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METODOLOGIA DE PESQUISA EM ENSINO DE FÍSICA: UMA PROPOSTA PARA


ESTUDAR OS PROCESSOS DE ENSINO E APRENDIZAGEM

Article · January 2004

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Anna Maria Carvalho


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METODOLOGIA DE PESQUISA EM ENSINO DE FÍSICA: UMA
PROPOSTA PARA ESTUDAR OS PROCESSOS DE ENSINO E
APRENDIZAGEM

Anna Maria Pessoa de Carvalho


Faculdade de Educação
Universidade de São Paulo

Introdução

Vamos apresentar e discutir a proposta metodológica que desenvolvemos para as pesquisas


que enfocam os processos de ensino e de aprendizagem nas escolas fundamentais e médias.
Como é impossível discutir uma metodologia de pesquisa sem interligar os problemas que
deram origem a esse desenvolvimento e o referencial teórico utilizado para estruturar as
hipóteses que alicerçam as principais questões de pesquisa iremos primeiramente delinear
os nossos problemas e nossos referenciais teóricos.

Outro ponto que queremos focalizar, desde essa introdução, é que apesar de uma
metodologia de pesquisa não se resumir à coleta de dados esta é a sua principal função, pois
a estrutura metodológica de uma pesquisa visa cercar a coleta de dados de todos os
cuidados para que estes respondam, com a maior confiabilidade e precisão possível as
questões levantadas.

Precisamos nos lembrar que qualquer estudo científico pode e deve ser replicado, e as
pesquisas em ensino de ciências precisam dar aos seus leitores todas a condição para uma
possível réplica, mesmo quando o trabalho apresentado for um estudo de caso. Isso é obtido
quando a metodologia da pesquisa é descrita com todo o cuidado mostrando
detalhadamente o processo de obtenção e de análise dos dados.

Os Problemas de Pesquisa Sob o Ponto de Vista Teórico-Metodológico

Estudar as inter-relações entre os processos de ensino e de aprendizagem durante uma aula


ou, em outras palavras, procurar entender o como e o porquê o aluno aprende (ou não)
quando o professor ensina sempre foi o objetivo maior de nosso grupo de pesquisa no
LaPEF – Laboratório de Pesquisa e Ensino de Física.

Iniciamos nossas pesquisas em sala de aula na década de 80 utilizando uma metodologia


bastante tradicional: descrevíamos com bastante detalhe o trabalho do professor e
procurávamos nossos dados nos trabalhos escritos dos alunos – trabalhos, provas e ou
entrevistas. Algumas outras variáveis intervenientes que nós na época achávamos
importantes também eram medidas, como por exemplo, o nível de desenvolvimento
cognitivo obtido por testes piagetianos.
No inicio da década de 90, sob a influência dos resultados obtidos nestes primeiros
trabalhos tomamos duas decisões, para nós bastante significativas:
- Passamos a procurar mais referenciais teóricos junto a pesquisadores da área de
ensino de ciências e/ou em trabalhos cuja referencia era o ensino e a aprendizagem
desenvolvidos em sala de aula e,
- Em termos de nossa metodologia de pesquisa, procuramos meios que nos
mostrassem com mais rigor o processo de desenvolvimento do ensino. Não nos
bastava saber que um número significativo de alunos aprendia, queríamos conhecer
o processo dessa aprendizagem: queríamos passar de ‘quanto’ para o ‘como’ se
aprende quando ensinamos. Foi nessa época e visando alcançar esses objetivos que
introduzimos as gravações de vídeos em nossos trabalhos de pesquisa (Carvalho
1996).

Ao final de 1990, estruturamos uma série de perguntas sobre a construção, pelo aluno, dos
conceitos em situação de ensino e sobre o papel que a história das ciências e a resolução de
problemas tem na construção do conhecimento em situação de ensino (Carvalho et al. l995,
1995). Organizamos então as pesquisas para responder essas questões. Neste contexto os
dados obtidos pelas gravações em vídeo se tornaram fundamentais para estudarmos o
trabalho desenvolvido em sala de aula, uma vez que os vídeos nos mostravam o
detalhamento do processo de ensino e de aprendizagem, sendo que as anotações dos
professores e os resultados das provas dos alunos passaram a dados secundários, porém
importantes sim, para a triangulação e para a validação dos dados gerados pelas gravações
em vídeo.

