismo das
diferentes culturas humanas e o que imaginamos ser um espaço de significações, aberto às emoções, ao
sonho e à imaginação.
Mas, afinal de contas, o que é uma literatura infanto-juvenil? Enquanto tradição ocidental, esse tipo de
livro surge como material auxiliar para educadores e adquire formato singular. Com a tríade livros
pequenos / leitores crianças / personagens adaptados para a infância trabalham-se ideias, conceitos e
emoções. Na clássica expressão de Jaqueline Held dedicada aos estudos sobre esse campo, “é a
passagem do mundo da leitura para a leitura do mundo”.
Toda obra literária, porém, transmite mensagens não apenas através do texto escrito. As imagens
ilustradas também constroem enredos e cristalizam as percepções sobre aquele mundo imaginado. Se
examinadas como conjunto, revelam expressões culturais de uma sociedade. A cultura informa através
de seus arranjos simbólicos, valores e crenças que orientam as percepções de mundo. E se pensarmos
nesse universo literário, imaginado pela criação humana, como um espelho onde me reconheço através
dos personagens, ambientes, sensações? Nesse processo, eu gosto e desgosto de uns e outros e formo
opiniões a respeito daquele ambiente ou daquele tipo de pessoa ou sentimento.
Mas, quem escreve ou desenha a obra? Descolando o autor do ilustrador, a obra da editora, podemos
observar melhor a conexão dê um sistema de crenças e valores que se reconstrói através das imagens.
Nessa dimensão, a literatura é, portanto, um espaço não apenas de representação neutra, mas de
enredos e lógicas, onde “ao me representar eu me crio, e ao me criar eu me repito”. E se verticalizarmos,
nesse contexto, o tema das relações raciais no Brasil, o livro infanto-juvenil torna-se um documento
importante para uma análise. Por ele, avista-se a rearticulação de ideologias, através de estratégias
específicas. Portanto, nosso olhar procura nesse artigo enredar algumas das tipologias negras
encontradas na literatura infanto-juvenil e incorpora, nessa reflexão, o aspecto das relações raciais nesse
mundo dos livros.
Nesse roteiro propõe-se também a atenção sobre um estreitamente entre imaginário e condições
materiais de existência da população negra, ou seja, a imagem negra seria representação ou realidade?
O modelo representado interfere na realidade, limita percepções, retifica dominações?
O quadro de análise esboça alguns critérios como treino de observação: a construção ideológica do
corpo dos personagens, vestimentas, hierarquias frente aos demais personagens não negros, fala,
religião, concepções de civilização envolvidas, raciologias, associações encontradas com a África,
tratamentos nessas associações, o grotesco, a sexualidade, etc. A imagem age como instrumento de
dominação real através de códigos embutidos em enredos racialistas, comumente extensões das
representações das populações colonizadas. A representação popular do outro racial pela mídia também
sugere uma investigação, como fantasias coletivas que ajudam na manutenção de identidades
dominantes, construtoras de sentimentos que acabam por fundamentar as relações sociais reais.

Os invisíveis
Entre numa livraria, na biblioteca da escola, numa bienal do livro, ou se aproxime da estante de livros
de sua casa. Agora, separe os que possuem personagens negros. Ou, então, procure lembrar, nos
livrinhos de sua infância, as figuras negras presentes nesse repertório.
Eu propus esse exercício muitas vezes para várias pessoas que geralmente não encontravam, nem
lembravam de nenhum ou de muito poucos, e mais raro ainda como protagonistas. A primeira sensação
era a de não existirem, de nunca aparecerem nas aventuras, nas histórias de amor, nas de suspense, no
mundo das princesas, dos heróis e das turmas desses enredos. Enfim, não eram visíveis nesses
repertórios comuns.
O assunto despertou cada vez mais meu interesse e com tantas investigações que realizei por conta
própria, fui descobrindo um e outro personagem aqui, mais algum acolá, o que resultou numa biblioteca
particular com obras das mais diferentes épocas e países que produziram imagens negras para crianças.

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Bem, e assim, desse montão, separei a produção mais contemporânea e urbana como exemplo de uma
das séries que encontrei nesse leque.
A primeira descoberta é que a presença negra não é tão invisível assim nessa produção brasileira.
Eles aparecem, no entanto, numa gama muito restrita de associações. Vamos examinar alguns dos
enredos de que participam comumente.

Escravizados como escravos


Geralmente, quando personagens negros entram nas histórias aparecem vinculados à escravidão. As
abordagens naturalizam o sofrimento e reforçam a associação com a dor. As histórias tristes são
mantenedoras da marca da condição de inferiorizados pela qual a humanidade negra passou. Cristalizar
a imagem do estado de escravo torna-se uma das formas mais eficazes de violência simbólica. Reproduzi-
la intensamente marca, numa única referência, toda a população negra, naturalizando-se, assim, uma
inferiorização datada. A eficácia dessa mensagem, especialmente na formatação brasileira, parece
auxiliar no prolongamento de uma dominação social real. O modelo repetido marca a população como
perdedora e atrapalha uma ampliação dos papéis sociais pela proximidade com essa caracterização, que
embrulha noções de atraso.
O problema não está em contar histórias de escravos, mas na abordagem do tema. Geralmente, a
queixa de crianças negras se sentirem constrangidas frente ao espelho de uma degradação histórica nos
alerta que o mesmo mecanismo ensina para a não negra uma superioridade. A narrativa visual, mais
contundentemente, apresenta uma dominação unilateral, onde o domínio dos que escravizaram parece
total em narrativas sentimentais – diferentemente do modelo americano na sua fase politicamente correta,
por exemplo, onde os personagens negros escravizados discutem explicitamente direitos civis. Juntando-
se a isso o silêncio brasileiro na reflexão sobre o tema do racismo na sala de aula, e os chavões de
preconceituosidades difundidos por uma historiografia pouco questionada, temos um resultado que
aponta para a não aceitação ou a negação da própria imagem. Todas as crianças acabam depreciando
essa identidade em formação. A história da escravidão real e trágica teve nos seus agentes – homens,
mulheres e crianças – que lidaram na condição de escravizados, não só a luta contra a sujeição, mas
pela recuperação da condição humana. O ponto nevrálgico está em esta ser a quase única imagem
apresentada para se reconhecerem. A restrição impede as demais escalas de identificação. Continua-se,
assim, a marcá-los com o drama da condição. Povos que passam por situações de dor intensas na sua
história coletiva podem entrar em contato com o sofrimento se existem outras e melhores referências que
os auxiliem nessa superação. Então, essa memória pode ser trazida porque existem outras que a
compensem.
Ao passarmos para o exame das imagens, devo ressaltar que a crítica não instaura uma ação de caça
às bruxas, condenando autores e ilustradores dessa produção. Mesmo porque cada texto expressa um
momento do autor e cada título pode ter várias versões que podemos relacionar com o contexto maior.
Algumas dessas histórias são bem construídas ou até inovam por darem visibilidade aos nossos
personagens negros. Porém, salientamos a importância de nos reportarmos aos casos, como estudos
que auxiliem nossa percepção sobre as crenças e valores embutidos na nossa cultura literária a respeito
da população negra.

CONSTRUINDO A AUTO-ESTIMA DA CRIANÇA NEGRA

Inaldete Pinheiro de Andrade


Educadora do Centro Solano Trindade.
Mestre em Serviço Social.

Na véspera de iniciar a produção deste texto, acordei após um sonho que, acordada, eu vivo sonhando:
eu montava uma biblioteca em comunidades pobres, abria as suas portas, muitas crianças vinham visitá-
la e eu lhes apresentava a seção de literatura infanto-juvenil. Elas ficavam fascinadas e deliciavam-se
com cada livro às mãos. Algumas, entre elas, iniciavam a alfabetização lendo aqueles livros. Acordei com
uma sensação de plenitude e, mantendo os olhos fechados, alimentava o sonho e convocava mais gente
para viajar nesta possibilidade.

O passado
Eu sou da geração da história de Trancoso: as mulheres mais velhas contando as histórias e a
criançada em volta delas, corações palpitando para ouvir o “Era uma vez...”; era mais uma história
iniciada. Lembro da Moura Torta, a velha invejosa; a Gata Borralheira e a madrasta (a fama que ficou
para as madrastas não é das melhores); a menina que foi enterrada viva e os seus cabelos

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transformaram-se em capim que cresceu no quintal, denunciando a maldade do pai, o agressor. Eram
muitas histórias e noutras noites pedíamos bis, não nos cansávamos, nem as mulheres contadoras:
mamãe, Baía, a velha parteira e outras vizinhas que gozavam de lugar cativo nas noites em volta da mesa
no terreiro, extensão da casa. Depois, o tempo dos livros; agora, já vinham como presente e a leitura era
da minha responsabilidade. O fascínio de ouvir as histórias não fora perdido com as demais leituras, que
foram incorporadas às atividades do meu cotidiano.

O presente
Hoje, já não há a roda em volta da mesa e o terreiro como extensão casa; só os terreiros religiosos,
que continuam agregando a família negra, multiplicando-se em várias famílias, pais e mães-de-santo,
filhos e filhas em lugares diversos.
O “em volta da mesa” foi lentamente substituído pela televisão e outras histórias foram introduzidas no
cotidiano das crianças, com o plágio de fadas no ar ao vivo por três a quatro horas consecutivas,
diariamente, com músicas, desenhos animados e brincadeiras distantes do ambiente da maioria das
crianças brasileiras- Uma amostra perversa para a construção de referência deste segmento.
O livro infantil passou a ser um recurso de confronto com a televisão, competição desigual dentro de
uma arena onde poucas pessoas sabem e gostam de ler. Algumas escolas particulares passaram a
introduzir a literatura infantil na disciplina de Português, como leitura obrigatória de um livro por unidade,
sendo que nas escolas públicas, na minha experiência, a existência desses livros nas prateleiras da
biblioteca nunca fora indicada ao menos por unidade. Para quem tem estímulo da leitura a obrigação é
transformada em prazer e o hábito pode tornar-se uma prática efetiva (conheço uma professora que está
alfabetizando a turma com a leitura de histórias infantis, numa escola pública de Pernambuco. Quando,
por alguma razão, a professora não encaminha a turma para a biblioteca, há quem reclame).
O prazer da leitura acompanhou-me da infância ao presente e com ela a literatura infanto-juvenil.
Diante do que falei acima, a militância no Movimento Negro direcionou-me a utilizá-la como instrumento
de identificação das relações raciais no Brasil. Defino: literatura infanto-juvenil, a literatura feita por
pessoas adultas para crianças e jovens. É uma arte que povoa a imaginação, e por isso, tem o seu espaço
na formação da mente plástica do ser que a ela tem acesso.
Para fundamentar o conhecimento das relações raciais na produção da literatura infanto-juvenil
brasileira, realizei uma pesquisa dos livros dessa área que chegavam às livrarias do Recife entre os anos
de 82 a 84. Deveria apreender o lugar que ocupava a personagem negra incluída naquelas histórias. A
seleção consistia no livro cujo título, conteúdo e/ou ilustração, fazia referência a este sujeito. Com este
propósito adquiri 80 volumes, uma amostra que incluiu autores e autoras com mais de uma publicação, o
que, aliás, colaborou para avaliar com mais segurança a sua participação neste recorte. Na análise, fui
inclinada a fazer diferenças entre os livros recomendáveis e os que acrescentam os estereótipos
disseminados na sociedade, com conteúdo explicitamente racista.

Oficina de literatura infanto-juvenil


Os livros que reforçavam a imagem do povo negro passaram a fazer parte da Oficina de Leitura, onde
desenvolvi, em 1987, uma metodologia de resgate de identidade racial feita principalmente para crianças
e/ou jovens nas áreas periféricas do Recife, nas escolas ou locais comunitários, após contatos com suas
lideranças ou por solicitação das mesmas. Não é preciso lembrar que a maioria desta população é
afrodescendente. A exceção foi quando lancei dois textos meus, realizando as Oficinas em escolas
particulares, onde a quase totalidade da turma era de origem branca, com uma ou três crianças de origem
negra nas salas de aula. A metodologia exige escolher a obra de acordo com a faixa etária e nível de
leitura do grupo. Pede para se fazer a leitura individual ou coletiva, de acordo com a disposição do grupo
ou do(a) facilitador(a). Finda a leitura, faz-se a análise, estimulando a expressão da turma que pode ser
oral ou em desenho, dependendo de como a pessoa ou grupo queira expressar-se (vivi a ocasião em que
o silêncio foi a forma de interpretação de algumas pessoas). Nas interpretações é possível apreender a
manifestação da identidade racial, problema do grupo participante. Feita a exposição, fazem-se as
observações necessárias, situando o presente para projetar o futuro com o estímulo à promoção da
autoestima da criançada.

Memória, identidade e referência


Para apoiar a metodologia, recorri ao conceito de memória como o órgão que armazena as
experiências positivas e negativas e “que formam o patrimônio cultural de cada pessoa” A memória, vinda
das experiências com a escola, a igreja, os meios de comunicação, com as expressões orais – piadas,
música, anedotas, vaias etc. – mantém em evidência uma clara referência ao passado escravo vivido pela
ancestralidade negra no Brasil. A introjeção desse passado fragmenta negativamente a identidade da

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criança negra quando ela quer “reconhecer-se no passado e imaginar-se no futuro”. Distante define a
identidade de uma pessoa como a consciência de que o seu modo de ser, de viver e de falar seja
semelhante ou até mesmo possa identificar-se com o modo de ser, de viver e de falar de um determinado
povo ou de uma determinada comunidade ou tribo. Juntar os fragmentos da memória constitui o processo
de identidade de uma pessoa.
Pergunto: que orgulho tem a criança negra quando busca na memória a história do seu povo? Qual o
papel do seu povo na história do Brasil? Como a família que coleciona a mesma memória administra as
inquietações – ou o silêncio – dessa criança?
É a ausência de referência positiva na vida da criança e da família, no livro didático e nos demais
espaços mencionados que esgarça os fragmentos de identidade da criança negra, que muitas vezes
chega à fase adulta com total rejeição à sua origem racial, trazendo-lhe prejuízo à sua vida cotidiana.
Referências, segundo Distante, são pontos claros no próprio passado. Se a pessoa acumula na sua
memória as referências positivas do seu povo, é natural que venha à tona o sentimento de pertencimento
como reforço à sua identidade racial. O contrário é fácil de acontecer, se se alimenta uma memória pouco
construtiva para sua humanidade. É a última experiência que a militância do Movimento Negro depõe ao
assumir o novo status – o status de pertencer ao povo negro – e o mesmo depoimento tenho encontrado
na maioria das crianças ou jovens nas Oficinas de Autoestima, que também chamo de Identidade Racial.
Para refazer o presente – a identidade – a Oficina leva ao caminho de volta – a memória – aproveitando
ou estimulando no prazer da leitura e, através dessa, a construção da autoestima. É tentar refazer a
história individual na história coletiva então desprovida, na maioria das vezes, de referências encobertas
na memória. Positivar o lado negro de cada criança, positivar o passado escravo, através das histórias
de resistências ou de simples amostras de ilustrações de personagens negras. Nisto consiste a Oficina
de Identidade Racial.

As parcerias
Considerável número de escritores e escritoras têm contribuído para a dinâmica dessa Oficina,
inclusive com textos adequados para os diversos níveis de leitura. São: Ana Maria Machado, a maior
colaboradora; Joel Rufino dos Santos, Ruth Rocha, Alaíde Lisboa de Oliveira, Giselda Laporta Nicolelis,
Mirna Pinsky, Isa Silveira Leal, Margarida Ottoni, Ronaldo Simãos Coelho, Lúcia Pimentel Góes, Tenê e
Rogério Andrade Barbosa. São livros com 8 a 16 páginas que cobrem um horário regular de aula. Para
jovens com desenvoltura na leitura indico os livros de Júlio José Chiavenato, Lourenço Cazarré, Barioni
Ortêncio, Lúcia Ramos, Lucília Junqueira de Almeida Prado, Renato Pallottini, Jair Vitória, Luiz Galdino,
além de outros livros dos escritores e das escritoras acima com a mesma temática. São livros para serem
lidos em casa, dado o maior número de páginas que contêm. Estas parcerias têm sido presença constante
nesta prática, pela seriedade com que incluíram a questão negra no seu discurso. É bem possível que eu
tenha omitido o nome de alguém que compartilha desta literatura, por falta de conhecimento.

Outros temas dentro da literatura infanto-juvenil


Outros temas podem também ser discutidos com a mesma metodologia, como a questão indígena, a
ecologia, o gênero, a sexualidade. A oferta do material produzido atende às minhas necessidades de
facilitadora da Oficina, é só passar um tempo nas livrarias e/ou bibliotecas.
Nesta altura o sonho real continua. Tenho trocado tal experiência com outras pessoas que já
multiplicaram-na além da região metropolitana do Recife.
Uma liderança de uma das Comunidades Negras Rurais disse que, quando se olhava, olhava o povo
onde ela nasceu e vive, tinha um sentimento tão estranho de anonimato que ela não sabe e não pode
expressar, ainda hoje, tamanho era o vazio existente. Ela não tinha nenhuma ponte que a ligasse ao
passado. Não tinha memória, não tinha identidade, avalia. No momento em que ela, junto com dois ou
três companheiros, pegaram um fio da meada, a volta foi fantástica; atravessaram a ponte e tudo
reconstituiu-se. Hoje ela e muitos outros e muitas outras sabem de onde vieram e sabem para onde vão.
A história de vida agora é outra. Hoje lá se fala “o meu povo”.
Visitando as Comunidades Negras Rurais do Estado, ouvi pontos de identificação em que, com um
estímulo a mais, os fragmentos sedimentarão os processos de identidade racial, fundamental para que
cada população tome às mãos o comando do seu destino histórico no mundo. Continuarei com o sonho
da construção da biblioteca em cada lugar onde não existe uma.

Ao Professorado
A Oficina de Leitura apresentada não constitui uma receita para ser seguida à risca. A criatividade de
cada facilitador(a) pode movimentá-la como desejar. O termo facilitador(a) é próprio para a prática porque
a função é tornar fáceis as questões que as crianças encontram na discussão. Para isso, esta pessoa

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tem que ser ou estar livre dos estereótipos arraigados na sociedade brasileira e que corroem como
metástase o corpo da sua diversidade racial.
Uma Oficina não é suficiente para crianças brancas ou negras reconhecerem-se como seres
diferentes, com histórias diferentes, nem superiores nem inferiores. Uma Oficina é um momento de
reflexão que deve ser bem conduzida pelo(a) facilitador(a), de modo que as crianças saiam dela
fortalecidas – e não envergonhadas, brancas ou negras – para continuar uma convivência onde os
estereótipos consigam ser corrigidos e ambos os grupos vivam com mais saúde, livres do racismo, já que
o racismo destrói quem o manifesta e quem é vítima. Uma Oficina pode dar sequência a tantas outras,
quando convier. Mãos às obras, literalmente!
Eu estou acordada, terminando o texto e quero fazer deste sonho uma realidade, tão real quanto a
minha memória e a minha identidade.

AS ARTES E A DIVERSIDADE ÉTNICO-CULTURAL


NA ESCOLA BÁSICA

Maria José Lopes da Silva


Graduada em Letras pela UFRJ
Mestre em Linguística pela UFRJ

Trabalhando com a diversidade em artes, na escola fundamental


As normas estéticas variam muito de acordo com o lugar e a época. Por exemplo, na Europa Ocidental,
os ideais estéticos da Renascença eram muito diferentes das concepções estéticas de sociedades não
europeias da mesma época. Vê-se, então, que a linguagem artística só tem um caráter “universal” se
conhecemos os contextos histórico e sociocultural nos quais uma determinada obra foi produzida ou se,
pelo menos, estamos abertos para esquecer por algum tempo os critérios que aprendemos com os nossos
antepassados. Outra dificuldade é que não existe definição de arte que seja válida para todas as
sociedades. O que aqui é percebido como obra de arte, em outro lugar é percebido como um objeto
religioso e, dentro de uma mesma realidade, não é simples delimitar exatamente o que é arte e o que não
é. Onde a arte começa? O objeto puramente utilitário, cheio de elementos decorativos, não é uma obra
de arte?
Influenciado pelas esculturas e máscaras africanas que começavam a aparecer em alguns ateliês de
Paris, Pablo Picasso, expôs, em 1907, o quadro Les DemoiselIes dê Avignon, recorrendo à composição
das formas geométricas (o cubo, o quadrado, etc.) e à deformação plástica, principalmente dos rostos
das figuras. Estava lançado o Cubismo nas Artes Plásticas.
Os estudiosos atuais sustentam que a arte abstrata (representação da “ideia” que o artista tem do
objeto ou da pessoa) se encontra, há séculos, em toda a expressão da arte negro-africana: indumentária,
utensílios, mobiliário, habitação, máscaras, esculturas, pinturas, tatuagens, desenhos, tecidos,
artesanatos, etc. Em outras palavras, o que no Ocidente era considerado uma inovação artística, já era
produzido há centenas de anos pelos africanos, cuja arte, no entanto, continuava a ser vista pelos
europeus como “primitiva” e inferior.
Além de Picasso, artistas como Braque, Vlaminck, Derain e outros também “descobriram” e se
inspiraram na arte negro-africana. Assim, a Arte Moderna, que revolucionou a história das artes em todo
o mundo ocidental, tomou como modelo os valores, as formas plenas de significação e a criatividade
africanos.
Em termos do que tudo isso possa ter influenciado a arte brasileira, de acordo com o pesquisador e
ativista pelos direitos civis dos negros Abdias do Nascimento, desde o início, coincidente com a
colonização europeia do país, fabricam-se e se consomem no Brasil porções de conceitos racistas. E isto
enquanto os africanos produziam. Escravos procedentes do Golfo da Guiné se mostraram altamente
desenvolvidos em sua cultura, testemunhado pelos famosos bronzes de Benin (Nigéria) e de Ifé; aqueles
do Daomé (Benin), e outras partes nigerianas exibiam trabalhos de cobre de alto valor, e os Ashantis se
revelaram através da qualidade e beleza dos seus tecidos. Da Costa do Marfim, Daomé (Benin) e Nigéria,
vieram especialistas em madeira e trabalhos em metais, enquanto de Moçambique vieram artesãos de
ferro...

O próprio estudioso francês Roger Bastide, que durante alguns lecionou na USP, assim se pronunciou:
“a arte afro-brasileira é uma arte viva, não estereotipada. Mas na sua evolução até as últimas
transformações, ela vem preservando as estruturas tanto mentais como puramente estéticas da África”.
No entanto, nos dias atuais, o preconceito dominante ainda vê o artista negro brasileiro como “primitivo”
e “naïf” (ingênuo); é grande a barreira que o artista plástico negro encontra para impor-se no mercado
brasileiro.

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Cabe aos professores de Artes, então, uma cuidadosa reflexão sobre a forma de estabelecer a ponte
entre a cultura do educando e a cultura autodenominada “universal” (a cultura ocidental imposta). O aluno
já vem para a escola com um potencial criativo; a escola não precisa induzi-lo, sua função é trabalhá-lo.
Sabemos que o currículo do Ensino Fundamental se compõe de 8 ciclos. Então, é importante que no
1º e no 2º ciclos a aprendizagem seja expressamente lúdica e leve os alunos à descoberta e à construção
do seu saber.
Será, então, necessário legitimar os valores culturais dos diferentes grupos étnicos para que a
Educação Fundamental possa perceber toda a riqueza que o aluno traz.
Ao incluir, tanto nos Objetivos Gerais como nos conteúdos de cada CicIo, a sistematização dos
diferentes saberes e cosmovisões, os educadores estarão recusando as armadilhas ideológicas do
preconceito e do recalcamento.
Para tal, deve-se ter em mente as seguintes Orientações Gerais para a área de Arte, nos oito ciclos
da Escola Fundamental, o que inclui as modalidades artísticas específicas:
- Relativizar o conceito do “Belo” • Relativizar o conceito de “Arte”;
- Reconhecer a África como uma das matrizes legítimas da cultura humana, em geral, e da brasileira,
em particular, sem fazer referência apenas à permanência de algumas “marcas” restritas à esfera da
música, da dança, da comida, etc., e marcadas por seu “exotismo”.

Por outro lado, penso que haveria alguns Conteúdos relativos a Valores, Normas e Atitudes, também
propostos para serem trabalhados de primeira à oitava séries, em Artes, incluindo as formas artísticas
específicas:

- Percepção, por meio de diferentes modalidades artísticas, de que cada pessoa tem um corpo com
características fenotípicas diferentes;
- Valorização da própria identidade étnica e cultural e fortalecimento da autoestima;
- Identificação enquanto pessoa no grupo;
- Interiorização de uma postura despreconceituada em relação às diferentes cosmovisões e etnias;
- Desenvolvimento de uma dimensão específica do aspecto estético das culturas africanas e afro-
brasileiras;
- Reintegração do universo cultural, estético e simbólico das culturas africanas e afro-brasileiras no
contexto da ancestralidade brasileira.

TEATRO

Os traços do preconceito e da estratificação social sempre estiveram presentes no teatro brasileiro,


ocupando o negro sempre o papel de coadjuvante na cena nacional. O personagem negro no Brasil tem
sido confinado a abrir portas, a servir de caricatura do empregado doméstico e a sofrer o determinismo
de uma posição social que o confina a servidor.
Através do Teatro, em particular, o Brasil insiste em se expressar com padrões das estruturas
europeias, repetindo lugares comuns tais como: “o Teatro, como Arte, foi criado pelos gregos...”.
Entretanto, na África, existe remotamente um jogo teatral chamado irin ajo (da tradição iorubá),
destinado à distração e divertimento dos espectadores. É, de fato, um teatro ambulante concebido apenas
para divertir, e que remonta ao período pré-islâmico.
Outro exemplo é o drama ritual africano, que constitui o essencial da arte de representar tradicional
africana. Nele, o ator ou atores participam de uma representação dramática coletiva, cuja finalidade é
evocar os elos que unem os seres humanos à divindade. A máscara e a indumentária utilizadas funcionam
como acessórios teatrais que permitem ao ator “representar” o papel do ser divino ou do espírito invocado
durante o ritual. Os elementos artísticos (música, dança, drama, etc.) aparecem no contexto de um rito
sociocultural cujo objetivo não é a performance artística, mas que, apesar disto, diverte e tem beleza
plástica. Indiscutivelmente, o espectador usufrui de um prazer ao assistir ao “espetáculo”, sendo que o
elemento artístico está no papel que esse “espetáculo” desempenha, enquanto meio posto a serviço de
um objetivo que não é artístico.
Portanto, os elementos dramáticos das cerimônias rituais na sociedade tradicional africana não são
jamais apresentados fora do seu contexto original, não tendo, por sua vez, como objetivo principal divertir
ou distrair.
Ainda para ilustrar, temos os Reinados, Congos e Congadas de algumas regiões brasileiras. A ideia
de uma “memória” de fatos históricos nestes rituais é reforçada por Maria de Lourdes Borges Ribeiro, a
partir do testemunho, muito anterior, de Gustavo Barroso: “Gustavo Barroso não tem dúvida de que o

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auto dos congos rememora episódios das guerras afro-luso-flamengo brasileiras na África, durante a
segunda metade do século XVII”5.

Orientações Didáticas para Teatro: objetivos gerais, sugestões de conteúdos e atividades

Objetivos Gerais

- Resgatar a cultura afro-brasileira no sentido de reintegrar os educandos nos valores étnicos e sociais
da ancestralidade nacional;
- Levar o aluno a conhecer as concepções estéticas africanas;
- Levar o aluno oprimido a atuar conscientemente de modo a contribuir para a assunção da sua
cidadania;
- Facilitar a construção da identidade do aluno através de uma auto identificação positiva consigo
mesmo e com o patrimônio histórico-cultural brasileiro;
- Levar o aluno a reconhecer criticamente os estereótipos de representação étnica encontrados nas
Artes Cênicas, em geral, e no teatro brasileiro, em particular.

Sugestões de conteúdos e atividades


Voo através dos tempos; desenhos imaginativos; dramatização dos diferentes grupos étnicos que
contribuíram para a formação do povo brasileiro; sensibilização para conhecer as diferentes etnias
africanas (maneira de vestir, calçar, pentear; como carregam os filhos; hábitos; costumes; religiosidade,
etc.); o aluno conta a história do seu próprio nome, sua origem; o aluno será levado a entender porque
os negros perderam a identidade do nome; o aluno será levado a conhecer a história de outros nomes
significativos para a comunidade negra; desenhando o próprio nome; trabalhando plástica e gestualmente
o próprio nome, etc.; movimentos corporais dos mitos e lendas; brincadeiras e jogos de percepção,
levando a que os alunos se conheçam uns aos outros e respeitem suas características fenotípicas;
dramatização das pessoas que trabalham em casa, na escola, no bairro, observando as suas
características; levar o aluno a manifestar teatralmente a real História do Brasil – a que não é contada –
, bem como agressões vividas e vivenciadas; jogos dramáticos através dos quais o aluno exteriorize seus
sentimentos e observações pessoais; leituras dramatizadas; corais falados sobre os mais variados temas;
cantos; danças; pesquisa, elaboração e utilização de bonecos, máscaras, cenários, figurinos, adereços,
etc.; a importância dos elementos da natureza nas culturas de matriz africana; mitos; lendas; contos;
literalidade/ oralidade; improvisações livres e orientadas; textos criados pelos alunos; textos alheios sobre
a temática do negro; textos jornalísticos; ida ao teatro, ao circo, etc.; entrevistas com atores, artistas de
circo, etc.; articulação entre expressão corporal, expressão plástica e expressão sonora; os diversos tipos
de teatro aplicado à Educação: teatro de ruídos, sons e ritmos; teatro de mãos; teatro de máscara; teatro
de sombras; teatro de silhuetas; teatro de griôs; Teatro do Oprimido, etc.; trabalhar com autores que
escreveram e se preocuparam com a arte de fazer teatro para o negro: Teatro Experimental do Negro;
Teatro Popular Brasileiro; etc.

