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Daniel S.

Braga

ENFRENTADO A LAMA E ÁGUA: A difícil


situação de trabalhadores do Delta entre os anos
60 e 70 e suas agruras ao levar os produtos até o
centro de Parnaíba
Daniel S. Braga1

Resumo
Esse artigo dialoga com memórias de trabalhadores dos rios e dos mangues do po-
voado de Morros da Mariana entre os anos de 1970-1980. Esse local sofria com o
isolamento, a ausência de estradas, rede elétrica, água encanada etc. Transportes
não entravam por aquelas paragens, obrigando os moradores a se deslocarem a pé
ou no lombo de animais até o centro de Parnaíba. Chegando na Ilha Grande de
Santa Isabel, o rio Igaraçu era um obstáculo a ser vencido. Nota-se, portanto, a in-
terdependência entre ilhas e centro/cidade. Os trabalhadores relembram as traves-
sias, as caminhadas, e dão ideia da importância do mercado para os ribeirinhos
dentre as décadas estudadas.
Palavras-chave: Trabalhadores; memória; mercado

Abstract
This paper discusses memories workers rivers and Mariana of Morros village of
mangroves between the years 1970-1980. This place suffered from isolation, lack of
roads, electricity, running water etc. Transport not entered by those stops, forcing 43
residents to move on foot or on animals tenderloin to the center of Parnaíba. Arriv-
ing on the Big Island of Santa Isabel, the river Igaraçu was an obstacle to overcome.
Note, therefore the interdependence of the islands over the cities, especially to mar-
ket. Workers recall the crossings, walks, and give us an idea of the importance of
the market for riverine among the studied decades.
Keywords: Workers; memory; market

1
Graduado em História pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Mestre em História do Brasil pela Uni-
versidade Federal do Piauí (UFPI). Professor da rede pública de ensino (SEDUC-Parnaíba). daniel-
phb.historia@hotmail.com

ISSN 2447-7354
Revista Piauiense de História Social e do Trabalho. Ano II, n. 02. Janeiro-Julho de 2016. Parnaíba-PI

É fato que existe grande depen- Parnaíba, cercado por rios, mangues,
dência das ilhas em relação ao centro cajueiros e dunas. Entre os anos 70 e 80
das cidades. Essa interdependência, me- grande parte dos moradores sobrevivi-
lhor dizendo, se estende sobretudo ao am da pesca, lavoura, extração de crus-
mercado, local onde os ribeirinhos abas- táceo e artesanato.
tecem com produtos agrícolas e pesca- Nas primeiras décadas de do sécu-
dos. Ao longo da história, as ilhas que lo XX, Parnaíba, a princesa do Igaraçu,
compõem o Delta sempre necessitaram caminhava rumo ao progresso: embele-
do centro de Parnaíba. Pois, como afir- zando-se, expandindo suas linhas fér-
ma Beijamin Santos (2014, p. 10), me- reas, estradas, interligando-se com ou-
morialista e dramaturgo parnaibano, “o tras cidades. O povoado, por outro lado,
centro de Parnaíba é a própria Parnaíba: sofria com o isolamento, a ausência de
lá tinha dois cais, uma estação de trem, estrada, eletricidade, água encanada etc.
as igrejas, praças e hospitais, os consul- Transportes não entravam por aquelas
tórios médicos, as farmácias, escritórios paragens. Além da ausência de estradas,
e armazéns”. “Já o resto”, referindo-se nem mesmo pontes havia, obrigando as
aos subúrbios e bairros distantes do cen- pessoas a se deslocarem a pé ou no
tro, “não era cidade para ninguém”, lombo de animais até o centro da cida-
alerta Luiza, personagem do romance de. Chegando a fronteira, o rio Igaraçu
Beira Rio Beira Vida, de Assis Brasil. era um obstáculo a ser vencido. A pro-
Renato Castelo Branco (1981, p. pósito, o rio tornou-se um obstáculo na-
20) registrou nas suas Memórias que “em tural que impediu o avanço arquitetôni-
torno de um centro imponente estendi- co de alcançar a Ilha Grande de Santa
44 am-se os bairros proletários, uma enor- Isabel e tantos outros povoados.
me cinta de palhoças e casebres, em que Os trabalhadores contentavam-se
as ruas não eram calçadas, não haviam com as veredas de chão batido, abertas
jardins e nem praças arborizadas, onde pela inquietação das caminhadas diárias
os fios elétricos não chegavam”. A ci- em meio aos matagais e carnaubal. No
dade, como se vê, se restringe, na maior inverno, essas viagens eram um “verda-
parte das vezes, ao centro; enquanto is- deiro Deus nos acuda”, de tanta água e
so, nos bairros afastados, as pessoas so- lama que transbordava pela planície, di-
brevivem ao avesso da vida, sem calça- ficultando a locomoção. No entanto, es-
mento, água encanada, praças e jardins. sas dificuldades não impediam os traba-
Entre as regiões periféricas de Parnaíba lhadores de se descolarem até o merca-
nos deparamos com o Povoado Morros do no intuito de venderem seus produ-
da Mariana1, localizado no interior da tos. É sobre essas dificuldades que fala o
Ilha Grande Santa Isabel, fronteira de Jornal do Piauí, em uma reportagem de
1972, em que fazia a cobertura da inau-
1
Morros da Marina era um povoado que ficava no guração da estrada Morros da Maria-
interior de Ilha Grande de Santa Isabel, bairro de na/Parnaíba:
Parnaíba. Recebeu esse nome por causa de sua
desbravadora, Dona Mariana, que em meados do
Os trabalhadores tinham que en-
século XVII se fixou na Coroa do Delta e sobreviveu
do cultivo de batatas. Em 1994 esse povoado é
frentar a lama e água, também para
desmembrado de Parnaíba e elevado à categoria levar seus produtos ao mercado da
de cidade com a denominação de Ilha Grande/PI. cidade de Parnaíba. Tinham que sair
Sua população é estimada é de 9211 habitantes, de casa pela madrugada e somente
segundo o último senso. Possui uma área de cerca retornavam à noite, em vagarosas
de 134,32 Km². É conhecida por ser uma das portas canoas, ou a pé, dentro da lama, exa-
de entrada para o Delta do Parnaíba.