No decorrer desse período, enquanto as pesquisas estavam sendo geradas, os vídeos sendo
vistos, os dados sendo estruturados muitas discussões foram feitas e fomos tomando
consciência de vários pontos, tanto teóricos como metodológicos que vieram a influenciar
as próximas pesquisas.

Do ponto de vista metodológico observamos que a análise dos vídeos era ‘mais fácil’
quando o pesquisador não é o próprio professor. Sem podermos definir com precisão o que
seja ‘mais fácil’ percebemos, entretanto, que quando o pesquisador analisava suas próprias
aulas esta vinha carregada de outras informações: quer por procurar justificar seus
comportamentos, quer por ter outros conhecimentos sobre os alunos que não diziam
respeito ao que estávamos pesquisando, mas que interferiam em suas analises. Nestas
ocasiões o professor era mais importante que o pesquisador e os conhecimentos não
sistematizados mais importantes do que os referenciais teóricos.

A partir destas análises fizemos uma distinção: quando o foco do trabalho é a formação
profissional do professor a gravação de suas aulas e a sua auto análise é fundamental,
entretanto, quando o problema diz respeito aos processos de ensino e aprendizagem,
procuramos separar o professor do pesquisador obtendo os dados em classes de outros
colegas.

Do ponto de vista teórico um fato merece ser destacado: a tomada de consciência das
atitudes e comportamentos dos professores e dos alunos em sala de aula nas diversas
atividades de ensino. Para que o aluno exponha o seu pensamento durante o ensino é
necessário é indispensável o planejamento de uma atividade que dê oportunidade de
promover uma ampla participação e envolvimento destes, mas, além disso, o professor
precisa estar preparado para conduzir a argumentação em classe - entre professor/alunos e
alunos/alunos. Assim o problema da argumentação  de como ela acontece em sala de
aula e qual o seu papel na construção do conhecimento pelos alunos  surgiu como uma
necessidade de aprofundamento teórico para o grupo.

Vimos também que na sala de aula havia grande identificação do papel de professores e
alunos nas diversas atividades de ensino, isto é nas aulas de laboratório, nas de resolução de
problemas, nas discussões de textos históricos e mesmo nas de introdução de novos
conceitos. Isso chamou muito nossa atenção e começamos a discutir esse fato com outros
grupos de pesquisa com os quais tínhamos interação tendo em vista a sedimentação teórica
das posições construtivistas em Ensino de Ciências. Dessas discussões conjuntas foram
estruturados dois trabalhos publicados na Enseñanza de las Ciencias (Gil. et al, 1999a e Gil
et al 1999b) e um na Science & Education (Gil et al 2002) que justamente discutiam a
identificação entre as atividades de construção de conceitos, resolução de problemas e
laboratório em um ensino construtivista.

Outra influência que esse conjunto de pesquisas proporcionou foi uma nova estruturação de
nosso Laboratório. A partir do estabelecimento dos projetos de pesquisa FAPESP/Escolas
Públicas passamos a investigar o ensino sob três dimensões: as pesquisas feitas pelos
próprios professores sobre o quanto seus alunos aprendem (o que chamamos de pesquisas
no ensino), as sobre as aulas desses professores (pesquisas sobre o ensino) e as sobre
formação de professores (Carvalho 2003). Uma discussão aprofundada sobre essas
investigações nos mostrou diferenças significativas entre as metodologias de pesquisa
quando as perguntas são: ‘quanto se aprende’ e ‘ como se aprende’.(Carvalho 2003).
Apesar de estarmos nas duas frentes, o nosso interesse maior é entender a relação entre o
como se ensina e o como se aprende.

Nossas pesquisas pretendem responder as seguintes questões:


- Os estudantes conseguem perceber a Ciência como uma construção quando participam de
um ensino por investigação como o que está sendo desenvolvido?
- As atividades que planejamos (para o ensino fundamental e médio) proporcionam um
aprimoramento nas linguagens escrita e oral dos alunos? Elas criam condições para a
construção de conhecimentos procedimentais e atitudinais?
- Qual o papel da linguagem do professor na construção do conhecimento de seus alunos?
- Qual as condições de ensino que possibilitam as argumentações dos alunos?

Estas não são as únicas questões envolvendo a enculturação científica no ensino das
ciências, entretanto ainda são questões amplas para as quais estamos buscando respostas
através de vários trabalhos.