ARTES VISUAIS

As crianças pobres aprendem uma porção de coisas fora da escola. As crianças que moram na
periferia das grandes cidades e nas zonas rurais têm que aprender a se “virar” sozinhas mais cedo do
que as crianças de classe média, que vivem num ambiente mais protegido. Como não têm quem delas
se ocupe, as crianças pobres aprendem a cuidar de si mesmas e a resolver sozinhas os problemas que
forem aparecendo. Elas inventam brinquedos e jogos com muita imaginação e poucos recursos.
Aprendem a sobreviver na rua e começam, desde pequenas, a fazer “bicos” para ganhar a vida. Em suma,
elas vivem situações e enfrentam problemas que as crianças de classe média não conhecem.
Por isso, é importante que, ao se trabalhar os elementos estruturais – a linha, a forma e a cor – se
integrem todos esses elementos ao processo de vida do educando, dando-lhe condições de reviver a sua
cultura. É papel da escola fazer com que esta experiência de vida, isto é, o currículo do aluno, seja revivido
pela escola intensamente.
É de fundamental importância que, em qualquer série em que o aluno esteja, se valorize a sua
autoestima, ou seja, que o aluno construa. O educador deve estar atento no sentido de não trazer coisas
prontas para o educando, tirando, com isso, todo o seu potencial criativo.
Daí o papel das Artes Visuais no Ensino de 1º Grau, não desvinculando a vida ativa do aluno e a
escola.
Estética e Representação Étnica nas Artes Visuais A citação abaixo é bastante ilustrativa:

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[...] A tevê mantém esta programação [...] muito mais sofisticada, com mensagens muito mais
insinuantes, especializada em atuar nas entrelinhas. [...] Como surge o personagem ou o tema negro nas
mensagens veiculadas por esta programação? Em geral, os personagens negros expressam seres
socialmente subalternizados ou desqualificados, delinquentes, ridicularizados, risíveis, malandros,
promíscuos, imorais, primitivos, espetaculosos, bufões, ex-cativos, etc., vivendo situações ambíguas,
moralmente desaconselháveis, não sérias, exóticas [...] Todos esses ingredientes de representação
étnica são encontrados na tradição oral, na literatura de cordel, na literatura ficcional e até mesmo na
literatura científica e no livro didático. Deste ponto de vista, os modernos meios de comunicação de massa
não são nascedouro desta composição estereotipada. Seu papel consiste em captar, propagar e reforçar
toda uma representação nacional sobre o negro, com eficiência inigualável ...
Todos estes ingredientes de representação étnica são encontrados nas Artes Visuais como um todo,
e na mídia, em particular, exigindo que a Educação Fundamental intervenha seriamente para que tais
estereótipos não continuem a entrar na escola.

Estética e Culturas de Matrizes Africanas nas Artes Visuais


Como sabemos, foram trazidos para o Brasil e para as Américas, em geral, vários grupos étnicos
africanos, com filosofias diferenciadas, mas com uma grande identificação nas suas “visões de mundo”.
De acordo com a tradição africana, a atividade ritual é que engendra as demais atividades do grupo:
música, dança, cânticos, recitações, coreografias, arte, artesanato, cozinha, etc. No Brasil, devido às
necessidades do próprio culto, esses aspectos foram recriados justamente nos terreiros de Candomblé,
gerando, assim, intensa atividade artística.
O belo, na concepção africana, tem um valor utilitário, e não simplesmente estético. Os objetos têm
uma finalidade e uma função, que vão além da mera representação material. Do mesmo modo, na
escultura, as máscaras não são esculpidas para serem contempladas como obras de arte, mas para
serem usadas por ocasião de cerimônias rituais, sociais e religiosas.
A arte, nesta concepção, representa o transcendental, o sagrado. Um patuá, por exemplo, tem um
significado complexíssimo, muito além dos materiais que entraram na sua composição. Um estudioso ou
uma pessoa comum que olhasse um patuá com desprezo, pisando-o, chutando-o, ou jogando-o na lata
de lixo, por achar que “aquilo” “não vale nada”, na verdade, estaria cometendo um ato de ignorância.
Quantos séculos de conhecimento e sabedoria se estaria jogando fora por puro preconceito?
É lutando pela legitimação dos valores culturais do povo, que a escola poderá perceber toda a riqueza
e complexa simbologia que o aluno traz. Sistematizar toda a essência estética da nossa cultura é fugir
das armadilhas ideológicas do preconceito e do recalcamento.

Orientações didáticas para „artes visuais: objetivos gerais, sugestões de conteúdos e atividades

Objetivos Gerais
- Resgatar, por meio das Artes Visuais, a ancestralidade/atualidade cultural africana;
- Levar o aluno a conhecer as concepções estéticas africanas;
- Possibilitar ao aluno identificar-se como pessoa no grupo;
- Levar o aluno a reconhecer criticamente os estereótipos de representação étnica encontrados nas
Artes Visuais, na publicidade, e na mídia, em geral.

Sugestões de conteúdos e atividades


Jogos plásticos, levando os alunos a combinar de várias maneiras os objetos que lhes estão mais
próximos: cadernos, livros, lápis, caixas, latas, jornais, revistas, etc., favorecendo, assim, as condições
para que os mesmos vivenciem experiências, sem necessitar de materiais sofisticados; desenhos livres,
dando oportunidade aos alunos de se expressarem oralmente sobre eles; criação livre com vários
materiais como madeiras, folhas secas, capim, pedras, areia, água, barro, etc.; representação dos
elementos da natureza segundo a visão do aluno, sem esquemas pré-estabelecidos; desenho do seu
autorretrato; desenho do retrato dos colegas, familiares, etc.; massa de modelar; sucata; informar sobre
a origem africana de máscaras, esculturas, objetos, miçangas, colares e outros adornos, etc.; a origem
africana da arquitetura egípcia (as pirâmides); a habitação africana; o papel da pintura corporal e da
tatuagem na África; informações sobre a arte sacra realizada por artistas afro-brasileiros como: Francisco
Chagas (Igreja do Carmo, séc. XVIII), “Aleijadinho” (várias cidades de Minas Gerais), Sebastião Januário
(Dores de Guanhães, Minas), etc; narrativa da história pessoal do aluno; dramatizações; criação a partir
da reta, deixando o lápis bailar à vontade no papel; trabalhar com vários instrumentos de percussão,
levando os alunos a fazer várias construções plásticas com seus corpos; levar os alunos a conhecer a
arte africana: origem, modelos tradicionais; oficinas de modelagem, colagem, pintura de tecidos, pintura

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corporal, etc.; oficinas de gravura, escultura, histórias em quadrinhos; música e dramatizações rituais e
lúdicas; trazer fotos, objetos, vídeos, slides, etc., representando antepassados africanos para que os
alunos os recriem, construindo ornamentos, objetos utilitários; pesquisar como os negros aparecem
retratados na publicidade, no cinema, nas publicações, na televisão, etc.; organização de mostras e
exposições no espaço escolar; visitas orientadas a museus, ateliês, galerias, exposições, mostras de
vídeos; idas ao cinema; produção de vídeos; aproveitamento da informática: desenho industrial, desenho
animado; fala, escrita e outros registros sobre as questões trabalhadas na apreciação das imagens; etc.

MÚSICA

A técnica, a execução musical e o educando


O ensino da Música não poderia ser o resultado da observação da maneira de ser das nossas crianças
e da troca de ideias e experiências entre nossos professores? Pelo contrário, muitas vezes, músicos natos
são simplesmente travados por algum obstáculo psicológico fácil de eliminar. Com frequência, pode-se
paralisar uma faculdade, não apenas momentaneamente, mas também de forma duradoura. Os
professores são, muitas vezes, impotentes para ajudar os alunos a se desembaraçarem de seus
“entraves”, e acabam por rotulá-los de portadores de insuficiência congênita em determinada atividade.
É comum encontrar alunos que cantam afinado e têm um senso exato de ritmo. No entanto, desde o
momento em que se lhes ensina a tocar um instrumento, essas faculdades de ajustamento de entonação
e exatidão rítmica desaparecem completamente. A pretensa “falta de dom” muitas vezes é simplesmente
dificuldade de se familiarizarem com as condições do jogo instrumental. Tornam-se bruscamente rígidos
e desajeitados na presença um instrumento musical, cuja construção e estrutura lhes parecem no
irremediavelmente misteriosas e caóticas.
Achamos importante que a escola esteja atenta no sentido de fazer fluir o potencial no educando, e
que faça um trabalho voltado para a música, dando-lhe condições de tirar do seu próprio corpo o som, o
ritmo, a tonalidade, a intensidade, partindo para a instrumentalização de base: a percussão. Outros
instrumentos – sopro, corda, etc. –, deverão ser trabalhados à medida que os alunos mostrarem interesse.
Esse interesse até poderia surgir, quem sabe, se ele fosse estimulado a produzir o seu próprio instrumento
musical.

A Concepção Africana do Ritmo


Toda obra artística africana está impregnada de um ritmo que significa algo. Suas partes estão
ritmicamente articuladas umas às outras. Como afirma o poeta senegalês L. S. Senghor, o ritmo é para o
africano a pura expressão da energia vital. Para o africano o ritmo está na poesia, música e nos
movimentos da dança; nas linhas, cores, superfícies e formas, através da arquitetura, da pintura e da
escultura. É o que dá forma à palavra, o que a torna viva e eficaz, a ponto de ele acreditar: a palavra
rítmica divina criou o mundo. Na poesia, o ritmo aparece como uma arquitetura, uma fórmula matemática;
mas também a prosa é impulsionada pelo ritmo. Para o africano, a prosa não se distingue
fundamentalmente da poesia, que é apenas uma prosa mais forte e regularmente rítmica. O maior legado
em prosa que os africanos nos deixaram é a fábula e o conto.
Mais importante que o ritmo das palavras é o ritmo dos instrumentos de percussão. O som dos
tambores é linguagem: é a palavra dos antepassados, que falam através deles fixando os ritmos
fundamentais. Certos ritmos provocam uma qualidade específica de movimento e nível de energia, a
maior parte dos quais no esquema africano. Em outras palavras, eles atacam o sistema nervoso criando
respostas em diversas áreas do corpo: pés, região pélvica e pescoço, que envolve os ombros e a cabeça.
Os braços e as mãos geralmente acompanham as pernas e os pés, funcionando mais como um meio
decorativo. Já os ombros são utilizados como órgãos secundários de suporte. A presença dessas formas
rítmicas indica também a extensão de sua influência musical no mundo. A polirritmia africana, por
exemplo, foi determinante no estilo swing do jazz.
Os principais elementos da música africana são de caráter rítmico percussivo, coreográfico, místico-
religioso, vocal, lexical e humorístico. Esses elementos viriam a fazer parte direta da estrutura musical
brasileira, dando-lhe novas formas e características representativas. A manifestação mais antiga no
domínio do canto, que é a melopeia, revive no Brasil através dos gritos modulados para chamar o gado;
pregões dos vendedores ambulantes; cantos de trabalho antes denominados “vissungos”; cantos de
engenho, etc.

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Orientações didáticas para „músicas: objetivos gerais, sugestões de conteúdos e atividades

Objetivos gerais

- Valorizar a identidade do aluno;


- Despertar no aluno a sua sensibilidade criadora;
- Levar os alunos a construírem criativamente o seu próprio material;
- Levar os alunos a conhecerem outros grupos étnicos e culturais.
- Levar os alunos a resgatar o conhecimento das influência africanas na arte brasileira.

Sugestões de conteúdos e atividades

Percepção dos diferentes sons do corpo, do espaço, da natureza; aproveitamento das experiências
trazidas pelo aluno (entrevistas de modo a conhecer suas experiências de vida); conhecimento dos
instrumentos musicais de origem africana; desenhos, utilizando lápis cera, papel, massa de modelar,
farinha de trigo, etc.; aproveitamento de sucata (caixas de papel, latas diversas, arame, plásticos, etc.),
galhos de árvore, folhas (assobio), talos de mamona, bambu, etc.; teoria dos diferentes ritmos;
informações sobre os povos africanos; história da música dos diferentes povos africanos; o papel da
percussão na tradição religiosa afro-brasileira; utilização da capoeira para ambos os sexos; visitas a
museus; ida a shows, cinema; mostra de vídeos; organização de exposições e concursos musicais;
oficinas de construção de instrumentos musicais; pesquisa em discos, cds, vídeos, etc. de modo a
conhecer a música africana; entrevistas com compositores, cantores, bandas, pessoas ligadas à
Umbanda, ao Candomblé e à capoeira; informações sobre a influência africana na música popular
brasileira; informações sobre influências africanas na música contemporânea: samba, escolas-de-samba,
pagode, axé music, rap, funk, rock, jazz, charme, reggae, salsa, lambada, soul music, blues, rithm and
blues, etc.; o canto religioso (spiritual, gospel, ladainhas, canto para os orixás), os cantos de trabalho,
pregões; informações sobre a proposta política e cultural (justiça, igualdade social, dança, música) de
bandas afro-baianas como o Ilê Ayê, e afro-cariocas como a Afro-Reggae; quadrinhos, jogos musicais.

DANÇA

O corpo é ritmo, o espaço é movimento


O africano considera seu corpo sempre globalmente. Cada gesto é vivido como simples elemento de
uma expressão humana complexa que recorre ao mesmo tempo à palavra, à memória, à tradição, aos
sentidos, às reações viscerais... Assim, o gesto é sempre de grande significação. O africano considera o
seu meio ambiente um cenário vivo, impregnado de forças e símbolos. Como todos os povos do mundo,
os africanos também observaram que a força muscular e a habilidade manual são nitidamente maiores
do lado direito do corpo, devido a causas já descobertas pela anatomia e fisiologia modernas. Assim, o
eixo direita-esquerda é o eixo do poder e da fraqueza.
O corpo só está vivo enquanto animado por ritmos biológicos, variados, enquanto explora o espaço e
o tempo por gestos ritmados. Durante muitas luas, preso às costas da mãe, o recém-nascido continua
em contato carnal com ela, percebendo os ritmos que lhe eram familiares durante toda a gestação: música
da respiração, do coração e da palavra, movimentos do corpo durante a caminhada e as tarefas
domésticas, linguagem apaziguadora das canções de ninar. Mais tarde, em todas as idades, o ritmo irá
pontuar todas as atividades humanas, produtivas ou festivas.
A arte africana, e particularmente suas danças, suas músicas, suas máscaras e cimeiras de máscaras
criadas para a dança, encerram o seguinte sentido: a dança – e todas as artes que dela se originaram ou
a acompanham, do canto à escultura e à poesia – tem por objetivo captar a força viva cósmica e
transcendental que nasce dos esforços ritmados do grupo.
Como a máscara, a dança é um condensador de energia: ambas reúnem as forças esparsas da
natureza e da comunidade, de seus vivos e de seus mortos, e criam núcleos mais densos de realidade e
de energia. Um tal desígnio impõe ao dançarino ou ao escultor da máscara uma estilização do corpo,
uma extrema tensão das forças, para conservar apenas o essencial e expressar, em movimentos mais
poderosos e mais rítmicos que os do cotidiano, a participação da natureza cósmica e transcendental.

Assim, afirma-se e constitui-se a unidade do homem e de seu meio, do indivíduo e do grupo, do corpo
e do espírito. Não se trata de confundir a “arte-dança” com a religião, mas de saber e sentir que as origens
são as mesmas.

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A dança está presente em todas as atividades cotidianas do homem e da mulher africanos: na caça,
na pesca, no trato com a terra, nas cerimônias de casamento, de nascimento, nos rituais de passagem
da adolescência para a idade adulta, e até mesmo na morte.
A dança africana tem a mais variada gama de etnias, ritos, origens e conceitos. No Brasil, temos vários
legados das danças africanas, não apenas no Candomblé, no samba e na capoeira, mas também nos
vários ritos e práticas do cotidiano, como: expressões de angústia, sofrimento, recordações, ânsia de
liberdade, etc.
Nosso objetivo é incorporar tudo isto no currículo da Educação Fundamental. Para tanto, proponho a
cada escola um Programa de Dança e Música integrado.

Orientações didáticas para „dança‰: objetivos gerais, sugestões de conteúdos e atividades

Objetivos Gerais

- Resgatar, por meio da Dança, a ancestralidade/ atualidade cultural africana;


- Levar o aluno a conhecer as capacidades e os limites do seu corpo;
- Desenvolver os aspectos cognitivos, motores e a harmonia do corpo;
- Desenvolver o espírito coletivo dos educandos;
- Desenvolver a criatividade dos alunos.

Sugestões de conteúdos e atividades

Programa de Dança e Música integrado (ver sugestões em Música); trajetória histórica das dimensões
da dança, trazendo-as para o hoje; confecção de roupas adequadas às danças afro-brasileiras confecção
de materiais; informações sobre o papel do corpo no contexto tradicional africano; os eixos que dividem
o corpo humano em duas partes simétricas (vertical, frente-trás; esquerda, direita), movimentos gestos e
coreografias; ritmos técnicos (produtos, ferramentas), ritmos do canto, da dança e dos instrumentos
musicais; a silhueta do corpo articulação entre expressão corporal, expressão plástica e expressão
sonora; alujá, babassuê, baião, batuque, carimbó, caxambu, coco, congada, lundu, samba, taieiras,
xangô, tambor-de-mina, etc.; dança contemporâneas do universo cultural dos alunos; visitas a museus
mostra de vídeos; ida ao teatro; etc.

EDUCAÇÃO E RELAÇ›ES RACIAIS:


REFLETINDO SOBRE ALGUMAS ESTRATÉGIAS DE ATUAÇÃO

Nilma Lino Gomes


Professora Assistente do Departamento de Administração
Escolar da Faculdade de Educação da UFMG. Doutoranda em
Antropologia Social/USP

Gostaria de iniciar esse artigo relembrando um documentário muito interessante intitulado Olhos Azuis,
que vale a pena ser visto. Esse documento relata a experiência da Sra. Jane Eliot, professora e psicóloga
branca nos EUA, que organiza e desenvolve um workshop com pessoas de diferentes grupos
étnico/raciais para discutir sobre o racismo e seus desdobramentos.
Mas por que uma mulher branca nos EUA, poderia se interessar em desenvolver um trabalho como
esse? De acordo com o documentário, tudo começou quando essa professora ainda lecionava para
crianças numa cidade do interior. Um dia, ela se viu questionada pelos alunos sobre os motivos que
levaram ao assassinato do líder negro Martin Luther King, em 1968, nos EUA. A partir dessa curiosidade
das crianças a professora se viu diante de um desafio: como explicar uma questão tão complexa para
seus alunos? Que recursos ela poderia usar para tornar o assunto compreensível para aquelas crianças?
Ela se deu conta de que não havia recursos didáticos para explicar aos alunos o que era realmente o
racismo. Assim, a professora concluiu que só se as pessoas pudessem se colocar no lugar daqueles que
eram discriminados racialmente, é que elas poderiam compreender o que era o racismo. Então, ela teve
uma ideia: realizou com os seus alunos uma dinâmica de grupo em que, durante um dia letivo inteiro, as
crianças que tivessem olhos azuis, passariam por uma situação de discriminação. Elas deveriam ser
rejeitadas pelas outras devido à cor dos seus olhos. Ter olhos azuis seria, a partir daquele momento, um
atributo merecedor de desprezo. A escolha da cor dos olhos, uma característica do fenótipo (assim como
a cor da pele), foi a forma mais próxima de fazer as crianças se aproximarem do drama dos negros que
sofrem a discriminação racial devido a fatores históricos, culturais e também raciais. Nesse caso, a cor
da pele, o tipo de cabelo, o formato dos lábios, entre outras características que remetem à herança

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africana, são vistos pelo racista como marca de inferioridade. A dinâmica foi explicada e negociada
previamente com as crianças, que aceitaram a proposta. Então, durante esse dia, as crianças de olhos
azuis foram rejeitadas por seus colegas que não conversavam direito com elas, não as respeitavam, não
bebiam no mesmo bebedouro, em suma, as discriminavam. A professora acompanhou toda a experiência
e fotografou as crianças antes e depois do trabalho. Ao terminar a aula, a classe inteira se reuniu para
discutir sobre o que havia acontecido. Os alunos e as alunas falaram sobre o que sentiram,
principalmente, os de olhos azuis. Os sentimentos giravam em tomo de sensações como: impotência,
raiva, vontade de vingança, tristeza, ressentimento, inferioridade e incapacidade. A professora discutiu
com a turma sobre o que eles tinham achado do comportamento adotado pelos alunos que não tinham
olhos azuis. Ele fazia sentido? Unanimemente, a classe disse que não. Concluíram, a partir daquela
experiência, que não se deve julgar e maltratar as pessoas simplesmente porque nasceram com a cor
dos olhos diferente umas das outras. A cor dos olhos em nada interfere no caráter, na personalidade e
na capacidade das pessoas e nem deveria ser um critério para que alguns grupos humanos fossem
tratados de maneira desigual em relação aos outros. Após uma longa conversa com os alunos, analisando
cada fato acontecido durante aquele dia letivo, a professora pôde relacionar a dinâmica realizada com a
questão racial. Explicou para a classe o sistema escravista, o racismo e a situação dos negros norte-
americanos. Explicou, também, a atuação de Martin Luther King na luta pelos direitos civis, pela
superação do racismo e o tanto que ele e outros ativistas negros incomodavam a ordem racista que
imperava na sociedade norte-americana da época. Assim, ela também pôde explicar por que esse grande
líder negro havia sido assassinado.

Diferentemente do que se possa pensar, a ousadia e a coragem da professora não lhe renderam
louvores e reconhecimento por parte da escola e da comunidade. Logo que souberam do acontecido, os
pais se voltaram contra a educadora e retiraram as crianças da sala dela, pois não queriam os filhos
estudando com uma “amiga de negros”. A represália ainda foi maior. A comunidade desprezou os filhos
dessa mulher, boicotou o restaurante da sua família, a ponto de o estabelecimento ir à falência, fora outros
tipos de insultos. Tudo isso, ao invés de desanimar a referida professora só serviu para estimulá-la ainda
mais na luta contra a ignorância e a hostilidade do racismo, pois ela não queria, enquanto educadora,
continuar contribuindo para a formação de pessoas racistas. Assim, ela se enfronhou nas leituras sobre
as mais diferentes formas de racismo que existem no mundo, desde o nazismo, o fascismo, o Apartheid,
até os de tipo mais sutil. No decorrer dos anos, a sua dinâmica foi se aperfeiçoando e, hoje, uma de suas
atividades profissionais tem sido a realização de workshop e dinâmicas de grupo que possibilitem às
pessoas vivenciar “na pele” o que é o racismo. É muito interessante assistir ao documentário e à
realização do workshop. Os depoimentos dos negros, dos latinos e dos brancos que dele participam são
muito impressionantes. É muito interessante, também, ver as fotos das crianças com as quais essa
experiência se iniciou e ouvi-las hoje, depois de adultas. Nos seus depoimentos, os ex-alunos, agora
adultos, falam da importância dessa experiência na sua vida e que a partir de então, eles se construíram
como pessoas que tentam desenvolver uma relação de respeito com os negros e os outros segmentos
discriminados.
Não quero estimular ninguém a desenvolver esse projeto sem o mínimo de preparo, discernimento e
entendimento sobre o tema. Todavia, quando assisti ao filme, refleti sobre o quanto a discussão sobre a
questão racial está ligada a um terreno delicado: as nossas representações e os nossos valores sobre o
negro. O trabalho da professora norte-americana consiste em colocar as pessoas que se inscrevem no
seu workshop diante dos seus próprios valores raciais, levando-as a questioná-los, a partir do momento
em que se encontram numa situação de discriminação semelhante àquela vivida pelo outro, pelo
diferente. Essas pessoas, por algumas horas, são obrigadas a saírem do seu lugar, do seguro lugar
ocupado pelo “nós” para estarem no lugar do “outro”. E isso é muito complexo. Mexe com o que há de
mais íntimo nas pessoas e as questiona sobre o verdadeiro sentido dos seus valores, dos seus
julgamentos, dos seus preconceitos.
Penso que esse documentário deveria ser assistido pelos(as) professores(as). Apesar de se referir à
realidade dos EUA, ele toca em questões ligadas aos preconceitos, às representações sobre o negro e
às identidades, temáticas que a escola, hoje, está cada vez mais desafiada a enfrentar e a tratar
pedagogicamente.
Dessa forma, o documentário serve para aguçar as nossas reflexões sobre a realidade racial dos
negros no Brasil. Ele também pode nos ajudar a pensar o tratamento que a escola tem dado a essa
questão. Como será que nós, professores e professoras, temos trabalhado com a questão racial na
escola? Que atitudes tomamos frente às situações de discriminação racial no interior da escola e da sala
de aula? Até quando esperaremos uma situação drástica de conflito racial ou enfrentamento para

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respondermos a essas perguntas? Por que será que a questão racial ainda encontra tanta dificuldade
para entrar na escola e na formação do professorado brasileiro?

Ainda encontramos muitos(as) educadores(as) que pensam que discutir sobre relações raciais não é
tarefa da educação. É um dever dos militantes políticos, dos sociólogos e antropólogos. Tal argumento
demonstra uma total incompreensão sobre a formação histórica e cultural da sociedade brasileira. E,
ainda mais, essa afirmação traz de maneira implícita a ideia de que não é da competência da escola
discutir sobre temáticas que fazem parte do nosso complexo processo de formação humana. Demonstra,
também, a crença de que a função da escola está reduzida à transmissão dos conteúdos historicamente
acumulados, como se estes pudessem ser trabalhados de maneira desvinculada da realidade social
brasileira.

Não há como negar que a educação é um processo amplo e complexo de construção de saberes
culturais e sociais que fazem parte do acontecer humano. Porém, não é contraditório que tantos
educadores concordem com essa afirmação e, ao mesmo tempo, neguem o papel da escola no trato com
a diversidade étnico-racial? Como podemos pensar a escola brasileira, principalmente a pública,
descolada das relações raciais que fazem parte da construção histórica, cultural e social desse país? E
como podemos pensar as relações raciais fora do conjunto das relações sociais?
Para que a escola consiga avançar na relação entre saberes escolares/ realidade social/diversidade
étnico-cultural é preciso que os(as) educadores(as) compreendam que o processo educacional também
é formado por dimensões como a ética, as diferentes identidades, a diversidade, a sexualidade, a cultura,
as relações raciais, entre outras. E trabalhar com essas dimensões não significa transformá-las em
conteúdos escolares ou temas transversais, mas ter a sensibilidade para perceber como esses processos
constituintes da nossa formação humana se manifestam na nossa vida e no próprio cotidiano escolar.
Dessa maneira, poderemos construir coletivamente novas formas de convivência e de respeito entre
professores, alunos e comunidade. É preciso que a escola se conscientize cada vez mais de que ela
existe para atender a sociedade na qual está inserida e não aos órgãos governamentais ou aos desejos
dos educadores.
Contudo, não podemos generalizar e dizer que todos(as) os(as) educadores(as) sofrem de apatia e
passividade. Durante as palestras e debates de que tenho participado nos últimos anos, tenho notado
que, aos poucos, vem crescendo o número de educadores(as) que desejam dar um tratamento
pedagógico à questão racial. Esse movimento tem impulsionado a escola brasileira a pensar sobre a
necessidade de se criar estratégias de combate ao racismo na escola e de valorização da população
negra na educação.
Porém, antes de pensarmos em quais estratégias poderemos adotar, é importante que estejamos
atentos ao seguinte ponto: se todos nós estamos de acordo com a necessidade de se desenvolver
estratégias de combate ao racismo na escola (que é o objetivo desse livro), concordamos com o fato de
que o racismo existe na sociedade brasileira. E mais, concordamos que racismo está presente na escola
brasileira. Esse é um ponto importante porque rompe com a hipocrisia da nossa sociedade diante da
situação da população negra e mestiça desse país e exige um posicionamento dos(as) educadores(as).
Essa constatação também contribui para desmascarar a 1mbigüidade do racismo brasileiro que se
manifesta através do histórico movimento de afirmação/negação. No Brasil, o racismo ainda é
insistentemente negado no discurso do brasileiro, mas se mantém presente nos sistemas de valores que
regem o comportamento da nossa sociedade, expressando-se através das mais diversas práticas sociais.
E a escola? Ela manifesta essa ambiguidade? Sim, essa ambiguidade também pode ser vista no
discurso e na prática dos(as) professores(as). É preciso enfrentar essa questão. Como nos diz PEREIRA
(1996), ignorar essa ambiguidade não nos levará a lugar algum. É preciso combatê-la.
Uma melhor compreensão sobre o que é o racismo e seus desdobramentos poderia ser um dos
caminhos para se pensar estratégias de combate ao racismo na educação. Muitos professores ainda
pensam que o racismo se restringe à realidade dos EUA, ao nazismo de Hitler e ao extinto regime do
Apartheid na África do Sul. Esse tipo de argumento é muito usado para explicar a suposta inexistência do
racismo no Brasil e ajuda a reforçar a ambiguidade do racismo brasileiro. Além de demonstrar um
profundo desconhecimento histórico e conceptual sobre a questão, esse argumento nos revela os efeitos
do mito da democracia racial na sociedade brasileira, esse tão falado mito que nos leva a pensar que
vivemos em um paraíso racial.