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tamente porque tinham necessidade quanto se deslocar dos povoados até o


de vender aquilo que produziam e centro de Parnaíba. Tudo porque, como
trazer da cidade o indispensável para já foi dito, não havia estradas. Veículos,
vida na Ilha. Os estudantes tinham só os de pequeno porte. Afora que, sem
que caminhar exatamente 7 quilôme- pontes, as pessoas se viam obrigadas a
tros de caminhada. Além disso, eram atravessar o rio com ajuda de embarca-
obrigados a enfrentar as águas e a ções movidas a força do remo. Dessa
lama, com a farda do colégio na ca- forma, o Porto das Barcas, logo cedo,
beça e com água na cintura. Era era movimentando por inúmeros pesca-
uma verdadeira situação de promis- dores, catadores de caranguejo, estiva-
cuidade (JORNAL DO PIAUÍ, dores, comerciantes em geral que procu-
1972, p. 20). ram o mercado público no intuito de
comercializarem seus produtos. Sobre
Na mesma reportagem, o gover- isso, Antonio R. Ribeiro, no livro Parna-
nador da época, diz “não esquecer de íba: presente e passado, um misto de anali-
sua infância vendo aquele povo lutar ses e memórias, redesenha o movimento
contra a natureza”. Ressalta, também, a dos trabalhadores de manhã cedo no
importância do povoado para economia Porto Salgado:
de Parnaíba. Não esqueceu de agradecer
ao presidente Garrastazu Médici e “sua Cedo da manhã começava a movi-
política sadia desenvolvida através da mentação no Porto Salgado, quando
Revolução de 1964”. Alberto Silva2 chegavam os barcos trazendo os pes-
conclui dizendo que “não pode conti- cadores, os catadores de caranguejos,
nuar a ver aquele povo atravessar diari- vendedores de frutas, estivadores e 45
amente a lama e a água para levantar consumidores diversos. Os produtos
seus produtos a fim de abastecer Parna- que chegavam cedo ao porto destina-
íba e não deixar que a segunda cidade vam-se ao mercado para serem co-
do Estado entrasse em colapso total” mercializados. Por muito tempo pode
(Jornal do Piauí, 1972, p. 20). Nota-se, se ver essa atividade rotineira fazer
de acordo com a reportagem, que o po- parte do dia-a-dia do Porto Salgado.
vo vivia em estado de promiscuidade, Era um ponto de visitação pública
ao passo que o governador, como co- muito preferido pois tinha atrativos
nhecedor da ilha, narra o sofrimento do para quem gostava de novidades, vis-
povo e fala da importância da estrada to que constantemente chegavam bar-
para a comunidade. cos de outras cidades, estados e até
Até os primeiros anos de 1970 era países distantes (RIBEIRO, 2003, p.
complicado chegar tanto ao litoral 105).
2
João Alberto Silva, nascido em 10 de novembro Entretanto, como lembra Halba-
de 1918, natural de Parnaíba, formou-se em Enge- wachs (1990, p. 67), “ao lado da história
nharia mecânica, Civil e eletricista, pela Universida- escrita há uma história viva que se per-
de Federal de Itajubá, depois de alguns anos na petua e se renova através dos tempos e
carreira política, foi indicado, em 1970, pelo então
da memória”. Vamos, assim, analisar
Presidente da República Emilio Garrastazu Médici
ao cargo de Governador do Piauí, sendo governa-
como as memórias dos trabalhadores
dor do Estado mais uma vez em 1986 dessa vez lembram e representam essas viagens.
pelas eleições diretas, seguido de uma eleição ven- Começaremos com o Sr. Raimundo
cida para deputado federal em 1994 e em 1998 pa-
ra Senador do Estado, faleceu em pleno exercício
da atividade política no ano de 2009.

