O RELATIVISMO CULTURAL É VÁLIDO NAS CIÊNCIAS DA SAÚDE?
(1) Exame de suas bases filosóficas
Erna BASTÍAN
BASTIAN, E. — O relativismo cultural é válido nas ciências da saúde? Exame
de suas bases filosóficas. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 5: 83-8, 1971. RESUMO — Examina-se o conceito do relativismo cultural sob bases fi- losóficas e sua validade nas ciências da saúde. Analisam-se os têrmos abso- luto, relativo e universal, chegando-se a um modêlo operacional do relati- vismo cultural nas ciências da saúde. UNITERMOS — Ciências da saúde*; Relativismo cultural*; Conceito filo- sófico *.
1. O RELATIVISMO COMO POSIÇÃO A problemática da ação humana, espe-
FILOSÓFICA cificamente a sua validade, tem sido en- carada de acôrdo com diferentes pontos Admite-se que a teoria do relativismo de vista ou posições no pensamento refle- cultural, útil ao trabalho nas ciências so- tivo. Três destas posições são: o dog- ciais aplicadas, é posição controvertida matismo, o ceticismo, e o relativismo (LITTRÉ apud LALANDE 13 ). De fato, o (HESSEN 8 ). Entende-se por dogmático relativismo como posição filosófica é foco (dogma = doutrina fixada) a posição de uma polêmica histórica do pensamen- filosófica para a qual não existe o pro- to. A filosofia, desde a antiguidade gre- blema dos valores que orientam a ação. ga até os nossos dias, ocupa-se com dois Para o dogmatismo, os valores existem, grandes temas que necessitam de uma to- pura e simplesmente, e têm caráter abso- mada de posição: o problema do conheci- luto. O fato de que todos os valores mento e o problema da ação ou prática. pressupõem uma consciência valorizante, Em fins do séc. XVIII, KANT 10 resume os é desconsiderado pelo dogmático. O dog- propósitos da reflexão filosófica nas per- guntas: "o que posso saber, o que devo matismo passa por cima do sujeito e de fazer, o que posso esperar". É dentro da todos os seus determinantes como socie- problemática da ação prática com a per- dade, época histórica e características gunta "o que devo fazer", que se colocam culturais. as ciências humanas, e entre elas as ciên- O dogmatismo se converte, muitas vê- cias sociais aplicadas. zes, em seu oposto, o ceticismo. O ceti-
Recebido para publicação em 19-2-1971.
(1) Do Centro de Saúde "Geraldo de Paula Souza" da Faculdade de Saúde Pública da USP — Av. Dr. Arnaldo, 715, São Paulo, SP — Brasil. cismo nega a possibilidade do conheci- nhecimento das limitações e da realida- mento. É inútil enunciar qualquer jui- de. É uma atitude científica. zo. Pirro de Elis (300-270), fundador do ceticismo, recomenda a abstenção de todo juizo, a "epokê". No terreno da 2. RELATIVISMO CULTURAL — DEFINIÇÕES ação, o ceticismo nega a possibilidade da determinação do valor. Na ação huma- na, é impossível saber o que está certo O relativismo cultural é definido como e o que está errado. É evidente que o "a idéia de que qualquer item do com- ceticismo radical anula a si mesmo. Enun- portamento deve primeiro ser julgado em cia um juizo dizendo que é impossível relação ao seu lugar na estrutura única saber o que está certo ou errado, apesar da cultura em que ocorre e em têrmos de sua premissa de que não existe a pos- do sistema particular de valores daquela sibilidade de alguma afirmação válida. cultura..." 4, "...o têrmo às vêzes foi empregado para sugerir, que itens cul- Um posição intermediária entre o dog- turais (tais como normas éticas) podem matismo e o ceticismo, é o relativismo. ser julgados sòmente dentro do seu con- Enquanto o ceticismo ensina que não há texto, ou são tão únicos que apreciações nenhuma verdade, nenhum valor efetivo, comparativas estão fora de cogitações, o o relativismo afirma que há uma verda- que, porém, não precisa ser o caso" (COU- de, há valores, porém êstes sofrem limi- SIN apud LALANDE 13 ). Para HERSKO- tações. O relativismo tem um parentesco VITS 7, "o relativismo cultural é, em es- com o subjetivismo. Mediante êste, o co- sência, uma abordagem à questão da na- nhecimento e os valores existem, mas de- tureza e do papel dos valores na cultura. pendem de fatôres que residem no sujei- Êle representa um ataque científico, in- to cognoscente ou valorizante. No rela- dutivo a um velho problema filosófico, tivismo o conhecimento e os valores tam- usando novos dados interculturais, antes bém dependem de fatores externos como não accessíveis aos estudiosos. Êstes da- a influência do meio, o espírito da