Durante todos esses anos estamos utilizando e desenvolvendo uma técnica de coleta de
dados, através de vídeo gravações (Carvalho 1996, Carvalho e Gonçalves 2000), que tem se
mostrado altamente produtivo quer nas pesquisas em que o enfoque é o professor quer nas
investigações que procuram entender como os alunos constroem os conhecimentos
científicos durante as aulas.

A Metodologia das Pesquisas que Procuram Estudar os Processos de Ensino e de


Aprendizagem em Sala de Aula

1- Caracterização de nossas pesquisas dentro do referencial das pesquisas qualitativas

Estas pesquisas obedecem a um delineamento do tipo qualitativo, uma vez que interpretam
a fala, a escrita, os gestos e ações dos professores e alunos durante as aulas.

Lücke e André (1986) ao apresentar as pesquisas qualitativas dentro de uma visão


etnográfica nomeiam algumas de suas principais características: “ A pesquisa qualitativa
tem o ambiente natural como sua fonte direta de dados e o pesquisador como seu principal
instrumento.  Os dados coletados são predominantemente descritivos.  A preocupação
com o processo é muito maior do que com o produto.  A análise dos dados tende a seguir
um processo indutivo.  Os pesquisadores não se preocupam em buscar evidências que
comprovem hipóteses definidas antes do início dos estudos.  As abstrações formam-se ou
se consolidam basicamente a partir de inspeção dos dados num processo de baixo para
cima” (p. 11-13).

Tendo em vista que a pesquisa qualitativa pode ser considerada um grande guarda-chuva
que abriga as diversas estratégias qualitativas, tendo em maior ou menor grau pontos de
intersecção com as características tradicionais (Bogdan e Biklen 1992) tais como foram
relacionadas por Lüke e André (1986) vamos discutir cada um dos pontos abordados com o
principal propósito de bem caracterizar uma proposta metodológica para as pesquisas mais
direcionadas ao entendimento dos processos de ensino e de aprendizagem em ciências que
diferem em alguns pontos da pesquisa etnográfica. Dizemos que essas pesquisas são mais
direcionadas porque não vamos procurar entender qualquer ensino, mas nos deter em aulas
planejadas dentro de referenciais teórico-construtivistas dirigidas por professores que
participam destes posicionamentos.

Sobre as duas primeiras características apontadas pelas autoras “a pesquisa qualitativa tem
o ambiente natural como sua fonte direta de dados e o pesquisador como seu principal
instrumento” e “os dados coletados são predominantemente descritivos” existe uma
diferença fundamental entre a nossa proposta metodológica e a proposta mais tradicional.
Temos também as salas de aula, em seu ambiente natural, como fontes de nossos dados e
esses são predominantemente descritivos, pois nosso objetivo é a descrição do fenômeno do
ensino de ciências que leva os alunos á uma enculturação científica. Entretanto em nossas
pesquisas o pesquisador não é o nosso principal instrumento. Apesar de ele ter um papel
fundamental: comandará a câmera de vídeo e escolherá o que observar é ‘a câmera de
vídeo’ o instrumento principal, pois é através dela que colheremos as imagens que
posteriormente serão analisadas.

Sobre a terceira característica: “a preocupação com o processo é muito maior do que com o
produto” podemos dizer que na metodologia que estamos propondo o “processo é tão
importante como o produto”. De um lado queremos entender o processo de ensino e essa
descrição deve ser perfeita, entretanto o produto, isto é, a aprendizagem pelos alunos do
conteúdo ensinado também é importante, pois temos claro que somente existe ensino se
existir aprendizagem.

As duas características seguintes apontadas por Lüke e André (1986) não são sempre
válidas para a nossa proposta metodológica. Sobre as proposições “a análise dos dados
tende a seguir um processo indutivo” e “os pesquisadores não se preocupam em buscar
evidências que comprovem hipóteses definidas antes do início dos estudos” nossa posição é
um pouco divergente, pois para nós são as hipóteses pensadas e estruturadas anteriormente
que orientam o nosso olhar sobre o objeto investigado. Nossos conhecimentos prévios e
nossos referenciais teóricos definem o que queremos ou podemos observar.