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O entendimento conceptual sobre o que é racismo, discriminação racial e preconceito, poderia ajudar
os(as) educadores(as) a compreenderem a especificidade do racismo brasileiro e auxiliá-los a identificar
o que é uma prática racista e quando esta acontece no interior da escola. Essa é uma discussão que
deveria fazer parte do processo de formação dos professores.
Porém, é necessário que, na educação, a discussão teórica e conceptual sobre a questão racial esteja
acompanhada da adoção de práticas concretas. Julgo que seria interessante se pudéssemos construir
experiências de formação em que os professores pudessem vivenciar, analisar e propor estratégias de
intervenção que tenham a valorização da cultura negra e a eliminação de práticas racistas como foco
principal. Dessa forma, o entendimento dos conceitos estaria associado às experiências concretas,
possibilitando uma mudança de valores. Por isso, o contato com a comunidade negra, com os grupos
culturais e religiosos que estão ao nosso redor é importante, pois uma coisa é dizer, de longe, que se
respeita o outro, e outra coisa é mostrar esse respeito na convivência humana, é estar cara a cara com
os limites que o outro me impõe, é saber relacionar, negociar, resolver conflitos, mudar valores.
E é justamente o campo dos valores que apresenta uma maior complexidade, quando pensamos em
estratégias de combate ao racismo e de valorização da população negra na escola brasileira. Tocar no
campo dos valores, das identidades, mexe com questões delicadas e subjetivas e nos leva a refletir sobre
diversos temas presentes no campo educacional. Um deles se refere à autonomia do professor.

Mas qual é a relação entre autonomia do professor e a questão racial? Para responder a essa pergunta,
gostaria que refletíssemos sobre quais são as interpretações do professorado sobre a autonomia em sala
de aula. Já ouvi muitos(as) educadores(as) dizerem que a autonomia do docente significa a liberdade de
escolha para adotar uma determinada metodologia, discutir ou não certas temáticas, usar da sua
autoridade para com o aluno, discutir política partidária no interior da escola, entre outros. Todos nós
sabemos que a autonomia não se reduz a isso. Porém, ao tratar da temática racial, alguns docentes usam
de uma compreensão deturpada de autonomia para reproduzir e produzir práticas racistas.
Ao entrar nesse debate, estamos questionando a nossa atuação profissional e a nossa postura ética
diante da diversidade étnico-cultural e das suas diferentes manifestações no interior da escola. Que tipo
de profissionais temos sido? A educação carece de princípios éticos que orientem a prática pedagógica
e a sua relação com a questão racial na escola e na sala de aula.
Isso não significa desrespeitar a autonomia do professor, mas entendê-la e, muitas vezes, questioná-
la. Significa perguntar até que ponto, em nome de uma suposta autonomia, uma professora pode colocar
uma criança negra para dançar com um pau de vassoura durante uma festa junina porque nenhum
coleguinha queria dançar com um “negrinho”. Discutir essa “autonomia” do professor representa,
também, denunciar práticas em que o (a) professor(a) estabelece que o castigo para os alunos
“desobedientes” será sentar ao lado do aluno negro da sala. Representa abrir um processo jurídico contra
uma professora que, devido a um desentendimento político com uma colega, se julga no direito de entrar
em sua sala de aula e xingá-la e “negra suja”. A escola deve, por um acaso, em nome da “autonomia” de
cada docente, permitir e ser conivente com o (a) professor(a) que permite que as meninas brancas
chamem a colega negra de “negra do cabelo duro” ou “cabelo de bombril”? Questiono, então: que
autonomia é essa? Respondo: autonomia não significa ser livre para fazer o que eu quero. É preciso que
as práticas pedagógicas sejam orientadas por princípios éticos que norteiem as relações estabelecidas
entre professores, pais e alunos no interior das escolas brasileiras. E é necessário inserir a discussão
sobre o tratamento que a escola tem dado às relações raciais no interior desse debate.
Refletir sobre os valores que estão por detrás de práticas como as que citamos anteriormente nos leva
a pensar que não basta apenas lermos o documento de “Plural idade Cultural”, ou analisarmos o material
didático, ou discutirmos sobre as questões curriculares presentes na escola se não tocarmos de maneira
séria no campo dos valores, das representações sobre o negro, que professores(as) e alunos(as) negros,
mestiços e brancos possuem. Esses valores nunca estão sozinhos. Eles, na maioria das vezes, são
acompanhados de práticas que precisam ser revistas para construirmos princípios éticos e realizarmos
um trabalho sério e competente com a diversidade étnico-racial na escola. É preciso abrir esse debate e
tocar com força nessa questão tão delicada. Caso contrário, continuaremos acreditando que a
implementação de práticas antirracistas no interior da escola só dependerá do maior acesso à informação
ou do processo ideológico de politização das consciências dos docentes. Reafirmo que é preciso construir
novas práticas. Julgo ser necessário que os(as) educadores(as) se coloquem na fronteira desse debate
e que a cobrança de novas posturas diante da questão racial passe a ser uma realidade, não só dos
movimentos negros, mas também dos educadores, dos sindicatos e dos centros de formação de
professores. Quem sabe assim poderemos partir para iniciativas concretas, desenvolvendo projetos
pedagógicos juntamente com a comunidade negra, com as ONG’s e com os movimentos sociais. Assim,
poderemos realizar discussões na escola que trabalhem temas como: a influência da mídia, a religião, a

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cultura, a estética, a corporeidade, a música, a arte, os movimentos culturais, na perspectiva afro-
brasileira. Essas e outras temáticas podem e devem ser realizadas ao longo do processo escolar e não
somente nas datas comemorativas, na semana do folclore ou durante a semana da cultura.

Uma estratégia interessante e que poderá nos ajudar na mudança de valores e práticas é conhecer
outras experiências de intervenção bem sucedidas no trato da questão racial. Posso citar, nas poucas
páginas desse artigo, a experiência do Núcleo de Estudos Negros – NEN, de Florianópolis. Além de
publicações e de folhetos informativos, esse grupo tem produzido vídeos, participado e promovido
debates com a presença de especialistas na área, orientado projetos nas escolas, etc. A série
“Pensamento Negro em Educação” é uma publicação desse grupo que deveria fazer parte da biblioteca
de todo(a) professor(a).
O Projeto de Extensão Pedagógica do Ilê Aiyê em Salvador é também uma experiência que deve ser
conhecida e que trabalha na fronteira da mudança de valores e instauração de novas práticas. Esse
projeto tem realizado trabalhos em parceria com escolas públicas, capacitando professores(as) e
envolvendo os alunos em projetos pedagógicos e oficinas, cuja temática racial é o objetivo principal. Além
desse projeto, o Ilê Aiyê mantém, desde 1988, a escola comunitária de ensino fundamental Mãe Hilda,
no bairro da Liberdade, cujo projeto pedagógico tem como base a cultura e a história do povo negro no
Brasil. O Ilê ainda mantém uma escola de percussão, a Banda Erê, formada por crianças da comunidade
e por meninos de rua. Para quem quiser acompanhar todos esses trabalhos, a Associação Cultural Ilê
Aiyê publica o Caderno de Educação do Ilê Aiyê, um material que pode ser adquirido e utilizado pelas
escolas e pelos centros de formação de professores.

As duas experiências acima citadas exemplificam práticas que têm sido desenvolvidas no Brasil e que
têm como enfoque o trabalho com educação e relações raciais. Infelizmente, esses e outros trabalhos
importantes ainda não são conhecidos pelos educadores. Conhecê-los, visitá-los, solicitar assessoria e
adquirir o material, poderá ser uma importante estratégia a ser desenvolvida pelas escolas. Assim, quem
sabe, os professores deixarão de perguntar o quê e como fazer, para se relacionarem com quem já tem
feito há muito tempo.
Não dá mais para dizer que as experiências não existem. Será que temos tido oportunidade e/ou boa
vontade de conhecê-las? Será que os órgãos oficiais, os centros de formação de professores, as
propostas inovadoras de educação, têm tido o interesse de mapeá-las e divulgá-las? Pensar na inserção
política e pedagógica da questão racial nas escolas significa muito mais do que ler livros e manuais
informativos. Representa alterar os valores, a dinâmica, a lógica, o tempo, o espaço, o ritmo e a estrutura
das escolas. Significa dar subsídios aos professores, colocá-los em contato com as discussões mais
recentes sobre os processos educativos, culturais, políticos. Mas, para que isso aconteça, não basta
somente desejarmos ardentemente ou reclamarmos cotidianamente de que nenhuma iniciativa tem sido
tomada. A escola e os educadores têm que se mobilizar. Nós, os(as) professores(as), somos conhecidos
como uma categoria de lutas e de conquistas. Se reconhecemos que o trato pedagógico da diversidade
é um direito de do cidadão pertencente a qualquer grupo étnico-racial e um interesse dos educadores,
que têm compromisso com a extensão da cidadania e democracia, pergunto: que movimento temos feito
em direção a um trabalho pedagógico com a questão racial? Para se realizar mudanças é preciso que
haja movimento. E movimento não combina com ações isoladas. É preciso que nos organizemos
enquanto grupo.
Uma outra proposta de trabalho com a diversidade étnico-racial e que pode ser considerada como uma
estratégia de combate ao racismo no interior da escola refere-se à organização de trabalhos conjuntos
entre diferentes instituições escolares. Para isso, é necessário realizar um mapeamento das escolas que
estejam realizando trabalhos interessantes com a questão racial. Esse mapeamento pode ser
desenvolvido pela universidade (um projeto de extensão), pelos centros de formação de professores ou
por equipes técnicas da secretaria de educação e divulgado para as escolas. Após esse mapeamento,
pode-se promover encontros e trocas de experiências entre os docentes. Para tal, é preciso flexibilizar os
tempos escolares (que já está proposto na LDB) e pensar em momentos de participação da comunidade
junto com os professores e alunos. Essa mesma estratégia pode ser realizada, numa escala menor, no
interior da própria escola. Quantas vezes temos vontade de conhecer um trabalho interessante de uma
colega ou de um grupo de colegas e somos barrados pela rigidez do tempo escolar!
E, por último, penso que todo(a) educador(a), ao trabalhar com a questão racial, deveria tomar
conhecimento das lutas, demandas e conquistas do Movimento Negro. Não podemos nos esquecer de
que a inclusão da temática racional na escola brasileira e o reconhecimento a sua inclusão no currículo
deve muito à atuação desse movimento.

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Um primeiro passo para um trabalho envolvendo o Movimento Negro poderia ser um mapeamento das
entidades políticas e culturais que trabalham com a questão racial. Onde se localizam? O que elas fazem?
Quem delas participa? Existe alguma organização desse tipo próximo da escola onde atuo? Há quanto
tempo ela existe? Os pais e alunos da comunidade participam de alguma entidade política e cultural que
luta contra o racismo e preserva a cultural afro-brasileira? Esse pequeno levantamento poderá levar
muitas escolas a descobrirem entidades políticas negras e/ou grupos culturais negros na sua própria
região, possibilitando um trabalho integrado entre a escola e a comunidade. Sem dúvida, essa iniciativa
será a efetivação de um dos objetivos do projeto político-pedagógico da escola. É bom lembrar que essa
atitude certamente trará um estranhamento para ambas as partes e exigirá disposição, capacidade de
negociação, maturidade, mudança de valores e um outro entendimento da relação entre os saberes
escolares e os saberes culturais.
Todos nós estamos desafiados a pensar diferentes maneiras de trabalhar com a questão racial na
escola. Será que estamos dispostos? Podemos, enquanto educadores(as) comprometidos(as) com a
democracia e com a luta pela garantia dos direitos sociais, recusar essa tarefa? A nossa meta final como
educadores(as) deve ser a igualdade dos direitos sociais a todos os cidadãos e cidadãs. Não faz sentido
que a escola, uma instituição que trabalha com os delicados processos da formação humana, dentre os
quais se insere a diversidade étnico-racial, continue dando uma ênfase desproporcional à aquisição dos
saberes e conteúdos escolares e se esquecendo de que o humano não se constitui apenas de intelecto,
mas também de diferenças, identidades, emoções, representações, valores, títulos... Dessa forma,
entendo o processo educacional de uma maneira mais ampla e profunda. Poderemos avançar no nosso
papel como educadores/as e realizar um trabalho competente em relação à diversidade étnico-racial.

APRENDIZAGEM E ENSINO DAS


AFRICANIDADES BRASILEIRAS

Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva


Doutora em Ciências Humanas - Educação.
Docente do Departamento de Metodologia do
Ensino da Universidade Federal de São Carlos.
Participante da Coordenação do Núcleo de
Estudos Afro-Brasileiros desta Universidade

A grande tarefa no campo da educação há de ser a busca de „caminhos e métodos para rever o que
se ensina e como se ensinam, nas escolas públicas e privadas, as questões que dizem respeito ao mundo
da comunidade negra. A educação é um campo com sequelas profundas de racismo, para não dizer o
veículo de comunicação da ideologia branca.

Ao dizer africanidades brasileiras estamos nos referindo às raízes da cultura brasileira que têm origem
africana. Dizendo de outra forma, estamos, de um lado, nos referindo aos modos de ser, de viver, de
organizar suas lutas, próprios dos negros brasileiros, e de outro lado, às marcas da cultura africana que,
independentemente da origem étnica de cada brasileiro, fazem parte do seu dia-a-dia.
Ao ler estas palavras possivelmente alguns pensem: Realmente é uma verdade o que vem de ser
afirmado, pois todos nós comemos feijoada, cantamos e dançamos samba, e alguns frequentamos
academia de capoeira. E isto, sem dúvidas, é influência africana. De fato o é, mas há que completar o
pensamento, vislumbrando os múltiplos significados que impregnam cada na destas manifestações.
Feijoada, samba, capoeira resultaram de criações dos africanos que vieram escravizados para o Brasil,
bem como de seus descendentes, e representam formas encontradas para sobreviver, para expressar
um jeito de sentir, de construir a vida. Assim, uma receita de feijoada, vatapá, ou de qualquer outro prato,
contém mais do que a combinação de ingredientes, é o retrato de busca de soluções para a manutenção
da vida física, de lembrança dos sabores da terra de origem. Do mesmo modo, a capoeira, hoje um jogo
cujo cultivo busca o equilíbrio do corpo e do espírito, nasceu como instrumento de combate, de defesa.
Africanidades Brasileiras ultrapassam, pois, o dado ou o evento material, como um prato de sarapatel,
uma congada, uma apresentação de capoeira. Elas se constituem nos processos que geraram tais dados
e eventos, hoje incorporados pela sociedade brasileira. Também se constituem nos valores que
motivaram tais processos e dos que deles resultaram.
As Africanidades Brasileiras vêm sendo elaboradas há quase cinco séculos, na medida em que os
africanos escravizados e seus descendentes, ao participar da construção da nação brasileira, vão
deixando nos outros grupos étnicos com que convivem suas influências e, ao mesmo tempo, recebem e
incorporam as destes. Portanto, estudar as Africanidades Brasileiras significa tomar conhecimento,
observar, analisar um jeito peculiar de ver a vida, o mundo, o trabalho, de conviver e de lutar pela

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dignidade própria, bem como pela de todos descendentes de africanos, mais ainda de todos que a
sociedade marginaliza. Significa também conhecer e compreender os trabalhos e criatividade dos
africanos e de seus descendentes no Brasil, e de situar tais produções na construção da nação brasileira.
Com que finalidade estudar africanidades brasileiras?
A finalidade primeira diz respeito ao direito dos descendentes de africanos, assim como de todos os
cidadãos brasileiros, à valorização de sua identidade étnico-histórico-cultural, de sua identidade de
classe, de gênero, de faixa etária, de escolha sexual.

Reivindicamos, nós afro-brasileiros, o estudo das Africanidades com o propósito de que os currículos
escolares, em todos os níveis de ensino:
- Valorizem igualmente as diferentes e diversificadas raízes das identidades dos distintos grupos que
constituem o povo brasileiro3;
- Busquem compreender e ensinem a respeitar diferentes modos de ser, viver, conviver e pensar;
- Discutam as relações étnicas, no Brasil, e analisem a perversidade da assim designada “democracia
racial”;
- Encontrem formas de levar a refazer concepções relativas à população negra, forjadas com base em
preconceitos, que subestimam sua capacidade de realizar e de participar da sociedade, material e
intelectualmente;
- Identifiquem e ensinem a manusear fontes em que se encontram registros de como os descendentes
de africanos vêm, nos quase 500 anos de Brasil, construindo suas vidas e sua história, no interior do seu
grupo étnico e no convívio com outro grupos;
- Permitam aprender a respeitar as expressões culturais negras que, juntamente com outras de
diferentes raízes étnicas, compõem a história e a vida de nosso país;
- Situem histórica e socialmente as produções de origem e/ou influência africana, no Brasil, e
proponham instrumentos para que sejam analisadas e criticamente valorizadas.

Firmados os objetivos do estudo dos Africanidades Brasileira é preciso que se pesem procedimentos
convenientes para conduzir tal estudo.
Que encaminhamentos poderão ser dados a processos de ensino e de aprendizagens das
Africanidades Brasileiras?
É importante, desde logo, relembrar, sobretudo em se tratando de estudos que se propõem a conhecer
e valorizar feições étnico-histórico-culturais, e por isso mesmo socialmente situadas, que não há um único
estilo de apreender e de significar o mundo. As maneiras como nos aproximamos de novas situações, de
dados que precisamos decodificar, produzindo conhecimentos, são marcadas pelas experiências que
vamos vivenciando, ao longo da vida, juntamente com os companheiros dos grupos a que pertencemos,
como o grupo étnico, religioso, de trabalho, de brincadeiras, dentre outros.
Todo esse processo de aquisição de conhecimentos e de formação de atitude respeitosa de
reconhecimento da participação e contribuição dos afro-brasileiros na sociedade brasileira requer que
preconceitos e discriminações contra este grupo sejam abolidos, que sentimentos de superioridade e de
inferioridade sejam superados, que novas formas de pessoas negras e não negras se relacionarem sejam
estabelecidas.
Apresentado brevemente o contexto em que devem se situar os estudos das Africanidades Brasileiras,
retomemos a questão de como encaminhar as aprendizagens nesta área.
Creio que Roseli Pacheco Schenetzier (1994, p.56) nos dá importantes indicações. A aprendizagem,
diz ela, consiste na “reorganização e desenvolvimento das concepções dos alunos”, implica, pois,
“mudança conceitual”. Embora referindo-se a autora a conhecimentos prévios em Química, a afirmativa
também diz respeito à aprendizagem em outras áreas do conhecimento. Calcule-se o valor deste
entendimento, quando são tratados conteúdos pouco valorizados pela sociedade, quando ao ensiná-los,
pretende-se apagar preconceitos, corrigir ideias, atitudes forjadas com base nas destruidoras ideologias
do racismo, do branqueamento. Schenetzier (p.58), citando Andersen, pondera que ensinar implica, entre
outras coisas, busca de estratégias úteis para proceder à mudança conceitual. Para tanto, os professores:

- buscam conhecer as concepções prévias de seus alunos a respeito do estudado, ouvindo-os falar
sobre elas;
- Ajudam os alunos a compreender que ninguém constrói sozinho as concepções a respeito de fatos,
fenômenos, pessoas; que concepções resultam do que ouvimos outras pessoas dizerem, resultam
também de nossas observações e estudos;
- Lançam desafios para que seus alunos ampliem e/ou reformulem suas concepções prévias,
incentivando-os a pesquisar, debater, trocar ideias, argumentando com ideias e dados empíricos;

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- Incentivam a observação da vida cotidiana; observações no contexto da sala de aula; a elaboração
de conclusões; a comparação entre concepções construídas tanto a partir do senso comum, como a partir
de estudo sistemático.

Em se tratando das Africanidades Brasileiras, é preciso acrescentar que professores empenhados em


novas relações interétnicas, na sociedade brasileira:
- “combatem os próprios preconceitos, os gestos de discriminação tão fortemente enraizados na
personalidade dos brasileiros”, desejando sinceramente superar sua ignorância relativamente à história
e à cultura dos brasileiros descendentes de africanos;
- Organizam seus planos de trabalhos, atividades com seus alunos, tendo presente o ensinamento de
Lopes (1990) de que na cultura de origem africana só tem realmente sentido o que for aprendido pela
ação, isto é, se no ato de aprender, o aprendiz executar tarefas que o levem a pôr “a mão na massa”,
sempre informado e apoiado pelos mais experientes. Dizendo de outra maneira, aprende-se realmente o
que se vive, e muito pouco sobre o que se ouve falar.

Complementando as palavras de Theodoro, cabe trazer o que pode ser observado no Brasil e também
em África: aquele que ensina, o mais experiente, demonstra, explica o que a demonstração é insuficiente
para fazer entender, dá instruções, sem muita conversa.
Aquele que aprende, guarda na memória o que viu e ouviu. Reiniciará, tantas vezes quantas sejam
necessárias, até realizar a tarefa a contento.
As lições da vida são ensinadas através da história dos parentes, dos antepassados próximos ou não,
e de outras histórias como os mitos, que passam de pai para filho.
Fechando estas considerações a respeito de encaminhamentos para o ensino e aprendizagens de
Africanidades Brasileiras, convém salientar que tais processos fazem parte de uma pedagogia antirracista
que tem como exigências:
- Diálogo, em que seres humanos distintos miram-se e procedem intercâmbios, sem sentimentos de
superioridade ou de inferioridade;
- Reconstrução do discurso e da ação pedagógicos, no sentido de que participem do processo de
resistência dos grupos e classes postos à margem, bem como contribuam para afirmação da sua
identidade e da sua cidadania;
- Estudo da recriação das diferentes raízes da cultura brasileira, que nos encontros e desencontros de
umas com as outras se refizeram e, hoje, não são mais gêges, nagôs, bantus, portuguesas, japonesas,
italianas, alemãs; mas brasileiras de origem africana, europeia, asiática.

Africanidades Brasileiras: Trata-se de uma nova disciplina ou de uma área de pesquisas?

No âmbito escolar e acadêmico, as Africanidades Brasileiras constituem-se em campo de estudos,


logo, tanto podem ser organizadas enquanto disciplina curricular, programa de estudos abrangendo
diferentes disciplinas, como área de investigações. Em qualquer caso, caracterizam-se pela interrelação
entre diferentes áreas de conhecimentos, que toma como perspectiva a cultura e a história dos povos
africanos e de descendentes seus nas Américas, bem como em outros continentes.
Ora, se as Africanidades Brasileiras abrangem diferentes áreas, não precisam, em termos de
programas de ensino, constituir-se numa única disciplina, pois podem estar presentes, em conteúdos e
metodologias, nas diferentes disciplinas constitutivas do currículo escolar. Vejamos alguns exemplos.
Matemática: ao desenvolver conteúdos da disciplina, se o professor estiver atento às Africanidades,
valer-se á, certamente, de obras ainda raras entre nós que mostram construções matemáticas africanas
de diferentes culturas, pois como pondera Asante (1990), não é possível compreender o que há de
africano na América enquanto fonte e origem, sem voltar nosso olhar e curiosidade à África. Assim sendo,
ao trabalhar geometria, volume e outras medidas, chamará o professor a atenção, ilustrando com
imagens, para o fato de que estes eram conhecimentos do domínio dos antigos egípcios, o que permitiu-
lhes construir obras monumentais como as pirâmides. Buscará mostrar fotografias do antigo reino do
Zimbábue, destacando, por exemplo, as torres cônicas das muralhas do templo. Mais do que isto, valer-
se-á o professor de expressões da arte africana, como as pinturas que os Ndebele fazem em suas casa.
Com isto, irão aprendendo diferentes caminhos trilhados pela humanidade, através de povos de diferentes
culturas, para a construção dos conhecimentos que vêm acumulando.
Ciências: Ao estudar o meio ambiente, do ponto de vista das Africanidades Brasileiras, há que
necessariamente abordar a questão dos territórios ocupados por população remanescente de quilombos
ou herdeira de antigos fazendeiros e conhecer as formas de cultivo e de utilização de recursos naturais
que empregam, sem ferir o equilíbrio do meio ambiente.

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Psicologia: Esta disciplina trata de importantes descobertas da ciência do mesmo nome, a respeito,
por exemplo, do desenvolvimento das crianças e adolescentes, do comportamento das pessoas, das
maneiras como elas se relacionam entre si. No Brasil, assim como em outros países de fortes raízes
africanas, em qualquer nível de ensino, se torna inadmissível desconhecer as obras de Franz Fanon, pelo
menos Pele Negra, Máscaras Brancas (s.d.) e Os Condenados da Terra (1979), que analisa e discute as
dificuldades enfrentadas por descendentes de africanos para terem sua identidade respeitada, num
mundo colonizado por europeus. No nosso caso específico, não há como desconhecer a obra de Neuza
Santos Souza, Tornar-se Negro (1983), tampouco estudos como os de Marilene Paré sobre a autoestima
de crianças negras (1991), o de Rachel de Oliveira, o de Ademil Lopes (1994), e o de Consuelo Silva
(1995) sobre socialização da criança negra na escola.
Educação Física: Na medida em que esta disciplina se dedica à educação do corpo, incluindo a dança
em seu currículo, é incompreensível que no Brasil deixe de haver seções de danças de raízes africanas
e, na área de jogos, a inclusão da capoeira.
Estudos como os realizados por Reis da Silva (1994) e Ferreira da Silva (1997) trazem sugestões para
professores e outros educadores, além de considerações importantes, mostrando a importância de tais
atividades para a afirmação da identidade de descendentes de africanos.
Educação Musical: Do ponto de vista das Africanidades Brasileiras, não tem cabimento a
musicalização de crianças, adolescentes e adultos que não inclua os ritmos de origem africana. E do
mesmo ponto de vista, não bastará ouvir textos musicais e reconhecer instrumentos típicos. Será preciso
ouvir e fazer tentativas de tirar som e ritmo de instrumentos: caixa de fósforos, pandeiro, agogô, chocalho,
atabaque, berimbau, etc., com o auxílio de quem sabe fazê-lo. E não basta saber tocar instrumentos, é
importante saber do que são feitos, como são feitos e, sempre que possível, aprender a construir pelo
menos algum deles. Mais ainda, as músicas de origem africana são feitas para serem cantadas,
dançadas. Portanto, ensinar música afro, na perspectiva das Africanidades, implica ouvir, cantar, produzir
ritmos, construir instrumentos, dançar, conhecer a origem dos ritmos e dos instrumentos, e as recriações
que têm sofrido através dos tempos e nos lugares por onde têm passado, se enraizado.
Artes Plásticas: Como bem pondera a professora Lóris, nos trabalhos com argila, papier-mâché pode-
se, por exemplo, aprender sobre e criar máscaras de inspiração africana, além de comparar os trabalhos
africanos com o de pintores europeus, com pinturas de Picasso, Modigliani, identificando a influência
daquelas sobre estas. Em atividades com pintura, ensina Vera Triumpho, é possível conhecer a origem,
significados e técnicas do batique. Enfim, muitas ideias certamente surgirão do estudo da valiosa obra
organizada por Emanoel Araújo (1988), A Mão Afro-Brasileira – Significado da Contribuição Artística e
Histórica.
Literatura: O negro não somente tem sido tema na literatura brasileira. Sabemos todos que muitos têm
criado, sendo inúmeros nossos escritores descendentes de africanos. Interessante será estudantes
poderem comparar a visão de escritores negros, com a de outras etnias, sobre as questões que afligem
a população negra, ou que constituem razão de alegrias ou tristezas para pessoas de qualquer etnia.
Será importante compararem obras de afro-brasileiros com a de africanos. Como exemplos de autores e
textos, cito o livro organizado por Mário de Andrade Antologia Temática de Poesia Africana – O Canto
Armado; o de Oswaldo de Camargo – O Negro Escrito; as publicações periódicas do Quilomboje –
Cadernos Negros, publicados desde 1978; os trabalhos de Luiz Gama, Cruz e Souza, Oliveira da Silveira,
Esmeralda Ribeiro, Míriam Alves, Celinha, Jônatas da Conceição, Geni Guimarães, entre tantos outros.
Sociologia: Fonte-chave para estudos que tenham preocupação com as Africanidades Brasileiras é
certamente a obra de Clóvis Moura, salientando-se Sociologia do Negro Brasileiro (1988), em que aborda
a sociedade brasileira, a partir de estudos sobre a problemática que envolve o povo negro.
Geografia: Os estudos dos espaços físicos e dos espaços humanos que a partir dele vão-se
construindo requerem que se tenha como referência trabalhos de Milton Santos, entre outros, O Espaço
do Cidadão (1990) e A Natureza do Espaço (1996), pois este autor estuda a Geografia do ponto de vista
dos empobrecidos e marginalizados e, no caso do Brasil, a maioria dos descendentes de africanos se
encontram entre eles.
História: A história do Brasil, enquanto construção de uma nação, inclui todos os povos que constituem
a nação. Assim, ignorar a história dos povos indígenas, do povo negro é estudar de forma incompleta a
história brasileira. O professor que trabalha na perspectiva das Africanidades Brasileiras não omitirá, por
exemplo, ao tratar da fundação de Laguna, em Santa Catarina, que, conforme registra Cláudio Moreira
Bento (O NEGRO, 1979), a expedição que lá se instalou, em 1648, era formada em 70% por homens
negros escravizados. Ao referir-se à fundação da Colônia de Sacramento, não esquecerá de fazer saber
que, além dos escravos, a tropa fundadora contava com soldados negros.