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Nonato3, mais conhecido como Gua- Aqui era um interior velho, meu fi-
jiru, catador de caranguejo. Depois de lho. Não tinha ônibus, não. Não ti-
extrair os crustáceos se corria até Parna- nha nem estrada, só tinha um cami-
íba, seja a pé ou com auxílio de ani- nho de terra mesmo. Muitas pessoas
mais, para vender os produtos. Em me- iam daqui pra Parnaíba caminhan-
ados dos anos 60, “caiu uma chuva tão do. Olha rapaz, pra você vê, tempos
grande que saiu rasgando tudo. Era tan- atrás se via aquelas pobres mulheres
ta água que nosso jumento escorregou que moravam naqueles lados da Ca-
num buraco e estava prestes a morrer a na Braba, né, com seus balaios na
afogado”, diz o trabalhador. Conta o cabeça, cheios de caju, murici e tan-
caranguejeiro que ficou desesperado e tas outras coisas pra vender na Par-
saiu gritando os viandantes que passa- naíba. Eles botavam aquele balaião
vam naquele momento: “corre pessoal na cabeça e chinelavam às três horas,
que meu jumento está morrendo”. Com quatro da madrugada, se jogavam
muito esforço conseguiram salvar o nesses caminhos aí. Quando chegava
animal, mas parte da mercadoria foi no Bairro Vermelho se descansavam
comprometida, o que não impediu sua um pouquinho. Aí quando dava lá
ida até o mercado. para as quatro horas se botava o ba-
Aliás, os pescadores artesanais as- laio na cabeça de novo, aí partiam
sociam a cidade ao mercado, lugar onde pra Parnaíba. Aí quando se chegava
vendem seus produtos e adquirem man- lá no Porto Salgado, né, iam esperar
timentos (sal, arroz, óleo a carne etc.). por um passador. Não tinha ponte
Se por um lado não usufruíam alguns ainda não, viu, se pagava uma pas-
46 espaços da cidade (cinema, casino pra- sagem pra poder atravessar o rio de
ças e jardins), por outro, o mercado era canoa, meu filho. E era na vara, sa-
praticado diariamente, já que todos ti- bia! Eles iam aqui, oh, na polpa, né,
nham transito livre, independente do vareando aqui, empurrando aquela
lugar e origem social. O Sr. Raimundo canoa até quando chegava do outro
Roque, pescador, mais conhecido com lado. Aí quando chegava do outro
Sessenta, se refere a Parnaíba como o lado pegava o balaião de coisas, né,
centro e o mercado, espaço que era botava na cabeça e levava pro Mer-
obrigado a ir quase toda a semana. cado. Era uma vida sofrida, meu fi-
Quando perguntado sobre o que lem- lho4.
brava dessas viagens, prontamente falou
do quanto o povoado necessitava de A intenção de todos esses esforços
Parnaíba. Não esquece, porém, das mu- era chegar o mais cedo possível no mer-
lheres com seus balaios na cabeça com cado. Antes tinham que esperar o “pas-
caju, murici e as caminhadas durante a sador”, homem responsável por atraves-
madrugada. No decorrer do percurso, sar os trabalhadores até o outro lado rio.
existiam lugares para descansar e toma- O Sr. José Lino, pescador e catador de
rem o último fôlego que os levaria até as caranguejo, conta que desde pequeno
margens do rio Igaraçu, limite natural faz essas travessias, pois sempre ajudou
que os separa do centro da cidade. sua mãe que vendia junco, frutas e pes-
cados no mercado. Suas memórias fa-

3 4
ROCHA, Raimundo Nonato da Conceição. Entre- SILVA, Raimundo Roque. Entrevista concedida a
vista concedida a Daniel S. Braga. Ilha Grande/PI, Daniel S. Braga. Ilha Grande/PI, fev. 2015.
jan. 2015.