A últimas das características apontadas: “as abstrações formam-se ou se consolidam


basicamente a partir de inspeção dos dados num processo de baixo para cima” merece nos
determos mais, pois já nos deparamos durante nossas investigações com situações bem
diferenciadas. Em algumas de nossas pesquisas as abstrações formaram-se e se
consolidaram a partir de uma análise dos dados, não num processo de baixo para cima, mas
numa interação entre os referenciais teóricos e os dados obtidos (Carvalho 2004,
Nascimento 2003; Capecchi 2004; Abrahão e Carvalho 2003). Entretanto, em outras
ocasiões nos deparamos com fenômenos que muitas vezes não estamos preparados
teoricamente para analisar. Um exemplo típico deste fato se deu quando procurávamos
detectar as mudanças conceituais ocorridas em sala de aula durante o ensino (Teixeira
1992; Mortimer 1994). As atividades planejadas para promover desequilíbrio/reequilíbrio
nos alunos, levando-os à mudança conceitual, foram muito mais complexas do que
imaginávamos. A análise das discussões em classe e da trajetória conceitual dos alunos só
foi detectada após revermos as fitas várias vezes. Só então apercebemo-nos de alguns
fenômenos educacionais interessantes, especialmente aqueles relacionados à resistência às
mudanças conceituais, que necessitaram um maior aprofundamento teórico.

Uma questão delicada da metodologia qualitativa refere-se à validade e a fidedignidade dos


resultados obtidos. Validade diz respeito ao compromisso de estarmos medindo realmente o
que queremos assim esta relacionada com o planejamento geral do experimento. A
fidedignidade diz respeito a precisão de nossas medidas - discutiremos esse conceito
quando falarmos sobre os cuidados na transformação das gravações (dados brutos) em
dados para a análise.

Sobre a validação dos resultados Astolfi (1993) adverte que é preciso cuidado para não
rotular como “válidos” alguns resultados que acontecem espontaneamente ou conferir valor
teórico a uma pesquisa apenas porque ela acontece em uma sala de aula real, ou então
legitimar uma inovação pelo único fato de ter sido conduzida num quadro de pesquisa.
Segundo Astolfi (1993, p. 5), a saída para o problema é “multiplicar as referências
disponíveis e procurar uma diversidade de rigores, cada uma adaptada ao seu objeto
específico”, em outras palavras, temos de ter o cuidado de triangular os dados, o que
significa procurar três fontes de dados que possam oferecer visões distintas do mesmo
fenômeno. Essa mesma preocupação é mostrada também por Erickson (1998) quando
propõe que para aumentar a credibilidade de evidências uma análise documental, através de
produções escritas dos alunos, poderá ser acrescentada à pesquisa tendo em vista ampliar as
fontes de informação.

A proposta metodológica das pesquisas que procuram estudar os processos de ensino e de


aprendizagem em sala de aula deve seguir todas as recomendações para a validação dos
resultados obtidos. Apesar de, sem dúvida alguma, as imagens coletadas através de uma
câmera de vídeo serem as principais fontes de dados destas pesquisas temos sempre de
procurar triangular os dados, isto é, procurar outras fontes como: notas de campo, trabalhos
escritos de alunos, entrevistas com professores e/ou alunos para validar nossas análises.

2- Cuidados necessários nas gravações em vídeo das aulas

Nas investigações que tem como objetivo estudar o ensino e a aprendizagem nas próprias
salas de aula as gravações em vídeo destas aulas vão gerar os dados preferenciais.
Entretanto temos de tomar cuidados especiais para que essas imagens possam ser utilizadas
como dados de observação.

O planejamento da filmagem é essencial para que aspectos importantes não sejam perdidos,
assim como não sejam registradas informações em excesso aleatoriamente. Segundo Lüdke
e André (1986, p. 25), "para que se torne um instrumento válido e fidedigno de
investigação científica, a observação precisa ser antes de tudo controlada e sistemática. Isso
implica a existência de um planejamento cuidadoso do trabalho e uma preparação rigorosa
do observador". Planejar a gravação significa determinar com antecedência e comunicar ao
operador da máquina, "o quê" e "como" gravar.