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Se a história ensinada na escola souber contemplar também a vida vivida no dia-a-dia dos grupos
menosprezados pela sociedade, então, estaremos ensinando e aprendendo a história brasileira
integralmente realizada. Conforme o entendimento de Gigante (1994), a valorização da história dos
grupos populares, registrando o que em suas memórias está guardado de suas experiências, é tarefa que
pode ser realizada por professores e alunos, a partir da comunidade em que a escola está inserida. Desta
forma, pondera o autor, todos os que constroem o Brasil estarão presentes nos conteúdos escolares.
Tal entendimento, se posto em prática, compreenderá também atividades de Comunicação e
Expressão, de Língua Portuguesa. E poderá envolver pessoas da comunidade que têm o gosto de
colaborar com a escola. As histórias colhidas pelos alunos são transformadas em textos que poderão ser
reunidos num livrinho e, desta forma, serem divulgadas entre as outras classes e também na comunidade.
Os alunos, juntamente com os professores, decidem o que perguntar, que história pedir para diferentes
pessoas da comunidade contarem. Cada contador identifica o grupo étnico a que pertence e passa a
contar histórias de brincadeiras, de trabalho, de festejos, de celebrações religiosas, da vida na escola e
outras tantas que revelam o jeito de ser e pensar de seu grupo étnico. No caso das Africanidades a ênfase
é dada às histórias que expõem a identidade dos descendentes de africanos e também àquelas que
deixam à mostra o teor das relações entre brancos e não brancos no Brasil.
Eis alguns exemplos retirados do livrinho, organizado por professoras e alunos da Escola Municipal de
1º Grau Incompleto Cândido Osório da Rosa, situada no Limoeiro, em Bacupari, no município de Palmares
do Sul/RS (Prefeitura Municipal, 1986). O livrinho intitulado Histórias do Limoeiro foi publicado em 1986.
Passemos aos textos.
Quando Tia Chica (1986, p. 16) contou a história a seguir, tinha por volta de 100 anos de idade. Era a
pessoa mais velha da comunidade.

NO TEMPO DOS ESCRAVOS

Histórias do tempo dos escravos, aqui? Não sei, não; eu não sou daquele tempo.
Mas a minha avó contava coisas horríveis!
Escravo era que nem boi. Puxava carreta, puxava as charretes para levar as mulheres dos fazendeiros
passear.
Escravos e gado não eram diferentes. Coisa muito horrível! Triste!
Vamos falar de outra coisa.

Dona Teresa tinha filhos na escola e sempre colaborava com as professoras e os alunos. Em sua
história (1986, p.17-8) se refere à fazenda da Reforma, onde no início dos anos 60 o então governador
do Estado do Rio Grande do Sul implantou uma experiência de reforma agrária.

AS TOCHAS DE FOGO

O mato do Limoeiro, quando eu era criança, eu me lembro que era mato muito fechado. Não era
matinho que tem aí, aberto, como fizeram agora.
Isso foi no tempo do Dirceu Rosa, aquela fazenda na frente da mata do Limoeiro era dele. Foi dele,
depois passou a ser do governador.
O Limoeiro era um mato fechadíssimo, tinha muita figueira. Eu, quando era criança, cheguei a enxergar
lá, quando anoitecia, umas línguas de fogo. A gente não ligava, mas tinha medo, mas não ligava muito.
A minha mãe cozinhava para o pessoal daquela granja, tinha uma pensão. Ficava lá naqueles cantos
da Reforma. Daí, um dia de noite, a gente foi levar comida para um homem que cuidava das máquinas,
o motor d’água, que estava puxando água.
Enquanto o homem jantava, a gente brincava, eu e meu irmão mais velho... E lá do mato do Limoeiro
saíam das figueiras aquelas tochas de fogo. . . Passava uma para lá, passava outra para cá. Nós
olhávamos e não tínhamos medo.
De repente, quando nós agarramos o prato do homem para vir embora... saiu do mato uma luzinha
deste tamanhozinho e veio na nossa direção.
O meu irmão me agarrou pela mão e corria... corria... A gente voava, não corria, e aquela luzinha
sempre atrás da gente.
Hoje em dia, não existe mais nada daquilo ali. Agora, quando eu era criança cansei de ver as tochas
de fogo ali, andando por cima das árvores. Ela se formava amarela, verde, azul. E não era só uma.
As pessoas mais velhas, minha avó, minha mãe, sempre contavam que aquilo ali, no tempo da
escravidão, naquele lugar, degolavam os escravos e enterravam debaixo daquela figueira. Para cuidar
do dinheiro dos fazendeiros, que ficava ali enterrados. Naquele tempo não existia banco, não é.

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Como o negro era sacrificado! Degolavam, botavam debaixo daquela árvore e aquele espírito ficava
ali para cuidar. Para ninguém mexer naquele ouro, naquele dinheiro.
Dona Terezinha e seu marido Maneca (1986, p. 18-9) contaram a seus filhos, alunos da escola do
Limoeiro, sobre o.

QUICUMBI

O que é quicumbi?
É o Ensaio. Nós fizemos aqui em casa, para pagar promessa que o falecido pai do Maneca tinha feito.
Foi em 74, não, em 75.
Neste Ensaio, dançavam só os homens e cantavam cantos de reza. Eles têm um canto. Um mestre
comanda a turma com instrumentos: pente, um reco-reco, uma taquareira, um tamborzinho. Eles passam
a noite cantando aquelas orações do Divino Espírito Santo.
Eles não dançam uns com os outros. Eles dançam sozinhos. É só gente morena, este ensaio vem do
povo negro, do africano.
De onde gerou, nós não sabemos. De primeiro, usavam muito por aqui, isto de promessa. Faziam
promessa e dançavam, uma festa, comida, bebida, tudo por conta do dono do Ensaio, aquele que fazia
a promessa.
As mulheres só olhavam e faziam as comidas.
Vinha muita gente olhar, os convidados. Só dançava aquele grupo, essa dança é reza, não é
divertimento.
Eles vinham cantando, dançando, tocando. Por aqui, ninguém mais sabe nada disso. Nós falamos com
o pessoal lá da Casca, para vir aqui em casa.
Veio muita. Depois da reza, vem o baile. Pena que a gente não seguiu com o costume!

O livrinho de onde foram retirados estes textos contém outros tantos sobre as mais diferentes
temáticas, todos eles ajudam a conhecer e entender uma comunidade rural, que na época era constituída
quase que exclusivamente por descendentes de africanos, todos eles trabalhadores nas fazendas da
localidade e também proprietários de pequenas chácaras. Essas histórias contadas e escritas há mais de
dez anos continuam sendo lidas e relidas por crianças e adultos

De que fontes vamos nos valer para estudar africanidades brasileiras?

A busca de fontes genuínas das Africanidades Brasileiras nos leva ao convívio com a comunidade
negra, ao cultivo da memória da experiência de ser descendente de africanos no Brasil, ao intercâmbio
com grupos do Movimento Negro, à familiaridade com obras de autores negros e também não negros,
que permitam entender a realidade das relações interétnicas em nosso país.
Convívio, muito além de trato diário, se configura como interesse e esforço para travar conhecimento,
na perspectiva dos afro-brasileiros, da problemática socioeconômica, étnico-racial que enfrentam, bem
como de sua história, a partir das vivências que têm sofrido e construído ao longo da participação dos
antepassados escravizados e de seus descendentes na vida da sociedade brasileira.
Para apreender o ponto de vista dos negros brasileiros é preciso estar disposto a vislumbrar o que a
sua memória guarda, a exemplo das lembranças registradas nas histórias de Tia Chica, Dona Teresa,
Dona Terezinha e seu marido, como vimos anteriormente. “Os remanescentes da experiência ainda vivida
no calor da tradição, no silêncio dos costumes, na repetição ancestral foram sendo deslocados sob a
pressão de fundamental sensibilidade histórica” (Nora, 1994), que se revela em gestos, pensamentos,
iniciativas.
Iniciativas sempre atualizadas, por exemplo, nas denúncias, reivindicações e propostas do Movimento
Negro, que defende o direito de os negros assumirem plenamente sua cidadania, tendo acesso à
educação, saúde, moradia, trabalho, respeito e reconhecimento à sua identidade étnicoracial (SILVA e
BARBOSA, 1997). E muitos subsídios disponíveis têm sido divulgados por diferentes grupos, nas diversas
regiões do país, tais como as publicações do CEDEMPA, em Belém, no Pará; os Cadernos de Educação
do Ilê Ayê, em Salvador, Bahia; os materiais didáticos e as publicações do Núcleo de Estudos Negros de
Florianópolis – Santa Catarina; os trabalhos dos Agentes de Pastoral Negros, em diferentes estados como
Rio Grande do Sul, Curitiba, São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Maranhão. Escolas, universidades,
professores, empenhados no estudo das Africanidades, devem localizar grupos do Movimento Negro,
como os citados, e com eles manter intercâmbio, realizar atividades, discutir programas.
Tais trocas encaminharão ao conhecimento e interpretação dos significados de textos, edificações,
produção cotidiana e também artística, tradições do povo negro brasileiro.

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Com estas breves ponderações sobre fontes ricas e originais das Africanidades Brasileiras, fecho este
texto, lembrando que os estudos destas temáticas remete necessariamente a questões relativas à
educação e multiculturalidade da população brasileira, ao que professores e pesquisadores precisamos
estar curiosos e comprometidamente atentos.

A GEOGRAFIA, ÁFRICA E OS NEGROS BRASILEIROS

Rafael Sanzio Araújo dos Anjos


Professor Adjunto do Departamento de Geografia da
Universidade de Brasília.

“A grande aspiração do negro brasileiro é ser tratado como um homem comum” (Milton Santos, 1995).

Há dez anos (1988), ocorreu o Centenário da sanção da Lei Áurea, pelo regime imperial do Brasil, que
suscitou uma significativa revisão historiográfica e das ideias nos meios acadêmicos, especialmente nas
áreas das ciências humanas, da educação e na ação político-cultural das entidades negras. Essa
oportunidade especial de resgate de uma identidade e de construção de uma memória permitiu o avanço
de muitas questões, principalmente a publicação e o cadastramento de muitas obras. Entretanto, uma
série de outras relacionadas à tentativa de traçar um novo perfil do papel das culturas africanas e do
negro brasileiro na formação do país continua merecendo ação e carecendo de investigação e
conhecimento. Uma das mais notórias aponta para uma prática de educação multicultural, na qual seja
possível o exercício da diversidade étnica, cultural e religiosa, sobretudo.
Nesse contexto, estabelecer e reconhecer novas perspectivas educacionais para uma compreensão
do papel do tráfico, da escravidão e da diáspora africana como elementos formadores da configuração
do mundo contemporâneo constituem pressuposto básico para traçar um novo perfil do papel das culturas
negras na formação do Brasil. Ter respeito e valorizar as diferenciações culturais e étnicas em um território
não significa aderir aos valores do outro, mas, sim, ter respeito como expressão da diversidade.
Não podemos perder de vista que entre os principais entraves ao desempenho do negro brasileiro na
sociedade brasileira destaca-se a inferiorização deste na escola. A raiz dessa desigualdade secular
estaria localizada na pré-escola. O sistema escolar tem sido estruturado para a perpetuação de uma
ideologia sócio-político-econômica que, junto com os meios de comunicação social, mantém uma
estrutura classista, transmissora de valores distorcidos e individualistas. Primeiro, são os livros didáticos,
que ignoram o negro brasileiro e o povo africano como agente ativo da formação geográfica e histórica.
Em segundo, a escola tem funcionado como uma espécie de segregadora informal. A ideologia
subjacente a essa prática de ocultação e distorção das comunidades afrodescendentes e seus valores
tem como objetivo não oferecer modelos relevantes que ajudem a construir uma autoimagem positiva,
nem dar referência à sua verdadeira territorialidade e sua história (ANJOS, 1989).
Esse paper visa apontar algumas deficiências estruturais no Brasil, detectadas no sistema de ensino
da geografia da África e nos conteúdos geográficos do território brasileiro com registros discriminatórios
e omissões referentes ao papel das culturas africanas na formação do país. Sugerimos, também, um
roteiro básico para elaboração de material instrucional com recursos alternativos e de baixo custo e
algumas indicações para o professor alterar sua prática no processo de ensino-aprendizagem nas
disciplinas enfocadas. Dessa maneira, o propósito deste trabalho é juntar-se aos esforços de inúmeros
pesquisadores que tentam contribuir para a adoção de medidas estruturais na direção de uma política
educacional no Brasil, em que a questão racial seja tratada com mais seriedade.

O território africano e o ensino-aprendizagem


Reconhecendo que existe um profundo vínculo entre a base geográfica e os eventos históricos que
nela se desenrolaram e lhe sentiram a influência, o território africano, componente fundamental para uma
compreensão mais apurada das questões que envolvem o papel da cultura negra na sociedade brasileira,
não pode deixar de ser entendido como um espaço produzido pelas relações sociais ao longo da sua
evolução histórica, suas desigualdades e contradições e a apropriação que esta e outras sociedades
fizeram, e ainda o fazem, dos recursos da natureza.
É relevante não perder de vista que a África foi marcada por vários séculos de opressão, presenciando
gerações de exploradores, de traficantes de africanos escravizados, de missionários, que acabaram por
fixar uma imagem hostil dos trópicos, cheios de forças naturais adversas ao colonizador europeu e de
homens ditos indolentes. Essa imagem foi sendo ampliada e não considerava os processos históricos
como fatores modeladores da organização territorial e social, mesmo diante dos elementos da natureza.

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Nesse contexto, não é de causar espanto o lugar insignificante e secundário que foi dedicado à geografia
africana em quase todos os sistemas e níveis de ensino.
Nos livros didáticos de geografia geral e nos atlas geográficos, o continente africano está colocado nas
partes finais da publicação e geralmente com um espaço bem menor que os outros blocos continentais.
Sendo o último a ser estudado, muitas vezes o tempo escolar fica esgotado para o cumprimento do
programa e, muitas vezes, a África não é estudada. Verificamos aí um paradoxo estrutural no sistema
escolar uma vez que a África, como berço dos antepassados do homem, deveria ser estudada em
primeiro lugar.
Outro aspecto relevante são as ocorrências de inadequações metodológicas e os conteúdos
geográficos; a criação de estereótipos; as informações desatualizadas; os erros e as omissões
conceituais e os preconceitos no texto e nas peças gráficas (mapa, fotos, gráficos, etc.) que estão
presentes em muitos dos livros didáticos e atlas utilizados no 1º e 2º Graus de ensino.
Nos cursos de bacharelado e licenciatura em geografia, das universidades públicas ou privadas no
Brasil, não existem dados abrangentes da situação. Entretanto, se tomarmos os exemplos das situações
observadas na Bahia, em São Paulo e no Distrito Federal, vamos verificar que a disciplina Geografia da
África não existe na estrutura dos cursos e, quando ocorre, está inserida dentro de outra. Existe, dessa
maneira, uma precariedade de espaço na universidade para o desenvolvimento de conteúdos geográficos
da África.
O estudo do território africano confunde-se com o tempo como produto histórico, evidenciando-se uma
íntima relação entre o espaço geográfico e os eventos da História. Uma estrutura básica que pode ser
recomendada na organização de um programa de uma disciplina é a desenvolvida no Projeto Retratos
da África: Uma Abordagem Cartográfica (ANJOS, 1989).
Na operacionalização da pesquisa buscou-se obedecer a uma certa ordem cronológica, com o cuidado
de questionar uma concepção linear e restritiva dos fenômenos e fatos da geografia africana.
Estabeleceu-se uma estrutura temática que abordasse aspectos relevantes anteriores à Pré-História,
estendendo-se até as suas manifestações mais contemporâneas. Tomado como referência o citado
projeto, sugerimos um programa que contemple os seguintes itens:

1. o quadro ambiental do passado e a Pré-História;


2. o quadro ambiental recente;
3. a organização territorial dos grupos humanos e os principais Estados e formações políticas que
antecedem os “Grandes Descobrimentos”;
4. a dinâmica territorial do tráfico, as articulações econômicas e a colonização;
5. o tráfico de africanos escravizados para o Brasil – séculos XVI; XVII, XVIII e XIX;
6. a nova ordem do imperialismo no território e o processo de descolonização;
7. a África contemporânea (conflitos territoriais, dinâmica das populações, expansão das metrópoles,
organizações políticas e sistemas econômicos, exploração dos recursos naturais estratégicos,
organização territorial as línguas e religiões).

A amplitude das questões que conformam esse universo temático apresentado sugere um tratamento
de maneira ampla das questões, restringindo-se o seu nível de detalhe, mas podendo trazer à luz uma
África como entidade geográfica, enfocando as questões fundamentais que a acometem na atualidade,
assim como os fenômenos que aí se revelaram e aconteceram, resultantes de um conjunto de forças
impulsionadas pela história e pela geografia.

Os afrodescendentes e o espaço geográfico do Brasil


A geografia é a ciência do território, e o território é o melhor instrumento de observação do que está
acontecendo no Brasil. Ela expõe a diversidade regional, as desigualdades espaciais e a heterogeneidade
da população. Essa é a área de conhecimento que tem o compromisso de tornar o mundo e suas
dinâmicas compreensíveis para os alunos, de dar explicações para as transformações territoriais e de
apontar soluções para uma melhor organização do espaço. A geografia é, portanto, uma disciplina
fundamental na formação da cidadania do povo brasileiro, que apresenta uma heterogeneidade singular
na sua composição étnica, socioeconômica e na distribuição espacial.
Nesse sentido, essa disciplina assume grande importância dentro da temática da pluralidade cultural
no processo de ensino, sobretudo no que diz respeito às características dos territórios dos diferentes
grupos étnicos e culturais que convivem no espaço nacional, assim como aponta as espacialidades das
desigualdades socioeconômicas e excludentes que permeiam a sociedade brasileira, ou seja, possibilita
ao aluno um contato com um Brasil de uma geografia complexa, multifacetada e cuja população não está
devidamente conhecida.

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Tratar da diversidade cultural brasileira num contexto geográfico, visando, portanto, reconhecer,
valorizar e superar a discriminação aqui existente, é ter uma atuação sobre um dos mecanismos
estruturais da exclusão social, componente básico para caminhar na direção de uma sociedade mais
democrática, na qual os afrodescendentes se sintam e sejam brasileiros.
Independentemente da perspectiva geográfica, a forma mais usual de se ensinar geografia tem sido
por meio do discurso do professor ou do livro didático. Não podemos perder de vista que muitos materiais
didáticos têm desempenhado um papel muitas vezes decisivo na introjeção de conceitos errados, de
forma velada ou explícita, assim como de estereótipos. Vejamos alguns exemplos: não se pode mais
aceitar a difusão da escravidão como fato que se associa exclusivamente aos povos africanos, nem
tampouco imagens do negro apenas como escravos ou no desempenho de atividades na sociedade sem
prestígio; de não inserir devidamente o papel do negro brasileiro nos ciclos econômicos do país; de não
revelar o contingente populacional de afrodescendentes atual no Brasil e sua importância; enfatizar que
os africanos e seus descendentes são, também, responsáveis pela adequação aos trópicos da tecnologia
pré-capitalista brasileira, como a mineração, a medicina, a nutrição e a agricultura; que a herança cultural
trazida da África constitui a matriz mais importante da cultura popular brasileira e que é frequentemente
relegada pela ideologia dominante ao folclore.
Dessa maneira, a atenção do professor e da equipe de trabalho da escola é fundamental para construir
críticas sobre os materiais didáticos utilizados, dando atenção a como eles tratam determinados assuntos
em que o aspecto da diversidade esteja presente e possa transformar o enfoque. Isso porque o erro em
determinadas circunstâncias é um bom condutor para mostrar outra possibilidade de abordagem e mudar
o tratamento da questão. Nesse sentido, o erro é acerto.
Outro segmento do trabalho do professor de geografia está na alteração dos currículos impostos.
Entendemos que um currículo deve ter a premissa de ser dinâmico para que possa adaptar-se às
transformações pelas quais a sociedade passa, ou seja, para que um currículo seja eficiente é necessário
que ele preconize a formação e a atualização sistemática do professor. Nesse sentido, sugerimos alguns
eixos temáticos para serem trabalhados na disciplina Geografia do Brasil e que podem ter um tratamento
dentro de uma perspectiva de valorização da pluralidade cultural. Os eixos são os seguintes:

1- A formação do território colonial brasileiro;


2- Os ciclos econômicos e o tráfico de povos africanos;
3- A organização territorial do Brasil nos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX;
4- A estrutura e a dinâmica da população brasileira;
5- Os grupos étnicos, as densidades, o nível de vida e os contextos socioeconômicos;
6- A organização territorial atual do país;
7- O Brasil urbano e os afrodescendentes;
8- O Brasil rural e os remanescentes de quilombos.

Essa estruturação pode ser detalhada e aprofundada na abordagem dos contextos regionais do Brasil
(Regiões do IBGE).

Algumas Recomendações
Dentre as possibilidades de trabalho do professor de geografia com seus alunos na tentativa de alterar
o padrão do uso contínuo do livro didático, um dos caminhos é a elaboração do seu próprio material
instrucional. Nessa direção, o uso de mapas temáticos construídos com materiais de baixo custo e com
assuntos atualizados é um instrumento que tem estimulado a criatividade e o comprometimento do
professor e tem revelado bons resultados didáticos.
É importante notar que a maioria dos livros didáticos de geografia vem com deficiências nas
representações cartográficas, isso porque muitos autores não são geógrafos ou ainda não reconheceram
a importância da alfabetização cartográfica como condutor básico no desenvolvimento das capacidades
do aluno relativas à representação do espaço. Verificamos que essa ferramenta não é explorada
devidamente e, quando existe, não está cumprindo sua verdadeira função, ou seja, não leva o aluno ao
raciocínio, ao esclarecimento, mas apenas informa dentro de uma suposta “neutralidade”.
Vários autores (PASSINI, 1994; LIMA, 1991; BOARD, 1994; ANJOS, 1989 e 1986, LE SANN, 1983,
dentre outros) já apontaram que a leitura dos mapas deve ser entendida como o processo de aquisição
pelos alunos de um conjunto de conhecimentos e habilidades para que consigam efetuar a leitura do
espaço, representá-lo e, dessa forma, construir os conceitos das relações espaciais. As deficiências na
educação cartográfica trazem como resultado a utilização dos mapas apenas como instrumentos visuais
de ilustração, tanto por parte dos professores como por parte dos alunos.

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A construção de um mapa temático para ser utilizada como ferramenta auxiliar nas aulas sobre
geografia da África ou geografia do Brasil, utilizando-se materiais alternativos e de baixo custo, é uma
das soluções possíveis para alterar a prática do professor no processo de ensino-aprendizagem dessas
disciplinas. Nesse sentido, sugerimos um roteiro com quatro passos básicos para ser utilizado na
elaboração de mapas temáticos com interesse didático, detalhados a seguir.

Figura 1: © 1989 by Geog. Rafael Sanzio Araújo dos Anjos

Escolha do tema do mapa temático

Pode ser selecionado um mapa de uma revista, de um atlas, de um jornal ou de qualquer fonte de
interesse.

EXEMPLO: O professor vai dar uma aula sobre os antigos estados africanos para contextualizar
melhor como esses territórios estão ocupados atualmente. Aí o professor encontrou o mapa África –
Principais Estados e Formações Políticas até o Século XVIII, que ele achou interessante e informativo
num artigo publicado na Revista Humanidades n° 22 da Editora Universidade de Brasília e resolveu que
ia utilizá-lo nas suas aulas. A FIG. 01 mostra uma cópia colorida do mapa selecionado pelo professor.
Um dos aspectos que chamou a atenção do educador foi a forma como foi resolvida graficamente a
identificação do nome das formações políticas e sua expressão espacial, que facilita o reconhecimento
pelos alunos.

Estruturação do documento cartográfico


Aqui é definido o tamanho do mapa, se a fonte será reproduzida com alterações e como será feito o
processo de ampliação (técnica do quadriculado ou com uma transparência usando um retroprojetor).

EXEMPLO: O professor resolve fazer um mapa grande 70cmxlm) para que os alunos possam
apreender melhor a informação facilitar mais sua explicação. Ele resolveu que manteria as informações
básicas do mapa-fonte e que não acrescentaria mais dados para que o mesmo não ficasse confuso.
Quanto à técnica de ampliação, o professor verificou que o retroprojetor de sua escola estava quebrado
e resolveu ampliar usando a técnica das quadrículas. Ver exemplo na figura 2. Um aspecto importante no
processo de ampliação ou redução de um mapa é a consciência espacial da escala trabalhada. Nesse
exemplo, um centímetro no mapa original corresponde a 500 km no mundo real, ou seja, a escala
numérica do mapa é de 1:50. 000.000 (o território africano está reduzido cinquenta milhões de vezes).

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Figura 2: © 1989 by Geog. Rafael Sanzio Araújo dos Anjos

Os materiais e a linguagem gráfica do mapa


Neste momento o professor escolhe os materiais. Os papéis manteiga para desenho e o pardo são
os indicados, sobretudo pelo baixo custo. O uso de hidrocor (traço fino e grosso), lápis cera e lápis de
cor dão bons resultados. Quanto à linguagem gráfica do mapa é importante revisar as premissas da
semiologia gráfica e organizar uma legenda adequada.

EXEMPLO: O professor resolve utilizar papel manteiga, achando que a resposta das cores é melhor.
Ele vai usar hidrocor e lápis cera, que será pintado atrás do mapa para a pintura ficar mais uniforme. O
educador reconhece que a informação básica do mapa é qualitativa, com forma de implantação zonal
(territórios das formações políticas). Ele resolve selecionar uma cor para cada estado e mantém as
orientações (horizontal e vertical) em preto, usando hidrocor para representar os Estados Fulanis e os
Bantus. A cor azul foi usada para destacar os grandes lagos da África, a fim de servirem de referências
territoriais.

O letreiro e o fechamento do mapa temático


Neste momento de pensar nas partes escritas do mapa (título, legenda, toponímia e observações),
escrever à mão pode “matar” o trabalho. O uso de papel milimetrado e/ou quadriculado é uma boa
solução. Observa-se o tamanho dos espaços no mapa e desenham-se as letras na proporção possível.
Depois, são transferidas para o mapa.

EXEMPLO: O professor já tem em casa papel quadriculado (formato I) e utiliza esse material. Faz as
letras vazadas e dá uma cor marrom ou preta, repetindo essa cor nos outros letreiros. A figura 3 mostra
um extrato de uma folha de papel quadriculado com possibilidades de letras a serem desenhadas. O
educador dá uma checada nos dados, na(s) fonte(s), nos textos escritos e não deve esquecer de colocar
seu nome como elaborador. Ao final, o professor se surpreende com o que construiu e não espera a hora
para ir dar a sua aula com o mapa que fez.
Com o auxílio de uma abordagem cartográfica no processo de ensino e aprendizagem, o professor
pode tratar com mais propriedade o Brasil e o território africano como espaços produzidos pelos grupos
humanos, que estão em contato permanente com dois tipos de forças: as históricas e as naturais. Nesse
sentido, as historiografias brasileira e africana, que têm sido demasiadamente mascaradas e, sobretudo,
mutiladas, necessitam passar por um processo de desmistificação mais sistemático, como meio
fundamental para modificar a persistência da discriminação do negro na sociedade brasileira. Sobre essa
situação secular, Milton Santos lembra que “Os negros não são integrados no Brasil. Isso é um risco para
a unidade nacional”

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Figura 3: © 1989 by Geog. Rafael Sanzio Araújo dos Anjos

RACISMO, PRECONCEITO E DISCRIMINAÇÃO

Procedimentos didático-pedagógicos e a conquista de novos comportamentos

Véra Neusa Lopes


Professora e Técnica em Educação do Estado do Rio
Grande do Sul.
Bacharel e licenciada em Ciências Sociais, com
especialização em Planejamento da Educação. Assessora dos
Agentes de Pastoral Negros/Rio Grande do Sul, para Assuntos
de Planejamento na Área da Educação.