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lam do quanto essas viagens eram difí- pessoas de vários lugares – principal-
ceis, sobretudo no inverno, e da impor- mente os moradores das ilhas. “Na par-
tância dos “passadores”, profissionais te da frente, o mercado de carne e peixe;
de grande importância para economia enquanto que atrás, onde hoje se encon-
parnaibana. O Porto Salgado, segundo tram barracas de confecções, era a área
o trabalhador, “era tomado por barcos, destinada as frutas”. Não faltavam cli-
lavadeiras, estivadores e um barulho en- entes e os roubos, gritos e engodos eram
surdecedor”. Ao chegar na outra mar- frequentes. Segundo as memórias, entre
gem, lembra do desespero das pessoas os anos 70 e 80, “era o mercado mais
correndo até o mercado na intenção de movimentado da cidade6“. Além de ser
conseguir o melhor lugar para vender um espaço de comércio, o mercado era
seus produtos. um lugar dos encontros, pois ali se obti-
nha notícias de parentes e amigos que
A minha mãe vivia pelo mato apa- moravam em outros cantos, trocavam
nhando caju, castanha, puçá, murici, experiências sobre a pesca, a roça, se
pra levar e vender na Parnaíba. Esse atualizava das novidades, das fofocas,
produto a gente levava por aqui, pela contavam causos, bebiam cachaça.
Vargem, caminhando mesmo, pas- Recuaremos um pouco, até as
sando por lamaçal e tudo. Quando memórias sobre os passadores, ou varei-
era no verão, era bom demais. Agora ros. Conta o Seu Abraão, catador de ca-
no inverno era sofrimento. Chegando ranguejo, que atravessou o rio Igaraçu
no Porto Salgado, não tinha essa muitas vezes à nado, já que não tinha
ponte ainda não, viu, aí a gente fica- paciência de esperar o atravessador e
va esperando o passador horas e ho- precisava cumprir horário no tiro de 47
ras. Era preciso ficar gritando pra ele guerra. O Seu Vicente Candido diz que
vir. Depois a gente atravessava do “morreram muitas pessoas nessas tra-
outro, aí a gente ia até o fim do cal- vessias”. Perguntado como, ele respon-
çadão, naquele lado ali, onde hoje o de que “as canoas iam muito cheias. De
pessoal vende roupa, né. Pois é. Ali quando em vez, caia um indivíduo na
era assim: botava uma bacia ali, ou- água e não voltava pra contar a histó-
tra acolá, até na ponta da rua. Era o ria”.
quarteirão ali. Ficava um bocado de No livro A sereia Mariá, um apa-
mulher com sua bacia de caju, muri- nhado sobre as memórias das comuni-
ci, era assim. Hoje não é mais, né. dades do Delta, deparei-me com o rela-
Hoje o pessoal vende é roupa. Olha, to de Maria do Socorro, 67 anos, mora-
era tanta gente ali, que quando a ca- dora da Vazantinha, artesã e lavradora,
noa atracava no Porto Salgado, a que lutou muito para criar seus 11 fi-
danação era correr pro mercado pra lhos. Segundo ela, evitava ao máximo ir
pegar lugar, de tanta gente que ven- ao mercado, pois tinha medo que seus
dia ali. Aquele mercado grande ali, filhos morressem afogados, “[...] já que
que hoje tá fechado, era o mercado de não existia ponte e se atravessava numa
vender carne, camarão, caranguejo5. canoa que fazia passagem de um lado
ao outro”. “Uma vez”, diz ela, “[...] a
Sobre o mercado, tão presente na canoa se alagou e morreram muitas pes-
memória dos trabalhadores, ele ficava
próximo à praça Coronel Jonas e atraia
6
Sr. Julinho. Depoimento concedido a Daniel S.
5
LINO, José. Entrevista concedida a Daniel Souza Braga. Ilha Grande, jan. 2015.
Braga. Ilha Grande/PI, mar. 2015.