Considerando nosso interesse tanto na fala do professor quanto dos alunos e nas diferentes
situações de ensino que serão registradas - trabalhos em grupo, discussões com toda a
classe e sistematizações do professor – dois procedimentos diferentes poderão ser adotados.
Nas situações envolvendo a participação da sala toda, a câmera de vídeo deve focalizar
mais os alunos, para que possam ser identificados enquanto falam, porém sem perder de
vista o professor. Nestes casos a posição preferencial da câmera é em um dos lados na
frente da classe de tal maneira que consiga visualizar os alunos de frente e o professor de
lado. Nas situações envolvendo discussões em grupos pequenos, a filmagem deverá estar
voltada sempre para um mesmo grupo. Este procedimento será necessário para que
possamos observar a evolução das argumentações daquele grupo de alunos.

Para que os discursos dos alunos e do professor possam ser associados, é fundamental o
registro em vídeo da aula completa e se possível de toda uma seqüência de aulas, já que é
impossível prever em que momentos da mesma ocorrerão eventos relevantes para a
pesquisa.
Um dos pontos mais importantes nas gravações em sala de aula diz respeito às questões
éticas, pois as investigações em salas de aula são pesquisas que envolvem pessoas e temos
de ter todo cuidado na exposição da imagem tanto do professor como dos alunos. É
importante discutir com o professor colaborador os objetivos de nossa pesquisa, mesmo
porque a implementação da proposta de ensino depende diretamente de seu engajamento.
Segundo Erickson (1998), o sujeito de uma pesquisa fica muito mais ansioso quando não
sabe os propósitos da mesma, bem como o que é esperado dele.

Um cuidado que temos é pedir autorização por escrito, pelo menos do professor, para
podermos utilizar suas falas. Se quisermos utilizar as imagens – e sempre gostamos de
mostrar os vídeos nos congressos – temos a obrigação de ter autorização por escrito de
todos os alunos para o uso das imagens.

Outro cuidado que devemos ter é o de sempre fazer uma cópia dos vídeos gravados para
serem utilizadas como dados da pesquisa. O uso continuado destes durante a fase de análise
dos dados e de transcrição dos episódios de ensino compromete a qualidade das gravações.
Quando a pesquisa termina e queremos editar estes episódios para outros fins, como, por
exemplo, para cursos de capacitação de professores, isto só será possível se tivermos uma
cópia de boa qualidade.

Uma questão que sempre nos fazem é: quando colocamos uma câmera de vídeo em sala de
aula ela não interfere nesta mesma aula? Vamos discutir essa questão pelos pontos de vista
prático e teórico.

Na prática a interferência é mínima, principalmente quando filmamos uma boa aula onde os
alunos são envolvidos intelectualmente pelo novo conhecimento que o professor está
trazendo. O fenômeno aula é muito mais envolvente do que uma gravação. Entretanto
sempre precisamos tomar cuidado para não interferir. O primeiro cuidado é acostumar a
classe com a pessoa que vai gravar e com a função da gravação. Assim devemos iniciar as
gravações algumas aulas antes das planejadas para a obtenção dos dados de tal modo que os
alunos e o professor já vejam essa função como parte da aula e toda a curiosidade já tenha
sido acalmada. Isso não acontece somente com a câmera de vídeo, mas com qualquer
pessoa entranha à classe inclusive um pesquisador que vá simplesmente observar.

Do ponto de vista teórico não podemos dizer que não há interferência, pois todo e qualquer
instrumento interfere no fenômeno a ser estudado: um voltímetro modifica a voltagem que
pretendia medir, um termômetro troca calor com o corpo do qual mede a temperatura e
assim o valor mostrado é alterado. Mas teríamos um crescimento das ciências, uma
explicação dos fenômenos do universo, sem a utilização de instrumentos?
Ao propormos introduzir o vídeo na tomada de dados da pesquisa em ensino e também na
de formação de professores já nos propusemos à pergunta: não seria possível comparar o
impacto e a transformação que uma filmadora de vídeo traz para a pesquisa em ensino à
transformação que o uso do microscópio trouxe a Biologia ou o emprego do telescópio para
a Astronomia, pois, como mostra Koyré (1982),

"o telescópio de Galileu não é um simples aperfeiçoamento da luneta


'batava'...é construído com uma determinada finalidade científica, a saber,
revelar a nossos olhos coisas que são invisíveis a olho nu. Eis o primeiro
exemplo de uma teoria encarnada na matéria, que nos permite ultrapassar
os limites do observável, no sentido do que é dado à percepção sensível,
base experimental da ciência pré-galileana (pp 55)".