Considerações iniciais
A educação escolar, de caráter obrigatório, prevista nas leis de ensino vigentes, deve:
a) caracterizar-se como processo de desenvolvimento do indivíduo – dinâmico, em permanente
transformação e atualização – identificando, portanto, um modelo educacional não fechado, receptivo às
mudanças que ocorrem na sociedade e que, consequentemente, se refletem na escola (microsistema) e
nela interferem;
b) propor o conhecimento como processo de aproximações e produto de construções sucessivas, a
partir da realidade, como resultado do diálogo permanente estabelecido entre os sujeitos, em razão do
objeto de aprendizagem, numa ação contínua de troca e ampliação dos saberes. Isto significa que não
há conhecimento acabado, pronto e que sempre, ao longo da vida, da qual o tempo escolar é apenas um
dos segmentos, o homem tem oportunidades variadas de realizar aprendizagens que se expandem e que
se completam, tendo o real como base a partir do qual as aprendizagens acontecem e o diálogo como
estratégia principal de sustentação dessas aprendizagens;
c) preocupar-se em colocar o professor na obrigação de romper com o papel que, tradicionalmente,
tem assumido – de reprodutor de conhecimento – levando-o a uma nova postura de agilizador da
produção de conhecimento em parceria com seus alunos e a comunidade, na construção coletiva do
saber, o que se traduz pelo processo de ajuda mútua que deve estabelecer-se entre professor e aluno;
d) entender e colocar o aluno como centro do processo educativo, transformando-o, efetivamente,
em sujeito do conhecimento construído/ produzido, sendo aquele que, com o apoio do professor, aporta
novos saberes aos que já detém, invalidando a ideia de que o aluno aprende porque o professor ensina.
Considerando o modelo de educação que ora é proposto em âmbito nacional, essa nova ordem
pedagógica coloca a problematização como a forma adequada de abordagem indispensável para que se
construam efetivos conhecimentos escolares, a partir do estabelecimento de relação crítica entre as
realidades – presente/presente, presente/passado – 3e expectativas de futuro, com a possibilidade de,
usando a criatividade, antever alternativas de soluções para problemas existentes, como por exemplo, os
de racismo, preconceito e discriminação racial, realidades em nosso meio.
Procedimentos de pesquisa, em nível escolar, são relevantes para o melhor conhecimento da
realidade, embasando medidas e ações que não perpetuem o “status quo”. Tais procedimentos devem

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ser utilizados desde os primeiros anos escolares, associados a outros que vão permitindo a professor e
alunos o alargamento de seus horizontes culturais e, por consequência, uma nova visão de mundo em
que todos perdem com a prática do racismo, sentimentos de preconceito e ações de discriminação racial.
Um olhar atento sobre a realidade do povo brasileiro mostra uma sociedade multirracial e pluriétnica
que faz de conta que o racismo, o preconceito e a discriminação não existem. No entanto, afloram a todo
momento, ora de modo velado, ora escancarado, e estão presentes na vida diária.
Por outro lado, a educação escolar está profundamente comprometida com um projeto coletivo de
mudanças sociais, independentemente da diversificação cultural dos vários grupos étnicos que compõem
a sociedade, considerando que as diferenças culturais e étnicas são enriquecedoras na conformação e
organização do tecido social.

Então, para que esse compromisso se efetive é fundamental que, trabalhando com a realidade, num
diálogo permanente, numa situação de aprendizagem contextualizada, usando procedimentos
adequados, o aluno se descubra membro atuante dessa sociedade, na qual pode e deve ser capaz de
interferir e promover modificações que conduzam a um clima de verdadeira cidadania e democracia.
É preciso insistir sempre que a sociedade brasileira é preconceituosa e discriminadora em relação à
sua população. Em decorrência, o modelo de educação não tem sido inclusivo, ainda quando permita a
entrada de todos na escola. Todos entram, ou a maioria entra, mas nem todos saem devidamente
escolarizados, aptos a enfrentar a vida como verdadeiros cidadãos. A instituição escolar precisa
desenvolver programas que, reconhecendo as diferenças e respeitando-as, promovam a igualdade de
oportunidades para todos, o que se traduz pela oferta de escola de qualidade.
Os negros, ao longo da história do Brasil, têm sido, juntamente com os índios, os mais discriminados.
Essa questão deve ser abordada na escola, incluída objetivamente no currículo, de tal forma que o aluno
possa identificar os casos, combatê-los, buscar resolvê-los, fazendo com que todos sejam cidadãos em
igualdade de condições, a despeito das diferenças e especificidades que possam existir.
Forçoso é reconhecer, porém, que muitos professores não sabem como proceder. É preciso ajudá-los,
pondo ao seu alcance pistas pedagógicas que coloquem professor e alunos frente a frente com novos
desafios de aprendizagem.
O combate ao racismo, ao preconceito e à discriminação, em nível escolar, deve tomar as mais
diferentes formas de valorização da pessoa humana, povos e nações, valorização que se alcança quando
descobrimos que as pessoas, mesmo com suas dessemelhanças, ainda são iguais entre si e iguais a
nós, com direito de acesso aos bens e serviços de que a sociedade dispõe, de usufrui-los, criar outros,
bem como de exercer seus deveres em benefício próprio e dos demais.
O esforço a ser desenvolvido, a partir desta proposta que aqui fazemos, deve extrapolar as fronteiras
da sala de aula, derramar-se por sobre a escola e atingir a comunidade em torno dela, permitindo a todos
os envolvidos novos comportamentos compatíveis com a conquista da cidadania numa sociedade
verdadeiramente democrática.
O desafio está posto. Mãos à obra em busca de soluções!

Racismo, preconceito e discriminação: contrapontos da cidadania


Construir uma nação livre, soberana e solidária, onde o exercício da cidadania não se constitua como
privilégio de uns poucos, mas direito de todos, deve ser a grande meta a ser perseguida por todos
segmentos sociais.
As pessoas não herdam, geneticamente, ideias de racismo, sentimentos de preconceito e modos de
exercitar a discriminação, antes os desenvolvem com seus pares, na família, no trabalho, no grupo
religioso, na escola. Da mesma forma, podem aprender a ser ou tornar-se preconceituosos e
discriminadores em relação a povos e nações. Para Valente:
a) preconceito racial é ideia preconcebida suspeita de intolerância e aversão de uma raça em relação
a outra, sem razão objetiva ou refletida. Normalmente, o preconceito vem acompanhado de uma atitude
discriminatória;
b) discriminação racial é atitude ou ação de distinguir, separar as raças, tendo por base ideias
preconceituosas.

O Programa Nacional de Direitos Humanos considera o preconceito como atitude, fenômeno


intergrupal dirigido a pessoas ou grupos de pessoas; é predisposição negativa contra alguém; algo
sempre ruim: predisposição negativa, hostil, frente a outro ser humano; desvalorização do outro como
pessoa, considerado indigno de convivência no mesmo espaço, excluído moralmente.

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A discriminação supervaloriza determinadas culturas, dá ao dominador a ideia de que é o melhor e
desenvolve no discriminado o sentimento de menos-valia. Permite que a sociedade seja considerada sob
duas óticas distintas e divergentes:
- a do discriminador, que manda e se considera o mais capaz, o mais culto, o dono do mundo e das
pessoas, que sempre estabelece as regras do jogo que lhe interessa, que mantém sua autoestima em
alta às custas do outrem.
- a do discriminado, que fica à mercê das decisões do discriminador, o qual tenta organizar a vida do
grupo social em função de seus interesses e privilégios; que tem de lutar bravamente para elevar sua
autoestima, que tem de construir sua identidade a duras penas.

A escola, como parte integrante dessa sociedade que se sabe preconceituosa e discriminadora, mas
que reconhece que é hora de mudar, está comprometida com essa necessidade de mudança e precisa
ser um espaço de aprendizagem onde as transformações devem começar a ocorrer de modo planejado
e realizado coletivamente por todos os envolvidos, de modo consciente.
Professor e alunos devem organizar-se em comunidades de aprendizagem, onde cada um chegue
com seus saberes e juntos vão construir novos conhecimentos num processo de trocas constantes,
desmistificando situações de racismo, preconceito e discriminação arraigados nos grupos sociais e nas
pessoas individualmente. Nesse aprender coletivo, professor e alunos acabam por enriquecer o processo
educativo para ambos os sujeitos da aprendizagem. Especialmente quando se trata de racismo,
preconceito e discriminação, o investigar e o aprender juntos garantem aprendizagens de melhor
qualidade, porque ruídas coletivamente.
A educação escolar deve ajudar professor e alunos a compreenderem que a diferença entre pessoas,
povos e nações é saudável e enriquecedora; que é preciso valorizá-la para garantir a democracia que,
entre outros, significa respeito pelas pessoas e nações tais como são, com suas características próprias
e individualizadoras; que buscar soluções e fazê-las vigorar é uma questão de direitos humanos e
cidadania.
Aprendendo a se ver, a ver o seu entorno (família, amigos, comunidade imediata) de modo objetivo e
crítico, a comparar todos elementos com os de outros tempos e lugares, a criança desenvolve
comportamentos adequados para viver numa sociedade democrática.

A proposta didático-pedagógica apresentada, com algumas pistas para o professor, leva em conta
esses contrapontos da cidadania – o racismo, o preconceito e a discriminação – e destaca sempre que:
a) quem tem ideias preconceituosas e discrimina – menospreza ou despreza outras pessoas, grupos
sociais, povos ou nações; desrespeita aquele ou aquilo que considera diferente e, por isso, inferior;
domina, subjuga (pois assume o papel de amo e senhor em relação ao outro), pensa deter o poder, gera
conflito, é intolerante, tem mania de superioridade, mesmo quando não é o melhor; pensa que os demais
são inferiores e devem ser seus subalternos; escraviza; induz o outro a ter baixa autoestima.
b) quem aprende a não prejulgar e a não discriminar – respeita as diferenças entre pessoas, povos
e nações, busca o equilíbrio nos grupos a que pertence, reconhece que a vida só é possível porque
pessoas, povos e nações são interdependentes; tem auto estima em alta; exercita o bem-querer em
relação aos outros (pessoas, povos e nações).
A proposta pedagógica deve voltar-se, assim, para um trabalho continuado de valorização das
pessoas, povos e nações, num combate permanente às ideias preconcebidas e às situações de racismo
e discriminação com que nos defrontamos no dia-a-dia.

Não esquecer dos objetivos


Quando a finalidade é construir a cidadania numa sociedade pluriétnica e pluricultural como é o caso
da sociedade brasileira, é preciso que se tenha presente um elenco de objetivos com os quais se deve
trabalhar. Por exemplo, os Parâmetros Curriculares Nacionais constituem, hoje, uma referência que
nenhum professor pode desconhecer. A seguir, estão sugeridos alguns objetivos que podem nortear o
trabalho a ser realizado. Outros poderão ser buscados e selecionados.
Como objetivos do ensino fundamental, de caráter mais geral, podemos destacar:
- Compreender a cidadania como exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais, adotando,
no dia-a-dia, atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças, respeitando o outro e exigindo
para si o mesmo respeito.
- Posicionar-se de maneira crítica, responsável e construtiva nas diferentes situações sociais,
utilizando o diálogo como forma de mediar conflitos e de tomar decisões coletivas.

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- Conhecer características fundamentais do Brasil nas dimensões sociais, materiais e culturais como
meio para construir progressivamente a noção de identidade nacional e pessoal e o sentimento de
pertinência no país.
- Conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro, bem como aspectos
socioculturais de outros povos, e nações, posicionando-se contra qualquer discriminação, baseada em
diferenças culturais, de classe social, de crenças, de sexo, de etnia ou outras características individuais
ou sociais.
- Questionar a realidade, formulando-se problemas e tratando de resolvê-los, utilizando para isso o
pensamento lógico, a criatividade, a intuição, a capacidade de análise crítica, selecionando
procedimentos e verificando sua adequação.
- Contidos nos objetivos do ensino fundamental estão os objetivos de ética, também propostos pelo
PCN, relevantes na medida em que o racismo, preconceito e discriminação têm a ver com valores e
atitudes do homem em suas relações quotidianas com os outros homens. Sugerimos os que seguem,
podendo o professor selecionar outros:
- Compreender o conceito de justiça baseado na equidade e sensibilizar-se pela necessidade da
construção de uma sociedade justa.
- Adotar atitudes de respeito pelas diferenças entre as pessoas, respeito esse necessário ao convívio
numa sociedade democrática e pluralista.
- Compreender a vida escolar como participação no espaço público, utilizando e aplicando
conhecimentos adquiridos na construção de uma sociedade democrática e solidária.
- Valorizar e empregar o diálogo como forma de esclarecer conflitos e tomar decisões coletivas.
- Construir uma imagem positiva de si, o respeito próprio traduzido pela confiança em sua capacidade
de escolher e realizar seu próprio projeto de vida e pela legitimação das normas morais que garantam, a
todos, essa realização.
- Assumir posições segundo seu próprio juízo de valor, considerando diferentes pontos de vista e
aspectos de cada situação.

Cabe ao professor selecionar e retirar do projeto pedagógico em desenvolvimento na escola aqueles


objetivos que digam respeito à cidadania e à democracia e permitam ao aluno um trabalho continuado
contra o racismo, o preconceito e a discriminação.
Definidos a partir do projeto pedagógico e previstos nos planos de curso, os objetivos de ensino
deverão expressar os conceitos, os procedimentos, as atitudes e os valores a serem construídos em sala
de aula por alunos e professores.

Procedimentos didático-pedagógicos
Por fim, chegamos à proposta que deve ser lida e entendida como um conjunto de pistas para ajudar
o professor na árdua tarefa de trabalhar com seus alunos questões de racismo, preconceito e
discriminação. Não pretende colocar o professor numa camisa-de-força, apenas ajudá-lo a encontrar seus
próprios caminhos, em que terá como parceiros seus alunos.
Para facilitar, apresentamos um cenário: escola de 1ª à 4ª série, situada em uma comunidade na
periferia de uma cidade de pequeno porte; Classe de 2ª série ou 1ª ciclo do ensino fundamental, com 30
alunos, entre 7 e 10 anos de idade; crianças brancas de origem italiana, outras de origem alemã, alguns
negros e uns pouco descendentes de japoneses; professora negra (poderia ser de qualquer outra etnia);
quando se desentendem, é comum que sejam ouvidas expressões como negro, saroba, japa, alemão
batata, gringo, sendo que os atributos que acompanham a expressão negro são sempre os mais
ofensivos.
O que poderá ser feito?
- Criar situações que despertem o interesse das crianças para a questão de semelhanças e diferenças
entre os componentes da classe, incluindo a professora. Exemplo: reunir as crianças em roda para
conversarem sobre cada um, explorando perguntas tais como “Quem sou?” e “Como sou?” Deixar que
uma criança comece ou, se for muito difícil, começar pela professora que dará seu endereço, idade,
filiação e se apresentará com suas características físicas, gostos, preferências e usar, se for possível,
com naturalidade a expressão “sou negra”, se for o caso, ou “sou árabe”, ou “sou alemã”, ou “sou índia”,
ou “sou nissei”, ou “sou sansei”. Observar a reação das crianças; não fazer comentários. Fazer com que
todos se apresentem.
- Se for necessário, desenvolver essa conversação por vários dias, de modo que todos tenham a
oportunidade de falar. Exercitar com os alunos a habilidade de falar para um grupo e de ouvir os outros.
- Conversar com as crianças sobre o fato de todos serem brasileiros e estabelecer com elas a diferença
entre descendência e procedência.

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- Pedir a ajuda dos pais, se for o caso, para que as crianças possam fazer um retrato falado de si
mesmos. Envolver os pais nas atividades, se julgar oportuno e conveniente.
- Propor que as crianças, aos pares, se observem e expressem oralmente como veem o seu parceiro.
Descrever como veem a professora. Comentar as verbalizações.
- Pedir às crianças que tragam para sala de aula uma fotografia recente. Tirar uma fotografia de toda
a turma. Observar com as crianças as fotos isoladamente e a foto coletiva. Registrar as observações.
Examinar fotos mais antigas e registrar as observações.
- Verificar a existência de algumas diferenças e semelhanças constatadas. Registrar as descobertas
em uma folha de papel de embrulho, que poderá ir sendo usada ao longo do trabalho. Por exemplo,
algumas diferenças: alguns são meninos, outras são meninas; nem todos têm a mesma altura; todos têm
nome e sobrenomes diferentes; uns são magros, outros são gordos, uns têm a cor da pele bem clara,
outros têm a cor da pele mais escura; uns são brancos, de origem italiana, outros são brancos de origem
alemã, outros são de origem japonesa, outros são de origem afro-brasileira. Existem semelhanças como:
todos têm entre 7 e 10 anos, todos moram no mesmo bairro, todos são brasileiros, embora as origens
possam ser diferentes; todos são saudáveis.
- Analisar com a classe os dados colhidos. Ajudar os alunos a observar que apresentam diferenças e
semelhanças, entre si e com a professora. Observar, por exemplo, que a cor da pele não serve para
definir quem é branco ou não branco, porque há negros que têm a pele branca, há descendentes de
japoneses que também têm a pele bem clara; que se vestem de modo diferente e podem ter hábitos
alimentares e tradições diferentes por causa de sua etnia ou de sua procedência.
- Trabalhar com as crianças a questão dos direitos humanos e dos direitos da criança. Escolher, com
elas, textos, poesias e canções que falem desses direitos. Decodificar as mensagens. Dramatizar. Cantar.
Conhecer a vida dos autores. Buscar informações na cultura popular. Trabalhar com autores negros
brasileiros da música popular brasileira.
- Se possível, organizar visitas a instituições culturais, museus, casas de cultura, existentes na
comunidade ou na cidade, para aprender mais sobre cultura, diversificação cultural, etnias formadoras da
sociedade brasileira.
- Explorar as diferentes culinárias e outras manifestações culturais existentes, preservadas pela
comunidade. Pesquisar, na comunidade, possíveis traços culturais de outros grupos étnicos, além dos
negros.
- Destacar a questão do negro e levar a criança a observar se há, na sala de aula, meninas e/ou
meninos que usam penteados afros. Levar as crianças a observar como é difícil e demorado fazer um
penteado afro nas mulheres. Recortar em jornais e revistas ilustrações de pessoas que estão usando um
desses penteados. Expor. Trazer para sala de aula ilustrações de artistas, como Rugendas e Debret, que,
já na época colonial, mostravam como eram os penteados dos negros no Brasil. Comparar com os
penteados atuais.
- Planejar com as crianças a busca de mais informações sobre os negros brasileiros. Organizar na sala
de aula cantinhos das surpresas, onde poderão ser expostos reálias, documentos, ilustrações,
vestimentas. Usar a entrevista como recurso para descobrir mais sobre o assunto em pauta. Descobrir,
na comunidade, pessoas negras que tenham algo interessante para contar, permitindo reconstituir a
história da localidade.
- Comparar, com as crianças, as formas de vida dos negros da comunidade onde está a escola com o
modo de vida dos escravos. Novamente, valer-se de ilustrações de Rugendas e Debret (Figuras 3, 4, e
5). Recriar, com as crianças, a partir dos materiais a que tiverem acesso, a representação das ideias
trabalhadas.

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Figura 3: Rugendas – Negros serradores de tábuas

Figura 4: Debret – Negro vendedor de carvão e vendedoras de milho

Figura 5: Debret – Vendedores de capim e leite

- Localizar, com o auxílio de recursos audiovisuais disponíveis, os pontos de onde vieram os negros.
Refazer, então, as rotas seguidas. Localizar os pontos de entrada dos negros no Brasil. Levantar alguns
dados dos dias atuais e verificar semelhanças e diferenças de modos de vida dos negros. Observar, com
as crianças, que a África é um grande continente, formado por muitas nações. Descobrir de quais nações
vieram os negros que chegaram ao Brasil.
- Pesquisar, em conjunto com as crianças, sobre hábitos e costumes que os brasileiros têm e que são
de origem africana. Levantar o vocabulário de origem africana.
- Questionar com as crianças se elas conhecem alguém que não gosta de outras pessoas porque são
negras, são pobres, são “polacos”, são judeus ou são ciganos, que não gostam de índios porque são
“preguiçosos”. O que elas pensam disso? O que podem e querem fazer para que isso não aconteça em
sua classe, em sua escola, em suas famílias?
- Encorajar os alunos a que expressem seus sentimentos de diferentes formas verbais e não verbais.
Conversar sobre o significado de cada um deles e os possíveis motivos pelos quais existem. Usar a
dramatização como forma de expressão.
- Utilizar diferentes formas de comunicação verbal e não verbal para apresentar os trabalhos realizados
e relativos às questões de preconceito e discriminação raciais e étnico-culturais.
- Produzir textos coletivos, abordando questões de racismo, preconceito e discriminação.

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- Criar espaços, no âmbito da escola, para que os alunos possam apresentar jornal falado, jornal mural,
dramatizações cujo conteúdo trate da diversificação étnica e cultural existente no Brasil e do papel que o
negro tem desempenhado na formação da sociedade brasileira.
- Criar situações em que as crianças possam imaginar como será o futuro se nada for feito para eliminar
o racismo, o preconceito e a discriminação. Representar esse futuro.
- Propor às crianças que elaborem um documento, onde expressem as ações que podem realizar, para
que não haja mais racismo, preconceito e discriminação na escola, entre seus amigos, na comunidade,
nas famílias, assumindo responsabilidades no cumprimento dos direitos e deveres de cada um como
cidadãos.
- Criar condições para que as crianças desenvolvam o sentido do nós, de pertencer a um grupo, com
direitos e deveres, com objetivos comuns, mantendo, contudo, sua individualidade e diferenciação
cultural, étnica e de gênero.
- Pesquisar sobre artistas que tenham a ver com: diferenciação cultural, cultura nacional, preconceito,
discriminação. Recriar as obras. Analisar com as crianças, por exemplo, algumas obras de Aleijadinho,
danças de origem africana ainda existentes, manifestações culturais como os maçambiques, em
Osório/RS.
- Visitar museus e casas de cultura, se possível, como oportunidade para aprender mais sobre cultura,
democracia, cidadania e etnias que formaram a sociedade brasileira.
- Pesquisar, na comunidade, possíveis traços culturais de outros grupos étnicos, além dos deixados
pelos negros. Pedir a colaboração de pessoas entendidas para explicá-los à classe. Descobrir modos de
preservar esses traços. Descobrir na comunidade pessoas negras que tenham algo a contar.
- Produzir textos coletivos, abordando questões de preconceito e discriminação, e organizar
coletâneas, colocando-as à disposição da comunidade escolar.
- Observar o grupo para perceber os sentimentos de cada criança em relação à diferenciação étnica,
cultural, de gênero, etc., existentes na sala de aula.
- Fazer perguntas ao grupo sobre o que sabem sobre usos e costumes, a língua e as artes dos povos
representados na sala de aula. Mapear com as crianças a situação detectada. Levantar informações
sobre a cultura africana.
- Listar os sentimentos que os componentes do grupo manifestam sobre as questões em estudo. Por
exemplo: felizes, infelizes, surpresos, curiosos, chocados, envergonhados, orgulhosos. Analisar com o
grupo. Valorizar os positivos. Buscar formas de minimizar os negativos.
- Pesquisar situações de preconceito ou discriminação, bem como de valorização das pessoas,
apresentadas pelos meios de comunicação. Analisar com as crianças, identificando os pontos negativos
e os positivos. Questionar em grupo o que poderá ser feito para mudar a situação. Criar faixas, cartazes
com manchetes, destacando os aspectos positivos.
- Selecionar um problema, dentre os levantados, e elencar possíveis soluções. Considerar para cada
solução quais serão as consequências esperadas.
- Repensar, em grupo, novas soluções, quando a adotada não estiver apresentando resultados
desejáveis.

Este elenco de procedimentos e outros tantos que o professor, com certeza, descobrirá, podem ser
desenvolvidos em inúmeras situações ao longo do ano letivo, quando o foco poderá ser outra etnia.
O Brasil precisa de professores dispostos a fazer a revolução das pedagogias. Cada um de nós está
convocado a entrar nesse grupo.

NOGUEIRA, M. A., CATANI, A. M. (Org.). Pierre Bourdieu: escritos de


educação.Petrópolis: Vozes, 1998.

PIERRE BOURDIE: ESCRITOS DE EDUCAÇÃO

Em Sobre as artimanhas da razão imperialista, Bourdieu analisa que a tendência do imperialismo


cultural é colocar dentro do âmbito escolar uma visão única e verdadeira, em que dogmas como saber é
poder “reinam” à vontade. A moeda de troca é o acúmulo de capital intelectual, deixando de lado as
identidades sociais, históricas, culturais e políticas particulares dos envolvidos no processo educacional
em questão10.
10
CERQUEIRA, Eduardo Tramontina Valente. “Escritos de Educação” por Pierre Bourdieu. Revista ACOALFAplp: Acolhendo a Alfabetização nos Países de
Língua portuguesa, São Paulo, ano 2, n. 4, 2008. Disponível em: <http://www.mocambras.org> e ou <http://www.acoalfaplp.org>. Publicado em: março 2008.

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No texto Método científico e hierarquia social dos objetos são analisados os campos de produção
simbólica regidos pela hierarquia dos objetos legítimos, possíveis de legitimação ou irrelevantes,
dependentes do momento histórico, social, pela classe intelectual e pelas disciplinas científicas em
questão.
Bourdieu deixa claro que um dos mecanismos para a “separação” dos objetos (por exemplo, em temas
ou assuntos) relevantes e não relevantes a um determinado sistema educacional ou campo cientifico, é
a conivência da opinião de um determinado grupo (social ou intelectual) sobre um tema, ou um objeto
socialmente reconhecido ou não pelos envolvidos no “julgamento”, conforme o contexto histórico em
questão. Observa que os objetos “irrelevantes” (temas ou assuntos), conforme a “comissão julgadora”
são passíveis de censura, de modo a serem tomados como “impróprios” ou temas “sem importância” em
dado contexto histórico.
Em A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura, Bourdieu analisa o capital
cultural caracterizado por uma “perpetuação” de um sistema de valores sociais, determinados pela união
de conhecimentos, informações, sinais linguísticos, posturas e atitudes com suas particularidades que
traçam a diferença de rendimentos acadêmicos frente à escola.
Verifica que para a trajetória escolar, traçada como uma “linha”, sem obstáculos no campo de
produção/reprodução simbólico, exige-se, consciente ou inconscientemente, dos participantes do
processo escolar, o relacionamento natural e familiar com o conhecimento e com a linguagem, o que
diferencia a relação com o saber, mais do que o saber em si. Assim, os relacionamentos “positivos” com
o conhecimento, considerando a qualidade linguística e o capital cultural são, segundo o autor, adquiridos
no seio familiar. Esse mecanismo acontece através de uma aprendizagem difundida explicitamente por
pensamentos e ações característica das classes sociais cultas e, implicitamente, existindo o “reforço”
familiar no sentido de compactuar a cultura, conhecimento, pensamento e ações característicos da classe
dominante.
O autor prossegue em suas considerações com Os três estados do capital cultural e O capital social –
notas provisórias, em que reflete sobre o relacionamento entre capital cultural, a origem social e a
trajetória escolar, desvendando os mitos do “dom” e “talento” naturais.
Em Os três estados do capital cultural, Bourdieu analisa o capital cultural sob três formas: estado
incorporado, estado objetivado e estado institucionalizado.
No estado incorporado, Bourdieu afirma que a assimilação, “enraizamento”, incorporação e
durabilidade do capital cultural em um determinado sistema demandam tempo e somente podem ocorrer
de forma pessoal, não podendo ser “externado”, pois perderia a característica própria de capital cultural
da instituição.
No estado objetivado, o capital cultural aparece na aquisição de bens culturais (escritos, livros,
pinturas, etc.), através do capital econômico, sendo indispensável a “posse” do capital cultural
incorporado, por possuir os mecanismos de apropriação e os “símbolos” necessários à identificação do
mesmo.
Sobre o capital institucionalizado, o autor discorre que a “concretização” do mesmo ocorre na
“propriedade cultural” dos diplomas e sua aquisição.
Para Bourdieu, o capital social é um mecanismo estratégico para difusão de relações em um
determinado sistema social, onde a quantidade de volume de capital social e econômico possuídos
determina a rede de relações sociais que se pode mobilizar.
No texto Futuro de classe e causalidade do provável, é analisado o habitus, “sistema de disposições
duráveis”, no qual a família tem papel fundamental no que diz respeito à “perpetuação” das estratégias
de produção e reprodução de capitais (social, econômico, intelectual etc.) para manter ou melhorar a
posição de um determinado grupo social em um sistema de classes. Observa a funcionalidade implícita
dos mecanismos e estratégias de manutenção e acúmulo de capitais por meio de investimentos na
educação e de casamentos por conveniência. Afirma que, determinado momento histórico pode
demandar a transformação de um capital obsoleto para um mais rentável, conforme o “mercado” de
capitais. Ou seja, as famílias podem mudar suas estratégias “revezando” seu patrimônio, entre: capital
cultural, social, ou econômico.
Em O diploma e o cargo: relações entre o sistema de produção e o sistema de reprodução, Bourdieu
e Boltanski analisam as relações entre o sistema de ensino e o de produção trabalhista, verificando que
a “qualificação” e a “capacidade” do indivíduo (agente) são as moedas do mercado de trabalho utilizadas
amplamente no sistema escolar. Constata o autor, em Classificação, desclassificação, reclassificação, a
existência das estratégias de reprodução, explícita ou implicitamente, com o objetivo de investimentos no
capital escolar, visando à obtenção de graduações em cursos e carreiras bastante prestigiados. As
categorias do juízo professoral: Pierre Bourdieu, juntamente com Saint-Martin, analisa o sistema de
desclassificação e classificação escolar, conforme a avaliação do sistema escolar estruturado em um

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juízo de valor que pode valorizar, ou não, a “intimidade” do indivíduo (agente) com o saber. A forma que
seus pensamentos e ações “compactuam” com a forma de “pensar” da instituição escolar, pode contribuir
para as desigualdades escolares.
Os excluídos do interior: Bourdieu e Champagnhe analisam as desigualdades escolares, em que a
exclusão intra-escolar daqueles de classe menos abastadas ocorre implicitamente no preenchimento de
vagas em cursos menos disputados, onde a correlação entre proveito e benefícios escolares é
considerada para profissões de baixa remuneração, tornando o sistema escolar das profissões de “alto
gabarito” reservado a alguns poucos.
Em As contradições da herança, Bourdieu verifica o papel do capital social, econômico e escolar e de
que forma são repassados no seio familiar para a construção de uma identidade (no capítulo, ressalta-se
o papel do pai), que é sujeita à aceitação, ou não, nos sistemas escolares e, conforme o momento
histórico, determina o desempenho escolar.
Este livro é fundamental para se entender a complexidade de atitudes e ideias predominantes dentro
de um espaço intraescolar e o seu significado implícito, no que se diz respeito às dimensões do capital
intelectual produzidos por uma sociedade dominante. O livro traduz muito bem o que venha a ser
“hierarquia intelectual” na diversidade cultural dentro de um sistema escolar. Vale a pena conferir.