épo- dos foram derivados do estudo de siste- ca, a cultura da qual fazem parte e de mas referentes aos valores das sociedades seus determinantes7. Os representantes com os mais diversos costumes. O prin- clássicos desta posição são os Sofistas, cípio do relativismo cultural, em resumo, pensadores gregos, professôres, muito ata- é o seguinte: julgamentos são baseados na cados, cuja grande contribuição à cultu- experiência, e experiência é interpretada ra, revolucionária na época, foi mal re- por cada indivíduo em têrmos de sua pró- cebida. Entre êles Protágoras (séc. V pria enculturação". Em outro lugar ad- A. C.) com sua tese do homem-medida: verte o autor contra a idéia de um rela- "o homem é a medida de tôdas as coisas", tivismo extremo ou subjetivismo indivi- nega os valores absolutos, independentes dual. Diz: "o relativismo cultural, em do homem (GOMPERZ 5 ). Esta tese pode todos os casos, tem que ser claramente ser interpretada tanto em referência ao distinto, de conceitos da relatividade do homem genérico como ao homem indivi- comportamento individual, que negaria dual ou ao homem em situação de grupo. tôdo contrôle social sobre a conduta. Di- Como tal, representa o ponto de conver- zer que temos o direito de esperar con- gência dos fatôres externos, físicos e só- formidade ao código de nossos dias, não cio-culturais. Pode-se ver na tese de implica que devemos esperar, muito me- Protágoras a origem tanto do subjetivis- nos impor, conformidade com nosso có- mo como do relativismo sócio-cultural. O digo a pessoas que vivem segundo outros valor do relativismo está na atitude men- códigos. O verdadeiro núcleo do relati- tal objetiva, crítica, na dúvida das afir- vismo cultural é a disciplina social que mações dogmáticas sem o exame e o co- vem do respeito às diferênças — respei- to mútuo. Ênfase no valor de muitos Conceito de absoluto. No seu comen- modos de vida, não sòmente um, é uma tário ora citado, Herskovits caracterizou afirmação dos valores de cada cultura". o que o "absoluto" significa no contexto A idéia do relativismo cultural é muito cultural. LALANDE13 em sua definição discutida, até combatida por autores que faz referência direta ao "relativo": "... defendem a existência de valores absolu- absoluto — de absolvere, desligar, tam- tos morais e de cultura. A pergunta cru- bém fazer perfeito — se opõe em quasi cial da posição relativista, segundo HERS- todos os sentidos ao relativo; absoluto KOVITS 7 é a seguinte: "Há padrões mo- "... o que não comporta nenhuma res- rais absolutos ou são os padrões morais trição". Cita Littré que diz, absoluto efetivos sòmente enquanto concordam "o que não é relativo, o que não tem com as orientações recebidas num dado nada de contingente". Êstes autores dei- período de sua história?" ASCH 1 abor- xam claro que "absoluto é o verdadeiro da o problema do relativismo do ponto oposto de "relativo", suas características de vista psicológico, especìficamente dos são a imutabilidade e a incondicionali- processos psico-sociais que determinam as dade. Há características que permitem diferenças culturais: "o fato de que va- uma compreensão ainda mais profunda riam as idéias do que é certo ou errado dêste conceito. CARMICHAEL 3 fala dos representa um agudo problema para uma dez mandamentos como "absolutos e imu- teoria da natureza humana. Podemos táveis, regras de conduta estabelecidas discernir na história do pensamento duas por graça divina". Cita Maritain a quem soluções opostas. O pensamento tradicio- atribui uma "abordagem verdadeiramen- nal adota uma posição absolutista. Afir- te mística ao conhecimento do absoluto e ma que somos capazes de aprender certas das verdades eternas. Também HERSKO- ações como incondicionalmente certas e VITS 7 fala das verdades eternas. BID- outros atos como intrinsecamente erra- NEY 2, diz que cada povo considera seus dos". "Embora a investigação his- próprios valores como verdades eternas. tórica e comparativa demonstre a falta Estas qualificações explicitam que "abso- de estabilidade das instituições humanas, luto" é um conceito metafísico, incompa- seus praticantes aderem a elas de manei- tível com o mundo contingente e mutá- ra absoluta; todo sistema provinciano pa- vel, sujeito a tôda sorte de condições. rece a seus adeptos universalmente vá- LALANDE 13 cita mais uma vez Littré, que lido". diz: "as idéias absolutas são aquelas que, segundo a metafísica, não vêm da