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A DISPUTA PELOS RECURSOS NATURAIS

Para ser ou ouvir Guarani-Kaiowá


Da internet para as ruas, a onda de solidariedade traz pressão por justiça para a segunda maior
população indígena do país. Ainda há muito que fazer por parte de apoiadores, Estado e justiça
para superar a situação de genocídio − especialmente aprender a ouvi-los

por Cristiano Navarro

Não seria necessária uma lupa sobre o povo Guarani-Kaiowá para constatar a gravidade
do processo de genocídio a que nas últimas décadas está submetida essa que é a
segunda maior população indígena do Brasil (43,3 mil, conforme o IBGE). Segundo
dados do Conselho Indigenista Missionário, entre 2003 e 2011, 279 pessoas do povo
Guarani-Kaiowá foram assassinadas. No mesmo período, a Fundação Nacional de
Saúde (Funasa) registrou 555 suicídios. A falta de terra acarreta ainda grave
vulnerabilidade alimentar, provocando com frequência morte por subnutrição entre as
crianças.

Estranhamente, no entanto, foi só após a má interpretação de uma carta que a tragédia


teve seu retrato ampliado para boa parte da sociedade brasileira. Em uma mensagem
divulgada no dia 8 de outubro, em resposta a uma ordem de despejo e reintegração de
posse, a comunidade Pyelito Kue, em Iguatemi (MS), externava sua indignação perante
a determinação da Justiça Federal de Navirai (MS). O texto relatava a impossível
compreensão das 170 pessoas da comunidade com relação à decisão judicial. “A quem
vamos denunciar as violências praticadas contra nossa vida? Para qual justiça do Brasil,
se a própria Justiça Federal está gerando e alimentando violências contra nós?”,
contestava a carta.

Diante de tal situação desoladora, a comunidade afirmava ainda que resistiria à


reintegração de posse até a morte. “Cientes desse fato histórico, nós vamos e queremos
ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos
hoje, por isso pedimos ao Governo e à Justiça Federal que não decretem a ordem de
despejo/expulsão, mas solicitamos decretar a nossa morte coletiva e enterrar a nós
todos aqui”. Foi exatamente esse trecho da carta sobre resistência que acabou sendo
mal interpretado como uma decisão de suicídio coletivo e chamou a atenção de milhares
de pessoas.

É quase impossível apontar a origem da leitura equivocada. O que se sabe é que


primeiro a confusão tomou conta das redes sociais. Em seguida, e muito rapidamente, a
imprensa passou a publicar matérias sobre o assunto. Por fim, oito dias após a carta ser
divulgada, o líder do Partido Verde na Câmara, o deputado Sarney Filho (MA), cobrava
publicamente do ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, providências para evitar um
iminente suicídio coletivo.

Quando o boato do suicídio tomou proporções gigantescas, o cacique de Pyelito


Kue/Mbarakay, Apykaa Rendy, decidiu fazer um vídeo para, em nome da comunidade,
explicar que não havia plano de morte, mas sim de vida e resistência. A voz, até então
ignorada, pôde ser vista e ouvida pela primeira vez em um vídeo no YouTube: “Se for
para a gente se entregar, não nos entregaremos fácil. Se a gente vai se matar ou se a
gente vai se suicidar? Não, nós não iremos fazer isso”, esclareceu Rendy.

Em meio ao clamor pela vida, nasceu a campanha de solidariedade “Somos todos


Guarani-Kaiowá”, em que pessoas, no Facebook, acrescentavam o nome do povo ao
seu sobrenome, demonstrando apoio à luta. Além dos nomes trocados, protestos em
dezenas de cidades dentro e fora do Brasil e abaixo-assinados foram organizados pela
rede social. O apoio foi bem recebido e a pressão fez efeito. No dia 30 de outubro, a
desembargadora federal do Tribunal Regional Federal, CecíliaMello, suspendeu a
reintegraçãode posse de Pyelito Kue, permitindo aos 170 ocupantes permanecer em
uma área de 1 hectare até o término dos trabalhos de demarcação de seu território.

De vítimas a suspeitos

Apesar dos sistemáticos crimes de pistolagem encomendados por fazendeiros contra os


Guarani-Kaiowá, até a metade deste ano nenhum não indígena tinha cumprido prisão
por matar um indígena em Mato Grosso do Sul. Mesmo em casos com provas materiais,
testemunhas e réus confessos, ninguém nunca foi condenado à prisão.