OLIVERIA, Z. R. Educação Infantil: fundamentos e métodos. 7. ed. São Paulo,


Cortez, 2018.

EDUCAÇÃO INFANTIL: FUNDAMENTOS E MÉTODOS

A partir do nascimento, a criança é capaz de realizar movimentos com o corpo com o estímulo visual.
Se expressa por gestos, assume posturas, que, com o tempo, são cada vez mais desenvolvidos.
No primeiro momento, o recém-nascido somente diferencia seu corpo do resto do mundo. Depois toma
seu próprio corpo como ponto de referência para perceber tudo ao seu redor.
A motricidade também pode ser desenvolvida por meio da manipulação de objetos com formas, cores,
texturas, pesos e volumes diferentes. Ao lidar com esses objetos, a criança altera sua postura conforme
as diferenças de um objeto para o outro. Isso faz com que a criança se desenvolva.
Com o tempo a criança passa a usar a fala. Para adquirir a língua, precisa de um sistema anatômico
e neurofisiológico adaptado, mas a linguagem também é adquirida por um processo sócio histórico. O
desenvolvimento da fala tem forte incentivo da necessidade de comunicação verbal com outra pessoa.
As crianças entram em um processo de comunicação no qual são motivadas a indagar sobre o mundo.
Cada descoberta é uma nova questão. A capacidade de entender e produzir sons da fala são o precursor
mais direto da linguagem. Os bebês distinguem sons e passam a ter reações a sons próprios de sua
língua materna enquanto esquecem outros. Esse desenvolvimento vai se esquecer conforme a
capacidade de categorização de objetos, imitação e memória, que são necessárias para reproduzir gestos
e sons. Esse desenvolvimento se prolongará pela vida toda, principalmente pela formação escolar.
Durante o primeiro ano de vida, várias habilidades de comunicação e questionamento se concentram
para formar um conjunto de habilidades da linguística. É nessa fase que a criança começa a compreender
certos pedidos e proibições. Logo depois se percebe a produção das palavras e uma explosão de
vocabulário. A capacidade de formar palavras é observada em torno dos vinte meses, seguida pela
linguística.
A língua é mais operável por volta dos quatro ou cinco anos, período em que a criança domina o
essencial da fala. A partir dos cinco anos, acontecem novos progressos: o domínio de estruturas
linguísticas mais complexas, reorganização semântica (a criança emprega um mesmo termo em um
sentido diferente do sentido do adulto), desenvolvimento de artigos e pronomes que asseguram coesão
a seus discursos e correção das palavras e frases. Esse sistema continua a se desenvolver e aperfeiçoar
até a pré-adolescência, enriquecido pelas experiências.
O processo de aprendizagem evolui de uma participação de um parceiro mais experiente – geralmente
o professor, mas também pode ser outro aluno ou o discurso existente em um livro didático – empresta à
criança suas funções psicológicas.
De princípio, pensamento e linguagem têm várias origens. Tem o pensar sensório-motor e a linguagem
não cognitiva, por exemplo, balbuciar. Porém, ambos os elementos se concentram no desenvolvimento
para a formação do pensamento discursivo.
A narrativa da criança pequena é, inicialmente, um relato enumerativo de origem perceptiva e motora,
reunindo objetos segundo a relação deles na atividade. O relato infantil de determinado caso ou evento

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não busca o equilíbrio entre causas e efeitos, a proporcionalidade entre ação e resultado, a coerência
entre as partes. É formado pelo encadeamento de circunstâncias organizado segundo locuções (então,
depois), sendo a própria relação de tempo simples coincidência de circunstâncias (OLIVEIRA).
A descrição de algo pela criança requer coordenar suas próprias impressões e processos mentais.
Para representar algo, a criança o exterioriza como um objeto distinto, por meio de imagens. Mas,
essas imagens encontram-se combinadas com atos e situações vividas. Isso faz com que a experiência
da criança apareça misturada com seus desejos, lembranças e rotinas. Por isso, ao tentarem responder
sobre significado de uma palavra, as crianças muitas vezes reúnem elementos de experiências anteriores
e os ajustam a aspectos distintivos de cada situação. Algumas vezes as crianças se referem a um conceito
de modo mais descritivo, por fazerem parte de algo que já viveram. Entretanto, a criança tem dificuldade
para articular os conteúdos provenientes das diversas fontes. Na verdade, os ambientes linguísticos em
que ela se insere desempenham papel fundamental no aumento ou superação das confusões, o que
novamente desloca o olhar sobre a criança, vista isoladamente, para o contexto em que ela vive.
Na realidade, a capacidade da criança de recombinar sinais e sentidos, respondendo de forma sempre
nova a cada situação-característica da criatividade humana interage com a tentativa sistemática das
instituições educacionais de controlar suas respostas, inclui-las em moldes determinados que ofereçam
ilusório compartilhar de sentidos, provisória estabilidade, constantemente desafiada. Para superar essa
barreira, devemos transformar as formas como as práticas educativas são pensadas e considerar a
interação social como elemento mais importante para promover oportunidades de aprendizagem e
desenvolvimento.
11
Uma nova introdução ao tema
Em nosso país, as instituições mantidas pelo poder público têm dado prioridade de matrícula aos filhos
de trabalhadores de baixa renda, invocando a noção de “risco social”. Por vezes, o argumento é que a
educação das crianças em idade anterior à do ingresso no ensino fundamental deve ser um serviço de
assistência às famílias, para que pais e mães possam trabalhar despreocupadas com os cuidados básicos
a serem ministrados a seus filhos pequenos. Em outras ocasiões, sustenta-se, particularmente por parte
dos grupos sociais privilegiados, que a creche e pré-escola devem ser organizações preocupadas em
garantir a aprendizagem e o desenvolvimento global das crianças desde o nascimento.

(...) não é possível ter guarda das crianças sem as educar, e educá-las envolve também tomar conta
delas. A existência desse tipo de argumentação só se explica por razões históricas, como uma das formas
que a sociedade brasileira, com suas marcantes desigualdades sociais para regular as oportunidades de
acesso aos bens culturais de que dispõem as diferentes camadas da população.

Pode-se falar em uma escola da infância?


Na educação grega do período clássico, “infância” referia-se a seres com tendências selvagens a
serem dominadas pela razão e pelo bem ético e político. Já o pensamento medieval entendia a infância
como evidência da natureza pecadora do homem, pois nela a razão, reflexo da luz divina, não se
manifestaria.
(...) propomos que creches e pré-escolas busquem aproximar cultura, linguagem, cognição e
afetividade como elementos constituintes do desenvolvimento humano e voltados para a construção da
imaginação e da lógica, considerando que estas, assim como a sociabilidade, afetividade e a criatividade,
têm muitas raízes e gêneses.
A forte influência, na área da educação infantil, de uma história higienista, de priorização de cuidados
de saúde, e assistencialista, que ressalta o auxílio a população de risco social, tem feito com que as
propostas de creches e pré-escolas oscilem entre uma ênfase maior ou no cuidar ou no educar,
apresentando dificuldades para integrar as duas tarefas.

1. Metas almejadas
“A Educação Infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento
integral da criança até seis anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social,
complementando a ação da família e da comunidade” (Lei 9394/ 96, artigo 29).

Na educação infantil, hoje, busca-se ampliar certos requisitos necessários para adequada inserção da
criança no mundo atual: sensibilidade (estética e interpessoal), solidariedade (intelectual e
comportamental) e senso crítico (autonomia, pensamento divergente).

11
https://goo.gl/BwZjSz

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2. Educação para a cidadania e para o convívio com diferenças
Ser cidadão significa ser tratado com urbanidade e aprender a fazer o mesmo em relação às demais
pessoas, ter acesso a formas mais interessantes de conhecer e aprender a enriquecer-se com a troca de
experiências com outros indivíduos.
Isso implica tomar consciência de problemas coletivos e relacionar experiências da própria
comunidade com o que ocorre em outros contextos. A educação para a cidadania inclui aprender a tomar
a perspectiva do outro (...) e ter consciência dos direitos e deveres próprios e alheios.

Os primeiros passos na construção das ideias e práticas de educação infantil


No que se refere à educação da criança pequena em creches e pré-escolas, práticas educativas e
conceitos básicos foram sendo constituídos com base em situações sociais concretas que, por sua vez,
geraram regulamentações e leis como parte de políticas públicas historicamente elaboradas.
Concepções, muitas vezes, antagônicas, defendidas na educação infantil têm raízes em momentos
históricos diversos e são postas em prática hoje sem considerar o contexto de sua produção.

3. A construção de concepções teóricas sobre a educação da infância


A discussão sobre a escolaridade obrigatória, que se intensificou em vários países europeus nos
séculos XVIII e XIX, enfatizou a importância da educação para o desenvolvimento social. Nesse momento,
a criança passou a ser o centro do interesse educativo dos adultos, o que tornava a escola (pelo menos
para os que podiam frequentá-la) um instrumento fundamental.

Alguns setores das elites políticas dos países europeus sustentavam que não seria correto para a
sociedade como um todo que se educassem as crianças pobres, para as quais era proposto apenas o
aprendizado de uma ocupação e da piedade. Opondo-se, alguns reformadores protestantes defendiam a
educação como um direito universal.

Autores como Comênio, Rousseau, Pestalozzi, Decroly, Froebel e Montessori, entre outros,
estabeleceram as bases para um sistema de ensino mais centrado.

Um olhar sobre as novas propostas educacionais


Educar crianças menores de 6 anos de diferentes condições sociais já era uma questão tratada por
COMÊNIO (1592 - 1670), educador e bispo protestante checo.
(...) Em 1637 elaborou um plano de escola maternal em que recomendava o uso de materiais
audiovisuais, como livros de imagens, para educar crianças pequenas.
Afiançava ele que o cultivo dos sentidos e da imaginação precedia o desenvolvimento do lado racional
da criança. Impressões sensoriais advindas da experiência com manuseio de objetos seriam
internalizadas e futuramente interpretadas pela razão. Também a exploração do mundo no brincar era
vista como uma forma de educação pelos sentidos.

(...) o filósofo genebrino Jean Jacques ROUSSEAU (1712 - 1778) criou um proposta educacional em
que combatia preconceitos, autoritarismos e todas as instituições sociais que violentassem a liberdade
característica da natureza. Ele se opunha à prática familiar vigente de delegar a educação dos filhos a
preceptores, para que estes os tratassem com severidade, e destacava o papel da mãe como educadora
natural das crianças.

As ideias de Rousseau abriram caminho para as concepções educacionais do suíço PESTALOZZI


(1746 - 1827), que também reagiu contra o intelectualismo excessivo da educação tradicional.

Pestalozzi destacou ainda valor educativo do trabalho manual e a importância de a criança desenvolver
destreza prática.

Levou adiante a ideia de prontidão, já presente em Rousseau, e de organização graduada do


conhecimento, do mais simples ao mais complexo, que já aparecia em Comênio. Sua pedagogia
enfatizava ainda a necessidade de a escola treinar a vontade e desenvolver as atitudes morais dos
alunos.

As ideias de Pestalozzi foram levadas adiante por FROEBEL (1782 – 1852), educador alemão (...)
criou em 1857 o kindergarden (‘jardim de infância”), onde crianças e adolescentes (...) estariam livres
para aprender sobre si mesmos e sobre o mundo.

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O manuseio de objetos e a participação em atividades diversas de livre expressão por meio da música,
de gestos, de construções com papel, argila e blocos ou da linguagem possibilitariam que o mundo interno
da criança se exteriorizasse, a fim de que ela pudesse, então, ver-se objetivamente e modificar-se,
observando, descobrindo e encontrando soluções.

A educação infantil europeia no século XX


No período que se seguiu a Primeira Guerra Mundial, por exemplo, com o aumento do número de
órfãos e a deterioração ambiental, as funções de hospitalidade e de higiene exercidas pelas instituições
que cuidavam da educação infantil se destacaram.

A sistematização de atividades para crianças pequenas com o uso de materiais especialmente


confeccionados foi realizada por dois médicos interessados pela educação: Ovídeio Decroly e Maria
Monterossi. DECROLY (1871 - 1932), médico belga, trabalhando com crianças excepcionais, elaborou,
em 1901, uma metodologia de ensino que propunha atividades didáticas baseadas na ideia de totalidade
do funcionamento psicológico e no interesse da criança, adequadas ao sincretismo que ele julgava ser
próprio do pensamento infantil.
(...) psiquiatra italiana Maria Montessori (1879 - 1952) inclui-se também na lista dos principais
construtores de propostas sistematizadas para a educação infantil no século XX. Tendo sido encarregada
da seção de crianças com deficiência mental em uma clínica psiquiátrica de Roma, produziu uma
metodologia de ensino com base nos estudos dos médicos Itard e Segun, que haviam proposto o uso de
materiais apropriados como recursos educacionais.

Ao contrário de Rousseua, que defendia a autoeducação, Montessori não aceitava a natureza como o
ambiente apropriado para o desenvolvimento infantil.

Montessori criou instrumentos especialmente elaborados para a educação motora (...) e para a
educação dos sentidos e da inteligência – por exemplo, letras móveis, letras recortadas em cartões-lixa
para aprendizado de operações com números. Foi ainda quem valorizou a diminuição do tamanho do
mobiliário usado pelas crianças nas pré-escolas e a exigência de diminuir os objetos domésticos
cotidianos a serem utilizados para brincar na casinha de bonecas.

Destacaram-se, na pedagogia e na psicologia, no período seguinte à Primeira Guerra Mundial (quando


era proposta a salvação social pela educação), as ideias a respeito da infância como fase de valor positivo
e de respeito à natureza. Tais ideias impulsionara um espírito de renovação escolar que culminou com o
Movimento das Escolas Novas. Esse movimento se posicionava contra a concepção de que a escola
deveria preparar para a vida com uma visão centrada no adulto, desconhecendo as características do
pensamento infantil e os interesses e necessidades próprias da infância.

Celestin Freinet (1896 – 1966) (...) Para ele, a educação que a escola dava ás crianças deveria
extrapolar os limites da sala de aula e integrar-se às experiências por elas vividas em seu meio social.

A pedagogia de Freinet organiza-se ao redor de uma série de técnicas e atividades, entre elas as
aulas-passeio, o desenho livre, o texto livre, o jornal escolar, a correspondência interescolar, o livro da
vida. Inclui ainda oficinas de trabalhos manuais e intelectuais, o ensino por contratos de trabalho, a
organização de cooperativas na escola. Apesar de ele não ter trabalhado diretamente com crianças
pequenas, sua experiência teve lento mas marcante impacto sobre as práticas didáticas em creches e
pré-escolas em vários países.

Os primeiros passos da história da Educação Infantil


Ademais, a abolição da escravatura no Brasil (...) concorreu para o aumento do abandono de crianças
e para a busca de novas soluções para o problema da infância, as quais, na verdade, representavam
apenas uma “arte de varrer o problema para debaixo do tapete”: criação de creches, asilos e internatos,
vistos na época como instituições assemelhadas e destinadas a cuidar de crianças pobres.

O Brasil República
Particulares fundaram em 1899 o Instituto de Proteção e Assistência a Infância, que precedeu a
criação, em 1919, do Departamento da Criança, iniciativa governamental decorrente de uma preocupação
com a saúde pública que acabou por suscitar a ideia de assistência científica à infância (...) surgiu uma

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série de escolas infantis e jardins de infância, alguns deles criados por imigrantes europeus para o
atendimento de seus filhos.

Enquanto isso, a urbanização e a industrialização nos centros urbanos maiores, intensificadas no início
do século XX, produziram um conjunto de efeito que modificaram a estrutura familiar tradicional no que
se refere ao cuidado com os filhos.

Como a maioria da mão de obra masculina estava na lavoura, as fábricas criadas na época tiveram de
admitir grande número de mulheres no trabalho. O problema do cuidado de seus filhos enquanto
trabalhavam não foi, todavia, considerado pelas indústrias que se estabeleciam, levando as mães
operárias a encontrar soluções emergenciais em seus próprios núcleos familiares ou em outras mulheres.

(...) a vida da população das cidades, conturbadas pelo projeto de industrialização e urbanização do
capitalismo monopolista e excludente em expansão, exigia paliativos aos seus efeitos nocivos nos centros
urbanos, que se industrializavam rapidamente e não dispunham de infraestrutura urbana em termos de
saneamento básico, moradias, etc., trazendo o perigo de constantes epidemias. A creche seria um desses
paliativos, na visão de sanitaristas preocupados com as condições de vida da população operária, ou
seja, com a preservação e reprodução da mão de obra, que geralmente habitava ambientes insalubres.

Entendidas como “mal necessário”, as creches eram planejadas como instituições de saúde, com
rotinas de triagem, lactário, preocupação com a higiene do ambiente físico. Por trás disso, buscava-se
regular todos os atos da vida, particularmente dos membros das camadas populares.

No imaginário da época, a mãe continuava sendo a dona do lar devendo limitar-se a ele (...). O trabalho
com as crianças nas creches tinham assim um caráter assistencial-protetoral. A preocupação era
alimentar, cuidar da higiene e da segurança física, sendo pouco valorizado um trabalho orientado à
educação e ao desenvolvimento intelectual e afetivo das crianças.

Novos tópicos na história da educação infantil no Brasil


(...) debates nacionais sobre os problemas das crianças provenientes dos extratos sociais
desfavorecidos afiançavam que o atendimento pré-escolar público seria elemento fundamental para
remediar as carências de sua clientela, geralmente mais pobre. Segundo essa perspectiva
compensatória, o atendimento às crianças dessas camadas em instituições como creches, parques
infantis e pré-escolas possibilitaria a superação das condições sociais a que estavam sujeitas, mesmo
sem alteração das estruturas sociais geradores daqueles problemas.

PIMENTA, S. G. Professor Reflexivo no Brasil. Gênese e crítica de um


conceito. São Paulo: Cortez, 2015.

PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL: GÊNESE E CRÍTICA DE UM CONCEITO

Valorizando a experiência e a reflexão na experiência, conforme Dewey, e o conhecimento tácito,


conforme Luria e Polanyi, Schõn propõe uma formação profissional baseada numa epistemologia da
prática, ou seja, na valorização da prática profissional como momento de construção de conhecimento,
através da reflexão, análise e problematização desta, e o reconhecimento do conhecimento tácito,
presente nas soluções que os profissionais encontram em ato...(p.19)12
Esse conhecimento na ação é o conhecimento tácito, implícito, interiorizado, que está na ação e que,
portanto, não a precede. É mobilizado pelos profissionais no seu dia-a-dia, configurando um hábito. No
entanto, esse conhecimento não é suficiente. Frente a situações novas que extrapolam a rotina, os
profissionais criam, constroem novas soluções, novos caminhos, o que se dá por um processo de reflexão
na ação. A partir daí, constroem um repertório de experiências que mobilizam em situações similares
(repetição), configurando um conhecimento prático...(p.20)
Uma das primeiras questões tematizadas dizia respeito aos currículos necessários para a formação
de professores reflexivos e pesquisadores, ao local dessa formação e, sobretudo, às condições de
exercício de uma prática profissional reflexiva nas escolas. O que pôs novamente em pauta de discussão

12
https://bit.ly/2BuFG3X

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as questões organizacionais, o projeto pedagógico das escolas, a importância do trabalho coletivo, as
questões referentes à autonomia dos professores e das escolas; as condições de trabalho, de carreira,
de salário, de profissionalização de professores; a identidade epistemológica (quais saberes lhes são
próprios?); os processos de formação dessa identidade, incluindo a vida, a história, a trajetória pessoal e
profissional; as novas (e complexas) necessidades colocadas às escolas (e aos professores) pela
sociedade contemporânea das novas tecnologias, da informação e do conhecimento, do esgarçamento
das relações sociais e afetivas, da violência, da indisciplina, do desinteresse pelo conhecimento, gerado
pelo reconhecimento das formas de enriquecimento que independem do trabalho; das novas
configurações do trabalho e do desemprego, requerendo que os trabalhadores busquem constantemente
re-qualificação através de cursos de formação contínua etc...(p.21).
O ensino como prática reflexiva tem se estabelecido como uma tendência significativa nas pesquisas
em educação, apontando para a valorização dos processos de produção do saber docente a partir da
prática e situando a pesquisa como um instrumento de formação de professores, em que o ensino é
tomado como ponto de partida e de chegada da pesquisa...(p.22)
E mais, só a reflexão não basta, é necessário que o professor seja capaz de tomar posições concretas
para reduzir tais problemas. Os professores não conseguem refletir concretamente sobre mudanças
porque são eles próprios condicionados ao contexto em que atuam"...(p.23)
A nosso ver, esse 'mercado' do conceito entende a reflexão como superação dos problemas cotidianos
vividos na prática docente, tendo em conta suas diversas dimensões. Essa massificação do termo tem
dificultado O engajamento de professores em práticas mais críticas, reduzindo-as a um fazer técnico.
Contraditoriamente, esse fazer foi o objeto de crítica do conceito o professor reflexivo...(p.23)
Discorrendo sobre o tema, aponto (Pimenta, 2000) que o saber docente não é formado apenas da
prática, sendo também nutrido pelas teorias da educação. Dessa forma, a teoria tem importância
fundamental na formação dos docentes, pois dota os sujeitos de variados pontos de vista para uma ação
contextualizada, oferecendo perspectivas de análise para que os professores compreendam os contextos
históricos, sociais, culturais, organizacionais e de si próprios como profissionais...(p.24)
Para Gimeno (1999), a fertilidade dessa epistemologia da prática ocorrerá se se considerar
inseparáveis teoria e prática no plano da subjetividade do sujeito (professor), pois sempre há um diálogo
do conhecimento pessoal com a ação. Esse conhecimento não é formado apenas na experiência concreta
do sujeito em particular, podendo ser nutrido pela "cultura objetiva" (as teorias da educação, no caso),
possibilitando ao professor criar seus "esquemas" que mobiliza em suas situações concretas,
configurando seu acervo de experiência teórico-prático em constante processo de re-elaboração...(p.26)
Zeichner (1992), a partir de pesquisas que desenvolve junto às escolas e aos professores, formula três
perspectivas a serem acionadas conjuntamente: a) a pratica reflexiva deve centrar-se tanto no exercício
profissional dos professores por eles mesmos, quanto nas condições sociais em que esta ocorre; b) o
reconhecimento petos professores de que seus atos são .fundamentalmente políticos e que, portanto,
podem se direcionar a objetivos democráticos emancipatórios; c) a prática reflexiva, enquanto prática
social, só pode se realizar em, coletivos, o que leva à necessidade de transformar as escolas em
comunidades de aprendizagem nas quais os professores se apoiem e se estimulem mutualmente...(p.26)
Há que se entender que a escola não é homogênea e os professores não são passivos. Por isso se
faz necessário analisar como estes podem manejar processos de interação entre seus interesses e os
valores e conflitos que a escola representa, para melhor entender que possibilidades a reflexão crítica
pode ter no contexto escolar. Por um lado, as finalidades educativas apresentam um discurso de preparar
para a vida adulta com capacidade crítica em uma sociedade plural. Por outro, o trabalho docente e a
vida da escola se estruturam para negar estas finalidades...(p.27)
A produção acadêmica na área de educação foi significativamente impulsionada com a criação dos
cursos de pós-graduação na área. Alguns programas tiveram expressiva contribuição na análise crítica
da educação brasileira Privilegiando um referencial marxista e gramsciniano na análise dos problemas
educacionais e da escolaridade no país, configuravam um espaço de resistência à então ditadura militar.
Incorporando as contribuições das várias disciplinas que se ocupavam da educação como a Sociologia,
a Antropologia, a Filosofia, a Economia, além da própria Pedagogia, produzindo as primeiras dissertações
e teses, esses programas foram determinantes para a análise crítica da escola e da educação bem como
para o reconhecimento da importância (relativa e não exclusiva) da educação escolar nos processos de
democratização da sociedade...(p.31)
Entendia-se que era necessário que os professores tivessem sólida formação teórica para que
pudessem ler, problematizar, analisar, interpretar e propor alternativas aos problemas que o ensino,
enquanto prática social, apresentava nas escolas (d. Pimenta, 1994; André & Fazenda, 1991; Fusari &
Pimenta, 1989). Essa compreensão suscitou novas propostas curriculares tanto nas legislações estaduais
quanto nas práticas nas escolas, possibilitadas por amplos Programas de Formação Contínua,

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promovidos por Secretarias de Educação com assessoria de universidades. Uma análise dessas
propostas permite que nelas se identifique a importância que colocavam na pesquisa da prática como
proposta formativa, especialmente quando se referiam aos estágios...(p.32)
No entanto, a valorização profissional, incluindo salários e condições de trabalho, foi totalmente abolida
dos discursos, das propostas e das políticas do governo subsequente, que passou a normatizar
exaustivamente a formação inicial de professores e a financiar amplos programas de formação
continua...(p.34)
Numa tentativa de síntese, pode-se apontar os seguintes: a valorização da escola e de seus
profissionais nos processos de democratização da sociedade brasileira; a contribuição do saber escolar
na formação da cidadania; sua apropriação como processo de maior igualdade social e inserção crítica
no mundo (e daí: que saberes? que escola?); a organização da escola, os currículos, os espaços e os
tempos de ensinar e aprender; o projeto político e pedagógico; a democratização interna da escola; o
trabalho coletivo; as condições de trabalho e de estudo (de reflexão), de planejamento; a jornada
remunerada, os salários, a importância dos professores nesse processo, as responsabilidades da
universidade, dos sindicatos, dos governos nesse processo; a escola como espaço de formação continua,
os alunos: quem são? de onde vêm? o que querem da escola? (de suas representações); dos
professores: quem são? como se veem na profissão? Da profissão: profissão? E as transformações
sociais, políticas, econômicas, do mundo do trabalho e da sociedade da informação: como ficam a escola
e os professores? (p.35)
Do ponto de vista conceitual, as questões levantadas em tomo e a partir do professor reflexivo,
investindo na valorização e no desenvolvimento dos saberes dos professores e na consideração destes
como sujeitos e intelectuais, capazes de produzir conhecimento, de participar de decisões e da gestão da
escola e dos sistemas, trazem perspectivas para a re-invenção da escola democrática...(p.36)
A educação é um fenômeno complexo, porque histórico. Ou seja, é produto do trabalho de seres
humanos e, como tal, responde aos desafios que diferentes contextos políticos e sociais lhe colocam. A
educação retrata e reproduz a sociedade; mas também projeta a sociedade que se quer. Por isso, vincula-
se profundamente ao processo civilizatório e humano. Enquanto prática histórica tem o desafio de
responder às demandas que os contextos lhe colocam...(p.37;38)
No que se refere à sociedade da informação e do conhecimento, é necessário distinguir os dois termos.
Hoje a informação chega em grande quantidade e rapidamente a qualquer ponto do planeta. Identificada
como uma instituição que transmite informações, a escola, na ótica neoliberal, tenderia a desaparecer,
porque não apresenta a eficácia dos meios de comunicação nesse processo. Nessa perspectiva, a
educação se resolveria colocando os jovens e as crianças diante das informações televisivas e
internéticas. Portanto, o professor poderia também ser dispensado. Um exemplo dessa lógica é a política
que vem sendo implantada em diferentes estados, com a instalação do tele ensino, no qual as escolas
são equipadas com redes de televisão que transmitem os programas das disciplinas, gerados por uma
central e que coloca os professores como monitores...(p.38)
O que é necessário para qualquer trabalhador (e também para o professor). Mas ter competência é
diferente de ter conhecimento e informação sobre o trabalho, sobre aquilo que se faz (visão de totalidade;
consciência ampla das raízes, dos desdobramentos e implicações do que se faz para além da situação;
das origens; dos porquês e dos para quê). Portanto, competência pode significar ação imediata,
refinamento do individual e ausência do político, diferentemente da valorização do conhecimento em
situação, a partir do qual o professor constrói conhecimento...(p.42)
Os professores e as escolas não são considerados, portanto, como meros executores e cumpridores
de decisões técnicas e burocráticas gestadas de fora. Para isso, o investimento na sua formação inicial e
no desenvolvimento profissional e o investimento nas escolas, a fim de que se constituam em ambientes
capazes de ensinar com a qualidade de que se requer, é grande. São necessárias condições de trabalho
para que a escola reflita e pesquise e se constitua num espaço de análise crítica permanente de suas
práticas. É preciso uma política que transforme as jornadas fragmentadas em integrais; é preciso elevar
os salários a patamares decentes que dignifiquem a profissão docente...(p.44;45)

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SAVIANI, D. Do senso comum à consciência filosófica. 18. ed. Campinas:
Autores Associados, 2009. (Coleção educação contemporânea).