expe- riência". Experiência só há no mundo 3. ABSOLUTO OU UNIVERSAL? chamado real, enquanto o absoluto per- tence a um mundo ideal. O caso fica Asch é criticado por Herskovits por ainda mais claro em Cousin, também ci- não distinguir adequadamente valores ab- tado por LALANDE13, que diz: "as ver- solutos do que êle chama de "aspectos dades absolutas supõe um Ser absoluto, universais de cultura". De fato, ASCH 1 no qual tem seu último fundamento". O parece tratar os dois têrmos como sinô- conceito, também em Cousin, fica ligado nimos, enquanto HERSKOVITS 7 adverte à teologia. Êste é o universo dos abso- sôbre a necessidade da distinção, dizendo: lutos. "é essencial, considerando o relativismo cultural, que diferenciamos entre absolu- Conceito de universal. Dizemos que tos e universais. Absolutos são fixos, de o "absoluto" não pertence ao mundo cha- acôrdo com a convenção, não se admitem mado real. O "universal" sim. Na ló- variações ou diferenças de cultura para gica encontramos as seguintes definições cultura, de época para época". e descrições: Port-Royal (citado dor LA- LANDE13) diz do universal: "aquilo que é extremo, nem absolutismo extremo são considerado comum a todos os homens". aceitáveis...". Objetamos contra a ex- Enquanto as proposições puramente for- pressão "absolutismo extremo". Só há mais como o silogismo, são rigorosos e um absolutismo. Absoluto não comporta não admitem exceções, as proposições qualificações, justamente porque é incon- universais referem-se à ação ou à moral dicional. Há muita divergência ainda e admitem exceções. A citação de Port- sôbre a natureza dos universais de cultu- Royal: "tôdos os jovens são inconstantes" ra. Alguns autores atribuem a êles ain- é uma generalização, e como tal é ba- da caráter formal, no sentido de tipos seada num grande número de indivíduos, abstratos. E há autores que chegam ao mas certamente permite exceções. São universal pelo caminho da ciência expe- desta natureza as proposições das ciências rimental. Partindo do estudo dos costu- sociais aplicadas. Goblot, citado por LA- mes dos grupos e sociedades, que são LANDE13, explicita que ao universal se "produtos das experiências históricas e chega por meio do caminho indutivo. particulares" (BIDNEY 2 ), chega-se a va- Êste se fundamenta na experiência real lores que são comuns a tôdos os grupos de indivíduo a indivíduo, de grupo a ou sociedades. Assim, para HERSKO- grupo, de sociedade à sociedade, para VITS7, são categorias universais de cul- chegar no que é comum a tôdas estas tura "a moralidade", "o gôzo da beleza", entidades particulares. O universal, pois, "algum padrão de verdade". São valores se opõe ao particular, o absoluto ao rela- que todos os homens admitem e que po- tivo. O absoluto e o relativo se excluem dem, portanto, ser chamados de "univer- mùtuamente. Do relativo e particular, sais". Trata-se, pois, com o universal de pode se chegar ao universal pelo método um conceito empírico, derivado da expe- científico da indução. riência por observação e feneralização. Nêstes universais pode haver exceções: homens que não valorizam a moralidade, 4. RELATIVO E UNIVERSAL ou o gôzo da beleza, ou a verdade. Pois não se trata de conceitos absolutos. Os Vimos que, entre os autores, há diver- costumes particulares, pelos quais os gru- gências referente à questão se há padrões pos e sociedades expressam êstes valores, morais absolutos ou se os padrões morais variam de acôrdo com as condições tem- são relativos, variáveis de acôrdo com as po-espaciais ou históricas e locais dêstes condições externas e internas dos grupos grupos. humanos. Esta questão não é possível de Validês dos universais de cultura. A resolução no terreno da ciência. Porém tese relativista, na qual todos os valores há possibilidade de diálogo entre o rela- são equivalentes entre si, leva a um plu- tivo e o universal. Ambos pertencem ao ralismo de valores. Tantos grupos, tan- mesmo universo de ciscurso, ao do mun- tos valores. Para as ciências sociais apli- do real. Êste diálogo é aceito e defen- cadas, especialmente com fins modifica- dido por autores que atribuem à cultura dores de práticas, isto significa que não tanto aspectos relativos como universais. há nenhum argumento a favor da modi- KLUCKHOHN 12, autor do têrmo "univer- ficação, porque uma prática é tão boa sais de cultura", diz: "é um dos vá- quanto a outra. Nêste impasse os uni- rios têrmos usados para designar