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soas. Outra vez vi uma senhora mor- Não só os vareiros possuíam mar-
rendo afogada na minha frente, mas não cas do machismo. Pescadores e caran-
pude fazer nada” (ROCHA, 2014, p guejeiros também possuíam chagas do
22). trabalho, devido às caminhadas até a
O Seu Sessenta ainda lembra dos Parnaíba, em que muitos homens se au-
homens com suas varas, queimados do to afirmavam como trabalhadores e, ao
sol, feito eles, também trabalhadores do mesmo tempo, exercitavam suas mascu-
rio, responsáveis por atravessar produ- linidades. Os produtos eram levados no
tos e pessoas de uma margem a outra. ombro, ou cabeça, e o que importava,
Segundo Raimundo de Souza Lima ( antes de qualquer coisa, era resistir a
1987, p. 13), “a prosperidade de Parnaí- dor. Além do mais, percebe-se que, en-
ba teve origem com à força física dos tre os trabalhadores braçais, o status de
homens do rio, os conhecidos vareiros, homem está intimamente ligado ao em-
responsáveis por gerar a força motriz prego da força física dentro da atividade
que movimentava a economia da cidade profissional que desempenham. Portan-
na primeira metade do século XX”. Es- to, existia um certo orgulho por, em ou-
ses sujeitos marcaram a história de Par- tras épocas, suportarem levar inúmeros
naíba, devido suas epopeias que escre- produtos no ombro, sem reclamar nem
veram no cais, seus serviços prestados e acusar cansaço. O Seu Antônio Maria
pela entrega aos vícios, brigas e paixões. narra uma de suas caminhadas até Par-
Sobre a natureza do trabalho, con- naíba em meados 1970, do esforço, da
ta o jornalista, que era passado de pai resistência do corpo:
para filho e consistia, basicamente, em
48 apoiar a vara no peito, ao passo que os Senhor, é seguinte, uma vez eu bo-
braços e o corpo cuidavam de impulsio- tei uns caranguejos nas costas ali, no
ná-la, movimentando, dessa maneira, a Porto do Morro, e soquei nesse cami-
canoa. Essa técnica corporal, segundo nho. Quando cheguei no meio da
Raimundo Souza Lima, deixou marcas Vargem eu botei o calão no chão.
na altura do peito, considerada pelo Demorou um pouquinho e botei no
cronista como sinal do machismo e de ombro novamente. Mas parece que
uma vida de sacrifícios que o próprio cada vez que eu tirava o bicho ficava
vareiro desprezava. Completa: mais pesado. Senhor, botei no chão
de novo. Aí, dessa vez, botei nas cos-
[...] o homem do rio ou o Vareiro tas, e soquei. Cada hora que botava
propriamente dito foi a pedra angu- no chão esse troço ficava mais pesa-
lar na formação do império comercial do. Pois bem. De Santa Isabel até o
desta região, cabendo-lhe por isto porto, eu coloquei umas quatro vezes
mesmo o lugar de destaque na ação no chão. Senhor, nesse tempo não ti-
aglutinadora em que de pronto se nha ponte, né, quando entrei nessa
transformaria(...). O homem fluvía- canoa isso aqui assim (os ombros) es-
rio estava na linha, garantindo a pre- tavam em sangue que não podia nem
sença como fonte alimentadora da tocar. Quando cheguei no porto Sal-
energia física na luta com suas barcas gado tirei os caranguejos dentro da
e nalguns casos passando até mesmo canoa e sai eu fui logo botando em-
despercebido no torvelinho de sua baixo. Aí eu disse “rapaz, vou pagar
faina diária (LIMA, 1987, p 23). alguém pra levar esse calão pra mim,
que eu não aguento mais não”. O pe-
so era tão grande que eu estava com o