Educação: do senso comum à consciência filosófica13

O autor começa o livro falando do senso comum e consciência filosófica. Sendo estes caracterizados
por conceitos diferentes:

Senso Comum
- Fragmentária
- Incoerente
- Desarticulada
- Implícita
- Degradada
- Mecânica
- Passiva
- Simplista

Consciência Filosófica
- Unitária
- Coerente
- Articulada
- Explícita
- Original
- Intencional
- Ativa
- Cultivada

O trabalho educativo contribui para a passagem do senso comum à consciência filosófica a partir de
uma orientação metodológica específica que leve à reflexão sobre a realidade a partir da "lógica dialética"
e não da "lógica formal". O autor mostra essa orientação metodológica relatando uma situação vivenciada
com seus alunos. Nessa situação ele propôs aos alunos uma questão:
“O educador é agente (causa) ou produto (efeito) da educação?”
A resposta a essa questão a partir da "lógica formal" seria a de que os educadores não podem ser ao
mesmo tempo causa e efeito da educação. Nesse sentido, o princípio é o da não contradição, no qual
uma coisa “é” e não pode ser outra. A partir da "lógica dialética", chegou à conclusão de que educadores
são ao mesmo tempo causa e efeito da educação. Trata-se do princípio da contradição, na qual uma
coisa “é” e não “é” ao mesmo tempo. Por tanto, a lógica dialética nos permite compreender a realidade
em suas múltiplas determinações, em seus diferentes pontos de vista, o que é essencial à consciência
filosófica.
O autor fala que no decurso da história, os seres humanos se deparam com situações de impasse, de
problemas a serem resolvidos. O afrontamento desses problemas exige dos seres humanos a tomada de
certa atitude. Assim, a filosofia se configura como a atitude que o homem toma perante a realidade e que
exige a reflexão. O autor define: “refletir é o ato de retomar, reconsiderar os dados disponíveis, revisar
vasculhar numa busca constante de significado. É examinar detidamente, prestar atenção, analisar com
cuidado. E é isto o filosofar".
Além do senso comum e da filosofia, o seres humanos desenvolveram outras formas, "outros olhares",
na tentativa de compreender a realidade, são elas:

• MITO: intuitivo e transmitido pela tradição cultural, o mito explica a realidade por meio do apelo ao
sobrenatural. (Por exemplo: o mito da “caixa de pandora” para a mitologia greco-romana e o mito da
“maçã” para os cristãos.
• ARTE: não recorre a conceitos logicamente organizados para a explicação da realidade, mas à
imaginação e aos sentimentos.

13
https://bit.ly/2JllLWt

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1546093 E-book gerado especialmente para DALIANE DO NASCIMENTO DOS SANTOS
• CIÊNCIA: caracteriza-se pela intencionalidade, racionalidade e objetividade do método
(experimentação, observação, matematização, comprovação)

Para Saviani, a reflexão filosófica apresenta três características centrais:


• Radical: porque procura ir à raiz das questões.
• Rigorosa: porque realizada a partir de um método que lhe dá coerência.
• De conjunto: porque toma a totalidade, numa atitude globalizante, contextualizada e, ao contrário da
ciência, sem um objeto específico.

Segundo o autor, a função da Filosofia da Educação é “acompanhar reflexiva e criticamente a atividade


educacional de modo a explicitar os seus fundamentos, esclarecer a tarefa e a contribuição das diversas
disciplinas pedagógicas e avaliar o significado das soluções escolhidas. Com isso, a ação pedagógica
resultará mais coerente, mais lúcida, mais justa, mais humana, enfim”.
Desse modo, a filosofia contribui para organização do trabalho educativo no qual é fundamental que
os alunos assumam uma atitude filosófica e sejam capazes de refletir sobre os problemas sobre os quais
eles se defrontam.
Saviani reconhece a importância da educação numa postura incompatível com a postura elitista.
Preocupar-se com a educação, para o autor, significa “preocupar-se com a elevação do nível cultural da
massas; significa, em consequência, admitir que a defesa de privilégios (essência mesma da postura
elitista) é uma atitude insustentável. Isto porque a educação é uma atividade que pressupõe a
heterogeneidade (diferença) no ponto de partida e homogeneidade (igualdade) no ponto de chegada”.
Tendo em vista essa preocupação com a educação, o autor mostra quatro objetivos para a educação:
• Educação para a subsistência: para que o homem brasileiro aprenda a tirar da situação adversa os
meios de sobreviver.
• Educação para a libertação: para que o homem saiba escolher e ampliar as possibilidades de opção.
• Educação para a comunicação: para que o homem adquira os instrumentos aptos para a
comunicação intersubjetiva.
• Educação para a transformação: para a mudança do panorama nacional do qual dependem todos os
outros objetivos.

O autor destaca a questão organização curricular que, para se constituir num instrumento de promoção
humana, precisa ser continuamente confrontada com os objetivos da nossa ação educativa. Dessa forma,
é preciso considerar o currículo como sendo o conjunto das atividades (incluindo o material físico e
humano a elas destinado) que se cumprem com vista a determinado fim, ou seja, o currículo deve
responder à pergunta: "o que se deve fazer para tingir determinado objetivo". Do contrário, pelo seu
tenderá a cristalizar-se no formalismo que consiste exatamente no fato de que a um novo processo se
aplicam mecanicamente formas extraídas de um processo anterior (burocratismo).
A conclusão apresentada por Saviani em relação a educação e sociedade: “em face do quadro da
desintegração cultural brasileira, a educação desempenhará o papel de reforçamento dos laços sociais
na medida em que for capaz de sistematizar a tendência à inovação, solicitando deliberadamente o poder
criador do homem. E ela só poderá fazer isso voltando-se paras as formas de convivência que se
desenvolvem no seio dos diversos grupos sociais estimulando-os na sua originalidade e promovendo o
intercâmbio entre eles a partir dos elos que, embora tênues os unem entre si num mesmo todo social”.

Pertinência Para O Enriquecimento Profissional


O autor tem o objetivo em contribuir para a elevação da prática educativa desenvolvida pelos
professores do nível do senso comum ao nível da consciência filosófica. Ou seja, passar de uma
concepção fragmentária, incoerente, desarticulada, implícita, degradada, mecânica, passiva e simplista
para uma concepção unitária, coerente, articulada, explícita, original, intencional, ativa e cultivada.

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______. História das ideias pedagógicas no Brasil. 2. ed. Campinas: Autores
Associados, 2008.

14
A Editora Autores Associados acaba de lançar a primeira edição de História da ideias pedagógicas
no Brasil, o mais recente livro de Dermeval Saviani, professor emérito da Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP). O acabamento gráfico é primoroso, merecendo destaque a cuidadosa seleção de
imagens pertinentes às épocas abordadas. Aguardado com ansiedade, representa o resultado de sete
anos de labor científico, período em que foram levantadas e compulsadas centenas de fontes
documentais, clássicas e historiográficas acerca do objeto em referência. Ao ser entregue à utilização
pública, o relatório final, agora na forma de livro, constitui-se a primeira história das ideias pedagógicas,
entre nós, construída sob a égide de um único critério teórico-metodológico. Com efeito, algumas
coletâneas têm procurado suprir a ausência de obras dessa natureza, mas, por melhores que sejam, a
heterogeneidade das matrizes analíticas dos colaboradores sempre produz no leitor impressões de
incompletude, parcialidade e desequilíbrio, seja pelas prioridades observadas na seleção das temáticas
seja pelas discutíveis formas de abordagem que revestem algumas delas.
Já no Prefácio, o autor demarca a natureza de sua obra. Mesmo reconhecendo a importância dos
estudos analíticos que verticalizam o exame de objetos específicos, conferiu caráter sintético ao seu livro
respondendo, assim, à carência de escritos "que permitam articular, numa compreensão de mais amplo
alcance, os resultados das investigações particulares" (p. XVI). Essa solução também se justifica pelo
estado de carência de visão de conjunto em que se encontram os destinatários preferenciais visados pelo
autor, os professores. "Foi [...] pensando nos professores que escrevi este livro", diz ele. Afirma, ainda,
sua esperança de que os "resultados da investigação" sejam incorporados "nos programas escolares a
serem trabalhados pelos professores nas salas de aula" (idem). Contudo, não deseja que o seu livro se
transforme num manual didático, mas que seja um "roteiro para o estudo" da educação no Brasil: "num
curso geral sobre a história da educação brasileira, o professor pode tomar esse livro como texto-base,
organizando seminários com grupos de alunos. Nesse caso poderá recomendar, a cada grupo de alunos,
leituras adicionais correspondentes ao período ou fase escolhida, lançando mão das referências
bibliográficas respectivas" (p. XVII). Daí ter preservado, também, todas as 351 referências bibliográficas
que contribuíram para dar suporte à investigação, estendendo-se o seu longo arrolamento entre as
páginas 451 e 472.
Reconheça-se que, para além dessa preocupação do autor com os professores, o livro está fadado a
tornar-se, igualmente, um recurso indispensável aos pesquisadores da área de história da educação, seja
pelo rigor demonstrado no levantamento e na crítica de inúmeras fontes de investigação, seja pela
formulação, ao longo do texto, de diversas hipóteses explicativas para questões ainda não
suficientemente esclarecidas que, por isso, demandam pesquisas complementares. Tanto as fontes
arroladas quanto as hipóteses apresentadas são indicações valiosas e tendem a fecundar novas
investigações.
Mas se História das ideias pedagógicas no Brasil é uma síntese das principais ideias pedagógicas e
das práticas educacionais difundidas ao longo de nossa história, desde a chegada dos primeiros jesuítas
ao Brasil até o início do século XXI, é, também, uma síntese da obra científica de Dermeval Saviani. Ideias
de seus inúmeros e fecundos escritos, produzidos ao longo de três décadas e meia, ora na forma de
pequenos extratos, ora na forma de extensas paráfrases ou, ainda, revestidas de uma nova forma de
expressão para precisar e esclarecer os seus significados, atravessam e pontuam o livro. São as análises
de conjunturas políticas e de objetos educacionais específicos abordados em artigos, são as retomadas
das tendências pedagógicas que permearam a educação no Brasil, além das recolocações sobre a
pedagogia histórico-crítica.
Na Introdução o autor esboça as linhas gerais do projeto de pesquisa que redundou no livro e discorre
sobre questões teóricas norteadoras da análise, começando por objetivar o conceito conferido a ideias
pedagógicas. Justifica os ajustes do projeto, decorrentes de avaliações realizadas ao longo de sua
execução, e discute a "questão da periodização na história das ideias". Essa parte do livro é uma preciosa
lição de rigor científico. A descrição dos passos da investigação, realizada por Saviani, revela, ao mesmo
tempo, um padrão de excelência no exercício da investigação científica que merece ser tomado como
referência por todos os jovens educadores entronizados na atividade de pesquisa.
Para evitar reduções em face dos embates mantidos entre as tendências teóricas presentes no cenário
da história da educação, o autor esclarece, de imediato, sua acepção de ideias pedagógicas: "Por ideias

14
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782008000100016>. Acesso em julho de 2017.

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pedagógicas entendo as ideias educacionais, não em si mesmas, mas na forma como se encarnam no
movimento real da educação, orientando e, mais do que isso, constituindo a própria substância da prática
educativa" (p. 6). Esse esclarecimento é fundamental, pois, considerada à luz do referencial teórico-
metodológico de Saviani, a prática educativa se traduz como expressão de uma forma concreta de
trabalho. Para tanto, o autor sustenta-se, sobretudo, em aportes de Marx e de Gramsci. O resultado
manifesta-se na enorme distância entre a sua obra e o grosso das investigações dos historiadores da
educação no Brasil, que, de forma dominante, ainda se confina ao âmbito das ideias educacionais,
tangenciando o trabalho educativo que se desenvolve dentro das salas de aula. Mesmo quem coloca
como objeto de investigação as ideias pedagógicas, muitas vezes acaba enfatizando esse seu
componente parcial, as ideias educacionais, consagrando a persistência da direção dominante. No livro
de Saviani, reafirme-se, isso não ocorre. Por força de seu domínio teórico, que progressivamente se
refinou ao sabor do tempo e do adensamento de seus estudos, o livro ora lançado capta, de uma forma
não reducionista, as ideias pedagógicas, tanto por força da própria necessidade de apreender seus
determinantes materiais quanto pela preocupação de dimensionar seus efeitos nas práticas escolares.
Essas preocupações já se afirmaram em outros escritos, em especial naqueles em que procurou
estabelecer as bases da pedagogia histórico-crítica, uma proposta que procura encarnar as necessidades
educacionais de nosso tempo, postulando o emprego de conteúdos didáticos e de recursos científicos e
tecnológicos que sintetizem o repertório de conquistas culturais da humanidade (Saviani, 1991).
Quanto à periodização da educação no Brasil, Saviani demonstra que são falsos certos dilemas
amiúde apontados por historiadores da educação. A discussão que empreende demonstra serem
improcedentes a condenação dos critérios de periodização político-administrativa ou de periodização
interna à educação, bem como a apologia do critério que, fundado nas transformações da base material
da sociedade, impõe cortes mecânicos aos quais a educação deve ser amoldada a qualquer preço.
Sustentando-se em Gramsci (p. 4), afirma que o pesquisador, munido do referencial teórico apropriado,
deve realizar a análise de seu objeto associando-o ao(s) movimento(s) conjuntural(ais)
correspondente(s), mas de forma que capte, sobretudo, o movimento orgânico da sociedade. Eis o único
caminho consequente a ser trilhado pelo pesquisador ao perseguir a concretização de seu objeto de
investigação. Eis o caminho palmilhado pelo autor na investigação e na exposição dos seus resultados,
plasmados estes na forma conferida à presente obra.
Quanto à estrutura, o livro divide a educação no Brasil em quatro períodos. O capítulo inicial de cada
período faz, sempre, uma contextualização histórica geral no interior da qual ganham sentido as
mudanças e permanências detectadas nas ideias pedagógicas, expostas em seguida. Na sequência são
descritos, resumidamente, os conteúdos tratados em cada período.
Primeiro período: as ideias pedagógicas no Brasil entre 1549 e 1759: monopólio da vertente religiosa
da pedagogia tradicional
Reportando-se ao período dominado pela pedagogia jesuítica, em três capítulos Saviani discute a
estreita associação entre os processos de colonização, educação e catequese. Analisa o século XVI
enfatizando a educação indígena, o plano de estudos elaborado por Nóbrega, seu enfoque profissional,
decorrente da singularidade das condições históricas do Brasil. Daí falar de uma "pedagogia brasílica",
tendência sufocada nos albores do século XVII com a institucionalização do Ratio Studiorum, que
consagrou nos colégios jesuíticos um plano de estudos universal, elitista e de caráter humanístico.
Segundo período: as ideias pedagógicas no Brasil entre 1759 e 1932: coexistência entre as vertentes
religiosa e leiga da pedagogia tradicional
Também desenvolvido em três capítulos, esse período discute, de início, a época dominada pelas
reformas pombalinas da instrução pública, demarcada pelos anos de 1759 e 1827. A época subsequente,
já no interior do Brasil independente, inaugura-se com a criação de escolas de primeiras letras,
determinada pela aprovação da Lei Imperial de 15 de outubro de 1827, e estende-se até 1932. Quanto
ao primeiro momento, após caracterizar o Iluminismo luso-brasileiro e a atuação de Pombal, descreve as
reformas dos estudos menores, dos estudos maiores e das escolas de primeiras letras, ocorridas nessa
fase. Ressalta as ideias dominantes no pombalismo, decorrentes, em grande parte, dos escritos
de estrangeirados como Verney e Ribeiro Sanches. Discute, em seguida, a Viradeira no reinado de d.
Maria I e os impactos das reformas pombalinas no Brasil, em especial como se expressaram no ideário
de Azeredo Coutinho e na sua obra, o Seminário de Olinda. Para a caracterização do segundo momento,
instaurado após a independência, as ideias, num sentido mais amplo, e as ideias pedagógicas, num
sentido mais restrito, são discutidas a partir de suas aproximações com pensadores da época (Silvestre
Pinheiro Ferreira), com correntes de pensamento e movimentos sociais (ecletismo, positivismo,
catolicismo, abolicionismo, anarquismo, comunismo), com a atuação de pedagogos (Barão de
Macahubas), com as reformas ou propostas de reformas da instrução pública (Assembleia Nacional
Constituinte, Reforma Couto Ferraz, Reforma Leôncio de Carvalho, pareceres de Rui Barbosa, reformas

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republicanas da instrução pública), com os métodos de instrução (método mútuo e método intuitivo) e
com as instituições escolares (grupos escolares).
Terceiro período: as ideias pedagógicas no Brasil entre 1932 e 1969: predomínio da pedagogia nova
A argumentação desenrola-se ao longo de quatro capítulos. Depois de discutir a "modernização da
agricultura cafeeira" e a "questão da industrialização", subdivide o período em três cortes mais
específicos. No primeiro, correspondente ao interregno compreendido entre 1932 e 1947, tematiza o
equilíbrio entre a pedagogia tradicional e a pedagogia nova. Ganha o primeiro plano a atuação de
personagens comprometidos com o processo de renovação da educação, que pontificaram no movimento
escolanovista. Lourenço Filho é tratado como o grande formulador das "bases psicológicas" desse
movimento. Fernando de Azevedo teria sido mentor de suas "bases sociológicas" nas reformas do ensino.
Anísio Teixeira, por sua vez, é celebrado como o articulador das "bases filosóficas e políticas da
renovação escolar" (p. 198-228). São expostos os embates desenvolvidos pela Associação Brasileira de
Educação (ABE), que culminaram com o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (p. 228-254). A
reação católica ao movimento escolanovista merece análise centrada na figura de seu líder maior, Alceu
Amoroso Lima (p. 254-258). As iniciativas governamentais são descritas com base na atuação de
personalidades como Francisco Campos e Gustavo Capanema, que estiveram à frente do Ministério da
Educação (p. 265-270). A constatação é a de que houve equilíbrio de forças entre renovadores e católicos,
nesse período. Mas não só eles estiveram em cena, daí o destaque dado às correntes pedagógicas não
hegemônicas e, sobretudo, ao papel que o anarquismo e o comunismo conferiram à educação (p. 270-
275). O segundo corte, referente aos anos mediados por 1947 e 1961, está centrado no domínio da
pedagogia nova. A ênfase recai sobre o encaminhamento do projeto da primeira Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (LDB) ao Congresso Nacional, por iniciativa de Clemente Mariani, e o conflito
desencadeado, ao longo de sua tramitação, entre os defensores da escola pública e os defensores da
escola particular. Destaca, ainda, a atuação da Campanha de Defesa da Escola Pública, no interior da
qual pontificou a ação mobilizadora de Florestan Fernandes, o seu manifesto, denominado Mais uma vez
reunidos, e o processo de renovação da pedagogia católica. O terceiro corte envolve a fase compreendida
entre os anos de 1961 e 1969, inaugurando-se com a aprovação da LDB. Os destaques ficam por conta
da discussão do Plano Nacional de Educação (PNE), articulado por Anísio Teixeira, da Campanha de
Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário (CADES), na qual Lauro de Oliveira Lima exerceu
atuação relevante, do papel do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), enquanto centro mentor
da ideologia nacional-desenvolvimentista, e da mobilização empreendida pelos movimentos de cultura
popular e de educação popular. No interior do movimento de educação popular revelou-se como liderança
maior a figura do educador Paulo Freire. A análise conclui-se apontando a crise da pedagogia nova e a
emergência da pedagogia tecnicista, transição na qual teve papel destacado o Instituto de Pesquisas e
Estudos Sociais (IPES).
Quarto período: as ideias pedagógicas no Brasil entre 1969 e 2001: configuração da concepção
pedagógica produtivista
Ao traçar o quadro histórico que contextualiza o período, Saviani ressalta a contradição que
acompanhou o processo de expansão da economia, no Brasil, após 1930. Se, por um lado, forças
nacionalistas postulavam a plena autonomia política da nação em face da escolha de seus caminhos de
desenvolvimento, o que num certo estágio foi proclamado pelo próprio Governo Vargas, o que se viu, em
seguida, foi a progressiva mudança da base material escudada em empréstimos externos e na
implantação de indústrias monopólicas sediadas nas nações capitalistas mais avançadas, em especial
nos Estados Unidos da América. A ideologia política do próprio governo, o nacionalismo, com sua ênfase
posta na necessidade de superação da dependência da nação em relação ao imperialismo, passava a
ser solapada pelo rumo internacionalista que se imprimia ao desenvolvimento da economia. Nesse
contexto, a Escola Superior de Guerra (ESG) foi o bastião em que se formulou a ideologia adequada ao
novo estágio da economia, configurada na doutrina da interdependência. Daí o golpe militar, que
consagrou essa nova ideologia, instaurando a sua correspondência com o comportamento econômico.
Esse quarto período subdivide-se, também, em três momentos. O primeiro corresponde aos anos
compreendidos entre 1969 e 1980. Nele é discutida extensamente a pedagogia tecnicista. Começa
tangenciando a questão ao discuti-la "a partir do movimento editorial". Em seguida, aprofunda a análise
ao examinar o papel desempenhado por Valnir Chagas nas reformas educacionais empreendidas pela
ditadura militar e ao caracterizar a concepção pedagógica tecnicista. Para Saviani, baseada "no
pressuposto da neutralidade científica e inspirada nos princípios de racionalidade, eficiência e
produtividade, a pedagogia tecnicista advoga a reordenação do processo educativo de maneira que o
torne objetivo e operacional. De modo semelhante ao que ocorreu no trabalho fabril, pretende-se a
objetivação do trabalho pedagógico" (p. 379). Em seguida, é exposta a relação entre as concepções
tecnicista e analítica. A discussão conclui-se com o exame da visão crítico-reprodutivista, que pretendeu

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"fazer a crítica da educação dominante, pondo em evidência as funções reais da política educacional que,
entretanto, eram acobertadas pelo discurso político-pedagógico oficial" (p. 390). São expostas as ideias
básicas de seus inspiradores, Bourdieu e Passeron, Baudelot e Establet, além de Althusser, e indicadas
as obras de Luiz Antonio Cunha e Bárbara Freitag que, no Brasil, expressaram essa tendência.
O segundo corte, envolvendo o período que se desenrola entre 1980 e 1991, devota-se ao estudo das
experiências pedagógicas encetadas pelas pedagogias críticas, daí o subtítulo "ensaios contra-
hegemônicos". No conjunto, descreve as formas assumidas pelas mobilizações de educadores, pela
organização política no campo educacional, bem como pela circulação das ideias pedagógicas. No interior
do processo de luta dos educadores germinaram entidades como a Associação Nacional de Educação
(ANDE), Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), Centro de Estudos
Educação e Sociedade (CEDES), fortaleceu-se a Confederação de Professores do Brasil (CPB), em 1989
transformada na Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE). As associações de
docentes das universidades estabeleceram laços sindicais, daí o surgimento da Associação Nacional dos
Docentes das Instituições do Ensino Superior (ANDES), em 1981. Três anos antes o mesmo já ocorrera
com o segmento dos técnicos administrativos, culminando com a criação da Federação de Sindicatos de
Trabalhadores de Universidades Brasileiras (FASUBRA). Daí, também, a filiação dessas novas entidades
à Central Única dos Trabalhadores (CUT). Com essas entidades, fortaleceu-se, igualmente, a produção
científica comprometida com "a construção de uma escola pública de qualidade" e a sua difusão (p. 402).
Saviani refere-se à criação de revistas científicas por muitas dessas organizações emergentes e aos
eventos científicos promovidos por algumas delas. São os casos, por exemplo, das revistas da ANDE, do
CEDES e da ANPEd. São os casos, também, das Conferências Brasileiras de Educação (CBE),
promovidas entre 1980 e 1991 por essas três entidades, e das reuniões anuais da ANPEd. Depois de
reconhecer o refluxo que se seguiu às intensas mobilizações dos educadores na década de 1980, aponta
ser necessário reconhecer a importância das medidas de política educacional tomadas por governos de
oposição, desde 1982, em estados como Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro e Santa
Catarina. Mesmo que tenham sido marcadas pela descontinuidade, essas medidas "devem ser
contabilizadas como ganhos da 'década perdida'" (p. 405). A abordagem culmina com a descrição das
pedagogias contra-hegemônicas. São ressaltadas as pedagogias da educação popular, que em suas
análises substituíam a categoria "classe" pela categoria "povo" e concebiam "a autonomia popular de uma
forma um tanto metafísica", descolada de "condições histórico-políticas determinadas" (p. 413-414). Nas
administrações do Partido dos Trabalhadores (PT), elas ganharam lugar proeminente. São referidas,
também, as "pedagogias da prática", inspiradas em princípios anarquistas, cujos principais interlocutores
são Oder José dos Santos, Miguel Gonzáles Arroyo e Maurício Tragtenberg. Recebe menção, igualmente,
a "pedagogia crítico-social dos conteúdos", formulada por José Carlos Libâneo. Para Saviani, mesmo
reconhecendo outras influências como as de Manacorda, Suchodolski, Leontiev, Luria, Vygotski, Libâneo
"inspira-se diretamente em Snyders que sustenta a 'primazia dos conteúdos' como critério para distinguir
as pedagogias entre si", logo "para distinguir uma pedagogia progressista ou de esquerda de uma
pedagogia conservadora, reacionária ou fascista" (p. 416). Finaliza com a análise da pedagogia histórico-
crítica, que resume sua própria concepção e sua proposta de educação para o nosso tempo. História as
origens dessa concepção, situando-as em escritos do início da década de 1980, e seu desenvolvimento
até consolidar-se na forma de "primeiras aproximações" em 1991 (p. 418-419). O autor resume sua forma
de entender a "pedagogia histórico-crítica" da seguinte forma:
[...] a pedagogia histórico-crítica é tributária da concepção dialética, especificamente na versão do
materialismo histórico, tendo fortes afinidades, no que se refere às suas bases psicológicas, com a
psicologia histórico-cultural desenvolvida pela Escola de Vygotsky. A educação é entendida como o ato
de produzir, direta e indiretamente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica
e coletivamente pelo conjunto dos homens. Em outros termos, isso significa que a educação é entendida
como mediação no seio da prática social global. A prática social põe-se, portanto, como o ponto de partida
e o ponto de chegada da prática educativa. Daí ocorre um método pedagógico que parte da prática social
em que o professor e aluno se encontram igualmente inseridos, ocupando, porém, posições distintas,
condição para que travem uma relação fecunda na compreensão e no encaminhamento da solução dos
problemas postos pela prática social. Aos momentos intermediários do método cabe identificar as
questões suscitadas pela prática social (problematização), dispor os instrumentos teóricos e práticos para
a sua compreensão e solução (instrumentação) e viabilizar sua incorporação como elementos integrantes
da própria vida dos alunos (catarse). (p. 420)
Acentua, por fim, que sua proposta, além de manter-se na condição de "forma de resistência à onda
neoconservadora", vem recebendo contribuições de outros estudiosos, entre os quais cita João Luiz
Gasparin, Antonio Carlos Hidalgo Geraldo, Suze Gomes Scalcon, César Sátiro dos Santos e Ana Carolina
Galvão Marsiglia (p. 402).