Na verdade as lentes de uma câmera, encarnada na sala de aula, tendo um pesquisador por
trás permite, em sala de aula, ultrapassar os limites do observável na relação aos processos
de ensino e aprendizagem e nos leva, sem dúvida, a uma mudança de paradigma nas
pesquisas didáticas.

3- Como transformar as gravações das aulas em dados para as pesquisas

Temos de ter consciência que as gravações não são os dados de uma pesquisa, muito pelo
contrário, como a aula é um fenômeno bastante complexo uma mesma gravação pode
servir para estudarmos mais de um problema tendo por base mais de um referencial teórico.

Um aspecto importante da transformação das gravações dos vídeos em dados para as


pesquisas é que podemos ver e rever as aulas quantas vezes forem necessárias. Esse ver e
rever traz às pesquisas em ensino uma coleção de dados novos, que não seriam registrados
pelo melhor observador situado na sala de aula. É ver aquilo que não foi possível observar
durante a aplicação do experimento em sala de aula e, mesmo, descobrir fatos que só se
revelam quando assistimos as fitas várias vezes. O registro das múltiplas facetas dos
fenômenos que ocorrem em sala de aula, feito pela gravação em vídeo dessas pesquisas,
leva o grupo de pesquisadores a possibilidade de diálogo com outros especialistas em
educação e, portanto, de trabalhos interdisciplinares com abordagem teórico-temáticas
diversas.

Para transformar as gravações das aulas em dados para as nossas pesquisas temos de
selecionar o que denominamos “episódios de ensino”, isto é, “momentos extraídos de uma
aula, onde fica evidente uma situação que queremos investigar” (Carvalho et al. 1993). O
episódio faz parte do ensino e é, pois, um recorte feito na aula, uma seqüência selecionada
onde situações chaves são resgatadas. Essas situações, que se relacionam com as perguntas
do pesquisador, pode ser, por exemplo, a participação dos alunos levantando hipóteses
durante a resolução de um problema experimental, a argumentação que aparece em um
debate entre professor e alunos, os tipos de perguntas que os professores fazem para seus
alunos, as seqüências das explicações dos alunos durante uma experiência, a discussões dos
alunos após a leitura de um texto de história das ciências, etc.
Ao assistir aos vídeos das aulas, pode-se notar que um mesmo episódio de ensino pode não
ser contínuo, isto é, o problema que se está analisando tem sua seqüência interrompida,
continuando minutos após ou mesmo em aulas posteriores. Nestes casos, subdividimos os
episódios de ensino em cenas. Cabe ao pesquisador um trabalho muito próximo ao de um
produtor de um filme. É ele que vai montar as diversas cenas de um episódio para dar
sentido aos seus dados, pois os diálogos, as discussões em sala de aula não são retilíneas
sendo que temos de tomar consciência da dificuldade da construção do conhecimento pelos
alunos e da lentidão com que se processam as mudanças dos conhecimentos espontâneos
para os científicos, das idas e vindas tanto das participações dos alunos como a dos
professores.

Entretanto, diferentemente de um produtor que procura um produto artístico e único, no


nosso caso temos de procurar uma objetividade científica integrando os dados empíricos
com os referenciais teóricos e fazendo a fidedignidade de nossas escolhas.

Depois de ver e rever as gravações das aulas de maneira a separar os possíveis episódios
que irão dar as pistas para equacionar as questões da pesquisa o próximo passo é fazer uma
primeira tentativa de classificação destes episódios. É então necessário uma forte interação
com os referenciais teóricos.É a teoria que vai dar sustentação às observações realizadas.

Em algum ponto da análise dos episódios de ensino, quando eles ainda estão em uma forma
mais bruta ou quando eles já estão transcritos ou mesmo nestes dois momento sugere-se
uma apresentação à um grupo de discussão ou para uma série de juizes com objetivo de
uma maior precisão dos dados obtidos. Não é fácil fazer a relação teoria/dados empíricos,
principalmente na análise de uma aula que é um fenômeno bastante complexo, assim os
juizes ou o grupo de discussão pode ajudar na segurança dos dados alcançados. É esse
cuidado que chamamos de fidedignidade de nossas medidas.