Em julho deste ano, essa história aparentemente começou a ser reescrita. Beneficiado
por uma delação premiada, um homem testemunhou o ataque de pistoleiros à
comunidade Guaiviry, município de Aral Moreira, em 18 de novembro de 2011. Tendo
participado também do incidente, ele relatou à Polícia Federal (PF) detalhes do violento
episódio que deixou inúmeras pessoas feridas e culminou com a execução e o
desaparecimento do cacique Nízio Gomes, de 59 anos.

Apesar de o inquérito seguir em segredo de justiça, o delator contou para uma TV local
que os fazendeiros decidiram não esperar pela ordem judicial e resolveram por conta
própria retirar as famílias da comunidade Guaiviry. Segundo o criminoso, a determinação
para os capangas era de chegar atirando. “Velhos, jovens e crianças. Todos, à força.
Era para chegar atirando em todo mundo”, conta.

Na ação foram utilizadas seis armas calibre 12 munidas com bala de borracha e
moedas. “Disseram que era para a gente atirar à vontade porque não era letal, mas não
foi isso que aconteceu. Orientaram para colocar moedas nos canos das armas para ferir
mais, ter mais impacto e ser mais letal. Foi a ordem passada”, recorda a testemunha.

No início das investigações, a PF chegou a emitir relatórios duvidando da versão das


testemunhas indígenas e trabalhou com a hipótese de que tudo não passava de uma
armação e que o cacique estava vivo. Com o desenrolar do caso, testemunhas e provas
materiais comprovaram que o plano dos mandantes era sumir com o corpo e comprar
uma testemunha indígena para confirmar a tese de que Nízio estava vivo e escondido no
Paraguai.

No final de julho, a polícia encerrou o inquérito e concluiu que Nízio Gomes foi
assassinado. Seu corpo segue desaparecido. Os dezenove acusados pela PF
responderão por homicídio qualificado, lesão corporal, ocultação de cadáver, quadrilha
ou bando armado, porte ilegal de arma de fogo e corrupção de testemunha. Entre os
que tiveram prisão decretada estão o presidente do sindicato rural de Aral Moreira,
Osvin Mittanck, catorze funcionários da empresa de segurança privada Gaspem e seu
proprietário, o empresário e ex-policial militar Aurelino Arce. Na ficha corrida de crimes
da Gaspem contra os Guarani-Kaiowá constam a acusação de pelo menos outros dois
assassinatos, tentativas de homicídios e incêndios criminosos.

Ouvir

Uma imagem verdadeira com informação falsa: a foto é de um Guarani-Kaiowá com


muito sangue escorrendo da cabeça por todo o rosto, e a legenda diz: “Violência no
campo – Guarani-Kaiowá. Segurança indígena do 18º Encontro de Professores e
Lideranças Guarani-Kaiowá é atacado na noite de ontem por grupo desconhecido com
arma de fogo”.

Mas José Villalba não havia sido atacado por arma de fogo nem por nenhum
desconhecido no dia 1º de novembro, durante o encontro, mas sim caído de bicicleta.
Lideranças e professores Guarani-Kaiowá pediram aos fotógrafos que a imagem não
fosse divulgada, mas, depois de publicada na página do Facebook da Coluna PósTV
Guarani-Kaiowá, ligada ao grupo Fora do Eixo, mais de 3,2 mil pessoas a
compartilharam. “Pedimos aos fotógrafos que não fosse publicada para que não desse
uma impressão errada, mas pelo visto nos desrespeitaram”, lamenta o professor
indígena Anastácio Peralta.

Ainda no afã de dar visibilidade ao genocídio contra os Guarani-Kaiowá, outros


episódios mais graves e sem nenhum fundamento surgiram nas redes sociais, como as
denúncias da participação de um prefeito no estupro de uma indígena Guarani-Kaiowá
de Pyelito Kue e o assassinato de uma liderança Kaiowá da terra Yvy Katu − que nunca
morreu.

A onda de solidariedade é uma boa oportunidade para avançar na mudança da cultura


do não índio, que não costuma dar ouvido aos indígenas nem acreditar na voz desses
povos.

Cristiano Navarro

Jornalista, é diretor do documentário "Á sombra de um delírio verde".

* À sombra de um delírio verde

Documentário denuncia a presença de transnacionais no massacre dos indígenas guarani kaiowá


no Mato Grosso do Sul

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