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ombro todo aberto, de dor. Foi quan- durante os primeiros anos da década de
do eu encontrei um véi, o nome dele 1970. Nesse período se deu a construção
era Anastácio, e disse “Seu Anastá- da estrada Morros da Mariana a Parna-
cio, o senhor leva esse calão pra íba e, sobretudo, a inauguração da Pon-
mim”, e ele pergunta “ quantas cor- te Simplício Dias. Esta obra foi execu-
das é? “, aí eu disse “é 60, você pode? tada pelo governador Alberto Silva e foi
“, aí ele disse “rapaz, o difícil é colo- inaugurada numa manhã de sol de
car no ombro, estando no ombro eu 1972. Essa ponte, segundo a professora
levo até no inferno”. Então eu joguei Maria da Penha (1987, p. 26), “veio sa-
os caranguejos no ombro dele. Quan- tisfazer os anseios da laboriosa gente
do ele dobrou o beco para chegar na das ilhas dos férteis povoados do delta
praça da Graça, ele gritou “tira dessa do Rio Grande dos Tapuias, e veio faci-
desgraça do meu ombro, senão eu jo- litar tudo”. Facilitou para o estudante
go esse troço no chão, tira, tira...”. E que busca “o pão do saber em Parnaí-
agora? Botei no ombro, e, passando ba”, como “facilitou o turismo”, com-
por cima da dor, cheguei, graças a pleta a professora. No entanto, alguns
Deus, até o mercado. Quando botei trabalhadores falam do medo ao atra-
esses caranguejos chão senti um alí- vessarem, pela primeira vez, a ponte, e,
vio tão grande, mas, ao olhar pro alegam, “que o governador a construiu
meu ombro, vi que ele estava todo es- porque facilitaria o acesso as suas fa-
capelado, roxo, puro sangue7. zendas na ilha”, somente.

O Sr. Antonio Maria conta suas REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA


proezas corporais, numa época em que Livros e Fontes hemerográficas 49
o corpo era forte e viril. Hoje, porém, BRASIL, Assis. Beira Rio Beira Vida.
encontra-se adoentado. Talvez pelo ex- Rio de Janeiro: Ediouro, 1970.
cesso de esforço e trabalho. Curiosa- CASTELO BRANCO, Renato. Tomei
mente, numa sociedade marcada pelo um ita no Norte (Memórias). São Pau-
trabalho braçal, há uma espécie de valo- lo: LR Editores, 1981.
rização da força física e da resistência. HALBAWACHS, Maurice. Memória
As travessias dos Morros da Mariana Coletiva. São Paulo: Edições Vértice,
até Parnaíba serviam, entre outras coi- 1990, p. 54.
sas, para os homens mostrarem força e
LIMA, Raimundo de Souza. Vareiros e
vigor. As costas doídas e os ombros fe-
outras histórias. Parnaíba: (Edição do
ridos, ao invés de ser motivo de precau-
autor), 1987.
ção e cuidado, eram, na verdade, símbo-
RIBEIRO, Antonio Rodrigues. Parnaí-
lo da bravura e macheza. Como lembra
ba: presente do passado. Parnaíba: Grá-
Denise Bernuzzi Sant’Anna (2001, p
fica Ferraz, 2003.
43), “[...] os corpos longilíneos, capaz
ROCHA, Francinalda M. Rodrigues.
de mostrar agilidade e flexibilidade, es-
pecialmente no trabalho, parecem for- Cassimiro Pedral: Recorte de Memó-
necer um atestado de decência e elegân- ria. Parnaíba: SIEART, 2014.
cia incontestável”. SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de.
As caminhadas e o desconforto Corpos de Passagem: Ensaio sobre a
das travessias do rio Igaraçu cessaram Subjetividade Contemporânea. São
Paulo: Estação Liberdade, 2001.
7
Sr. Antonio Maria. Depoimento concedido a Dani-
SANTOS, Benjamin. O centro era a Par-
el Souza Braga. Ilha Grande, mar. 2015. naíba. In. Bembém. Parnaíba, nº84, dez.
2014, p. 10.

ISSN 2447-7354
Revista Piauiense de História Social e do Trabalho. Ano II, n. 02. Janeiro-Julho de 2016. Parnaíba-PI

SILVA, Maria da Penha Fonte e. Par-


naíba, minha Terra. Parnaíba: [edição
da autora], 1987, p. 26.
Uma estrada para o Morros da Mariana.
Jornal do Piauí. Teresina, 29 de fev.
1972, p. 20.

Fontes Orais
Sr. Antonio Maria. Depoimento conce-
dido a Daniel Souza Braga. Ilha Gran-
de, mar. 2015.
LINO, José. Entrevista concedida a
Daniel Souza Braga. Ilha Grande/PI,
mar. 2015.
Sr. Julinho. Depoimento concedido a
Daniel S. Braga. Ilha Grande, jan.
2015.
ROCHA, Raimundo Nonato da Con-
ceição. Entrevista concedida a Daniel
S. Braga. Ilha Grande/PI, jan. 2015.
SILVA, Raimundo Roque. Entrevista
concedida a Daniel S. Braga. Ilha
50 Grande/PI, fev. 2015.

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