Nos relatórios finais das pesquisas e/ou nas apresentações das dissertações e teses deve-se
colocar em um apêndice a transcrição por completo das aulas das quais os episódios foram
retirados, pois os pareceristas das instituições financiadoras e/ou os membros das bancas
serão os juizes finais sendo que eles deverão também dar seus pareceres sobre a validade e
fidedignidade de nossos trabalhos.

4- A transcrição dos dados

Queremos interpretar a fala, a escrita, os gestos e ações dos professores e alunos durante as
aulas e para a análise destas diferentes linguagens ocorridas durante o ensino a transcrição é
um instrumento essencial. Detalhes de linguagem ou mesmo a coerência entre a linguagem
oral e o gestual pode passar despercebido numa análise direta do áudio ou do vídeo ficando
mais claras nas transcrições.

As transcrições devem ser totalmente fiéis às falas a que correspondem, sendo a


substituição de termos por sinônimos terminantemente proibidos. Sobre a correção de erros
de concordância existe dois pontos de vista diferentes entre os pesquisadores desta área: um
grupo acha que não se pode fazer as correções enquanto outro, recorrendo a posições éticas
de um profissional estar analisando outro profissional, quase sempre colegas e ainda a
diferença existente entre a linguagem falada e a escrita, acha necessário que pequenas
correções gramaticais sejam feitas na apresentação dos dados. Existem também problemas
com as pronúncias de palavras.

Outro aspecto importante das transcrições é a possibilidade de não se perder informações


sobre entonação, pausas, humor, grau de certeza nas afirmações, entre outros. Lemke
(1998), chama a atenção para a importância da conservação destas informações nos
registros, visando uma análise detalhada dos mesmos. Para que isso aconteça temos de
seguir algumas normas já acordadas (Preti, 1997, Capecchi 2004) de tal modo que cada
pesquisador não crie o seu próprio código dificultando o entendimento na área. O
importante é que essas regras sejam colocadas claramente no relatório final da pesquisa,
dissertações e/ou teses, para que os leitores possam entender e traduzir os significados das
linguagens.

Além da apresentação dos episódios no corpo do trabalho estes deverão ser transcritos
integralmente no relatório final, aparecendo então, a reprodução dos diálogos originais do
fenômeno observado, a fim de proporcionar ao leitor a oportunidade de aceitar ou rejeitar
as análises dos pesquisadores.

5 – Alguns Pontos para Finalizar

Procurar entender o processo da construção do conhecimento escolar é objetivo de muitos


pesquisadores, mas principalmente daqueles que acreditam no papel fundamental do ensino
em sala de aula e por isso mesmo querem conhecer melhor a relação entre o ensinar e o
aprender.

Saber o ‘como’ e o ‘quando’, por exemplo, uma aula de laboratório ou uma atividade de
história da ciência auxilia os alunos na construção dos conhecimentos escolares
(conceituais, atitudinais e processuais) e saber ‘como’ e ‘quando’ a intervenção do
professor, a proposta de uma discussão ou a interação entre os alunos ajuda nessa
construção são questões importantes para entendermos como o conhecimento em
construção é realizado no dia a dia das salas de aula.

As pesquisas já realizadas sobre as concepções espontâneas de alunos e professores e as


visões destes sobre ciências e ensino de ciências trouxeram um maior entendimento para as
análises das interações que ocorrem nas salas de aula e são conhecimento básico para as
pesquisas que procuram entender a relação entre o ensino e a aprendizagem, entretanto o
que agora procuramos é entender como esses fatores influenciam no desenvolvimento do
ensino e na aprendizagem dos alunos.

Essas pesquisas, que procuram estudar os processos de ensino e de aprendizagem e que


buscam seus dados nas salas de aulas das escolas da comunidade são, algumas vezes,
bastante demoradas, pois tem de obedecer ao tempo do ensino real, com todas as
implicações da comunidade escolar. Por outro lado grande parte de nossas investigações é
orientada para serem realizadas por mestrandos e/ou doutorandos que têm tempo limitado
para a execução das mesmas. Entretanto essa dicotomia temporal pode facilmente ser
enfrentada se organizarmos projetos integrados nos grupos de pesquisas, proposta essa
muito semelhante a que encontramos nos laboratórios científicos, fazendo com que a
gravação de uma mesma aula ou uma mesma seqüência didática possa ser analisada por
diferentes pontos de vistas teóricos.

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