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O último corte temporal incide sobre a fase que se desenrolou entre 1991 e 2001. O autor conclui que,
nessa fase, como decorrência da transição do fordismo para o toyotismo, as ideias pedagógicas no Brasil
"expressam-se no neoprodutivismo, nova versão da teoria do capital humano", o que acaba desaguando
na "pedagogia da exclusão". Enquanto orientação pedagógica, o neoescolanovismo recupera a bandeira
do "aprender a aprender" e o neoconstrutivismo "reordena [...] a concepção psicológica do aprender como
atividade construtiva do aluno". O Estado imprime uma forma de organização às escolas buscando obter
o máximo de resultados com os recursos destinados à educação. Para tanto, são mobilizados
instrumentos como a "pedagogia da qualidade total" e a "pedagogia corporativa". Saviani apropria-se de
duas expressões analíticas, antes empregadas por Acácia Kuenzer, para ilustrar o resultado dessas
iniciativas: "exclusão includente" e "inclusão excludente". Os mecanismos de inclusão de mais estudantes
no sistema escolar, tais como "a divisão do ensino em ciclos, a progressão continuada, as classes de
aceleração", que mantêm as crianças e os jovens na escola sem a contrapartida da "aprendizagem
efetiva", permitem a melhoria das estatísticas educacionais, mas a clientela continua excluída "do
mercado de trabalho e da participação ativa na vida da sociedade. Consuma-se, desse modo, a 'inclusão
excludente'" (p. 439-440).
Na Conclusão, depois de retomar resumidamente todo o conjunto de ideias extensamente
desenvolvido ao longo do livro, Saviani relembra a passagem da década de 1970 para a de 1980 para
evidenciar a coexistência de diferentes tendências pedagógicas no tempo. Retrata, por força dessa
coexistência, o "drama do professor" à época, pois, se "tinha uma cabeça escolanovista", operava numa
materialidade escolar pertinente à educação tradicional, situação agravada pelas exigências de
planejamento e racionalização desencadeadas pela pedagogia oficial, que incluíam o preenchimento de
formulários, a operacionalização de objetivos educacionais etc. Caso ignorasse as exigências desse
tecnicismo, era acusado de não atender a critérios de eficiência e produtividade. Em paralelo, a tendência
crítico-reprodutivista começava a revelar que a sua participação no processo de "formação da força de
trabalho" e na "inculcação da ideologia dominante" terminava por "garantir a exploração dos trabalhadores
e reforçar e perpetuar a dominação capitalista". As pedagogias contra-hegemônicas da década de 1980
pareciam apontar uma saída para o professor e para a realização de uma "educação efetivamente crítica
e transformadora", mas sucumbiram. E a década de 1990 chegou proclamando o "império do mercado"
e realizando "reformas de ensino neoconservadoras". Reconhece que "grande parte" dos educadores
cederam "ao canto de sereia das novas pedagogias nomeadas com o prefixo 'neo'". As "novas ideias"
estão associadas à "descrença no saber científico" e à "procura de 'soluções mágicas' do tipo reflexão
sobre a prática, relações prazerosas, pedagogias do afeto, transversalidade dos conhecimentos e
fórmulas semelhantes". Nesse quadro, cresce o desprestígio dos professores, enquanto se consuma o
domínio do "utilitarismo" e do "imediatismo da cotidianidade" sobre "o trabalho paciente e demorado de
apropriação do patrimônio cultural da humanidade" (p. 444-446).
Apesar do quadro exposto, suas palavras finais expressam otimismo e afirmam uma esperança:
Não obstante, mantiveram-se análises críticas e focos de resistência à orientação dominante na
política educacional, que tendem a se fortalecer, neste novo século, à medida que os problemas se
agravam e as contradições se aprofundam, evidenciando a necessidade de mudanças sociais mais
profundas. Nesse contexto, seria bem-vinda a reorganização do movimento dos educadores que
permitisse, a par do aprofundamento da análise da situação, arregimentar forças para uma grande
mobilização nacional capaz de traduzir em propostas concretas a defesa de uma educação pública de
qualidade acessível a toda a população brasileira. (p. 449)
Ao concluir pela importância de que se reveste o referido livro, recomenda-se a sua leitura aos
educadores de uma forma geral, em especial aos que exercem à docência em todos os níveis de ensino,
aos pesquisadores da educação, não somente os que se incluem no campo dos fundamentos da
educação, aos historiadores e aos cidadãos interessados na questão da educação no Brasil e na
sociedade capitalista. Pela relevância de seu conteúdo, pela coerência e pelo rigor da argumentação e
pelos esclarecimentos que impactam as consciências dos leitores, com História das ideias pedagógicas
no Brasil Saviani contribui para o avanço das condições subjetivas necessárias ao cumprimento da
grande tarefa por ele mesmo anunciada como prioritária: a defesa e a produção de uma educação pública
de qualidade para todos os brasileiros.

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1546093 E-book gerado especialmente para DALIANE DO NASCIMENTO DOS SANTOS
SILVA, T. T. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias de
currículo. 3. ed. Editora Autêntica.

Documentos de identidade; uma introdução às teorias do currículo15

No campo da saúde, é cada vez maior a frequência de propostas de qualificação profissional cuja
responsabilidade de implementação está exclusivamente a cargo de entidades tão diversas quanto
hospitais, conselhos municipais e secretarias de saúde.
Esse movimento traz implicações que certamente merecem ser analisadas, mas, de antemão, é
pertinente questionar o quanto deste esforço pela expansão dos processos de qualificação,
frequentemente impulsionado pelo anseio de adequação dos trabalhadores às mudanças nos processos
de trabalho decorrentes da velocidade de produção e incorporação de inovações tecnológicas, vem sendo
acompanhado por um diálogo com os referenciais teóricos próprios do campo da educação.
Certamente o livro Documentos de Identidade; uma introdução às teorias do currículo, de Tomaz
Tadeu da Silva - professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS), envolvido, há mais de duas décadas, com as discussões do campo
educacional - é extremamente interessante como introdução, tal qual o próprio título informa, às
discussões teóricas do campo social, filosófico e educacional que abordam diretamente a questão do
currículo ou que, a despeito deste enfoque, conduziram a diferentes formas de se pensar sobre o tema.
Poderíamos dizer que, através desse texto, encontramos uma colaboração consistente ao objetivo de
elaborar de forma consciente uma fundamentação teórica que se faz necessária enquanto base para a
reflexão/ação do educador que se pretende crítico.
Ao longo do livro, dividido em duas partes, cada uma contendo nove textos breves, o autor apresenta
um mapeamento das principais contribuições, ora referidas a autores específicos, ora a movimentos
intelectuais, que proporcionam uma composição de certa pluralidade teórica que nos ajuda a refletir sobre
o lugar do currículo nos processos de produção e reprodução social.
Na introdução, Tomaz Tadeu renuncia à pretensão de objetividade mostrando-se favorável a abordar
a questão do currículo não a partir da noção de teoria, que estaria comprometida com um conceito de
verdade, mas da noção de discurso, compreendido como um modo particular de definição, produzindo,
assim, uma certa concepção de currículo. Ao argumentar a favor da segunda alternativa, o autor
implicitamente sugere ao leitor que também seu texto deva ser tomado como um modo particular de
valorar, representar e articular as construções teóricas que ele destaca como centrais à reflexão sobre o
currículo. Fica ao leitor o convite, reforçado pela clareza do texto e pela abrangência das questões postas
em pauta, a atuar como co-autor, reformulando, através da leitura, as conexões, entrelaçamentos,
contraposições e transformações que os conceitos de cada teoria produzem entre si.
Como "sinalizadores" da renovação da teoria educacional/curricular, o autor apresenta dois
deslocamentos, que, em grande parte, definem a organização do livro. O primeiro intenso deslocamento,
e que constitui a primeira parte do livro, seria proporcionado pelas Teorias Críticas ao demarcar o campo
do currículo como espaço de poder, ou seja, de luta por hegemonia em torno de projetos de escolarização,
onde estão situados e em movimento as antinomias imposição/resistência e domínio/ oposição. O
segundo deslocamento seria ocasionado pelas teorias Pós-Críticas ao descentrar a ênfase nas dinâmicas
de classe e consolidar a importância dos processos de produção de subjetividade, particularmente
expressos nas construções discursivas para a elaboração de análises sociais.
Em relação ao primeiro conjunto de teorias, a grande transformação frente às teorias tradicionais se
opera pelo profundo questionamento quanto à naturalização dos conhecimentos que compõem o currículo
e as estruturas educacionais. Enquanto as teorias tradicionais, com base nos princípios da administração
taylorista, tomariam como dado os conhecimentos em torno dos quais se estabelecia o status quo,
concentrando-se na dimensão tecnocrática do currículo, as Teorias Críticas viriam investir no
desenvolvimento de conceitos que permitissem compreender o modo pelo qual dinâmicas sociais de
dominação se implementam também através dos processos educacionais e curriculares, conformando
uma estreita conexão entre saber e poder.
Ao relembrar que a teorização curricular recente ainda vive do legado das teorias críticas, o autor
indiretamente nos indica o interessante exercício de identificar alguns conceitos que impulsionaram estas
reflexões e que permanecem fortemente presentes nas análises sobre currículo.

15
Texto adaptado de Angélica Ferreira Fonseca baseado na obra de SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo.
Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2004, disponível em http://www.scielo.br/

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1546093 E-book gerado especialmente para DALIANE DO NASCIMENTO DOS SANTOS
Observa-se, assim, que a partir das teorizações críticas de base marxista, a questão da desigualdade
- tomada como fenômeno vinculado à injustiça - se estabeleceu nesse campo de discussão. A
preocupação em compreender, na perspectiva de transformar, os contextos através dos quais a escola
atuava de forma discriminatória em relação às classes trabalhadoras mobilizou a produção de autores
das denominadas teorias críticas, como Bordieu, Passeron, Michel Apple, Paulo Freire, por exemplo, e
de correntes de pensamento como a Nova Sociologia da Educação. A atenção à questão da
desigualdade/dominação foi preservada no conjunto das Teorias Pós-Críticas, influenciando
vigorosamente as referências de análise de vertentes teóricas, tais como a pedagogia feminista, pós-
colonialista e o multiculturalismo. Entretanto, diferentemente da perspectiva promovida pelas Teorias
Críticas em relação às Teorias pós-críticas, constata-se uma recusa à idéia de emancipação como
contraponto à dominação, na medida em que não admite a existência de uma essência humana a ser
recuperada.
Outro exemplo de proposição teórica que vem expressar o poder de rearticulação e reconstrução de
determinadas concepções quando incorporadas a um novo cenário de questões é a afirmação do
currículo como artefato histórico. Uma abordagem histórica que enfatiza o caráter de construção social
do currículo ingressou de modo pungente no debate educacional através da Nova Sociologia da
Educação. A crítica dirigia-se à forma pela qual as categorias curriculares, pedagógicas e avaliativas
foram naturalizadas pela teoria educacional e pelos educadores, apontando para o fato de que sua
desnaturalização deveria seguir um itinerário de reflexão que promovesse a compreensão dos interesses
e valores sociais postos em jogo no processo seletivo característico das construções curriculares. Esta
contribuição inspirou também os Estudos Culturais e as teorias influenciadas pela perspectiva pós-
estruturalista.
Outro debate instigante em que o livro nos envolve diz respeito ao modo como as diferentes teorias
consideram a relação entre cultura acadêmica e escolar, cultura popular e cultura de massa. Não vamos
nos deter aqui na discussão sobre a qualidade dos vínculos entre as dinâmicas do campo social e campo
cultural, abordada por Tomaz Tadeu, mas somente focalizar como determinadas correntes teóricas
contribuem para integrar a cultura popular no contexto pedagógico.
Ao colocar em questão a visão elitista segundo a qual do campo cultura estariam excluídas as
manifestações populares, postulando o reconhecimento da cultura como "forma global de vida ou
experiência vivida de um grupo social" (p. 133), o campo denominado Estudos Culturais contribuiu para
consolidar, no campo educacional, uma perspectiva antropológica de cultura que tem grande repercussão
nas diversas vertentes teóricas.
É especialmente relevante, nesse conjunto de reflexões, o papel de Paulo Freire, cuja influência
extrapolou o âmbito nacional. O que o texto nos permite registrar é que, ao estruturar uma abordagem
pedagógica que ressignifica a cultura, traduzindo-a como o contexto existencial em articulação com o
contexto social, Paulo Freire traz a experiência de vida dos educandos e, portanto, a dimensão cultural
dessa existência para o centro do processo pedagógico. Consubstanciada no conceito de educação
problematizadora, Paulo Freire apresenta alternativa teórico-metodológica para a superação do frequente
fracasso dos processos de educação de adultos.
Essa formulação sobre a cultura continha uma contestação explícita à excessiva valorização das
tradições culturais dos grupos dominantes, em detrimento do universo cultural dos grupos subordinados.
Tal elaboração, que perpassa Teorias Críticas e Pós-críticas, aponta para um desenho curricular coerente
com um projeto político-pedagógico apoiado em princípios democráticos. A cena educacional é assim
pontuada por novas análises, nas quais as experiências culturais consideradas estão para além da
produção reconhecida pelas elites tradicionais.
Finalizando, destacamos que o livro de Tomaz Tadeu tem o mérito de provocar, mesmo em leitores
pouco familiarizados com o campo teórico da educação, a experiência de um diálogo que estimula o
desejo de continuidade através de outros textos. Além disso, impulsiona aqueles que se comprometem
com as práticas educativas a reconhecer a complexidade desse objeto e retomar uma indagação que nos
parece fundamental: afinal, que sociedade pretendemos construir e que lugar reservamos nessa
sociedade para a escola?

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1546093 E-book gerado especialmente para DALIANE DO NASCIMENTO DOS SANTOS
SILVA JR., J.R.; SGUISSARDI, V. Novas Faces da educação superior no Brasil.
São Paulo: Cortez; Bragança Paulista: USF-IFAN, 2001.

NOVAS FACES DA EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL

O minucioso trabalho dos autores demonstra a unidade da matriz ideológico-doutrinária do governo


Fernando Henrique Cardoso em dois importantes campos: na concepção da questão do Estado e na da
educação superior; sequer se pode falar da subordinação de uma a outra. As políticas executadas tanto
no campo da chamada reforma do Estado, quanto no da educação superior, correspondem a essa
unidade, com os desvios, correções de rumo, às vezes oposições menores, que advêm da passagem da
doutrina para a prática política, na qual, costumeiramente, a mídia em geral (...) supõe enxergar fundas
divergências16.
Seria fácil, por puro capricho doutrinário oposto, rotulá-las de neoliberais, que é, oque, de fato, são.
Mas, para que essa conclusão seja possível, sem apriorismo, os autores procedem a uma rigorosa
comparação das concepções relativas ao Estado e sua propalada reforma, assim como àquelas que se
referem à educação superior. Nessa comparação, buscam as assumidas matrizes teóricas que se
reclamam os formuladores das reformas, submetendo-as a criteriosa crítica. Ademais, procedem à
análise das medidas legais, desde as "reformas" constitucionais até simples portarias, para verificar a
implantação e incidência das orientações doutrinárias Fechar

TANAMACHI, E.R.; PROENÇA, M.; ROCHA, M. L. (Org.). Psicologia e


Educação:desafios teórico-práticos. 1.ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.

PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO: DESAFIOS TEÓRICO-PRÁTICOS

Para a psicologia não existe natureza humana, existe a condição humana. Essa ideia, que pode
parecer banal a princípio, gera, na verdade, grandes diferenças nas concepções em Psicologia. Isso
porque a concepção nada nos ajuda, pois empobrece nossas leituras, atribuindo ao homem um conteúdo
natural que deve ser todas as possibilidades de desenvolvimento17.
Ao lermos sobre o liberalismo sendo uma visão do mundo, notamos que está fundamentado na ideia
de que cada homem é um ser moral, possuidor de direitos, que lhe são dados pela sua própria condição
de homem.
Ao ocorrem transformações a burguesia passa a usufruir delas para se emancipar e para poder
transformar o universo em fonte de riquezas para a produção de mercadorias. A nova forma social
enfatizava a razão humana, a liberdade, a possibilidade de transformação do homem.
O indivíduo vai então se tornando valor central e referência básica para as produções cientifica e
culturais.
A partir de 980 os psicólogos vão se inserindo nas lutas da sociedade civil. Essa inserção e participação
de categoria são feitas via entidades representativas: sindicatos, conselhos regionais, federação e CFP.
Ao começar a introduzir o assunto sobre a juventude, notasse que a rebeldia é colocada como algo
criado pelo homem, algo que não vem de sua própria natureza. Sendo necessário à correção, que muitas
das vezes é passada para a escola, tornando-se assim uma fortaleza que os protegerá da vida social.
O saber escolar não é visto como um saber sócia. A cultura ensinada na escola não é vista como um
produto social. Tudo fica naturalizado e aquilo que “está sendo” passa a ser considerado o que “deve
ser”, porque é visto como verdadeiro e natural.

16
https://bit.ly/2zqBSPB
17
https://bit.ly/2FA47B6

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1546093 E-book gerado especialmente para DALIANE DO NASCIMENTO DOS SANTOS
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos
processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

A Formação Social da Mente18

Lev Semyonovitch Vygotsky foi um renomeado psicólogo nascido em Orsha, na bielorrússia, e no


período em que estudou na universidade de Moscou foi um leitor assíduo e que viveu ansiosamente suas
expectativas de temas como Linguística, Ciências Sociais, Psicologia, Filosofia e Artes. Importante
pensador sendo o pioneiro nas suas convicções de que o desenvolvimento mental das crianças acontece
em função das influências sociais e condições de vida.
A obra de Vigotsky apresenta diversos aspectos, sendo que serve de funda mento para nós podermos
entender o conceito por trás do livro, e em suma o mesmo não foi propriamente escrito pelo Vygotsky, e
sim por vários organizadores em diferentes lugares, e é justamente isso que vem explicando o prefácio.
Entretanto, a nota introdutória vem oferecendo todo contexto que a obra de Vygotsky foi escrita.
A Formação Social da Mente tem como organizadores: Michael Cole, Vera John-Steiner, Sylvia Scribner
e Ellen Souberman, além dos organizadores, que depararam com tradutores do russo para o inglês, sendo
que aqui no Brasil também deparamos com os tradutores do inglês para o português: JoséCipolla Neto,
Luís Silveira Menna Barreto e Solange Castro Afeche. No entanto, esses mesmos organizadores
estiveram de acordo em editar uma coletânea de ensaios de Vygotsky, que fosse possível a
representação de toda sua produção teórica geral.
Do primeiro ao quarto capítulo, faz uso do Instrumento e Símbolo, o quinto irá trazer um resumo dos
principais pontos teóricos e metodológicos aplicados em Instrumento e Símbolo, e aplicando o que irão
chamar de estrutura estímulo-resposta, pois, os indivíduos irão se deparar com uma reação de escolha e
só então, os psicólogos irão examinar e analisar a resposta eliciada.
Do sexto capítulo ao sétimo refere-se ao desenvolvimento mental das crianças e o processo de
aprendizado. E no oitavo capítulo utilizam como auxílio uma palestra pronunciada no instituto pedagógico
do brinquedo. Ou seja, os organizadores também colocaram material originário de fontes adicional,
fazendo uso dos trechos de colaboradores de Vygotsky, além dos textos citados.
Todo o trabalho de juntar as obras originais que estavam separadas foi feito com muita independência.
Os próprios organizadores na obra solicitam que o leitor não espere contar com uma obra traduzida de
forma literal de Vygotsky, ou seja, com uma tradução publicada da qual deixaram de escrever as matérias
ao que pareceexcessivo e à qual usaram matérias que deu impressão de importância, no propósito de
reconduzir mais claras as ideias de Vygotsky.
Os organizadores certificam que possuem rigorosa noção de que, ao revirar nos originais correriam o
risco de estarem alterando o padrão característico da história e garantem que, deixando transparente o
cumprimento dos atos e preocuparam-se o máximo ao início e o conjunto de tópicos, que abrange o
determinado livro, os conceitos oriundos e expressos por Vygotsky não seriam desvirtuados, relatam
possuir por muitos anos da edição deste livro. No entanto os autores na introdução lembram-nos que
Vygotsky inicia sua carreira como renomeado psicólogo, pois o mesmo já havia escrito vários ensaios
criticando a literatura. Estudou no mesmo tempo em que predominava Wilhelm Wundt que foi o fundador
da psicologia experimental e Willian James foi um dos representantes da corrente de ideias que prega
que a validade de uma doutrina é determinada pelo bom êxito prático e era aplicado ao movimento
filosófico norte-americano. No entanto, seus contemporâneos era Ivan Pavlov, Wladimir Bekhterev e John
B. Watson (comportamentalista), além de Wertheimer, Kohler, Koffka e Lewin (Gestaltista). Essa
adaptação faz-se absolutamente precisa para compreender que Vygotsky e seus aliados procuravam
pesquisar o desenvolvimento de uma teoria baseada no marxismo e que desse bom resultado das
funções intelectual humana.
Todos os autores irão descrever a respeito do processo de evolução da psicologia, até meados do
século XIX, pois, a filosofia na época era a única que procurou compreender através da reflexão a
natureza humana. No entanto John Locke e seus aliados desenvolvem a noção baseada no empirismo
da mente, tinham como finalidade analisar as leis de conexão, pois, as sensações em modesta parte
combinariam para a produção de diferenciados aspectos de ideias. Ou seja, os aliados de Kant
acreditavam que alguns de seus conceitos não prevaleceriam e até mesmo serem desfeitos e
supostamente reduzindo numa unidade menor. Como tudo indica essas duas teorias se baseiam em
Descartes.

18
Edina E. Do Nascimento - VYGOTSKY. L. S. A Formação social da mente. Martins Fontes. São Paulo. 2007.

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1546093 E-book gerado especialmente para DALIANE DO NASCIMENTO DOS SANTOS
E no ano de 1860, foram publicados Três livros mudando assim todo o contexto desse método; O
primeiro livro e mais famoso foi, A origem das espécies, de Charles Darwin, que veio falando da
persistência das características inerentes e fundamental entre o homem e outros animais; E o segundo
livro, Die Psychophysik, de Gustav Fechner, que trouxe a representação num processo quantitativo da
mente humana, já o terceiro livro, sendo intitulados Reflexos do cérebro e escrito por I. M. Sechenov,
contribuindo assim, com os reflexos sensório motor mais simplificado e empregando a técnica da
elaboração neuromuscular isolada. Portanto, os autores citados acima não eram psicólogos, no entanto,
proporcionaram fundamentais questões da psicologia para mais da metade do século XIX. E são as
questões a respeito das relações entre o comportamento humano e outros animais, e entre eventos
mentais e eventos ambientais e entre os processos fisiológicos e os processos psicológicos, e partindo
dessas questões e as respostas dadas elas por estudiosos e pesquisadores, impulsionou mais ainda as
ideias de Vygotsky, pois, o mesmo começa a dar início ao seu maravilhoso trabalho.
Vygotsky é convicto e tem por objetivo destacar as configurações que são típicas dos seres humanos
principalmente o comportamento e realizava para que tornasse mais complexo suas suposições de como
essas características se evoluíram perante a vida do indivíduo e dando ênfase em três aspectos, que são
eles: O primeiro, “Relação entre seres humanos e o seu ambiente físico e social”. O segundo, “Novas
formas de atividade que fizeram com que o trabalho fosse o meio fundamental de relacionamentos entre
o homem e a natureza e as consequências psicológicas dessas formas de atividade”. E a terceira, “A
natureza das relações entre o uso de instrumento e desenvolvimento da linguagem”.
Começou a estudar o desenvolvimento infantil a partir da comparação com a botânica, pois,
associaram o processo de evolução de uma estrutura, forma, função do organismo como um todo. Como
se evoluísse por si só, e sendo um fator de pouco importância, não explicando o desenvolvimento de
maneira mais ou menos coerente do comportamento humano, ou seja, a psicologia moderna passará a
estudar a criança, e partindo assim, dos modelos zoológicos, portanto, se utilizando das experiências com
animais.
Segundo Vygotsky, a ocasião oportuna de maior importância no percurso do desenvolvimento
intelectual, e que dão origem as estruturas essenciais de humanos é de uma Inteligência prática e
abstrata, e essa função só irá acontecer quando a fala e a atividade prática estarão juntas. Vygotsky,
quando fala de atividade (ação, o sujeito em movimento) está falando de trabalho, e sendo que toda
atividade mental são os instrumentos (físico).
A criança, bem antes de controlar seu próprio comportamento, começará a controlar o seu próprio
ambiente com a ajuda de sua fala, pois, produzirá novas descrições que resultam da comparação de dois
ou mais objetos com o ambiente em que está inserida, sendo assim, irá obter uma nova organização de
seu próprio ambiente. Essas características de comportamento humano, e que possuímos desde criança,
é que produz a criação do intelecto, e constituindo assim, a base do trabalho produtivo, que vem a ser a
forma pertencente exclusivamente a um indivíduo do uso de um instrumento. Vygotsky em suas
experiências concluiu que a fala da criança é de suma importância, quanto à ação para atingir assim um
objetivo. Pois, “sua fala e ação fazem parte de uma mesma função psicológica complexa, dirigida para a
solução do problema em questão”. (VYGOTSKY, 2007, p.13).
“Conclui-se também que quanto mais complexa a ação exigida pela situação e menos direta a solução,
maior a importância que a fala adquire na operação como um todo”. (VYGOTSKY, 2007, p.13).
Sendo assim, as crianças quando se depara com uma situação/problema sobressair-se-ão,
apresentando uma vasta variedade de respostas complexas e incluindo variedades de tentativas diretas
para atingir o seu objetivo, irão utilizar de instrumentos da fala que irá ser dirigidas as pessoas ou
simplesmente irá utilizar da ação e apelos da fala direta ao objeto de que estão observando com atenção.
Portanto, à atenção e a percepção se desenvolve com o uso de instrumentos e da fala, pois, os mesmos
irão atingir várias funções psicológicas como as operações sensório motoras e a atenção, ou seja, cada
uma dessas funções psicológicas faz parte de um sistema dinâmico do comportamento de cada criança.
Na primeira infância o que é mais importante para o desenvolvimento da criança, é o relacionamento
com os adultos que nada mais é que a assimetrias, sendo a relação entre todas as mensagens de cultura
em que a mesma está inserida. E é justamente nessa interação do eu com o outro, que será o papel
fundamental e que corresponderá aos diferentes sistemas semióticos, seguindo de uma função individual,
pois, começa a ser útil como instrumento regulador e de controle do comportamento individual de cada
ser humano.
O método marxista dialético, afirma a influência do meio sobre o homem e da natureza sobre o homem,
e que mesmo o homem agindo sobre a natureza ele cria, e através dessas mudanças que são provocadas
pelo homem, criará novas situações para a sua sobrevivência, pois, essa postura do homem diante do
meio que o cerca, representará o elemento-chave do método de estudo de como interpretar as Funções

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1546093 E-book gerado especialmente para DALIANE DO NASCIMENTO DOS SANTOS
Psicológicas Superiores (FPS) do ser humano e que servem como base das novas abordagens de
experimentos e para conhecer melhor sua natureza, suas funções, relações, causas etc.
Ao falar da interação entre aprendizado e ensino, para Vygotsky o aprendizado continua sendo uma
realização contínua e prolongada de alguma atividade, pois, é exclusivamente externo e não envolve
assim no desenvolvimento do indivíduo, simplesmente, irá se utilizar dos progressos do desenvolvimento
ao contrário de proporcionar um estímulo para alterar o seu percurso.
Para Vygotsky não tem como descrever a melhor maneira para a educação e sim considerar como
uma organização nos costumes e procedimentos tendências em parte do comportamento que obteve.
Portanto, o aprendizado não é capaz de transformar nossa execução global de formar com nitidez a
atenção, ao contrário, desenvolverá várias capacidades de ajustar a atenção sobre diversas coisas.
Sobre a abordagem da zona desenvolvimento proximal, tem como ponto de partida o fato em que as
crianças começam a aprender, bem antes de entrar na escola. Ou seja, a zona de desenvolvimento
proximal será resumida na distância localizada entre dois níveis de desenvolvimento real e o potencial, o
desenvolvimento real costuma ser determinado através dos problemas solucionados independentemente
pelo próprio indivíduo, e o desenvolvimento potencial vai se determinar com as soluções de problemas,
e isso se dá, com a orientação de um adulto.
O papel do brinquedo é muito marcante para o desenvolvimento da criança, sendo que o mesmo não
vem a ser uma atividade pura de prazer, a uma criança, pois, a criança encontrará em outras atividades
meios que irá dar mais prazer a ela, como o hábito de chupar a chupeta se formos fazer relação com os
jogos que irá marcar a perda e ganho, sucessivamente, será acompanhado pelo desprazer da perda. Em
idade pré- escolar a criança vive o seu mundinho de ilusão e de fantasia para solucionar as questões que
as mesmas julgam necessários, onde, as mesmas vão se apegar aos brinquedos, pois é ai que o
brinquedo exerce enorme influência no desenvolvimento da criança, demonstrando assim, as mudanças
que ocorreram no próprio desenvolvimento do brinquedo, e que predomina de uma posição imaginária da
criança e predominando de regras e influências as alterações internas que por ventura surgiram em
consequência do brinquedo. No entanto, esse mesmo brinquedo ao executar atividade simbólica, estará
em contato com a linguagem escrita. A criança passa a ver o brinquedo simbólico como uma assimilação
de fala fazendo conexão com os gestos, os gestos que resulta os significados aos objetos que a mesma
usa para brincar. E como foi dito acima a criança passa a viver o seu mundo de faz de conta, por exemplo,
ela imagina o lápis como uma pessoa, e uma casa ela imaginará o seu livro. Assim, a criança ao atuar no
seu mundo imaginário, ao mesmo tempo seguirá suas regras e criando assim uma zona de
desenvolvimento proximal, pois irá haver um impulso que a levará aos conceitos e processos que estarão
em desenvolvimento.
Para Vygotsky, o brinquedo passa a ser um nível maior de desenvolvimento pré-escolar. "A criança
desenvolve-se, essencialmente, através da atividade de brinquedo" (p. 117), no entanto, ele irá dizer mais
à frente: "Na idade escolar, o brinquedo não desaparece, mas, permeia a atitude em relação à realidade"
(p. 118). Ou seja, tanto o brinquedo quanto as instruções que aprendemos na fase escolar dará origem a
uma zona de desenvolvimento proximal.
Vygotsky diz também que o domínio da linguagem vem a ser um limite no desenvolvimento do ser
humano. Pois proporcionará, entre várias outras coisas, que o ser humano elabore uma solução para o
problema bem antes de ser realizado. Quando a criança domina a linguagem oral, estará promovendo
mudanças dentro de si, pois estará ao mesmo tempo permitindo e organizando o seu modo de agir e de
pensar, ou seja, a sua capacidade de relacionamento com o mundo será de maneira muito mais
complexa.
Esse sistema perfeito de signos que é a linguagem escrita, para Vygotsky proporciona um novo
instrumento de pensamento para a criança, concede outra forma de se relacionar a cultura da humanidade
e apresenta novas formas de conviver com o conhecimento e com as outras pessoas. E o que
aprendemos com a escrita, que é o produto da cultura em que a criança está inserida é construída no
decorrer de sua história e da humanidade.

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