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Canção do Exílio

Casimiro de Abreu

Se eu tenho de morrer na flor dos anos


Meu Deus! não seja já;
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o sabiá!

Meu Deus, eu sinto e tu bem vês que eu morro


Respirando este ar;
Faz que eu viva, Senhor! dá-me de novo
Os gozos do meu lar!

O país estrangeiro mais belezas


Do que a pátria não tem;
E este mundo não vale um só dos beijos
Tão doces duma mãe!

Dá-me os sítios gentis onde eu brincava


Lá na quadra infantil;
Dá que eu veja uma vez o céu da pátria,
O céu do meu Brasil!

Se eu tenho de morrer na flor dos anos


Meu Deus! não seja já!
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o sabiá!

Quero ver esse céu da minha terra


Tão lindo e tão azul!
E a nuvem cor-de-rosa que passava
Correndo lá do sul!

Quero dormir à sombra dos coqueiros,


As folhas por dossel;
E ver se apanho a borboleta branca,
Que voa no vergel!

Quero sentar-me à beira do riacho


Das tardes ao cair,
E sozinho cismando no crepúsculo
Os sonhos do porvir!
Europa, França e Bahia

Carlos Drummond de Andrade

Meus olhos brasileiros sonhando exotismos.


Paris. A torre Eiffel alastrada de antenas como um caranguejo.
Os cais bolorentos de livros judeus
e a água suja do Sena escorrendo sabedoria.

O pulo da Mancha num segundo.


Meus olhos espiam olhos ingleses vigilantes nas docas.
Tarifas bancos fábricas trustes craques.
Milhões de dorsos agachados em colônias longínquas formam um tapete
para Sua Graciosa Majestade Britânica pisar.
E a lua de Londres como um remorso.

Submarinos inúteis retalham mares vencidos.


O navio alemão cauteloso exporta dolicocéfalos arruinados.
Hamburgo, embigo do mundo.
Homens de cabeça rachada cismam em rachar a cabeça dos outros
dentro de alguns anos.
A Itália explora conscientemente vulcões apagados,
vulcões que nunca estiveram acesos
a não ser na cabeça de Mussolini.
E a Suiça cândida se oferece
numa coleção de postais de altitudes altíssimas.

Meus olhos brasileiros se enjoam da Europa.


Motivo É duro andar na moda, ainda que a
Eu canto porque o instante existe moda
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
seja negar minha identidade,
sou poeta. trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registradas,
Irmão das coisas fugidias, todos os logotipos do mercado.
não sinto gozo nem tormento. Com que inocência demito-me de ser
Atravesso noites e dias
no vento.
eu que antes era e me sabia
tão diverso de outros, tão mim mesmo,
Se desmorono ou se edifico, ser pensante, sentinte e solidário
se permaneço ou me desfaço, com outros seres diversos e conscientes
— não sei, não sei. Não sei se fico de sua humana, invencível condição.
ou passo.
Agora sou anúncio,
Sei que canto. E a canção é tudo. ora vulgar ora bizarro,
Tem sangue eterno a asa ritmada. em língua nacional ou em qualquer
E um dia sei que estarei mudo: língua
— mais nada. (qualquer, principalmente).
MEIRELES,C. Antologia Poética. Rio de
Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.
E nisto me comparo, tiro glória
de minha anulação.
EU, ETIQUETA Não sou - vê lá - anúncio contratado.
Em minha calça está grudado um nome Eu é que mimosamente pago
que não é meu de batismo ou de para anunciar, para vender
cartório, em bares festas praias pérgulas piscinas,
um nome... estranho. e bem à vista exibo esta etiqueta
Meu blusão traz lembrete de bebida global no corpo que desiste
que jamais pus na boca, nesta vida. de ser veste e sandália de uma essência
Em minha camiseta, a marca de cigarro tão viva, independente,
que não fumo, até hoje não fumei. que moda ou suborno algum a
Minhas meias falam de produto compromete.
que nunca experimentei Onde terei jogado fora
mas são comunicados a meus pés. meu gosto e capacidade de escolher,
Meu tênis é proclama colorido minhas idiossincrasias tão pessoais,
de alguma coisa não provada tão minhas que no rosto se espelhavam
por este provador de longa idade. e cada gesto, cada olhar
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, cada vinco da roupa
minha gravata e cinto e escova e pente, sou gravado de forma universal,
meu copo, minha xícara, saio da estamparia, não de casa,
minha toalha de banho e sabonete, da vitrine me tiram, recolocam,
meu isso, meu aquilo, objeto pulsante mas objeto
desde a cabeça ao bico dos sapatos, que se oferece como signo de outros
são mensagens, objetos estáticos, tarifados.
letras falantes, Por me ostentar assim, tão orgulhoso
gritos visuais, de ser não eu, mas artigo industrial,
ordens de uso, abuso, reincidência, peço que meu nome retifiquem.
costume, hábito, premência, Já não me convém o título de homem.
indispensabilidade, Meu nome novo é coisa.
e fazem de mim homem-anúncio Eu sou a coisa, coisamente.ANDRADE,
itinerante, . D. Obra poética, Volumes 4-6. Lisboa:
escravo da matéria anunciada. Publicações Europa-América, 1989.
Estou, estou na moda.
Soneto do amor total Que se uma pessoa é burra
É burra como uma porta.
Vinícius de Moraes
Eu sou muito inteligente!
Rio de Janeiro , 1951
Eu fecho a frente da casa
Amo-te tanto, meu amor... não cante Fecho a frente do quartel
O humano coração com mais verdade... Fecho tudo nesse mundo
Amo-te como amigo e como amante Só vivo aberta no céu!
Numa sempre diversa realidade

Amo-te afim, de um calmo amor Solidão


prestante,
E te amo além, presente na saudade. Vinícius de Moraes
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante. Desesperança das desesperanças...
Última e triste luz de uma alma em
Amo-te como um bicho, simplesmente, treva...
De um amor sem mistério e sem — A vida é um sonho vão que a vida
virtude leva
Com um desejo maciço e permanente. Cheio de dores tristemente mansas.

E de te amar assim muito e amiúde, — É mais belo o fulgor do céu que neva
É que um dia em teu corpo de repente Que os esplendores fortes das bonanças
Hei de morrer de amar mais do que Mais humano é o desejo que nos ceva
pude. Que as gargalhadas claras das crianças.

Eu sigo o meu caminho incompreendido


A porta Sem crença e sem amor, como um
perdido
Vinícius de Moraes Na certeza cruel que nada importa.

Rio de Janeiro , 1970 Às vezes vem cantando um passarinho


Mas passa. E eu vou seguindo o meu
Eu sou feita de madeira caminho
Madeira, matéria morta Na tristeza sem fim de uma alma morta.
Mas não há coisa no mundo
Mais viva do que uma porta.

Eu abro devagarinho
Pra passar o menininho
Eu abro bem com cuidado
Pra passar o namorado
Eu abro bem prazenteira
Pra passar a cozinheira
Eu abro de supetão
Pra passar o capitão.

Só não abro pra essa gente


Que diz (a mim bem me importa...)

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