aspec- versais de cultura desempenham um papel tos de cultura que se acredita existirem operacional importante. Se há valores entre tôdos os homens...". Observa: universais, e sòmente formas de manifes- "... pode-se conceber quaisquer valores, tação diversas, é possível comparar estas se não como bàsicamente absolutos, pelo formas em referência à atualização dos menos universais". E, "nem relativismo valores. Citamos a experiência de HAN- LON 6 com um grupo étnico, para o qual de seja um bem universal. Dêste modo, não existia doença como nós a entende- o cientista evita um pluralismo extremo, mos. Doença era um descontentamento que não justifica nenhuma mudança. Ao de Deus com o indivíduo e o homem não mesmo tempo, pela análise dos aspectos podia intervir na vontade de Deus. A universais dêste bem, elabora um concei- nosso ver, o que Hanlon empreendeu foi identificar junto com o responsável pelo to científico e operacional da "saúde". grupo, a saúde como um bem universal. Para KLUCKHOHN 12 "um bem é um va- 5. COMENTÁRIO lor universal". Dêste modo conseguiu de um lado desvincular a problemática da O relativismo, como posição filosófica, doença do terreno metafísico (o reino do continuará polêmico enquanto houver absoluto no qual não há exceção, nem pensadores de orientação dogmática e ab- mudança). De outro lado distinguiu da saúde como um bem as interpretações, as solutista. Não há resolução da proble- manifestações e o conteúdo subjetivo que mática absoluto-relativo, porque não há o grupo atribuiu a êste valor. KANT 9, passagem de um conceito para o outro, que colocou a pergunta "o que devemos encontrando-se os dois em terrenos essen- fazer", responde esta no mesmo sentido. cialmente diversos. À observação dos au- Pronuncia-se contra a determinação do tores, que a teoria do relativismo cultural conteúdo particular e de normas especí- é útil ao trabalho nas ciências sociais ficas da ação moral. Reconhece regras aplicadas, pode-se acrescentar que o re- subjetivas e relativas, tanto quanto obje- lativismo em si é válido por sua orienta- tivas e universais. Chama as primeiras de "máximas", as segundas de "leis". ção para a objetividade, e que seu diá- Ambas são derivados empíricos; à lei se logo com a posição universalista o torna chega por indução a partir dos fatos da defensível tanto do ponto de vista cientí- experiência. O postulado da "razão prá- fico como filosófico. tica" de Kant é: "aja sempre de modo que a máxima de tua vontade possa ser ao mesmo tempo um princípio válido co- BASTIAN, E. — [Is the cultural relativism mo lei universal". São máximas (subje- valid in health science? Discussion of the tivas e relativas) as interpretações dos validity of health sciences in cultural re- grupos étnicos de valores universais tais lativism]. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 5:83-8, 1971. como "beleza", "verdade", "bem". Con- siderando a saúde um "bem", êste é um SUMMARY — The concept of cultural valor universal. Uma "lei" universal ex- relativism on a philosophical basis and its pressa a obrigatoriedade de concordân- validity in health sciences, is examined. The concepts of the absolute, the relative and cia das máximas com o valor considerado the universal are analysed and a working universal. (Também na lei pode haver model for cultural relativism in the health exceção). Pode-se entender em KLU- sciences is attained. CKHOHN 11, que a validês universal da UNITERMS — Health sciences*; Cultural saúde como um bem está na sua essên- relativism*; Philosofical concept*. cia. Confrontando, portanto, o cientista social com a interpretação subjetiva dês- te bem por um determinado grupo étnico ou com suas respectivas máximas, resta REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS a êle examinar se estas máximas são efi- cazes de atualizar a essência dêste, isto é, 1. ASCH, S. E. — Psicologia social. São atualizar aquilo que faz com que a saú- Paulo, Ed. Nacional, 1960. 2. BIDNEY apud KROEBER, A. L. — 8. HESSEN, J. — Teoria del conocimiento. Anthropology today. Chicago, University 7.ª ed. Buenos Aires, Espasa, 1952. of Chicago Press, 1953. 9. KANT, E. — Crítica da razão prática. 3. CARMICHAEL, L. apud SCHOECK, H. & Rio de Janeiro, Ed. Publ. Brasil, 1967. WIGGINS, J. W. — Relativism and the study of man. Princeton, Van Ncstrand, 10. KANT, I. — Kritik der Reinen Vernunft. 1961. 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